Quando a grande maioria do mercado literário brasileiro torcia o nariz para os quadrinhos e literatura nacional, a Editora Draco silenciou a todos os pseudocríticos sobrevivendo da publicação de autores nacionais. Esse feito não foi conseguido com magias e sortilégios, mas com planejamento, e divulgação eficiente, e é claro, profissionalismo ímpar, isso fez toda a diferença na hora H.
Dracomics Shonen é uma coletânea de mangás shonen que se está relacionada com a política editorial da Draco e, ao mesmo tempo, se beneficia do amadurecimento do mercado voltado a publicação de mangás. Desde o fim do século XX os quadrinhos japoneses — ou com estilo de desenho e narrativo em mangá — não viam um espaço tão consolidado no país.
A obra reúne oito títulos diferentes, selecionados em um edital específico para a Dracomics Shonen. Originalmente, seriam seis one-shots, mas no foram selecionados dois a mais. Muitos dos mangakás envolvidos tinham larga experiência e, muitas obras ganharam continuações, sejam de modo independente ou pela própria Editora Draco. A coletânea foi publicada em 2016, e foi organizada por Erick Santos Cardoso e Raphael Fernandes.
Geralmente em coletâneas ou antologias que possuem menos de dez títulos, eu analiso as obras pela que eu mais gostei até as que eu menos gostei. Esse meu critério e particular e não irá interferir na relação do leitor com a obra, é apenas o relato de minha experiência com a leitura do livro, não se preocupem. Eu sempre recomendo a leitura da obra original, independendo de meu gosto particular.
Divisão 5 é escrita pelo Rafa Santos, ganhador em 3º lugar no Concurso “Seja O Novo!” da revista Ação Magazine com a obra Star Trash, feita em parceria com Wagner Elias, que também cuida de Divisão 5. O mangá ganhou um volume tempos depois, e realmente, foi o melhor one-shot da coletânea. A trama une humor e suspense com toque de sobrenatural. Tudo gira no entorno de Ritchie, um jovem especializado em aplicar golpes. Pro azar dele, após visitar uma lanchonete, ele acaba se envolvendo numa investigação de uma agência sobrenatural após se identificar como o portador do codinome Rosa Serena. Depois disso surgem gralhas antroporformizadas — ou seriam corvos? —, um herói que me lembrou Siney Magal, e uma garota parda. A trama envolve pelo mistério e cativa pelo humor nonsense. Bom uso de retícula e acabamento, diagramação e enquadramento muito dinâmicos.
A segunda, Necrônibus, obra que eu mais gostei é a desenhada pelo João Eddie, e roteirizada pelo Jun Sugiyama. Eu sempre acho os one-shots do Eddie muito criativos e com uma arte rústica, mas que é eficiente na narrativa. Uma outra história sobrenatural, só que distinta da anterior, pois, está mais voltada para o drama do protagonista, um vendedor de balinhas, daqueles que surgem no ônibus com voz estridente. Apesar de ter uma criança como protagonista, a história trata tudo de modo melancólico e até cru. Morte, solidão e sentimento de culpa surgem aqui como metáforas oníricas dignas das obras do Tim Burton. A arte é obscura, investindo em capados de preto e hachuras, como só o bom Eddie faz.
Battle Fantasy é aquele B-shonen com B maiúsculo. Gabriel RS cuida do roteiro enquanto Jonas Luiz cuida dos traços. É aquele shonen de luta, com desenho influenciado por Akira Toriyama, e a influência do Toriyama é sempre bem-vinda. Na trama, Sr. Trumpinks usa um livro mágico, chamado Era uma Vez para controlar diversos personagens dos contos de fadas e fazê-los lutar até a morte como entretenimento da TV. Num primeiro momento, nada soa original, mas essa não é uma releitura pop dos contos de fada, é uma releitura shonen, e isso faz toda a diferença! Em algum momento, Eddy Pig, um dos três porquinhos, inicia uma revolta para que todos pudessem voltar o mundo dos contos de fadas. A obra é cheia de referências visuais e poderia render uma ótima série. Nessa obra tivemos um erro com os nomes dos personagens Windwolf, o lobo que luta com o Eddy Pig, e Badwolf, que havia sido derrotado na luta anterior pelo Capitão Gancho, um grande erro de continuidade na obra.
Maneki Knight era uma obra que eu não estava esperando muita coisa, porém, o Raoni Marqs me impressionou com seu one-shot. O protagonista é o Salem Yakan, o último sobrevivente de uma vila destruída pelo xogum. Graças aos poderes de uma entidade sobrenatural chamada Maneki Neko, ele usa seus poderes para desafiar o governante. É uma história de vingança, mas que acaba sendo mais voltada para exploração das habilidades do protagonista, que devido ao Maneki Neko, acaba adquirindo características de gato e poderes relacionados a isso. É uma história que investe em humor, com um traço caricato e com poluição de hachuras, e onomatopeias em japonês? Não entendi o porquê dessa opção, sendo que a obra seria publicada no Brasil.
Eu poderia dizer que Physics e Arquipélago dos Espíritos estão empatados, mas são histórias tão distintas que não poderíamos sustentar essa posição. O primeiro é uma história que começa, se desenvolve, mas não começa, a outra, começa, mas não se desenvolve. Physics é do Eudetenis, um casal de criadores, sendo que o roteiro fica a cargo de Paulo Moraes e desenhada pela Giovana Leandro. A história tem um argumento muito bom com técnicas de luta envolvendo conceitos de química e física. Eu achei genial! Porém, o que emperra a história de vingança da Haruki Ichirou é o Nicolas, personagem aleatório, pouco cativante e que se ampara no clichê da amnésia para gerar suspense. O desenho é lindo, o mais bonito da coletânea, ao menos, para mim.
Arquipélago dos Espíritos é escrita pelo Dulcelino Neto e arte de Heitor Amatsu. Achei que o Amatsu deu uma simplificada no traço dele para casar com a história. Eu gosto muito de ação sobrenatural, e gostei muito do protagonista ser um indígena, mas eu acho que a trama peca por apresentar um conflito raso em que mal vemos o protagonista se mexer. Faltou ação. O roteiro anêmico não conseguiu fazer a arte do Amatsu brilhar aqui. Apesar de trazer argumentos interessantes, eles acabaram sendo descartados por uma precocidade do próprio roteiro.
Rei dos Elementos é um one-shot escrito pelo soteropolitano Henrique S. Ribeiro, um talentoso ilustrador que acumula premiações em sua jovem carreira. Foi ganhador do Primeiro Concurso de Mangá Nacional, organizado pela NHQ, como um one-shot intitulado Elemental King’s. Essa obra me parece o prólogo de sua série Elemental Kings do que um one-shot. Não achei crível alguém tão jovem protagonizar uma trama tão complexa e ter tanta maturidade para lidar com um fardo tão grande. O Haylen Ishiro não é nada cativante, sem contar que sua atuação na trama é pífia. Foi um banho de água fria, espero que a série do Ribeiro seja mais dinâmica e interessante.
Mestre da Morte foi escrita pelo contista Rodrigo Ortiz Vinholo, autor com quem já dividi páginas de algumas antologias de contos, e desenhado pelo Ericksama, o editor e organizador dessa coletânea. E acho o Vinholo um dos nossos melhores contistas da ficção especulativa, mas seu roteiro deixou a desejar com seu didatismo, abordar conceitos muitos complexos em poucas páginas e de forma expositiva, o que acabou me cansando. Ter animais antroporformizados como protagonistas também não ajudou, não que seja possível criar uma história sombria e complexa com essa técnica, vide Cat Shit One e Yojimbo, mas é que o traço cartunesco e pouco elaborado não ajuda a deglutir uma história que se pretende tão filosófica e questionadora.
Eu recomendo a leitura por ser uma ótima iniciativa em relação as obras nacionais, mais que isso, são obras muito bem escritas e desenhadas, mostrando uma pitada do talento de nossos autores. São oito histórias, divididas em mais de 160 páginas, em papel offwhite, miolo em preto e branco. Possui minibiografia dos autores. Só senti falta mesmo foi das capas dos one-shots.
Para adquirir seu exemplar, tem versão impressa e em e-book, acesse aqui:
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Link 2 – http://www.comix.com.br/dracomics-shonen-vol-01.html
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