Eu voltava de uma festa. Vinha com um casal de amigos: ele calado, ela falando. Talvez para escapar do falatório, talvez pelo fato de um táxi ter apontado na esquina, eu estava preparando para me despedir, quando a mulher do amigo me segurando pelo braço, disse em tom peremptório: “Você vem com a gente. Nós vamos de Uber."
Tentei recusar a proposta, não só pelo amor ao silêncio, mas também porque eu não gosto de contrair dívidas, e como é que eu ia pagar a corrida, se ela ia pagar no cartão?
Não adiantaram os protestos: “Ora, deixa de bobagem, é uma ninharia e a gente aproveita e vai batendo papo.” De fato, a gente mora perto e a diferença ia ser pequena.
Sacrifiquei não só o silêncio, como sobretudo, sacrifiquei a comodidade, porque táxi, é só estender a mão, enquanto Uber .... Foi um rolo, porque estávamos em uma praça grande e a minha amiga tinha que dar um endereço certo para o Uber nos encontrar no lugar correto. Acabamos conseguindo, esperamos uns dez minutos, foi possível identificar o carro e, finalmente, embarcamos.
O casal foi no banco de trás e eu fui na frente com o motorista. Talvez por causa disto, foi para mim que ele se virou, perguntando: “Tem uma parada intermediária, não tem?” Fiz cara de espanto e não disse nada, não só porque o silêncio costuma ser a melhor resposta, mas também porque pelo tempo que minha amiga tinha ficado em cima do celular, eu achava que todas as informações já tinham sido dadas, e eu temia protesto e reclamação. Notando o meu silêncio, o motoristas tentou se justificar: “É que para nós, aqui no aplicativo, não aparece nada. Só diz que tem uma parada intermediária, mas não diz onde é que é. A gente tem que se precaver, não é?” E começou a falar dos diversos problemas que tinha enfrentado recentemente: em um caso, um passageiro tinha pedido para ele subir uma ladeira íngreme em dia de chuva, no outro ele tinha tido que subir um morro, entrando em uma comunidade carente. Escutei tudo pacientemente e tranquilizei o motorista: desta vez ia ser tão somente uma pequena variante do trajeto planejado.
Meu amigo no banco de trás continuava calado, mas minha amiga, concordando com tudo que o motorista dizia, acrescentou: “Vocês são uns heróis. Trabalhando nesta falta de segurança, ainda por cima à noite. Recentemente peguei um motorista que tinha sido parado por um homem armado. Ele disse que acelerou o carro e passou por cima. Agora está sofrendo um processo por atropelamento intencional.”
“A senhora vê? É o Brasil de hoje. O bandido vira vítima, e a vítima acaba tendo que indenizar o bandido. Está tudo ao contrário!” foi o comentário.
Fez-se um minuto de silêncio. Mas, a alegria durou pouco, porque o motorista, olhando o celular, dirigiu-se à minha amiga, e apontando a tela do aparelho, disse: “A senhora aqui pelo meu aplicativo tem nota alta. É raro encontrar passageiro com nota tão alta assim.”
“É que eu nunca crio dificuldade. Mesmo quando o motorista é grosso, ou fala pouco, eu atribuo tudo ao stress de dirigir neste tráfego maluco, problema de todo lado: guarda, multa e engarrafamento.”
Diga-se, de passagem, que o motorista sistematicamente atravessava todos os sinais vermelhos. A coisa era tão acintosa, que o meu amigo, saindo do seu mutismo, não se conteve: “Você não gosta de sinal vermelho, não é?”
“É que aqui, nesta área, não tem pardal. Além disso, a esta hora da noite o tráfego já não está mais tão intenso.”
“E tem também a questão da segurança. Parar na pista, facilita o assalto.” ajuntou a minha amiga.
A esta altura já estávamos chegando na minha residência. Agradeci e me despedi. Enquanto subia no elevador eu pensava: está tudo ao contrário, nisto o motorista tem razão. Nota boa para ela dar nota boa para ele. De que vale mesmo esta nota? A avaliação, na verdade, não existe. Existe é um jogo de faz-de-conta que possivelmente é o objetivo de tudo. Manter a ilusão do domínio e do controle de um mundo totalmente descontrolado.
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