Martinho do Rio
A COISA
Não era só redondo era pequeno e cheio e balanceava de tal maneira que me deixava literalmente com os olhos em bico. Aliás só tinha olhos para ele. O que, para uma pessoa que avançava como eu com precaução numa rua carregada de gente, podia ser prejudicial. Pois o mínimo que podia acontecer era chocar com alguém que avançasse na direcção contrária à minha. A coisa corria à minha frente naquela rua estreita e perigosa, naquele funil carregado de gente e só com um sentido; e eu corria atrás dela como um cão aluado. Ás vezes, para não a perder de vista, tinha que sair do passeio e arriscar-me a que algum veiculo mais apressado me batesse e me ferisse gravemente. Só que, meu Deus, ás vezes somos tão egoístas… só que, digo eu, valia a pena. Era a coisa mais bela, excitante, sensual que tinha visto nos últimos meses. Que digo… no último ano ! O seu dono, ou antes, a sua dona, não tinha consciência do tesouro que transportava. Pelo menos eu pensava assim. Mas depois de mais um leve balancear das ancas percebi que talvez não fosse tanto assim. Ela sabia o que tinha e fazia-o valer. Balanceava-o de tal maneira, que receei que mais alguém além de mim, notasse aquele tesouro precioso que transportava. Por isso apressei mais o passo e coloquei-me atrás dela. Talvez não o devesse ter feito. Hipnotizado como estava não mais despreguei os olhos daquilo. E a cada balanço que dava o meu desejo aumentava. Eu queria estender as mãos e apalpá-lo, sentir-lhe o peso e a textura, mas não me atrevia a tanto. Estávamos numa rua cheia de gente e as pessoas que passavam olhavam-nos já com algum interesse embora apenas por alguns segundos. Ela mexia-se com tal graça que era difícil que mais alguém tão avisado quanto eu não acabasse por notar. Era pequena e magra com uma figura fina de ancas estreitas e com um cabelo negro escorrido que lhe caia com naturalidade quase a meio das costas. Andava com tal leveza que parecia que dançava. Ainda não reparara em mim como eu reparara nela. A certa altura parou junto a uma banca de jornais e eu parei bem perto dela. Senti-lhe o cheiro do perfume e desenhei-lhe com o olhar o contorno do rosto pequeno e redondo. Os olhos eram de cor verde e o nariz pequeno e arrebitado. A boca parecia um botão de rosa com uma sensualidade que só as mulheres pequenas e esguias parecem possuir. Ela estendeu uma mão de boneca agarrou num jornal e pagou sem me lançar um único olhar. Eu comprei também um jornal embora tivesse todos os jornais à minha espera no gabinete da empresa. A perseguição continuou pelas ruas estreitas daquele bairro antigo, eu não largava o olhar da coisa e cada vez mais me enamorava dela. Até que, por fim, por alguma razão que não percebi, ela parou junto a um policia. Disfarcei fingindo ler o jornal, mas sem despegar os olhos da coisa e dela. Ela dialogou durante alguns segundos com o agente da autoridade, lançando de quando em quando alguns olhares furtivos na minha direcção. O policia disse qualquer coisa e caminhou ao meu encontro. Ela olhou-me por breves segundos com um olhar frio e sério e recomeçou a caminhar num passo decidido. Continuei a ler o jornal e quando o policia chegou perto de mim num passo lento e pausado recomecei a caminhar com um ar despreocupado. Ele seguiu-me com o olhar e as mãos atrás das costas, mas não fez nada para me deter. Ela tinha avançado muito por isso apressei o passo. Tinha de a apanhar, porque não queria por nada deste mundo perder a coisa. Encontrei-a à porta da empresa onde trabalhava a conversar com uma colega e logo que me viu ficou estática a olhar para mim. Nos seus olhos senti receio e o seu corpo inteiriçou-se mal sentiu que me aproximava. Mas não tinha que ter medo de mim eu só queria a coisa e não o mal dela. A colega correu para dentro do edifício e tentou arrastá-la. Mas ela resistiu orgulhosa e ficou à minha espera de braços cruzados e nariz levantado. Queria resistir a um possível ataque, como se eu fosse algum monstro predador ou algum sátiro perseguidor de mulheres indefesas. Quando me aproximei dela senti logo o seu perfume e a primeira coisa que reparei foi no seu olhar esverdeado que me fuzilava.
- Que me quer ? Porque anda atrás de mim ?
Perguntou-me ela numa voz que parecia decidida mas que tremia denotando o receio que lhe apoquentava a alma.
- A coisa, quero a coisa que leva consigo.
- A coisa ?
- Sim, a coisa. Nunca vi nada como essa coisa que você carrega consigo.
- Que coisa é essa que eu carrego comigo ?
- Essa coisa que você traz no cesto e que me fascinou desde que a vi.
Ela olhou para o cesto sem acreditar no que ouvia. E com a incredulidade ainda estampada no olhar virou-se mais para mim e perguntou num tom ainda desconfiado :
- Está a falar da papaia ?
- Essa coisa chama-se papaia ?
- Claro que se chama. É um fruto tropical, nunca tinha visto nenhum ?
- Não. Eu vim à pouco tempo do norte da Europa e lá não existe essa coisa.
Ela levantou o cesto e tirou a papaia para fora.
- Veja, agarre nela e apalpe-a -, pediu ela já com um sorriso.
Agarrei-a com a luxúria a brilhar no olhar e apalpei-a com ambas as mãos. Senti-lhe o peso, a textura, a macieza da pele e o redondo dos seus contornos. Era a coisa mais sensual, mais libidinosa que alguma vez tinha agarrado. E o gosto…como seria o gosto desta coisa tropical…
- E o gosto…É bom ?
Ela sorriu.
- Há quem goste. Eu não sou grande apreciadora, comprei-a porque uma colega me pediu.
Ela não era grande apreciadora, talvez porque ainda não tivesse experimentado; mas se provasse…
- Quer experimentar ? Eu convido-a.
- Mas ela não é minha... é para uma colega que me pediu...
- Eu compro-a. Quanto lhe custou ? - perguntei tirando o porta-moedas do bolso.
Nesse instante chega a colega acompanhada pelo segurança da empresa.
- Natércia estás bem ? Não há nenhum problema ?
- Quer vender a sua papaia ? - Perguntei-lhe eu de repente.
Ela abre a boca de espanto e fica assim sem responder.
- Quer vender ou não quer ? - Insisti.
- Este senhor quer comprar a tua papaia -. Esclarece com um sorriso a Natércia de olhos verdes.
- Ele quer comprar a minha papaia ?- Pergunta a outra ainda de boca aberta.
- Quero comprá-la. Quer vendê-la ?
- Mas… não sei…é que não é só para mim...
A colega não tinha nem a beleza nem a sensualidade da Natércia, nem os seus olhos verdes. Era vulgar, não atrairia sequer um mocho. Olhei para a papaia, se era para ela não estava interessado. Era a Natércia e a papaia dela que eu estava interessado. Já que não a podia ter desistia. Olhei para o relógio, já estava muito atrasado, tinha que me pôr a andar.
- Olhem, eu desisto. Fica para outro dia.
- Não quer mais a papaia ?- Perguntou a Natércia com os olhos verdes todos virados para mim.
Se fosse dela… mas infelizmente não era. E sendo assim não estava interessado.
- Não. Não tenho tempo para negociar, já estou atrasado, tenho que me ir embora.
Ela fez uns olhos tristes. No fundo se a papaia fosse dela talvez a tivesse negociado. Senti-me triste, tanto trabalho para nada. Toda aquela perseguição para nada. Mas talvez não perdesse tudo…
- Sabe onde é que há mais papaias ?- Perguntei.
Ela sorriu. Um sorriso doce carregado de promessas e com aqueles olhos verdes a penetrarem bem dentro dos meus.
- Lá mais em baixo- e apontou com o dedo -, num supermercado bem junto à esquina.
Sorri.
- Amanhã indica-me onde fica ?
Ela sorriu mais uma vez.
- Se quiser até espero por si..
- Então fica combinado, estarei na tal esquina amanhã por volta das nove e ajuda-me a comprar a papaia.
Ela disse que sim e eu senti-me na lua. A perseguição afinal sempre tinha servido para alguma coisa. Despedi-me e regressei pelo mesmo caminho com a esperança renovada pelo do dia de amanhã. Com o olhar sempre atento regressei a assobiar.
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