O PAI
O pai de Lira, nascido em 10 de janeiro de 1896. De semblante calmo, uma generosidade que não tinha braços para estreitar, nunca gostou de brincadeira e por isso não jogava conversa fora, desafogava suas mágoas com um bom gole de Caninha da Roça, principalmente quando a tarde caía depois de um longo dia de trabalho, cauteloso, não gostava que os conhecidos percebessem sua embriagues. Quando estava “alto” os familiares sabiam, mesmo ao vê-lo de longe, nesse estado caminhava ligeiro não parava para cumprimentar os conhecidos, limitava-se a erguer a mão num aceno o chapéu até a altura da testa deixando a amostra o rosto vermelho e os olhos arregalados como se assim enxergasse melhor, tentava se equilibrar como se nada estivesse acontecendo.
Desses goles resultava a discórdia que á muitos anos batia á sua porta. Quando exagerava, possuído por tamanha inquietação, perdia todo equilíbrio transformando seu lar num inferno, com insultos, empurrões, deixando a família em profunda tensão, ninguém se atrevia a enfrentá-lo, em respeito, sempre tomando conta para evitar possíveis acidentes, aguardavam com resignação, até que vencido pelo cansaço a embriagues o desmaiasse e dormisse tranqüilizando a todos. Essas crises não passavam de uma noite eram intercaladas por semanas até meses. No dia seguinte não ficava indiferente. Desespero e arrependimento, consciente de sua fraqueza, acabrunha-se, a bebida não o fazia melhor nem pior, sóbrio era sempre passivo.
Mais uma vez deixou-se dominar pela bebida agora sem a mulher para descarregar suas mágoas.
Entrou batendo ruidosamente o pé no chão, olhando para Lira como se ela fosse pagar tudo que ele sentia. Nos dias de bebedeiras a primeira coisa que fazia era provar a comida e se alguém estivesse perto ele jogava a panela no quintal esbravejando que aquilo não era comida. Desta vez quando jogou a primeira panela, Lira jogou a segunda, antes que ele atinasse, ela foi jogando tudo que havia para o jantar no chão. A cozinha ficou um verdadeiro chiqueiro. Lira nervosa, porém séria, decidida, satisfeita por ter conseguido agir, na tentativa de mudar o rumo dos feitos que presenciou enumeras vezes. Houve ocasiões que teve essa vontade, mas faltaram-lhe coragem e firmeza.Temia, isolando-se dentro de si esperando que os problemas fossem resolvidos por si, então se mantinha calada. Dessa vez reagiu. Saiu, deixando o pai cambaleante, tateante a caminho do quarto. A pedido da cunhada refugiou-se em sua casa para passar a noite. Não dormiu, pensou como seria no dia seguinte. Trancou-se no silêncio, foi assim que agiu quando bem menina ainda morando no Caminho do Rio. Assistiu os policiais levarem seu pai por ter bebido e xingado sua irmã. Depois de agredida, com a cabeça quente, jovem, sem medir as conseqüências, no momento de raiva, no desespero denuncia o pai. Tarde da noite um dos policiais gritou: “Velho, esta noite vai dormir no xilindró”.Segurava a calça quando abriu a porta, pediu a Lira à correia. Ganhou um murro nos peitos enquanto ouvia: ’Vamos logo, deixa de luxo “. _ O senhor não vê que minha calça está caindo? Lira paralisada na soleira da porta abraçada não só à correia, mas também ao chapéu e o cachimbo. Naquele momento a cena que ela presenciou no quintal de sua casa podia imaginar os disparates que na certa ele passaria, lá na delegacia. Em situações que não podia agir, temia, abaixava a cabeça, atenta ouvia, mas o que via eram seus pés, esses lhes pertenciam, podia arrastar, contar os dedos até esfregá-los no chão. Assim permaneceu. Quando o pai voltou percebeu que havia relutado. Tinha a camisa aberta no peito e as mangas sujas, molhada das lágrimas que secou, as calças frouxas, arregaçadas mostrando os tornozelos. Quando o viu chegar segurou sua mão, levou-o até a cadeira em seguida ofereceu uma caneca de água”.
Não ouviu nenhuma reação do pai. “Será que ele estava acomodado na cama ou caído lá mesmo na cozinha?”.
Essas eram as perguntas que Lira se fazia. Mas estava resolvida a descobrir o ponto vulnerável para atacar e libertar o pai do vício. Mesmo sabendo que as chances eram mínimas tomou essa atitude repentina em favor deste ser tão estimado e considerado nas suas decisões quando sóbrio, passivo respeitado amado por toda a família. Lira não queria sentir vergonha das colegas, dos vizinhos e agora do namorado, já entendia o porquê da atitude da irmã. Lá pela madrugada. Lira ouviu barulho na sua casa. Foi até o quintal para ver como estavam as coisas. A porta estava encostada, entrou dirigindo-se para o quarto do pai. Estava se vestindo para ir pro armazém, pegar no batente, do raiar do dia até o anoitecer. De cabeça baixa disse:
_Você está ai? O café está pronto, peguei o meu, agora tenho que andar de pressa para esperar o padeiro.
_Pai. Quero falar com senhor.
_A gente pode conversar a noite.
_Não pai, tem que ser agora. Pai. Não agüento!
_Já sei, não bebo mais.
_Não promete o que o senhor não pode cumprir eu não agüento mais ver o senhor desperdiçando sua saúde com a bebida. Se Deus o fez perfeito porque o senhor teima em contrariá-lo? E eu pai? O senhor bem sabe que me tornei à dona desta nossa família tão prejudicada e sofrida. Papai preciso muito do senhor, seus carinhos, seus cuidados, reconheço que tenho, mas preciso de proteção para ser respeitada por todos, sei que se o senhor continuar bebendo todos nós vamos considerá-lo do mesmo jeito. Que tal o senhor pensar e definitivamente deixar de beber e não ofender e destratar as pessoas que lhe quer bem.
Lira terminou o apelo chorando muito. O velho ouviu tudo sentado na cama, grossas lágrimas rolaram dos seus olhos. Lira enxugou-lhe as lágrimas pedindo que ele não falasse nem prometesse nada naquele momento, apenas que pensasse com carinho, Quando ele estava saindo chegou Júlio um dos irmãos de Lira. Vendo a bagunça do ambiente, com um sorriso falou:
_Velho, a carraspana de ontem foi boa, basta ver a quantidade de panelas no chão!
O pai desce o degrau, com um aceno falou:
_Foi Lira.
Enquanto o pai saia o irmão brincou:
_Não, diga Bonguinha! Agora não joga mais três Marias, aprendeu a jogar panelinhas.
_ Dessa vez também joguei, você e o primeiro a dizer que contra força não existe resistência.
_ Deixa o velho, beber a caninha, não faz mal a ninguém e seu único divertimento.
_ Não pense que eu esqueci do dia que fui dormi na sua casa, a pedido de mamãe, porque Rute estava grávida, sozinha lá no ABC, e você e seu patrão chegaram bêbados e o homem quis agarrar a agente, Lembrou agora? Você não tem idéia do que passamos naquela madrugada andando a pé até chegarmos na casa de papai lá no Caminho do Rio. Eu bem sei que todos vocês são chegados à água que passarinho não bebe. E agora sem conversa vai pro poço e enche os baldes que eu preciso lavar essa sujeira...Mal começou a lavar a cozinha absorta no trabalho, ouvi o irmão que aguardava suas ordens, sentado no poço tocando na folha do abio roxo, Asa Branca, de Luiz Gonzaga. Lira o admira e guarda pra ela aquele momento era muito importante.Quando olhou de soslaio não passou despercebida.
_Ai Bonguinha. Gostou? Eu sei que gostou te conheço desde que você nasceu, fui eu que fui chamar a Dona Augusta. Falando nisso ela sempre pergunta por você, vai fazer uma visita pra ela ta velha.
Lira fez sinal que precisava de mais água. Quando ele voltou perguntou:
_E mãe?
_O que é que tem?
_Você vai ver “Zabé” hoje, eu trouxe uns trocados pra minha “véia”?
_Não, mas pode deixar o dinheiro que domingo eu levo.
_ Acabou Bonga? Eu tenho que ir, se precisar de alguma coisa manda me avisar estou no ponto até à tarde. Tirou o talão do bolso.
_Não quer fazer uma fezinha maninha, você costuma ter sorte.
_ Não hoje eu não tenho palpite já palpitei a noite toda, Vamos tomar café, que o sol está esquentando...
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