No Natal de 1973, foi morar na quinta casa e a amiga Raquel na terceira e o momento do parto se aproximou, e o comportamento de Lira não se alterou, meiga, tranqüila, porém preocupada com as duas crianças que ficariam em casa aos cuidados da comadre Raquel. Não havia motivo para ficar preocupada, exceto pelo Laurence, que estava muito apegado a ela. Todo tempo da gravidez ele passou no colo.
O Sílvio ligou para o doutor Nicolau e avisou que as cólicas iniciaram. Como estava em outra maternidade e a Cesárea de Lira estava marcada para quarta-feira, pediu que a levasse à Casa de Saúde e Maternidade Joari, que depois daria um jeito. Despediu-se: Boa sorte!
Lira chateada já havia decidido ser operada, diante das circunstâncias, não restava muito a fazer. Teve sorte, ficou na mesma cama onde estivera um ano e meio antes, com direito a ventilador de teto e a gozação do médico, que foi logo dizendo que ela tinha gostado tanto que retornou.
Aos cinqüenta minutos do dia vinte de janeiro de 1974, nasceu de parto normal, mais um menino. Lira exclama: Bastião! A enfermeira entusiasmada: Nada mais justo! Hoje é o dia dele.
Lira tranqüila, sorridente, ainda na maca. As colegas de enfermaria perguntaram se tinha vindo a menina, ao que Lira responde: “Nada! Mais um homem na minha vida!”.
Dormiu a madrugada. Quando amanheceu, recebeu a visita do doutor Nicolau, que a chamou de amazonense. Lira chorou. Então ele secou suas lágrimas dizendo: “Vou dar um jeito”.
Quando chegou o café da manhã, avisaram-lhe que não tomasse. Na hora do almoço, a mesma coisa. As amigas desconfiadas: “Eu não operava mais”. Já teve seu filho! Para que arriscar?
No horário de visitas foi para o centro cirúrgico e fez a operação de ligadura de trompas.
Ao retornar à enfermaria, ainda sob o efeito da anestesia e na posição quase imóvel, seus sentidos detiveram o barulho estridente de alguma coisa de ferro rangendo que a incomodou muito. Depois que chegou à cama sua mente soltou a lembrança dela ainda menina, sozinha, na época deveria ter uns dez anos, foi quando teve uma visão do pai dentro do caixão, no quarto onde dormia sua mãe antes de ir embora. Não contou a ninguém, porque se soubessem na certa diriam: “Deixa de bobagem, todos nós vamos morrer um dia”. Na época estava sozinha e gritou muito no desespero falava: Meu pai você não vai engolir, cobra maldita!
Sempre que imaginava a cena que sua mente vez por outra reeditava, em desespero pedia a Deus que jamais deixasse acontecer o que ela viu. Começou a retirar de sua mente o seu pai dentro daquele lugar e substituir aquela imagem por ele, corado, andando e agindo dentro de casa como estava antes desse estado estático. Tentou, esforçou-se, para arrancar da mente aquela imagem que ia e vinha dependendo dos acontecimentos. Pensou que fosse talvez, por causa da separação. Viu seu pai chorando em convulsão, ou por ver o quarto de sua mãe vazio. A casa fria, sem cheiro de molho na cozinha...
Na ânsia de acordar, gritou Sílvio várias vezes e o som cristalino ecoou firme e bonito de se ouvir, se não estivesse numa clínica. Era muito alto, seu nome saía com agudos incessantes, colocando a clínica em alvoroço.
A visita havia terminado por isso ele não entrou ,de imediato. Estava aguardando. Logo que foi liberado para entrar, o médico pediu que ele conversasse com ela, pois ela podia ouvi-lo. Assim ele fez, conversou bem junto dela. E num momento de lucidez ela ouviu sua voz e sentiu sua mão, deixando-a calma com sua presença...
A sensação de renovação tomou conta, ela ao entrar no longo corredor, feliz, a passos lentos, desfilou. Deixando o ar perfumado, contagiava o olfato de todos os amigos que a aguardavam. Raquel, ao abraçá-la exclamou: ”Que cheirinho bom, esse de neném! Dá vontade de ter um também, só pra ficar cheirosa. Deixa-me pegar um pouquinho pra ficar com esse cheirinho. Isso hoje é coisa rara, a gente entra na maternidade cheia de crianças e não sente esse cheiro gostoso. È essa tal de cesárea. Com seu corte de aço, frio e calculista tirou o cheirinho da gente. Não é, menino bonito?”.
Lira pode constatar a verdade sobre o que a amiga com saudade relatava, pois desde o primeiro filho, mal alguém chegava à sua casa, era a primeira coisa que sentia sua pele extremamente macia, exalando um perfume suave que permanecia no ar. Não sabia com certeza de onde vinha se dela ou do neném. Sua explicação ao Sílvio para a pele macia foi convincente, rápida. O perfume, que ele educado dizia saber que era fino, purificado, encantador e que indústria nenhuma jamais poderia fazer. Lira rimou: “Encantador porque é emanado por Nosso Senhor. O cheiro deve ser de mirra que Jesus ganhou dos reis magos, lembrando aos pais que todos que nascerem serão perfumados...”.
Lira no céu era obrigada a voltar a terra. Nessa altura dos acontecimentos também estava o tormento, o leite do peito que vazava incessantemente, molhando sua roupa. Lembrava do caso que sua mãe contava que uma cobra gigante vem mamar de noite no peito, colocando o rabo na boca do neném pra ele não chorar. Lira passava esse período com medo. O Sílvio dizia: “Isso é história de capiau, lá do meio do mato, vivendo em casa de sapé onde poderia até ter cobra dormindo entre o telhado e a parede, mas, não era para mamar”.
A tranqüilidade era restabelecida com o uso da mamadeira, o peito seco, ficava tudo esquecido...
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