Resolvi fazer um passeio de bicicleta pela ciclovia que margeia as praias da Zona Sul do Rio de Janeiro. Eu tinha algumas coisas para resolver em Ipanema, e aí veio a ideia de juntar o útil ao agradável, ou seja, eu cumpria os compromissos e ainda por cima fazia um passeio bonito, quer dizer, ao menos assim eu pensava. O que esqueci é que estamos na época das férias e é verão, ou seja, as praias estão superlotadas e toda uma fauna ávida de aventura e adrenalina povoa as areias. Narro algumas cenas que vivi, na certeza que os fatos falam por si.
Cena 1: Em Copacabana bandos de rapazes atravessam a ciclovia sem olhar para os lados. Eu de longe aciono a campainha, na esperança de que me cedam espaço. Em vão, porque o que deveria ser advertência é interpretado como censura e a reação são insultos e ameaças. Um chega a me empurrar e se eu não caio é porque dorme em mim um equilibrista.
Cena 2: De longe eu já vejo a carrocinha de milho estacionada na ciclovia. Felizmente ela está do outro lado da pista, ou seja, eu estou vindo pela direita e ela está do lado esquerdo. Crente de que não haverá problema eu me aproximo na velocidade normal. Quando falta um metro, surge, repentinamente uma outra bicicleta que está tentando ultrapassar a carrocinha pela contramão. A colisão frente a frente é inevitável. O lado esquerdo está ocupado pelo vendedor e do lado direito tem o meio fio. Não há escapatória. Desta vez, nenhum equilibrista vem para me salvar, ou melhor, nenhum equilibrista teria conseguido a proeza. Vou ao chão, felizmente, sem maiores consequências, além de alguns arranhões. Desta vez, eu escapei. Quantas vezes ainda vou escapar?
Cena 3: Venho pela pista da direita e sinto um vento na orelha esquerda. Olho para o lado a tempo de ver uma tampa de isopor passando rente ao meu rosto. Logo o enigma se esclarece. É um vendedor cavalgando a sua patinete elétrica em alta velocidade. O isopor com a mercadoria ele traz a tiracolo, mas, provavelmente com medo da tampa voar, ele a enfiou dentro da alça, e ela avança quase um metro para fora. Caramba, penso eu, como é que o cara tira um fininho destes? Como é que não provoca acidente? Foi só pensar para a coisa acontecer. Quinhentos metros mais adiante, vejo a patinete parada no meio-fio, o sujeito apeado buscando a tampa que voou. Sorte não ter machucado ninguém. Por enquanto.
Cena 4: Falei em patinete elétrica, mas tão ruim quanto as patinetes são as bicicletas elétricas. Largas, pesadas, o condutor vai sentado confortavelmente, pernas abertas, como se estivesse sentado em um sofá. Vai em alta velocidade olhando o celular. E como o esforço não é dele, mas é o motor que faz a força, o sujeito carrega na garupa a mulher e o filho e, como ainda sobrou um espacinho, vai também o sofá e parte da mudança. São duzentos quilos de carne, madeira e tecido, emoldurados por barras de ferro, a trinta quilômetros por hora. Já pensou se o projétil te atinge? Mas a bicicleta elétrica ao menos é ecológica, quer dizer, dizem que é, eu desconfio que não é, mas não fiz a conta. Pior são os quadriciclos movidos a motor a gasolina, que também seguem pela ciclovia, pilotados por nada menos que a polícia. Neste caso além do peso da viatura e dos seus ocupantes ainda temos que contar com o peso da autoridade. Somado tudo junto, deve ser bem mais do que um míssil terra-a-terra, daqueles que anda bombardeando a faixa de Gaza. A faixa de Gaza é aqui!
Cena 5: Paro em um sinal para atravessar a rua junto com os pedestres. Do meu lado, um casal, ele completamente bêbado, parado em círculos, ela, olhar reto para frente, decidida a nada perceber. O tronco dele está circulando, assim como circulando deve esta a cabeça. Um dos círculos esbarra na reta do olhar da sua mulher. O choque é inevitável e dizem que as curvas não gostam das linhas retas. Ele resmunga qualquer coisa, a mulher faz que não ouviu. Ele a pega pelo braço, ela faz que não sentiu. Mas aí já abre o sinal, e não fiquei lá para ver o desfecho da colisão da reta com o círculo.
Cena 6: Para chegar à praia eu tenho que atravessar um túnel. Na verdade, são dois túneis, uma para cada mão. Na ida eu pego um, na volta o outro. Em cada túnel existem duas pistas ladeadas de corrimão, originalmente pensadas para pedestres. Hoje transformaram uma das pistas em ciclovia, mas ela é tão estreita que não possibilita ultrapassagem. Para agravar a situação, a pista tem um suave aclive. Do alto dos meus quase oitenta anos lá vou eu resfolegando, quando atrás de mim escuto uma buzina. O que fazer? Parar não me parece boa solução, porque, como eu já disse, a ultrapassagem, até mesmo parado, é difícil. Olhar para trás, é acidente na certa porque a pista é muito estreita, corrimão de um lado e parede do outro. Ainda por cima, reina a escuridão, porque as lâmpadas do túnel não são suficientes para clarear a ciclovia. Continuo, portanto, no mesmo ritmo, que é o melhor que eu consigo fazer. A buzina também continua e só pára quando eu atinjo o final do túnel e sou ultrapassado por uma bicicleta elétrica e um palavrão. Isto foi na ida. Na volta, foi pior. Voltei relativamente tarde e ao entrar no túnel percebi o engarrafamento. Como a pista de bicicleta estava livre segui viagem. Ao chegar ao final do túnel é que notei o motivo do engarrafamento. Um carro da polícia estava atravessado fazendo blitz. Não é comigo, foi o que eu pensei. Ledo engano. Como que surgidos do nada, um bando de moleques, vem correndo entre os carros. Ao chegar perto do carro de polícia pulam o corrimão numa manobra de parkour e passam para a pista de bicicleta. Tive que frear para não atropelar o garoto. Vivere pericolosamente! Esta frase, cunhada pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, foi depois usada por nada menos que Benito Mussolini. Tem tudo a ver com os nossos tempos, penso eu.
Cena 7: Apesar de eu tentar incluir o máximo possível de ciclovias no trajeto, não dá para evitar uma ou outra via que eu compartilho com o automóvel. Eu vinha por uma destas ruas pelo lado direito. Havia uma fila de carros estacionados e eu seguia rente a eles. Sou ultrapassado por um carro que pára, em fila dupla, cem metros à minha frente. O que fazer? Ultrapassá-lo pelo lado esquerdo é perigoso, porque como o espaço ficou muito restrito o tráfego por lá é intenso. Resolvo ultrapassá-lo pelo lado direito, já que o espaço entre ele e o carro estacionado é grande. Justamente quando o estou ultrapassando, abre-se a porta. Ainda consigo frear a tempo de evitar o acidente. A mulher sorridente pede desculpas. Desculpas peço também eu, por ter ultrapassado pelo lado direito, por não ter previsto que a parada em fila dupla era para possibilitar o desembarque, por não ter acionado a campainha, por não ter prestado atenção na mulher que vinha no banco de trás, e, principalmente, por existir. Deixasse eu de existir e o problema não teria surgido.
Cena 8: Em outro trajeto compartilhado com o automóvel eu paro junto com os carros no sinal vermelho. Na minha frente passa um pedestre carregando um ar-condicionado em um carrinho de duas rodas, destes que foi feito para carregar um embrulho, talvez uma mala, mas jamais um ar-condicionado que deve pesar por volta dos 25 kg. Não sei se foi premonição, ou se foi o demo que fez residência no meu pensamento, mas foi só eu pensar que a coisa aconteceu. Uma roda solta-se do carrinho e como o sinal vai abrir a mulher só tem tempo de recolher a roda solta e arrastar o que sobrou do carrinho mais o ar-condicionado até a calçada. Talvez por causa da consciência pesada, mas possivelmente devido ao coração mole, ou porque eu já estava perto de casa, eu parei, e ofereci meus préstimos. Mais gente já tinha se juntado, formou-se uma roda, porque nestas horas o brasileiro é muito prestativo e solidário. Mas o que é que eu ia poder fazer, se não tinha nem um pedaço de arame para tentar fixar a roda solta? E o pior é que a outra roda também estava ameaçando se soltar. O mais sensato teria sido recomendar à mulher que tomasse um táxi. Mas se ela tinha pego o carrinho para economizar o frete, ia querer tomar um táxi? Conversa para lá, conversa para cá, eu ofereci a minha bicicleta. Equilibramos o ar condicionado em cima do selim e eu fui empurrando a bicicleta até a casa dela.
Cheguei à cena 8 e acho que a desgraceira já está de bom tamanho. Posso parar. Esperasse um pouco mais e certamente haveria mais desgraça para contar. Talvez até houvesse uma desgraça que me redimisse de contá-las todas. Mas será que é necessário?
Eu sei que os fatos falam por si, mas que tal reforçá-los um pouco, parodiando o mestre Brecht: que tempos são esses em que falar de praias e ciclovias não é falar nem de sol nem de mar, mas sim falar das agruras do mundo em que vivemos?
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