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Quem manda aqui sou eu
(Bacurau é o Brasil que os holofotes não querem mostrar)
Roberto Queiroz

Gosto do diretor Kleber Mendonça Filho. Gosto mesmo. Desde que vi seu polêmico curta-metragem de 2009, Recife frio, percebi que ele era um dos raros exemplares da atual geração do cinema nacional que anda na contramão do circuito. Ou seja: sua primeira preocupação artística não é com bilheterias exorbitantes ou quebra de recordes de público. Pelo contrário. Ele almeja fazer com que seu público pense, reflita sobre os rumos do nosso país. E nos últimos anos ficou clara sua posição antigovernista (vide a repercussão que gerou seu longa anterior, Aquarius, visto como película non grata por muitos brasileiros).

Falar de um país como o Brasil no cinema sempre será uma tarefa difícil, ainda mais quando o regime vigente no momento está mais interessado em demagogias religiosas e o interesse de nosso principal governante está centrado no poderio militar de outras nações. Contudo, Kleber (desta vez acompanhado do co-diretor Juliano Dornelles) passa por cima de tudo isso - inclusive da possibilidade da Ancine, órgão principal a subsidiar nossas produções cinematográficas, deixar de existir num futuro próximo porque o atual governo quer "moralizar" a produção - e nos apresenta o extraordinário Bacurau, vencedor do prêmio do júri na última edição do Festival de Cannes.

Fica muito claro para o espectador mais atento aos detalhes e entrelinhas que Bacurau é um filme político (e com muito orgulho de assim ser). A cidade retratada, a oeste de pernambuco, é um retrato da miséria de nossa nação. Uma miséria que os tabloides e nossos dirigentes fazem questão de esconder, preferindo entupir nossas cabeças vazias com partidas de futebol, desfiles de escolas de samba, reality shows e programas evangélicos tendenciosos e efêmeros. Porém, mais do que isso, o longa de Kleber e Juliano é um grito de guerra, um ato de resistência direcionado àqueles que adoram tratar a nossa pátria segundo a ótica do determinismo biológico ("você nasceu pobre, tem que morrer pobre"), só que nos últimos anos acrescida da mentalidade "porque Deus assim quis".

O nordeste, região do país que se confunde com a própria definição de revolução (procurem os livros de história e vocês entenderão do que falo), está mais do que bem representado pelo longa, seja do ponto de vista cultural como também do reacionário. A roda de capoeira divide o espaço com a matança com uma naturalidade assustadora. Afinal de contas, trata-se de uma região que no passado nos trouxe o cangaço, canudos e tantos outros "rebeldes". Portanto, não há receio quanto a morte (isso fica claro na quantidade gigantesca de caixões que aparecem durante todo o filme), mas sim quanto à pessoas que querem mandar nas suas vidas e tomadas de decisões.

Acrescentem a isso a velha máxima dos currais políticos que nada fazem por essas localidades a não ser coletar votos, o interesse estrangeiro em se apoderar de nossas riquezas e deletar nossa cultura, o gigantismo da internet no que tange à idolatrar a indústria da violência e perpetuar o descrédito junto a uma população com histórico lendário de alienação e ignorância, e pronto: está criado um cenário de horror e guerra sem precedentes.

Quanto aos personagens aqui retratados são uma aula de cinema à parte. Destaco a ranzinza, mas não menos fenomenal Domingas (Sônia Braga, realizando um feito que eu jamais imaginei que a dama do lotação do cinema novo seria capaz de produzir), o truculento, mas não menos verídico e necessário Lunga (Silvério Pereira), retrato amargo e viril do homem do agreste cansado de acreditar no sistema corrupto e que decide arregaçar as mangas e tomar a rédea da situação e o "americano por empréstimo" Michael (Udo Kier), simbiose da ganância estrangeira com o eterno discurso do capitalismo como única salvação verdadeira para o futuro do planeta. E quando ele diz que "o mundo está de cabeça para baixo" está sempre se referindo aos outros como errados, nunca ele próprio.

Bullying racial, desrespeito à cultura, descaso com a educação, a política de castração voltada para todos aqueles que questionam a vontade do Estado como mantenedor da ordem, crítica ao sistema de saúde... Todas essas temáticas se entrelaçam fazendo de Bacurau um faroeste que nada tem de pós-moderno, pois essa região do país nunca recebeu qualquer tipo de tratamento que soasse sequer inovador, que dirá moderno. Trata-se de um microcosmo do país que precisa viver eternamente no passado para que os poderosos continuem se locupletando de sua desgraça social.

Apesar de ser (até o presente momento, pelo menos) o filme nacional do ano, é visível que ele não atende à grande parte da população nacional. E digo isso porque o Brasil passa por um período de extremo retrocesso, em que cidadãos pedantes e egoístas defendem a ideia de que o passado era infinitamente melhor e nossa história precisa ser recontada à imagem e semelhança deles. Para estes, Bacurau será doloroso, cruel, mentiroso e sujeito à perseguição. E a questão que me paira a cabeça quando penso nisso é: como é que um longa capaz de ganhar prêmio num dos maiores festivais de cinema do mundo e ser reconhecido na Europa pode ser a visão errada dos fatos e uma parcela da sociedade completamente desinformada e por vezes fascista ser a certa? Honestamente... Somos uma sociedade estranha e contraditória!

Termino a sessão no cinema ciente da triste constatação de que vivemos num país quebrado, dividido por interesses escusos. Aquela velha moral que eu ouvia nos tempos de escola "o problema do Brasil é que tem muito cacique para pouco índio" ganhou sofisticação e um sorriso de deboche no rosto. Fica claro pelo desfecho do longa que seus realizadores defendem que o pior ainda está por vir. Também, pudera! Quando se vive dentro de um Estado onde a moral determinante é a do que "quem manda aqui sou eu" fica complicado acreditar que dias melhores virão (pior: por um momento, chegamos a acreditar que a frase por si só não passa de um clichê vago).

E isso faz de Bacurau um filme menos poderoso, indigno de nossa presença nas salas de projeção? Pelo contrário. Vá enquanto é tempo. É de mais obras cinematográficas como essa que nossa indústria cultural anda precisando nos últimos tempos.

O que não podemos mais é acreditar que tudo vai se resolver com o tempo...


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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