A desmistificação de ideias que povoaram o imaginário coletivo na transição para o mundo moderno é o fio condutor do jurista italiano Paolo Grossi na obra Mitologias jurídicas da modernidade, de 2001, em que o autor apresenta sua percepção sobre os desdobramentos do direito ao longo do tempo retirando de seu pensamento toda ilusão que impede uma análise pautada na concretude da nascente modernidade. Percebe-se uma verdadeira preocupação de Grossi em retomar a complexidade a fim de evitar as consequências teóricas que a superficialidade acarreta, como a perda da cultura jurídica, que se torna nítida a partir do entendimento de lei como vontade ao invés de conhecimento. Nesse sentido, a presente resenha se dedica a desenvolver minuciosamente as ideias do autor sob uma ótica crítica que viabilize a compreensão de seu conteúdo inserido na modernidade, à luz de uma perspectiva contemporânea.
Ao localizar o estudo jurídico no tempo, afixando na modernidade suas bases teóricas, Paolo Grossi pressupõe a importância de um entendimento sobre a história do direito. Desse modo, ao introduzir sua obra, o autor atenta-se à imprescindível função do historiador para o questionamento crítico dos pensamentos que até então foram impostos. Ou seja, nota-se sua responsabilidade em desconstruir ideias tidas como verdadeiras a priori e propor reflexões. É nesse sentido que se pode pensar a história do direito enquanto ciência, visto que a consolidação da ciência jurídica ao longo do tempo passou por muitas elaborações até o alcance de teorias, atravessando momentos de propícia refutação e novas formulações aperfeiçoadas.
Nesse ínterim, cabe mencionar o princípio da refutabilidade de Karl Popper, cuja dúvida acerca de um suposto saber se constituía o elemento fundamental de todo conhecimento válido, o que contribui para estabelecer uma diferenciação entre ciência e crença. Um fato que motiva as concepções convictas é a visão de superioridade do direito em relação ao poder político, que está fortemente relacionado ao mundo jurídico. Dessa forma, a substância que forma o conteúdo do direito é relegada ao segundo plano em razão da intervenção política, para a qual o enfoque é dado. Assim, se verifica novamente a necessidade do historiador do direito em retomar a essência das leis e combater a ótica unilateral que ainda insiste em advir, tendo como meio, a comparação do acontecimento entre os tempos, o que possibilita um olhar mais atento dos juristas aos fenômenos sociais por meio de provocações.
A primeira parte da obra já se inicia com uma dessas provocações que recai na seguinte pergunta: justiça como lei ou lei como justiça? Em uma compreensão pessoal, esse questionamento evoca o sentido da lei como um meio para a efetivação da justiça no primeiro caso, enquanto que no segundo, a justiça se imprime como uma finalidade que a lei almeja alcançar. Para estabelecer uma conexão entre esses termos indicados na indagação anterior, é possível observar que os conceitos de direito e justiça são vistos pelo senso comum a partir de um significado muito distinto, sendo que o primeiro costuma vincular-se a uma ideia abstrata, inflexível e estática de lei, enquadrada como uma autoridade incontestável, o que promove um distanciamento dos reais princípios de existência de uma ordem. Essa passagem dialoga com outro livro do autor: Primeira lição sobre o direito, em que Paolo Grossi examina o panorama das incompreensões do direito devido à sua face imaterial. É curisoso se pensar a recorrente associação entre direito e justiça, especialmente entre os alunos ingressantes do curso de Direito. Entretanto, convém ressaltar que apesar de a justiça implicar um objetivo da lei, ela não é sinônima ao ordenamento jurídico em seu sentido específico, e é fundamental a compreensão do direito como acepção muito mais vasta que a lei em si.
Para reiterar, o papel do historiador auxilia na elucidação da realidade conforme um ponto de vista que considera o passado, de modo a eliminar superstições por meio da crítica e evitar uma absolutização do saber. É nesse sentido que se pode estabelecer um ponto em comum entre o período medieval e o moderno, visto que ocorre o desenvolvimento de civilizações jurídicas em ambas as conjunturas. No entanto, o ordenamento jurídico na modernidade se configurava como um meio para se alcançar determinados fins, ao passo em que na Idade Média, o direito tinha em si o seu propósito. Ao adentrar na temática do medievo, o autor descreve uma relativa indiferença do poder político frente às questões sociais, no âmbito de não abarcar plenamente aquilo que é seu encargo. Sob meu ponto de vista, essa realidade se deve à desorganização política na alta Idade Média, uma vez que a inexistência de um poder centralizado pressupunha uma fragmentação que é nítida ao se analisar o funcionamento da ordem feudal.
Ao traçar um paralelo com a contemporaneidade, nota-se na época medieval uma valorização da coletividade em detrimento do indivíduo isolado, visto que o valor da vida em comunidade, bem como o seu conjunto de relações, estava acima de toda individualidade. Logo, o direito anterior ao poder político vislumbrou uma oportunidade de marcar sua presença. Essa realidade destoa da consideração tida pelo indivíduo nos dias de hoje, em que os ideais de igualdade, propriedade, liberdade e direito à vida, provenientes das revoluções burguesas, devem ser absolutamente assegurados.
Retornando à discussão acerca do direito na Idade Média, delineia-se uma condição em que o campo jurídico se institui autônomo de outras instâncias de poder, no entanto, vincula-se fortemente à sociedade e é parte indissociável dela na garantia dos direitos civis. Isso se torna evidente na expressão da realidade em que o direito se insere, visto que a materialidade da civilização enquanto construção social é um de seus resultados. É perceptível que Grossi alude indiretamente à ideia de príncipe explorada pelo pensador florentino Nicolau Maquiavel quando relaciona o direito à natureza, o que explicita sua posição contrária diante de seu uso como instrumento de controle. No desenrolar de uma perspectiva teórica à luz do verdadeiro saber, se inscreve a feitura de um direito medieval a partir da arte de interpretação e de retomada dos textos antigos. Para exemplificar, pode-se mencionar a contribuição racional de Tomás de Aquino na definição da lex, cuja efetivação do bem comum pertenceria a uma dimensão mais objetiva, em que o conteúdo passa a se sobrepor ao sujeito.
Dessa forma, é factível afirmar que o ordenamento acompanha a razão e estabelece limites galgados na consciência do indivíduo sobre a lei, posto que o conhecimento, fruto do advento racional, possibilita o estudo da realidade concreta. Na contrapartida da ordem medieval, um novo paradigma é inaugurado na modernidade a começar pela noção de indivíduo, cujo esforço desemboca em sua libertação do antro da vida comum, tão prezado durante o medievo. Ocorre uma mudança nítida na relação entre o direito e o poder político, uma vez que as instâncias de poder se distanciam da natureza e da sociedade, acompanhando o movimento de maior introspecção que passa a se retratar. No que tange ao direito, se percebe que a autoridade detentora do poder desperta para uma maior atuação no fazer jurídico, incluindo em normas os seus princípios e interesses, que aniquilam o antigo pluralismo e cedem espaço ao monismo por meio de uma fonte de direito única que pode levar à formulação de leis injustas. É somente quando as pretensões do legislador coincidem com a vontade do povo que se pode imaginar um conceito forçado de democracia.
Também se identifica uma substituição da lex pela ideia de loy, universal e intransigente, nas mãos do soberano. Uma característica fundamental nessa distinção, é que a loy aborda uma realidade menos corpórea, o que em minha acepção, demonstra uma ruptura com o entendimento pautado no que é acessível pelos sentidos humanos, encaminhando a ideia de direito para um rumo que se assemelha com a apartação entre o ordenamento contemporâneo e os cidadãos. Concordo parcialmente com a necessidade do autor em comentar a alegação de Montaigne sobre o fato de que o respeito dado às leis se encerra na autoridade de serem leis, ao invés de um conteúdo que visualize a justiça ou qualquer outro ideal, pois essa visão contradiz o espírito de que as leis não têm um fim em si mesmas, o que designa um princípio jurídico da modernidade, contrastando com a ideia de ordenamento medieval, com os intuitos encerrados em si.
Na transição para a modernidade e tendo em vista novos modelos jurídicos, Montaigne igualmente analisa a situação do absolutismo francês, que apesar de regulamentar a vida pública, não se sucedeu da mesma maneira na esfera civil, ainda atrelada ao direito consuetudinário. Paolo Grossi traz à tona ideias de Jean Bodin sobre a ciência política moderna e atribui a ele a distinção entre leis e direito na França absolutista, com um especial destaque ao segundo termo, que diz respeito ao modo de vida e a submissão das normas aos valores mais intrínsecos da sociedade. É incompreensível para mim, tanto quanto para vários juristas, a cisão desarmônica entre o direito e a sociedade, sendo que essa é organizada a partir daquele. O motivo disso se desdobra nas leis que guardam consigo o poder vigente, mas que já não significam a manifestação do direito.
Ao se embrenhar em um estudo meticuloso sobre a modernidade, Paolo Grossi afirma que apesar da laicização e de um amplo desenvolvimento das ciências servirem como motivadores de uma desconstrução das antigas mitologias que permeavam o mundo do direito, a mudança de tempo histórico não foi o suficiente para aniquilar os mitos jurídicos. Pelo contrário, eles consistem em verdadeiros pilares do período moderno. Para fundamentar essa ideia, o autor recorre ao jurista Santi Romano, cuja influência é inegável na formação de Grossi, e percebida pelos elogios que ele tece em referência ao pensador admirado. A ideia de desmembramento religioso das esferas da vida, anteriormente citada, tem como consequência uma maior fragmentação no direito e na política, em razão do enfraquecimento de um poder que até então era robusto e unificador: a religião, o que abriu uma brecha para que a instituição de uma meta-realidade através das mitologias jurídicas, ultrapassando diversas ocasiões históricas. Nesse sentido, compreendo que o autor buscou qualificar com bastante propriedade, o mito enquanto uma crença que substituiu o declínio da fé católica e se ergueu como solução diante da falta de certezas absolutas.
Apesar de a análise percorrer a mudança de tempo histórico, a perspectiva do historiador do direito está sempre sendo o ponto central de partida para as reflexões temporais. Verifica-se que os mitos se instalam no imaginário da sociedade e retiram de sua memória as bases fundamentais nas quais o direito deve se sustentar, como a sua complexidade e seu embasamento histórico, o que proporciona a seguinte reflexão: o mito se apresenta de forma absoluta e omite verdades coletivas, caracterizando-se assim, como a religião jurídica moderna, visto que o simplismo é seu regente e toda tentativa de profundidade é comutada em uma crença. Mais adiante, o historiador do direito dá-se conta de um padrão de rigor quase matemático que começa a ascender, marcado pela precisão. Esse modelo certamente se observa no mundo do direito, que começa a se distanciar das abstrações ainda existentes em seu meio ao pontuar novas considerações de uma ordem mais circunscrita, como os ideais de democracia, representação da vontade e lei com cunho normativo. É justamente nessas condições que se insurgem os mitos jurídicos, uma vez que esses ideais contribuem para encobrir a realidade dos fatos enquanto dramatizam uma harmonia improcedente na concretude do Estado. Disso se segue minha conclusão de que um maior valor atribuído à lei como expressão jurídica e vontade geral, fornece os instrumentos necessários para que ela seja apropriada como forma de fazer valer o poder e de atingir pretensões pessoais.
O paradigma moderno em contraste com o mundo medieval passa a compreender o direito como expressão do comando vinculado ao poder, enquanto que no medievo, o sistema de leis se funde na coletividade. A passagem em que Paolo Grossi retrata a autoridade inerente ao direito sob o ponto de vista do homem comum, remete à uma ideia correlata ao contrato social, que auxilia na justificação dos motivos pelos quais a renúncia às liberdades é benéfica ao indivíduo no sentido de assegurar sua segurança e proteção, a partir da igual renúncia do outro. Contudo, ao se afastar da noção autoritária dos ordenamentos, minha posição coincide com a afirmação do autor referente à essência do direito pertencer visceralmente à sociedade, anteriormente a qualquer potestade ou dispositivo de soberania. O entendimento do fenômeno jurídico apartado das instituições de poder é indispensável para a retomada do direito em si, o que renova as expectativas que novamente recaem sobre o jurista da modernidade.
As considerações do autor sobre o direito diante da sociedade em diferentes tempos sugerem que a relação entre os dois conceitos fortalece a complexidade do círculo jurídico e oferecem bases para que a história se interponha frente à possibilidade de anacronismos. Ao citar a associação feita entre direito e Estado, Grossi denota uma decadência da juridicidade substancial do direito que o reduz e que necessariamente deve ser recuperada de um sistema mítico-ideológico. Essa redução preencheu o direito com normas e imposições que somente agregaram poder e o instrumentalizaram como objeto de interesses, negando a amplidão de seu conteúdo e significados. O autor alude ainda, como conclusão de sua teorização, ao perigo de privilegiar a norma, que se trata do distanciamento entre o direito e sua efetivação em razão de nebulosidades e formalismos em seu engendramento como meio de encobrir seu caráter arbitrário.
Assim como Santi Romano, o jurista austríaco Hans Kelsen é profundamente admirado por Grossi devido à sua perspicácia jurídica. No entanto a crítica ao conteúdo bem fundamentado de Kelsen é um ponto de partida para Grossi ao identificá-lo como formalista e grande defensor da norma. A solução proposta por Paolo Grossi consiste em eliminar a visão normativa e repensar o direito como ordenamento. Isto é, ordenar com base na realidade, que favorece o ressurgimento da importância dada à complexidade jurídica. A perda das riquezas do direito foi impulsionada pelo advento iluminista, que ao contrário do que se propaga no senso comum, não trouxe apenas vantagens intelectuais. O exemplo da complexidade jurídica demonstra isso a partir de uma mentalidade mais racional e tendente a um intelecto abstrato e simples, que seja o mais esclarecedor possível. Como anteriormente descrito acerca da relação direito-sociedade na retomada da complexidade do direito, a importância dessa relação se torna evidente na recuperação do senso de coletividade durante o século XX, que foi arruinado na tradição individualista que o mundo moderno se responsabilizou em inaugurar.
Por conta da consagração das formalidades que ornamentam o direito, o valor dado à oralidade e à falta de rigor burocrático em sociedades primárias é nulo, o que infelizmente as invalida aos olhos de quem julga uma associação como reconhecida ou não, determinando a inferioridade de tal sistema jurídico. Ou seja, sob um viés antropológico, o direito empregado nessas sociedades se aproxima da complexa teia de uma concepção de vida comum em seus costumes, e se afasta dos traços de dominação e de tomada pelo Estado moderno, que se dedica a uma redução do direito e não versa sobre as liberdades juridicamente asseguradas.
Minha compreensão é favorável à fundamentação jurídica na ordem ao invés da norma de cunho positivista, posto que o caráter realístico do ordenamento promove não somente uma regeneração do pluralismo e da complexidade por meio de seu rigor, mas também aproxima a sociedade civil de suas autoridades legais. Uma frase muito atrativa de Tomás de Aquino, cuja mentalidade de seu tempo ainda não havia adentrado a esfera moderna é a seguinte: “a unidade realizada mediante a ordem nunca é uma unidade simples”. Sua ideia provoca uma reflexão sobre a reação das diversidades diante da unificação por uma ordem, visto que ao se instituir como ordem, não deverá haver um desequilíbrio ou uma desordem entre as diferenças.
O ideal de direito positivo, tão benquisto por muitos juristas que aderem ao ramo estatal é explorado pelo autor em sua análise sobre o autoritarismo do Código civil italiano de 1942. Em sentido hermenêutico, percebe-se que o pensamento positivista não tolera a atitude interpretativa como anterior à lei em si, considerada superior a qualquer criação realizada tomando-a como base. Contrariamente a todos os pressupostos antipositivistas, Grossi apresenta outro autor italiano: Mario Libertini, que aponta para a norma como ideal de regulamento civilizatório com a apresentação de um pacto que reconcilie o Estado com os cidadãos a partir de uma ética de legalidade. Ainda em relação à hermenêutica, embora não tenha garantido de todo uma visão ampla e destituída de mitologias sobre o direito, seus avanços são evidentes como proposta de vencer os resquícios da herança iluminista. O exercício interpretativo não se restringe ao nível teórico, ele fornece bases para uma aplicação concreta do direito inserida em sua realidade social enquanto ordenamento desprovido de uma autoridade coercitiva que impediu uma boa relação entre o povo e seu direito próprio.
As mitologias jurídicas entram em decadência quando o direito se fortalece na forma da lei, instaurando a legalidade como princípio constitucional, que tanto pune quanto censura os atos delituosos de modo universal que se aplique à diversidade dos povos humanos. No entanto, quando a lei é privada de um sentido maior em essência, é comum o seu uso com fins estritamente ligados ao poder político. Para ilustrar a prevalência de uma lei que passa a adquirir uma caracterização de justiça, o autor descreve os desdobramentos jurídicos na França e conclui descrevendo a importância dos mitos jurídicos na trajetória burguesa da concepção de direito, reafirmando o declínio das fantasias da lei em um novo contexto de grandes inovações e de ampliação da complexidade humana. O escrito de Paolo Grossi delata um apelo à inseparabilidade entre direito e um modelo de ordenação por categorias bem fincadas na realidade, diferentemente das teorias qualificadas como puras. Assim sendo, torna-se nítido que as teorias puras assumem um caráter utópico ao assumirem uma defesa do formalismo legal, como mencionado pelo autor citado por Grossi. É utilizando esse parâmetro que se pode também pensar em ordenamentos constitucionais, vinculados à sociedade no plano do real, e em códigos, com uma dimensão mais objetiva aos fenômenos, mas que ao meu ver, ainda assim se baseia na vida concreta dos seres racionais.
O distanciamento entre sociedade e direito não ocorre somente na relação entre o indivíduo e a palavra da lei, mas conjuntamente no sentido da criação dessa. Tal premissa se fundamenta nos totalitarismos que preenchem a lei com códigos e pressupostos legais em razão da autoridade delegada à sua elaboração. A saída, no entanto, não é a fuga humana dos aparatos necessários da lei, dotados de regulamentos, mas sim a identificação do elemento nocivo do qual os códigos podem advir e serem posteriormente rechaçados pela falta de uso. Percebe-se uma clara discrepância entre a formação de leis por meio das práticas de uma sociedade e seus respectivos legisladores, tão absortos em uma substância abstrata de ordem, que os impossibilita de observar com cautela a sociedade que se apresenta diante de seus olhos. Nisso, se verifica um alheamento sem brechas para a manifestação da sensibilidade e em última instância, de um senso insatisfatório de humanidade.
É com parcialidade que aquiesço com o autor acerca da elaboração dos códigos, visto que por mais que ao não olhar para a realidade, o legislador denote uma repulsa aos interesses do povo, e por consequência, um atentado velado contra a cidadania, é necessário que regulamentos precisos e aplicáveis sejam indiscutivelmente elaborados para a manutenção da ordem social sem maiores desafios à sua implantação.
Ao introduzir a temática dos códigos, o autor busca com perspicácia uma explicação léxica para definir que uma palavra unitária é insuficiente para representar as inúmeras possibilidades que o termo “código” evoca. A inserção dos códigos no tempo, indicou uma importante mudança na compreensão do direito, que se realiza juntamente a uma fenda entre o passado e o presente. Entretanto, o rompimento não foi absoluto, já que se observa a permanência de um direito dos costumes aplicado à prática do dia a dia em sociedade. Destacam-se como características principais o acúmulo de opiniões e sentenças, a pluralidade e a extra-estatalidade. O contexto em que surgem ideias sólidas de codificação é marcadamente revolucionário e iluminista, sobrecarregado de ideais humanistas de liberdade e avaliação da natureza do mundo, que incidem sobre a criação de normas precisas, imutáveis e universais comuns ao jusnaturalismo.
Meu pensamento compactua com a visão de Grossi no que se refere ao questionamento proposto sobre quem é considerado legítimo para elaborar normas a partir da investigação da natureza das coisas, pois essa provocação se associa com uma frase atribuída à Thomas Hobbes: “É a autoridade, não a verdade, que faz a lei”. Ou seja, a verdadeira compreensão é menos fundamental no sentido jurídico que a superioridade conferida a alguém, o que se verifica atualmente em qualquer esfera imbuída de poder. Porém, não concordo com a afirmação de que estando o Príncipe acima das paixões, sua postura seria imparcial. Porque sendo a ele concedida a soberania, é nítida a tendência do uso do poder para o exercício de sua vontade, o que é reiterado pelo fato de que nas palavras do próprio Paolo Grossi, o Código, originalmente portador de valores, se reduz à voz do soberano nacional, bem como se observa o declínio do pluralismo, o que reforça o vínculo entre direito e poder no sentido político.
Aludindo à caracterização histórica do Código, contrária à mentalidade iluminista, nota-se que o autor rescinde em sua explicação sobre a necessidade de se codificar sob o panorama cultural e ideológico de um dado tempo em uma análise dos diversos contextos em que os Códigos se aplicam até o aparecimento de um modelo jurídico burguês e individualista que preza pela autonomia e se pauta nos princípios constitucionais da abstração e de igualdade perante a lei. Assim como a norma em seu sentido abrangente, o código encontra obstáculos para se aproximar da sociedade à qual ele diz respeito, em razão de sua apropriação por organismos de poder que se impõem como superiores e garantem um autoritarismo à compreensão dos regulamentos, tornando-os incomunicáveis aos seus utentes. A chave para essa dificuldade de fazer valer o código no cotidiano, é a atividade de interpretação da norma ou a instituição de uma jurisprudência prática. Essa consideração se estende para uma compreensão de códigos na atualidade, que em meio às velozes transformações e complexidades sociais, buscam uma ordenação de uma realidade em efervescência.
Paolo Grossi se utiliza da expressão jacobinismo jurídico para introduzir suas análises na última parte da obra, o que denota uma tentativa revolucionária de compreensão do direito diante de novos paradigmas. As premissas apontadas pelo autor me conduzem à conclusão de que o direito tem uma dimensão ordenadora e se posiciona nesse sentido como uma ciência categórica. No entanto, valendo-se da história como objeto de estudo, o historiador do direito apresenta à sociedade uma visão crítica e relativa dos acontecimentos, contrária à precisão atribuída ao conceito das leis que se desenrolaram com os princípios cientificistas do mundo moderno. Para ilustrar o modo como ocorre a transformação de um fato histórico em mito, ou seja, a mitificação de um evento no tempo, o autor utiliza o exemplo da passionalidade que é hoje frequente ao se dirigir à Revolução Francesa de 1789, ao invés de um necessário distanciamento que permita um olhar mais racional ao fenômeno, sem gigantismos e com suas fidedignas proporções. Partindo desse axioma, Grossi salienta que a modernidade é em certo ponto contraditória ao pregar a razão, sendo que criou um ambiente propício para o surgimento desses mitos que se tornaram longevos.
Retornando ao termo “jacobinismo”, aludido no início do parágrafo anterior, pode-se analisar que a face radical da Revolução Francesa, que lançou o mundo nos libertarismos da contemporaneidade, pode ser entendida como a criação de um fato jurídico que se incorpora no mito do jacobinismo ao iniciar uma crença absoluta de revolução e um ideal de Estado centralizador que detém o controle sobre o direito, que segundo essa visão, consiste meramente na generalidade e na abstração da lei como instrumentos da vontade geral. É possível afirmar que o jacobinismo reduziu a complexidade social ao identificar os indivíduos sem considerar suas diferenças e intensificou o iluminismo jurídico ao sintetizar o direito em uma hierarquia.
Desse modo, Estado e lei se erguem como estruturas superiores de ordenação, sendo que a partir de então, a forma substituirá o conteúdo em importância e tanto a norma quanto o legislador receberão um novo prisma, sendo que esse último compartilhará várias semelhanças com o Príncipe soberano descrito por Maquiavel. A redução da complexidade jurídica não ocorre em vão, ela é associada à desordem, o que contraria a mentalidade iluminista moderna de um mundo retilíneo e bem ordenado. Mas ao negá-la, nega-se também os contextos e o passado da ciência do direito, e é nesse aspecto que reside a principal perda.
É comum na modernidade a afixação do direito em cartas, com uma intenção que é a meu ver, semelhante às mitologias jurídicas: buscar um sentido de segurança para o direito e evitar sua apropriação para fins políticos. O autor confere a um de seus capítulos, uma breve explicação sobre a Carta de Nice no tocante às codificações realizadas pelos seres humanos diante do perigo de separação entre a teorização e a realidade em contexto por meio de codificações redutivas presas às regras objetivas que jamais poderão expressar todas as dimensões constituintes do direito. A carta de Nice reforça os preceitos iluministas de uma civilização que se sustenta pelo ideal de aquisição e propriedades ao conferir ao ser humano um aspecto individualista e abstrato, de reclusão social e isolado de seu próprio contexto histórico. Esse fato me recordou o pensador alemão Jürgen Habermas, que por meio de sua teoria sobre a ação comunicativa, discorreu sobre o indivíduo frente à sociedade, aludindo em primeiro plano para a temática do individualismo que se sobressai no período moderno, o que colide com sua concepção de sujeito plural e vinculado ao seu meio.
É alegável que a economia proporciona uma relação de trocas entre os indivíduos, em que os vínculos humanos necessariamente estariam presentes. Mas na contrapartida disso, localiza-se o seguinte questionamento: se o advento da economia possibilitou uma maior socialização, por qual motivo se verifica a tendência à introspecção humana? A resposta se deve à economia como fim, que é plenamente individual ao prezar pelo lucro pessoal, ainda que seus meios definam a importância do outro na ocasião econômica. O mais claro exemplo se refere ao comércio, cuja realização depende de negociações entre duas partes. Em um contexto mais amplo, a insularidade do indivíduo revela-se uma preocupação à existência do direito em si, uma vez que uma de suas condições é que haja relações intersubjetivas entre os seres humanos, já que o direito aí se insere com um papel regulamentador tendo a ordem como princípio geratriz. O motivo de confusão e isolamento por vezes se apresenta por meio do argumento de que o direito enquanto ordenação restringe as liberdades. Nessa visão, no entanto, há um engano que somente se desfaz a partir do pleno entendimento de que a dimensão da liberdade é sobretudo, social e vinculativa, não sendo possível pensar em seu conceito como um termo distinto das relações humanas.
A principal entidade que surgiu com a modernidade foi o Estado enquanto instituição política, que diversas vezes foi reiterado pelo autor do livro, em uma evidente busca de enfatizar a sua importância como um dos marcos sumários do mundo moderno, fruto de uma racionalização do modo de vida em sociedade. Grossi denota em tom sutil que até mesmo a noção de Estado compõe uma mitologia jurídica por impossibilitar a implementação de outros modos de organização da coletividade, além de sem discrição, incorporar-se ao poder político em uma estatolatria exacerbada. Em minha análise, foi bastante prodigiosa a diferenciação feita pelo autor de termos que no senso comum são tidos como sinônimos: indivíduo e pessoa, sendo que esse último representa um risco à manutenção do poder, uma vez que sua arma de afronta são as próprias complexidades das relações estabelecidas. Já a ideia de indivíduo, advinda de um maior isolamento e egocentrismo humano, não significa um possível mal à coletividade, visto que o indivíduo se volta aos seus interesses privados.
O autor conclui sua obra que tanto me agradou no sentido de ter fornecido explicações histórico-teóricas ao fenômeno jurídico, explicando o modo como o Estado também se torna refém de um projeto moderno de individualismo, posto que assim como o indivíduo, a estatalidade se funde com o político com o intuito de obter vantagens, ainda que a verdadeira manifestação de tal poder emane das sociedades intermediárias em que os indivíduos que a compõem perdem tanto o senso social quanto o de coletividade. É a partir da dimensão jurídica existente nas relações estabelecidas pelo sujeito, que o ser humano se contextualiza entre direitos e deveres que não se referem à particularidade do indivíduo. Por ser comum, esse conjunto de regulamentos se manifesta socialmente e deve ser igualitariamente aplicado a todos.
Em síntese, o raciocínio jurídico de Paolo Grossi é uma reação à ordem moderna, profundamente distinta da anterior estrutura medieval, desde a formação da sociedade do período até as autoridades detentoras do poder. Sua análise propõe uma reflexão fundamental não somente acerca dos operadores do direito em sua tradição histórica, mas também à concepção de ser humano que acompanhou os diferentes paradigmas. O autor é repetitivo em suas premissas para que as incorreções cometidas não reincidam, o que enfatiza os fatos de seu pensamento com respaldo em outros pensadores do direito e da sociedade. A relevância da obra em questão reside no realismo da identificação de fantasias que norteiam a prática jurídica e se edificam como bases pouco sólidas para a construção de um sistema jurídico que inclua apropriadamente as peculiaridades do meio em que vigora. Assim, pode-se afirmar que o direito na modernidade abrange adaptações que transcendam o abstracionismo que a noção de lei empreendeu, bem como os desafios de sua efetivação, possibilitando por fim, a busca incessante por um direito moderno distanciado das mitologias retrógradas que o formam.
Disciplina: Teoria Política
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