Muitos já tiveram ou terão na vida o seu dia de raposa. Não se computem aqui as raposas deliberadas. Falo daqueles em estado de raposa por necessidade.
O jesuíta espanhol, Baltasar Gracián, no seu livro “A Arte da Prudência”, ensina que na falta de força, use a destreza. Não podendo vestir a pele do leão, vista a da raposa. Olha, um padre ensinando a ser raposa! O que diria Immanuel Kant?
O dia em que tive de ser raposa foi num sábado, no antigo supermercado Maracanã, onde eu trabalhava como fiscal de salão e não conhecia o filósofo Immanuel Kant e sua ética. Percebi que um cliente estava trocando os preços das mercadorias por conta própria. As caríssimas garrafas de vodka sairiam pelo precinho de garrafa de cachaça. Indagado pelos amigos o que ele faria se fosse apanhado, disse que era PM e o que viesse de lá para cá, ele mandaria daqui para lá e, abrindo a pochete, exibiu um 38, cabo madrepérola.
Naquele tempo, o revólver 38 reinava sozinho. Era chamado pelos íntimos de “Três Oitão”. Ouvia-se falar numa pistola aqui, outra acolá e na mais famosa PPK dos enlatados de James Bond. Hoje o feminino tomou conta de tudo. Abre-se o jornal e há mais mulheres aprovadas em concursos públicos do que homens. Há mais pistolas matando gente do que revólver. Já existe tese de pós-doutorado sobre a “Ascensão e Queda do Três Oitão”. O 38 virou coringa. Já existe, inclusive, psicologia para tratar da crise do “Três Oitão”. Cá para nós, se psicologia fosse boa não haveria tantas psicólogas separadas de seus maridos. E o povão não perde tempo na metáfora. Diz que o 38 é o fusca da violência. Não falha. Mais uma vez, um cá para nós. Se esse fusca enguiçasse de vez, o mundo seria bem melhor, porém, o mais engraçado é que até nesse meio há discriminação. Vejam vocês que o número de mortos por pistolas negras é bem maior do que os mortos por pistolas cromadas e douradas.
Mas no Maracanã, sempre cheio, disfarçado de cliente, eu abarrotava um carrinho de compras. Se alguma vez tive o carrinho cheio no mercado, foi assim, de mentirinha. Pois bem. Apelar para a força do leão, não daria. Ele era um leão, truculento, sanguinário filho do deus Marte, bigodudo, cinco vezes mais forte do que eu, um leãozinho, bigodinho, que por certo, na primeira patada teria a espinha quebrada. Se eu chamasse o Terêncio, policial civil, chefe da segurança e o resto dos seguranças, seria tiroteio na certa e havia tantos inocentes entre nós... Ah, se o sangue no país fosse apenas o espocar de flamboyants no verão!
Mais a frente surpreendi um meninão tomando ilicitamente um yogurte. Daqueles de morango com geléia vermelhinha no fundo. Assustado com o meu olhar, o meninão só bebeu o yogurte e largou o copo, ferido, tombado na gôndola e a geléia pingando, vermelha, sangue e a mancha crescendo no chão. Pingando os lipídios, glicídios, protídios, occídios, tá-tá-tá-tá! Não, não. Que o PM leve todo o supermercado, mas sangue, não. A vítima pode ser esse meninão que mal degustou o yogurte e lá no inferno, por tudo o que sei, não há geladeiras e yogurte quente é uma diarréia só. E se ele for para o céu, lá não se casam nem se dão em casamento e esse meninão tem cara de que quer casar para ter uma família à roda da mesa num domingo cronicável. Que besteira disse agora. Isso é coisa de cronistável. Qualquer domingo é cronicável nas mãos de um cronista. Resolvi deixar o PM se dar bem. Tinha de pegar o rato de outra maneira. No fundo Minerva era quem guiava o carrinho e os meus pensamentos. E carrinho vai, carrinho vem, muitos deles com um quilinho de arroz, um tiquinho de café, um dedinho de açúcar, um pedacinho de sabão, uma canequinha de refresco, encontrei o PM de novo. Ele estava em frente à gôndola dos desodorantes e os amigos fizeram um meio círculo, ocultando-o, enquanto experimentava as fragrâncias. Que nada! O esperto estava esvaziando os frascos de desodorantes, um no outro, porque esses desodorantes vêm tão vazios que dão para colocar dois dentro de um. Quando saíram, aproximei-me da gôndola e contei 20 frascos vazios. Que derrame! Que malandro! Tudo bem que o Maracanã era rico, mas havia um prêmio de cem pratas para quem pegasse mais furtos. Foi aí que nasceu a raposa, a inteligência de Minerva. Ele aguardava na fila. Juntei os frascos vazios e os coloquei na sacola. Naquele tempo havia mais empregos, havia as empacotadoras de supermercados. Que saudade! Não fui herói sozinho. Já viu homem fazer algo grandioso sem a ajudinha da mulher?! Contei o caso à empacotadora, uma deusa, chamava-se Minerva de Araújo Geovú, também adorava aventura, inteligência, aceitou e sutilmente trocamos as sacolas de desodorantes. Ali começamos o namoro. No supermercado, ela já tinha sido namorada do Diomedes, Ulisses, Aquiles, Menelau, mas agora o seu herói era eu, um simples fiscal de salão. O PM partiu, festejando com os amigos. Alertei o Terêncio que logo disse: ele vai voltar. Reuniu toda a segurança por entre os caixas como se fosse uma comissão de frente de um mórbido carnaval. Dito e feito. O opala preto, rebaixado, roda de magnésio, entrou no estacionamento e veio para a frente do mercado. Mas o PM já saiu rindo. Riso largo. Terêncio perguntou se havia algum problema. Não. Estava tudo bem, mas ele queria apertar a mão do cidadão, porque ele tinha encontrado um cara mais malandro do que ele. E erguia a sacola com os frascos vazios. Disse que o tal cara era um artista. Chamou-me de artista. Confesso, fiquei vaidoso, porém, na dúvida, usei de prudência e me contive. Hoje aperto sua mão através desse crônica, PM, e constato como Baltasar Graçián tinha razão: a destreza realiza mais do que a força, e os sábios têm derrotado os valentes mais vezes do que o contrário. Na guerra, Minerva é superior a Marte.
Por sua causa, PM, ganhei o prêmio de cem pratas no dia do meu aniversário, 14 de março, Dia Nacional da Poesia. Comprei calças e camisas novas e fomos andar pela cidade de mãos dadas, a empacotadora e eu, com os presentes que você nos deu. É pena não existir mais o supermercado Maracanã para lhe dizer, amigo: Agradecemos a preferência e volte sempre.
*Esta crônica foi agraciada com o Prêmio Cidade de Porto Seguro Crônicas, Bahia, em dezembro de 2008 e publicada em livro em Fevereiro de 2009.
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