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O aquecimento global e a invenção do fim do mundo
FÁBIO TOZI

Revista Griffe - ano 5 nº 24

Embora se diga em toda parte que vivemos a democracia, o que vemos, cada vez mais, é, como dizia Milton Santos, o reinado do pensamento único, que tem na aceitação inquestionável da globalização sua manifestação mais bem acabada. Os modos diferentes de pensar são desqualificados a priori, criminalizados, e acusados de perigosos ao rumo correto do país.
Acreditamos, porém, que o avanço de processos democráticos deva, ao contrário, atribuir legitimidade às discordâncias, mostrando que o futuro não é uma reprodução do presente, mas uma escolha entre as muitas possíveis. As questões ambientais, e especialmente a discussão sobre o aquecimento global, temários exaustivamente cotidianos, são, com suas particularidades, doutrinadas pelo domínio de um pensamento único, ignóbil, avesso ao debate e à divergência e, por isso, incapazes de superar o senso comum e de conduzir a um esclarecimento sobre o mundo.
O movimento ambientalista se trans-forma em um pensamento único por ter atingido um patamar que coloca os temas ambientais como superiores a outras questões ainda insolúveis na humanidade – para ficarmos em apenas três: a fome, a pobreza, a violência. O período dessa expansão, que se inicia com força nos anos 1970, é coincidente com o florescimento das empresas globais e da globalização, e tal sincronia, defendemos, não é casual, mas definitivamente proveitosa para a trans-posição das questões sociais em questões ambientais, como veremos.
Com um olhar mais rigoroso, podemos dizer que o que se denomina como “questão ambiental” não se inicia no período informacional ou industrial da humanidade, como é proclamado, mas muito antes. Ela é uma forma de uso da natureza que, no Brasil, começa com a reprodução nacional, às vezes opressiva, às vezes desejada, dos modos de produção externos, desde o colonialismo até o globalitarismo, para usar outra expressão de Milton Santos. O nosso território, desde a chegada dos europeus, teve sua natureza alterada para atender aos ditames da sua expansão e, sucessivamente, aos de outras nações. Trata-se, portanto, desde o início até os dias atuais, de um processo de alienação do território brasileiro, cada vez mais complexo, no qual este é organizado, legislado e usado para satisfazer não às carências internas, mas, sim, aos projetos e às necessidades do capital internacional que aqui busca reproduzir-se. E não apenas os recursos, mas também o trabalho e os conhecimentos do território brasileiro sempre foram drenados para o exterior.
Eis, pois, a constatação fundamental: a questão ambiental não existe em si mesma, senão como uma questão sócio-territorial. Não é o ambiente que causa sua própria degradação, mas os projetos sociais e suas formas concretas nos diferentes países e lugares do mundo. Como ensina a geógrafa Maria Adélia de Souza, a questão ambiental é, na verdade, uma questão social, pois a natureza não possui desejos, intenções, projetos, mas ciclos. Repete-se ao infinito e tende ao equilíbrio. Em oposição, na sociedade, os diferentes agentes, com seus distintos projetos e poderes, formam um complexo processo dialético que não é harmônico, mas contraditório, e gera, a cada momento, novas desigualdades entre os lugares e as pessoas.
Por negligenciar essas características da sociedade, as discussões ambientais tornam-se distantes de uma verdadeira e ampla política. Quase não há debates, só consensos: esquerda e direita, trabalho e capital, ricos e pobres, periferias e centros devem 'unir-se' pela questão ambiental. Mas, só aí, pois para além do ambiental as desigualdades se acirram e, pior, ocultam-se. Assim, a pauta de temas ambientais não incomoda a estrutura perversa do funciona-mento do mundo.
Tal equívoco do discurso ambiental exemplifica-se na escolha pela explicação enganosa – e sugerimos deliberada – sobre o aquecimento global: este fenômeno climá-tico, por sua tão longa duração, é classificado em tempos geológicos, períodos que se repetem em ciclos. O aquecimento global atual, um dos responsáveis pela existência da vida e pelo fato do Brasil ser um país tropical, possui alguns milhares de anos e sucedeu uma era glacial (ou esfriamento global), da mesma forma como será sucedido, no tempo geológico, por outra glaciação. Essa análise, científica e não alarmista, pode ser encontrada na obra de Aziz Ab'Saber. O aquecimento do planeta é, por definição, irreversível, da mesma forma como não poderíamos adiar uma nova era glacial, que inevitavelmente se seguirá. Trata-se de uma tendência natural da Terra ao equilíbrio, que independe do homem, o que não significa que a ação humana não interfira, mas o fato é que não sabemos qual o alcance desta interferência para afirmarmos que ela é a responsável pelos processos vividos no mundo.
Da maneira como é apresentado, o aquecimento do planeta assemelha-se a uma catástrofe de dimensões e metáforas bíblicas, porém apoiado em supostos “critérios científicos”. É o coroamento de um novo obscurantismo do conhecimento, que serve ao interesse de poucos ao custo da proliferação da ignorância e do medo.
Uma análise séria permitiria entender, em outro exemplo, que o aumento do nível do mar não se deve necessariamente a causas humanas, pois o mar, em milênios de aquecimento do planeta, variou dezenas de metros o seu nível até alcançar o atual. Igualmente, o discurso sobre o fim da água é desinformado. Evidentemente em alguns lugares pode não haver água, mas o Brasil, por sua vez, está assentado sobre uma das maiores reservas de água doce do planeta, o Aquífero Guarani, além de possuir generosa proporção da água doce superficial. Mas, mesmo que não existisse tal situação privilegiada, sabemos que a escassez hoje não é mais um dado da natureza, mas sim da política. Haja vista o petróleo que, mesmo não existindo em muitos lugares, tornou-se um padrão mundial. A potabilidade da água não é dada pela natureza, mas por critérios definidos pelas sociedades, e com as técnicas já hoje disponíveis é possível tornar a água própria ao consumo humano, basta decidir isso. O discurso único – da mídia, dos governos, das empresas, da educação - culpa o uso residencial pelo 'desperdício' e pela carência do recurso quando, na verdade, a maior parte da água destina-se à agricultura e à indústria. Inocência? Difícil crer. A falta de água no Brasil se deve não à natureza, mas à irresponsabilidade das escolhas dos governos, que elegem os lugares que serão ou não abastecidos.
Existe um verdadeiro desejo de ação e de mudança na sociedade, mas uma vez que a discussão é comandada pelos agentes hegemônicos internacionais e nacionais, esse anseio é canalizado – utilizando-se do discurso histérico da morte iminente da humanidade – para o supérfluo, despendendo trabalho e conhecimento para ações que não modificam estruturalmente a vida comum atual ou futura. As pessoas têm o direito ao entorno agradável e saudável, não há dúvidas, mas isso não se realiza, em escalas significativas, cuidando de falsos-problemas, como sacolas de supermercado, garrafas pet, latinhas de alumínio, caixas de papelão, entre outros, que tanto tempo e dinheiro ganham nas mídias, nas salas de aula, nas administrações públicas. As mudanças pontuais, no sistema em que vivemos, não alteram a estrutura sócio-territorial que gerou os problemas que se quer combater, e, ao invés de romper com os processos impostos, acabam servindo a eles.
Limpar um córrego, no apogeu do ambientalismo de mercado, significa apenas limpar um córrego (o que, aliás, pode ter por detrás interesses da especulação imobiliária, entre outros). Em oposição, a mudança da estrutura sócio-territorial – modo de produção, de vida e de organização do território – certamente transformará não um, mas todos os córregos e para além deles. Mesmo porque, nesse sentido, resta uma questão ética insolúvel: será que vale a pena limparmos o entorno mantendo as desigualdades atuais? No caso de um córrego, qual será o uso que se dará às águas despoluídas? Quem se beneficiará delas? Com as discussões presentes, esses temas, verdadeiramente políticos, não ganham espaço, e o que temos são alguns agentes econômicos privilegiados apropriando-se e lucrando com o trabalho coletivo alheio. Essa apropriação fica evidente na reciclagem, na qual, mesmo sendo as principais responsáveis pela produção das mercadorias que depois se tornam lixo, as empresas não pagam pelos processos de recolhimento, seleção e reciclagem, e sim nós, como contribuintes, e o Estado.
Por outro lado, esse reaproveitamento barateia a matéria-prima para essas empresas. Isto só é justo e sustentável para elas mesmas, que não se acanham de financiar as questões ambientais, fazendo-se de benevolentes quando, na verdade, são interesseiras e responsáveis pelas poluições do mundo. Com o marketing, transformam-se de culpadas em “solidárias”, “amigas”. Cabe perguntar: qual o comprometimento que podem ter as empresas, cuja razão de existência é o seu próprio lucro, com o meio ambiente e com a totalidade do território e da sociedade?
Finalmente, no rastro desse processo, ganha cada vez mais força a ideia de que “cada um deva fazer a sua parte”, mas como consumidor e não como cidadão em formação. A discussão ambiental, focada no consumo, e não nos direitos, tem levado a uma fragmentação do homem. Numa sociedade capitalista, em que o consumo de alguns é sinônimo da escassez de muitos, não pode haver “consumo ético” ou “responsável” a não ser como alívio da culpa, como engodo e como forma de lucro para certas empresas. O consumismo se origina e é responsabilidade do sistema capitalista e não das pessoas.
A grande 'questão' ambiental é, afinal, que ela criminaliza o homem pela exploração da natureza e naturaliza a exploração do homem pelo homem ou de um lugar por outro lugar, tendendo a uma indesejável e nociva naturalização das desigualdades e da própria vida.
Uma vez que compreendamos que a degradação do meio se deva à imposição de projetos estrangeiros, as respostas devem ser buscadas, portanto, na forma como os lugares do Brasil, mediados pelo Estado Nacional, relacionam-se com o mundo. Enquanto tal relação se mantenha progressivamente servil, será geradora de desigualdades e degradações de toda ordem. No entanto, nunca é tarde (e talvez nunca tenha sido tão necessário) para retomarmos a autonomia do país diante do mundo, propondo uma verdadeira nova forma de relacionar-se, não mais a partir da opressão e da exploração, mas inspirada por outras solidariedades verdadeiramente humanas e democráticas.

Texto publicado na edição nº 24 da revista Griffe.
www.revistagriffe.blogspot.com



Biografia:
Fábio Tozi — Mestre em Geografia pela Unicamp. Professor do Centro Universitário Metropolitano de São Paulo — UNIFIG/ Guarulhos.
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Publicações de número 1 até 2 de um total de 2.


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