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Sobre os limites da passividade
Cláudio Thomás Bornstein


Fui comprar ingressos para um filme em um destes sites que existem na internet. Ao entrar, fui soterrado por uma avalanche de publicidade, blockbusters na frente. Tentavam me empurrar todo tipo de filme, menos aquele que eu queria ver. Consegui, através de um mecanismo de busca, encontrar o que eu queria, mas, a cada momento, surgiam novos obstáculos. Parecia que eu estava em um daqueles joguinhos eletrônicos: quanto mais dificuldades você supera, mais dificuldades surgem.

Havia um monte de formalidades a cumprir, um monte de exigências a serem satisfeitas. Queriam o meu cadastro, queriam o número do meu cartão de crédito, queriam o meu CPF e o número do meu documento de identidade. Mas, e se eu não quiser fazer o cadastro, se eu não tiver cartão de crédito? Sou obrigado a fornecer o meu CPF? E se eu não quiser revelar a minha identidade? Não posso ficar anônimo? Pensei: antigamente eu comprava ingresso no caixa do cinema sem fornecer informação nenhuma. Porque isto mudou? A tecnologia não é para melhorar a qualidade de vida? Não é para diminuir a burocracia?

Consegui escapar de algumas exigências. Cadastro eu não fiz, número de cartão de crédito eu não dei e optei por PIX. Mas, ao fazer o PIX me deram tão somente alguns minutos para fazer a transação. Para que esta pressa toda, porque este stress adicional? Eu sei que eles não podem manter a reserva dos assentos por muito tempo. Não podem ou não querem? Eu, por outro lado, não quero o stress da pressa. Eu posso, mas não quero.

O que dizem é que a automação visa baixar os custos, tudo é feito para minimizar o preço do serviço. Mas, e se eu não me importar de pagar um pouco mais em troca de menos stress?

Dizem que tudo é sempre feito para o meu bem. Mas, porque eu não posso escolher e decidir o que é bom para mim? Porque é que eu sempre tenho que deixar esta decisão para eles?

Ah, esqueci. Antes de fazer o pagamento, havia que "ir para a pipoca". Caramba, além de toda esta "via Crúcis", querem me obrigar a consumir pipoca? E se eu não gostar, ou não puder comer pipoca? Felizmente havia um botão de "Pular", mas estava escondido no canto inferior direito da tela.

Consegui escolher os assentos e consegui fazer o pagamento. Mas faltava o principal: os ingressos. Imprimir os ingressos no site, nem pensar. Imagino que a razão alegada é a da segurança. Sempre tudo é feito visando a minha segurança. Mas segurança nunca é aquilo que eu julgo seguro para mim. Segurança é sempre aquilo que eles acham que é seguro. Peraí! É segurança para mim, ou é segurança para eles? E se forem eles a impedir a minha segurança, como é que a coisa fica?

Acabei descobrindo que, no meu caso, os ingressos seriam mandados por e-mail. Quer dizer, os ingressos não, o que seria mandado seriam os vouchers dos ingressos. Ou seja, se uma das vantagens do procedimento era evitar a fila do caixa, tinha sido tudo em vão. Mais este sapo que tive que engolir.

Comentei as minhas desventuras com um amigo. Ele me olhou espantado: Claudio, em que mundo você vive? As coisas hoje em dia são assim mesmo. É normal.

Pensei com meus botões, pensei, não disse, porque eu não quero perder o amigo. Normal é aquilo que a gente torna normal através da aceitação e da passividade. Me lembrei dos versos de Brecht Aos que hão de vir depois de nós:

...
Nos embates da luta de classe,
Trocamos de país mais do que de sapatos,
Desesperados, por verificar que somente havia injustiça,
E não revolta.
...

É, desde a época do Brecht muita coisa mudou. Mas isto continua exatamente igual!


Biografia:
Para mais informações visite o blog CAUSOS em www.ctbornst.blogspot.com.br. Querendo fazer comentários, mande e-mail para ctbornst@cos.ufrj.br
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