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Mondo Cane
Cláudio Thomás Bornstein


Resolvi fazer um passeio de bicicleta pela ciclovia que margeia as praias da Zona Sul do Rio de Janeiro. Eu tinha algumas coisas para resolver em Ipanema, e aí veio a ideia de juntar o útil ao agradável, ou seja, eu cumpria os compromissos e ainda por cima fazia um passeio bonito, quer dizer, ao menos assim eu pensava. O que esqueci é que estamos na época das férias e é verão, ou seja, as praias estão superlotadas e toda uma fauna ávida de aventura e adrenalina povoa as areias. Narro algumas cenas que vivi, na certeza que os fatos falam por si.

Cena 1: Em Copacabana bandos de rapazes atravessam a ciclovia sem olhar para os lados. Eu de longe aciono a campainha, na esperança de que me cedam espaço. Em vão, porque o que deveria ser advertência é interpretado como censura e a reação são insultos e ameaças. Um chega a me empurrar e se eu não caio é porque dorme em mim um equilibrista.

Cena 2: De longe eu já vejo a carrocinha de milho estacionada na ciclovia. Felizmente ela está do outro lado da pista, ou seja, eu estou vindo pela direita e ela está do lado esquerdo. Crente de que não haverá problema eu me aproximo na velocidade normal. Quando falta um metro, surge, repentinamente uma outra bicicleta que está tentando ultrapassar a carrocinha pela contramão. A colisão frente a frente é inevitável. O lado esquerdo está ocupado pelo vendedor e do lado direito tem o meio fio. Não há escapatória. Desta vez, nenhum equilibrista vem para me salvar, ou melhor, nenhum equilibrista teria conseguido a proeza. Vou ao chão, felizmente, sem maiores consequências, além de alguns arranhões. Desta vez, eu escapei. Quantas vezes ainda vou escapar?

Cena 3: Venho pela pista da direita e sinto um vento na orelha esquerda. Olho para o lado a tempo de ver uma tampa de isopor passando rente ao meu rosto. Logo o enigma se esclarece. É um vendedor cavalgando a sua patinete elétrica em alta velocidade. O isopor com a mercadoria ele traz a tiracolo, mas, provavelmente com medo da tampa voar, ele a enfiou dentro da alça, e ela avança quase um metro para fora. Caramba, penso eu, como é que o cara tira um fininho destes? Como é que não provoca acidente? Foi só pensar para a coisa acontecer. Quinhentos metros mais adiante, vejo a patinete parada no meio-fio, o sujeito apeado buscando a tampa que voou. Sorte não ter machucado ninguém. Por enquanto.

Cena 4: Falei em patinete elétrica, mas tão ruim quanto as patinetes são as bicicletas elétricas. Largas, pesadas, o condutor vai sentado confortavelmente, pernas abertas, como se estivesse sentado em um sofá. Vai em alta velocidade olhando o celular. E como o esforço não é dele, mas é o motor que faz a força, o sujeito carrega na garupa a mulher e o filho e, como ainda sobrou um espacinho, vai também o sofá e parte da mudança. São duzentos quilos de carne, madeira e tecido, emoldurados por barras de ferro, a trinta quilômetros por hora. Já pensou se o projétil te atinge? Mas a bicicleta elétrica ao menos é ecológica, quer dizer, dizem que é, eu desconfio que não é, mas não fiz a conta. Pior são os quadriciclos movidos a motor a gasolina, que também seguem pela ciclovia, pilotados por nada menos que a polícia. Neste caso além do peso da viatura e dos seus ocupantes ainda temos que contar com o peso da autoridade. Somado tudo junto, deve ser bem mais do que um míssil terra-a-terra, daqueles que anda bombardeando a faixa de Gaza. A faixa de Gaza é aqui!

Cena 5: Paro em um sinal para atravessar a rua junto com os pedestres. Do meu lado, um casal, ele completamente bêbado, parado em círculos, ela, olhar reto para frente, decidida a nada perceber. O tronco dele está circulando, assim como circulando deve esta a cabeça. Um dos círculos esbarra na reta do olhar da sua mulher. O choque é inevitável e dizem que as curvas não gostam das linhas retas. Ele resmunga qualquer coisa, a mulher faz que não ouviu. Ele a pega pelo braço, ela faz que não sentiu. Mas aí já abre o sinal, e não fiquei lá para ver o desfecho da colisão da reta com o círculo.

Cena 6: Para chegar à praia eu tenho que atravessar um túnel. Na verdade, são dois túneis, uma para cada mão. Na ida eu pego um, na volta o outro. Em cada túnel existem duas pistas ladeadas de corrimão, originalmente pensadas para pedestres. Hoje transformaram uma das pistas em ciclovia, mas ela é tão estreita que não possibilita ultrapassagem. Para agravar a situação, a pista tem um suave aclive. Do alto dos meus quase oitenta anos lá vou eu resfolegando, quando atrás de mim escuto uma buzina. O que fazer? Parar não me parece boa solução, porque, como eu já disse, a ultrapassagem, até mesmo parado, é difícil. Olhar para trás, é acidente na certa porque a pista é muito estreita, corrimão de um lado e parede do outro. Ainda por cima, reina a escuridão, porque as lâmpadas do túnel não são suficientes para clarear a ciclovia. Continuo, portanto, no mesmo ritmo, que é o melhor que eu consigo fazer. A buzina também continua e só pára quando eu atinjo o final do túnel e sou ultrapassado por uma bicicleta elétrica e um palavrão. Isto foi na ida. Na volta, foi pior. Voltei relativamente tarde e ao entrar no túnel percebi o engarrafamento. Como a pista de bicicleta estava livre segui viagem. Ao chegar ao final do túnel é que notei o motivo do engarrafamento. Um carro da polícia estava atravessado fazendo blitz. Não é comigo, foi o que eu pensei. Ledo engano. Como que surgidos do nada, um bando de moleques, vem correndo entre os carros. Ao chegar perto do carro de polícia pulam o corrimão numa manobra de parkour e passam para a pista de bicicleta. Tive que frear para não atropelar o garoto. Vivere pericolosamente! Esta frase, cunhada pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, foi depois usada por nada menos que Benito Mussolini. Tem tudo a ver com os nossos tempos, penso eu.

Cena 7: Apesar de eu tentar incluir o máximo possível de ciclovias no trajeto, não dá para evitar uma ou outra via que eu compartilho com o automóvel. Eu vinha por uma destas ruas pelo lado direito. Havia uma fila de carros estacionados e eu seguia rente a eles. Sou ultrapassado por um carro que pára, em fila dupla, cem metros à minha frente. O que fazer? Ultrapassá-lo pelo lado esquerdo é perigoso, porque como o espaço ficou muito restrito o tráfego por lá é intenso. Resolvo ultrapassá-lo pelo lado direito, já que o espaço entre ele e o carro estacionado é grande. Justamente quando o estou ultrapassando, abre-se a porta. Ainda consigo frear a tempo de evitar o acidente. A mulher sorridente pede desculpas. Desculpas peço também eu, por ter ultrapassado pelo lado direito, por não ter previsto que a parada em fila dupla era para possibilitar o desembarque, por não ter acionado a campainha, por não ter prestado atenção na mulher que vinha no banco de trás, e, principalmente, por existir. Deixasse eu de existir e o problema não teria surgido.

Cena 8: Em outro trajeto compartilhado com o automóvel eu paro junto com os carros no sinal vermelho. Na minha frente passa um pedestre carregando um ar-condicionado em um carrinho de duas rodas, destes que foi feito para carregar um embrulho, talvez uma mala, mas jamais um ar-condicionado que deve pesar por volta dos 25 kg. Não sei se foi premonição, ou se foi o demo que fez residência no meu pensamento, mas foi só eu pensar que a coisa aconteceu. Uma roda solta-se do carrinho e como o sinal vai abrir a mulher só tem tempo de recolher a roda solta e arrastar o que sobrou do carrinho mais o ar-condicionado até a calçada. Talvez por causa da consciência pesada, mas possivelmente devido ao coração mole, ou porque eu já estava perto de casa, eu parei, e ofereci meus préstimos. Mais gente já tinha se juntado, formou-se uma roda, porque nestas horas o brasileiro é muito prestativo e solidário. Mas o que é que eu ia poder fazer, se não tinha nem um pedaço de arame para tentar fixar a roda solta? E o pior é que a outra roda também estava ameaçando se soltar. O mais sensato teria sido recomendar à mulher que tomasse um táxi. Mas se ela tinha pego o carrinho para economizar o frete, ia querer tomar um táxi? Conversa para lá, conversa para cá, eu ofereci a minha bicicleta. Equilibramos o ar condicionado em cima do selim e eu fui empurrando a bicicleta até a casa dela.

Cheguei à cena 8 e acho que a desgraceira já está de bom tamanho. Posso parar. Esperasse um pouco mais e certamente haveria mais desgraça para contar. Talvez até houvesse uma desgraça que me redimisse de contá-las todas. Mas será que é necessário?

Eu sei que os fatos falam por si, mas que tal reforçá-los um pouco, parodiando o mestre Brecht: que tempos são esses em que falar de praias e ciclovias não é falar nem de sol nem de mar, mas sim falar das agruras do mundo em que vivemos?


Biografia:
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