O SÍTIO
Lira morava numa casa cercada de árvores e plantas, havia criação de porcos e aves. Na mangueira os passarinhos nasciam e aprendiam a voar e cantar. Lira balançava-se na corda amarrada ao seu galho. No riacho, nos fundos do pequeno sítio, os patos, os gansos e seus filhotes nadavam livremente e bem à vontade.
Os dias passavam, e Lira ficando cada vez mais triste. A saudade envolvia o coração da menina. Acordou sentindo uma profunda tristeza, engoliu em seco e seus olhos encheram-se de lágrimas molhando o travesseiro, os seus ouvidos escutaram o galo cantar e a algazarra dos pássaros na mangueira. O seu nariz sentiu o cheiro gostoso que vinha da cozinha. Espreguiça-se devagar e passa as mãos sobre o rosto, esfregando os olhos ainda entreabertos para espantar o sono. Ouve a voz carinhosa do pai:
_Bom dia, Lira! Dormiu bem?
_Dormi, papai.
O pai abriu a janela do seu pequenino quarto e estendeu-lhe uma caneca de café com leite bem quentinho. Lira sorveu com entusiasmo a bebida que fora preparada com tanto zelo pelo pai dedicado, ainda sentada meio sonolenta à beira da cama, seus olhos despediram-se da estrela d’alva. Depois se levantou e dirigiu-se à cozinha de onde vinha um aroma tentador. De fato, a chapa do grande fogão à lenha estava repleta de bananas assadas e batatas-doce. Sabia. Não podia ser diferente. Seu pai acordara cedo, como de costume, para preparar o farto e gostoso café da manhã.
O coração de Lira quase parou nesta manhã quando seu pai, ao despedir-se, deixou várias recomendações e foi com grande tristeza para sua labuta. Lira levou-o até o portão e quando de volta viu o sol surgindo atrás das árvores. Correu gritando: _Lá vem ele! E hoje está amarelo-alaranjado. Que lindo o sol!
Correu de braços abertos engolindo o vento, abraçou a mangueira falando:
_Bom dia Dona Mangueira! Eu estava com muita saudade da senhora!
Lira sorria feliz com os braços enrodilhados no tronco de sua amiga e resolveu subir e sentar no colo da majestosa árvore. Colocou o pé num galho, depois no outro, enquanto subia a sua mão se encheu de seiva que saía do seu tronco. E somente quando se acomodou esfregou as palmas de suas mãos nos galhos para limpar.
De repente a tristeza passou no rosto de Lira por não ouvir a voz de sua mãe ralhando porque tinha subido na árvore. Sentiu quando a mangueira deu uma tremidinha e começou a falar tentando consolá-la.
_ Logo isso tudo vai passar.
_ Pode até passar, mas não é bom subir na senhora, Dona mangueira, sem ter a nossa mãe para mandar descer, mesmo tendo a certeza de que não vamos cair e nem se machucar.
Desse jeito tudo fica calado, triste.
Enquanto Lira se lastima, a mangueira diante daquele doloroso sofrer pediu a Deus que consolasse aquela menina que tinha ficado sem sua mãe.
Seus pais haviam brigado e a mãe mais uma vez deixou a casa, pois achava que o marido não ia parar de beber.
Logo que a mangueira terminou seus pensamentos, recebeu a visita de um sanhaço enorme, azul-acinzentado. Passou tão perto de Lira que chegou a tocar uma das asas no braço da menina quando voava para o galho mais alto. Lira seguiu-o com o olhar. Nesse momento o vento que era pouquinho ficou forte secando as lágrimas da menina. Que ficou entusiasmado ao ver o pássaro devorando a deliciosa manga enquanto mais o pássaro bicava mais ela ficava encantado com a cor amarelo ouro que o sol tonalizou. Lira teve vontade de chupar manga, mas nesse dia teve medo. Apesar de seu pai ter-lhe explicado que leite com manga não faz mal. Que isso foi no passado um artifício usado pelos fazendeiros para impedir que os escravos consumissem o leite. Contavam essa mentira para os escravos para que não bebessem leite e chupassem mangas no mesmo dia, porque, se fizessem, com toda certeza morreriam envenenados. Com essa proibição os fazendeiros lucravam muito mais com a venda do leite, queijos, coalhadas e manteigas, já as mangueiras existiam carregadas de frutas por toda fazenda serviriam de alimento para os escravos e até para a criação de animais, aves e pássaros...
Preferiu descer da árvore e dar adeus para a amiga mangueira.
O tempo continuou passando, a tristeza veio morar no quintal e no coração de Lira, a cada dia mais ansiosa esperava que a sua mãe voltasse. Quando se aproximou o Natal pediu sua volta ao Papai Noel, mas nesse ano ele não veio e Lira ficou sem seu presente. Com muitas lembranças da mãe sentada na pequena calçada costurando seus vestidos, atreveu-se a pegar a cesta de costura de sua mãe e costurou com alguns retalhos um lindo vestido para sua boneca.
A solidão encheu o peito e envelheceu o coração de Lira, seu corpo cresceu, mas seu sorriso diminuiu. A sombra da mangueira também cresceu, os passarinhos cresciam em quantidade, os ninhos eram muitos. Tudo crescia. O medo de Lira para algumas coisas diminuía devido às necessidades, tinha ajudado quase duas dúzias de patinhos a se desvencilharem das cascas dos ovos, chegava ao ninho cheia de atitudes, sabedora do que estava fazendo. Falava:
_ Imagine! Seus preguiçosos querendo dormir o dia todo com o bico para fora da casca! Ora... Ora essa! Vou abrir toda sua casca e vocês rapidinhos vão brincar. O sol está nascendo e o lago esperando por vocês.
O sol secando cada gota de orvalho que caiu de madrugada. Os patinhos abrindo o bico, bocejando, com os olhos despertos redondos e brilhantes iam abrir seus cotocos de asas e nas pontas dos pés ameaçavam voar. A pata apreçou-se a andar ligeiro com seu peito estufado, triunfante conduzindo seus filhotes para o primeiro banho no lago. Durante todo este tempo Lira cuidou da alimentação dos porcos, perus, e patos... De toda criação a intimidade era tão intensa que comiam na sua mão e ela conversava com alguns que respondiam com ronco, como era o caso do porco grande e vermelho, com seus pelos emaranhados parecendo corda desfiada, fingia amizade com olhar enamorado, mas era um verdadeiro velhaco, depois que o grandão alcançasse o cocho nenhum outro porco colocava o focinho.
Certa vez Lira encheu uma bota velha com pedras e mingau ralo de farelo, quando chegou no chiqueiro colocou a bota para enganar o porco velhaco, ele com sua gulodice não pensou duas vezes, enfiou o focinho na bota sugando de fazer barulho e enquanto isso os outros comeram sossegados. Logo que o caldo acabou voltou ele às pressas para o cocho, empurrando a todos, furioso por ter sido enganado.
Numa dessas arrumações que se tira tudo do lugar para “dar uma geral”,
Lira juntou papéis, revistas e jornais. Achou o que estava perdido...
Roupas que não usa mais...
Papel de bala florido, laço de fita encardido, flores desidratadas...
Um monte de treco que guardava
Há muito tempo atrás,
Colocou-os num saco de entulho, para a COMLURB levar.
Lira no quarto trabalhou o dia inteiro,
Para limpar o guarda-roupa, a cama, a mesinha de cabeceira,
E as gavetinhas, da penteadeira.
Na arrumação da cama levantou o colchão
Para a poeira tirar. Quando abriu o guarda roupas
No lugar de sempre estava a fronha do pequeno travesseiro.
Onde há muito tempo guardava o seu retrato de criança.
(daqueles que a gente não se cansa de admirar)...
Nem ela podia tocar!
Esse passado matreiro olhou pra ela
Com cara de zombeteiro,
Segurou o retrato, com o punho bem fechado...
Pra ninguém incomodar.
Vai colocá-lo no porta-retrato, uma boa lembrança,
Para que toda sua família possa admirar,
Nele tem uma dedicatória que ela mesma escreveu:
“Aos meus queridos pais, Vicente e Isabel, com amor e afeição”.
Ofereço esta imagem da primeira Comunhão ““.
Sua filha Lira Salomão.
Em 28 de novembro de 1959.
Depois que assinou, a professora avisou...
Que seu nome escrito na certidão, não tinha “ão”.
Só o nome de seus irmãos,
O dela era com “on”, de ondas.
LIRA SALO^^^O^^
E no retrato, ela olhou forte, para ver detalhes,
E não tirou os olhos,
Só que num dado momento
Tudo estava embaçado, voltou a fixar as vistas,
O retrato diminuiu e quase desapareceu,
Lira não o perdeu de vista, seguiu-o até virar um ponto.
Teve que olhar bem fundo,
No meio, achou o pontinho,
Não bobeou, mirou e puxou
E com os olhos foi trazendo o ponto de novo pra frente,
Ele se multiplicou tanto, tanto,
Que uma linha se formou, então Lira caminhou rápido
E a linha a acompanhou
Tornando-se o caminho por onde a sua infância,
No passado, passou...
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