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Quando tudo começou
Flora Fernweh

Naquela madrugada quente de março, que já prenunciava o fim de um verão fleumático, fui despertada de um sono leve pelo baque de meu engembrado apoio de cabides para roupas, no quarto do pequeno apartamento que eu dormia. Eu já estava na cidade que há poucos meses havia ganhado meu coração, por ser meu antro acadêmico, mas também um recinto de solitude e dedicação na almejada Ilha da Magia. Foi nessa noite que o móvel de roupas cedeu, após quase uma semana de aulas no segundo semestre do curso de Direito. Não encarei o fato com susto ou assombro, naturalizei-o ao longo da noite, como se eu anteriormente soubesse da queda, como se fosse instintivo que minha vida amorosa até aquele momento se sustentava em uma relação pesada que já não me cabia mais, estava inadequada tal qual o apoio de roupas, e tão superficial quanto o mesmo. Eu sabia que insistir no conserto não adiantava diante de uma fragilização física que se espalhou no emocional. Eu poderia sentir naquele pequeno estrondo um aviso de que algo grandioso estaria à minha espera, motivada por uma energia diferente que transpassou o meu ser. Virei para o lado e logo adormeci novamente, antes que a manhã de um dia memorável me despertasse em definitivo.
Assim que o despertador tocou, me preparei para mais uma manhã de estudos. Eu estava engajada com as aulas do dia, pois conheceria dois novos professores (a princípio, porque os caminhos que segui algumas horas depois me conduziu a outro professor cuja sensibilidade ficaria marcada em mim por muito tempo). Nesse mesmo dia, minha madrinha me convidara para um tradicional almoço de início de semestre letivo, na Lagoa da Conceição, então a motivação para o meu dia era ainda maior, somada ao formoso sol que aparecia logo cedo naquela sexta feira inesquecível em meu viver.
Após uma dinâmica de divisão de grupos na última aula do dia, o que tomou um tempo além do previsto, me dirigi rapidamente rumo ao ponto de ônibus mais próximo, na tentativa de embarcar em um ônibus que me guiasse até o compromisso com a minha madrinha. Para tanto, agilizei o quanto podia, visto que é de minha índole a pontualidade. Chegando ao terminal da Trindade, no entanto, adentrei em um ônibus que passaria pelo terminal da Lagoa, lembro-me até mesmo da linha: 320. Não me atentei, entretanto, que embarquei no veículo tomando a direção errada, posto que ele primeiramente iria até o Centro, retornaria à Trindade e posteriormente chegaria na Lagoa. Eu certamente poderia ter poupado o meu tempo caso tivesse embarcado no lado oposto da plataforma, com a direção para o bairro. Aliás, a partir do incidente me dei conta de que embora eu estivesse morando em Florianópolis há quase seis meses, ainda tinha muito o que conhecer e aprender, seja sobre o veículo urbano, seja sobre os pontos turísticos e os lugares que me aguardavam, na companhia do moço especial que conheci neste meu erro de direção, que se tornou o acerto que me guiou até o norte de minha existência.
Questionei o caminho que o ônibus faria, quando pressenti que ele não estaria rumando para a Lagoa naquele momento, e pelo relativo conhecimento que eu dispunha sobre os caminhos pela ilha, fiquei imaginando: “Será que as rotas dos ônibus mudaram durante os dois meses em que estive de férias fora da cidade?” ou então “Minha tia deve estar preocupada e estranhará a minha demora”. Antes da habitual parada no terminal do centro, não hesitei em perguntar a um passageiro sentado à minha frente se o ônibus de fato iria para a Lagoa da Conceição, e a resposta foi breve mas positiva, sem alongamentos. Resignei-me então com minha confusão frente ao acontecido. O que me restava era a paciência de retorno ao mesmo ponto de onde parti e o seguimento da viagem para a famigerada Lagoa.
Várias pessoas desembarcaram quando o ônibus finalmente chegou ao centro, e um moço com seus 30 aparentes anos mas com um ar muito jovial, embarcou pela porta à minha frente, avistou a poltrona vaga ao lado da minha e esperou alguns segundos ante a minha distração com meu nítido olhar de moça perdida mas também inebriada pelas belezas reservadas pelos meandros metropolitanos do centro de Florianópolis. Com um rápido aceno de cabeça, sentou-se ao meu lado, com sua inegável elegância, e pôs-se a continuar a leitura do livro que carregava consigo “Ensaios insólitos”, do sociólogo brasileiro Darcy Ribeiro. Chamou-me imediatamente a atenção a erudição que emanava daquela figura que escolheu sentar-se ao meu lado, e senti-me privilegiada. O trajeto era percorrido na quietude atarefada do cotidiano encerrado no transporte público, no centro da capital. E ao meu lado estava o intelectual pelo qual eu me apaixonaria branda e intensamente nos próximos minutos.
Minha intenção naquele instante estava voltada ao percurso daquele ônibus que pregou uma verdadeira peça em mim, desavisada, mas jamais perdida com linhas de ônibus, uma vez que pouco aventurada pelas veredas de bons passeios. Foi uma confusão única e certa, adequada em completude. Era exatamente ali onde eu deveria estar, naquele ônibus, naquele assento e naquele lugar, eu não deveria estar em nenhum outro ônibus, ainda que eu não estivesse sendo conduzida diretamente para onde eu gostaria, mas sim para onde eu precisava de fato estar. Me conformei com o que o passageiro anteriormente havia me confirmado com claras palavras de que o ônibus estaria indo para a Lagoa, mas subitamente, quando fui acometida pela ilusão e com a possibilidade de que o ônibus estaria se aproximando da ponte que liga a ilha à parte continental da cidade, pus-me em suave desespero a ponto de indagar novamente outra pessoa, e escolhi justamente aquela que era mais cômoda: a que estava ao meu lado, aquele moço imerso em sua leitura.
Ele não apenas respondeu que sim, como também imediatamente voltou sua atenção à minha pessoa, com a curiosidade sobre meu pouco tempo na cidade. Pude notar seu jeito atencioso em puxar um assunto, de modo a impedir que por mais um minuto eu me sentisse perdida. Conversamos incessantemente por todo o restante do trajeto, e se parecia que até então o ônibus estava demorando tanto, a partir dali pareceu que o tempo passou ainda mais devagar, porque trilhamos por tantos assuntos diferentes, que a conversa pareceu se eternizar na profundidade de seu conteúdo. Conhecemos afinidades, descobri que ele era professor e estava fazendo um pós-doutorado em educação na universidade em que estudo. Para além disso, conversamos sobre nossos gostos musicais, literários e cinematográficos. Ele só poderia ser nordestino, e seu sotaque não desmentiu minha certeza, porque há algo naquele canto do Brasil que tanto me atrai, espelhado no singular trejeito de ser. Jamais imaginava que esse dia poderia me reservar tamanha surpresa e preciosidade. Eu que somente com o intuito de me localizar geograficamente retirei-o de sua atenção nas necessárias palavras de Darcy, não pensava que seria possível criar uma conexão forte em tão pouco tempo.
Nós já não queríamos chegar logo em nosso destino final (que também era compartilhado como algo comum entre eu e ele: a Lagoa da Conceição). Nos interessava passar o tempo que fosse preciso e querido um ao lado do outro descobrindo novas compatibilidades… o amor pelo universo, o fascínio pelas forças da natureza, o ímpeto de um vulcão, as belezas do mundo, a paixão pelos livros e pela cultura, entre outras infinitas coerências entre eu e o autointitulado “Sr. Infinito”. Minha admiração só se fez aumentar quando descobri que ele já tinha publicado alguns livros e escrevia textos para um blog chamado “Zensacionalista”, que eu viria a publicar um dia um de meus textos por lá mais tarde. Mantivemos o contato graças a esse site, pois foi com o pretexto de me enviar o link da página, que o moço conseguiu o meu número de telefone com bastante esperteza. Saímos ambos maravilhados do ônibus e nos abraçamos já sentindo as vibrações ímpares que somente nos acomete na Lagoa, sem me passar pela mente que logo criaríamos um laço ainda mais forte e nos tornamos companheiros de uma vida, eu com 19 anos e ele com seus 33.
O seu carisma, seu olhar sobre a vida, sua nobreza de espírito, seu cavalheirismo, sua gentileza e sua doação a mim, me conquistaram mais a cada dia. Foi um encontro genuíno de duas almas que precisavam se encontrar e fazer morada duradoura uma na outra. Não foi procura, foi verdadeiro encontro, foi amor na primeira palavra, pelas vias de um destino certeiro escrito nas linhas de um caminho ao acaso errante, a certeza de um descuido que me levou ao encontro do amor que habita em mim e que posso doar ao outro. Ele logo se tornou muito especial em minha vida e ainda é um mistério os acontecimentos daquele dia. Após nos despedirmos encantados, segui ao encontro de minha madrinha, e passei o restante da tarde na casa dela. Ao anoitecer, eu vislumbrava da varanda a Lagoa da Conceição, que se abria à minha frente com uma imensidão jamais vista, a paisagem me acendia uma chama de ternura, um sentimento de desapego e afeição autêntica. E quando me sentei para pensar nos milagres de um só dia e na linguagem simbólica através da qual a vida falou comigo, meu coração se encheu de alegrias e certezas quando me deparei com uma estrela cadente, viajando muito acima da Lagoa em minha direção. Fiz-lhe um pedido que transcende o tempo, o universo e toda uma vida.


Biografia:
Sobre minha pessoa, pouco sei, mas posso dizer que sou aquela que na vida anda só, que faz da escrita sua amante, que desvenda as veredas mais profundas do deserto que nela existe, que transborda suas paixões do modo mais feroz, que nunca está em lugar algum, mas que jamais deixará de ser um mistério a ser desvendado pelas ventanias. 
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