Qual teria sido a data?
Quando foi que São Paulo e eu nos entrecruzamos? Como foi que nossas vidas se embrenharam até a indissociabilidade?
Na infância provinciana típica do interior do estado, São Paulo era longe, em tudo. Longe e desnecessária. São Paulo era outro mundo, que nem sequer competia com o meu, nem me atingia, e não destruía minhas circunstâncias.
Enquanto crescia, minha visão de mundo se dilatou e se tornou mais espessa. Foi necessário amadurecer para enxergar as dimensões desmesuradas da metrópole. Alegoricamente, é como se eu pudesse olhar tudo do alto, num vôo em que fossem vistos corpo e alma da cidade que, às vezes, até ouso chamar de minha.
São Paulo me mostrou a prisão que o provincianismo cria, mas foi ela também, e, ao mesmo tempo, quem me libertou para reconhecer o interior que me gerou, suas verdadeiras riquezas e simpatias. São Paulo é uma metáfora e uma verdade na viagem pelo interior de mim mesmo. Quantas vezes me perdi e fui perdido pelos olhares da cidade?
Enfim, eu e a metrópole temos algo em comum: para além da subjetividade, São Paulo também é, para o Brasil e para o Mundo, a criança caipira que cresceu e foi obrigada a fazer concessões para manter seu vigor. Basta olhar suas imagens antigas e seus dados históricos para entender sua velocidade. Quantas paisagens sobreviveram e quantas foram devoradas pela necessidade da cidade subdesenvolvida modernizar-se, abrir-se para o mundo, delirar que podia ser européia? Mas a cidade — assim como eu —, não pôde se desprender do seu interior provinciano, do estado, do país, da sua latinidade. Não pôde ir à Europa e teve que aceitar: sua vitalidade é inegavelmente brasileira.
As paisagens daqui, mesmo sem questionamento, contam uma história da cidade, mostram que tudo pode se destruir e se reconstruir, que a abundância absoluta do dinheiro não sobrevive sem a escassez aflita da maioria. A cidade é o jornal que, ao final da tarde, do alto dos seus prédios, todos podem ler, como na poesia O engenheiro, de João Cabral de Melo Neto. Esta é a democracia mais latente da cidade, que se apresenta a todos os sentidos. Todos a conhecem, todos podem lê-la, mesmo que sejam apenas algumas páginas, aquelas nas quais se escrevem as dores e as aleluias da vida de cada um.
Será, então, que esta cidade merece elogios? Qual o seu verdadeiro tamanho? Qual a possibilidade efetiva de felicidade que cada um de seus lugares oferece? A seletividade das políticas e do planejamento territorial escolhe e condena os lugares: alguns merecem a renovação contínua, a despeito dos demais. Não obstante tantos bairros sem asfalto ou calçadas, sem água, esgoto e escola, algumas ruas e avenidas são brindadas com sucessivas modernizações, com embelezamentos e adornos nem sempre necessários. A cidade acaba criando o seu próprio marketing para ocultar a sua realidade. Triste política. Não seriam todos mais felizes se toda a metrópole fosse igualmente bem cuidada? Porque objetivamente, a felicidade, a amizade e a vida, dependem da cidade e de suas condições materiais e imateriais.
Da mesma forma, como é perversa a relação dessa cidade com as outras: funil das riquezas e benesses da sua Região Metropolitana e também de todo o interior, próximo ou distante. Por que, mesmo tão próximas, Jundiaí e São Paulo são tão longínquas? Falo da Geografia e não da Geometria. Há uma distância entre ambas que se manifesta em todas as dimensões da vida. Há uma contínua carência em Jundiaí, um provincianismo que é servil a certos interesses, embora perigoso ao interesse de todos. Jundiaí, contraditoriamente, tão rica em tudo, fica refém de um conservadorismo reacionário.
Na verdade, é como se São Paulo tivesse criado uma nova geomorfologia para o Brasil. É para ela que correm, não água e sedimentos, mas infraestruturas, dinheiro, pessoas. São Paulo recebeu e recebe os migrantes do Brasil e do mundo. Nem sempre lhes foi gentil. Explorou-os e até matou-os com sua insaciável necessidade de grandeza. Mas a diversidade e a obrigação da convivência com o diferente, mesmo que nem sempre desejada, permitiu relações solidárias, novas formas de sobrevivência, mas também de vivência; e, todas elas, legais e ilegais, legítimas e ilegítimas, têm na cidade um abrigo inquestionável. Cabe tudo e tudo tem o seu lugar em São Paulo. Às vezes me pergunto se não seria São Paulo a inspiração para todas as Cidades invisíveis — mas não por isso menos reais — inventadas por Ítalo Calvino. Olhar pelas suas janelas permite acompanhar, construir e participar de romances, brigas, assaltos, risos...
Confesso que tenho rancor de São Paulo. Mas são as necessidades da vida, adicionadas a um imperativo de viver com mais ousadia, que reconciliam meu percurso com o da cidade.
Já adulto, São Paulo fez sentido. Entrou na minha vida com toda força, sem muita cerimônia. Cativou-me. Apaixonei-me. E nesse flerte que estamos tendo, acho até que perdi a razão. Minha vida é dela, reconheço. A revolução da metrópole em mim coincidiu com minha pequena revolução pessoal. As minhas necessidades foram descobertas, criadas e satisfeitas por ela.
Não tive como escapar, ela me fisgou no meu mais profundo, onde eu não tinha deixado ninguém entrar. A cidade me olhou nos olhos: conheci São Paulo cara-a-cara quando conheci o amor. Foi quando, dormindo nos prédios do centro da cidade estranha, na cama estranha, ouvi o barulho que ouvia quando dormia, ainda criança, na casa de meus avós, em Jundiaí, e os caminhões passavam pela rodovia, a meio caminho. O som não me incomodava, ao contrário, ninava. Não havia nada que não me pertencesse mais intensa e profundamente do que essa lembrança, mas ela foi descoberta e satisfeita pela cidade.
Não posso maldizê-la por isso, acho até que facilitei tudo. E foi assim que fiz de São Paulo minha casa.
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Texto publicado no livro “Lugares, viagens e aventuras” www.revistagriffe.blogspot.com
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