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A máquina voadora
MartinhodoRio

Resumo:
Se eu conseguir trabalhar a minha ideia á vontade e se esta coisa funcionar como eu espero que funcione, já vais saber qual é o sentido de tudo isto.

Martinho do Rio

A máquina voadora

- Filipe...
- Sim...
- Continuas entretido com isso.
- É necessário...é preciso...
- Ainda não percebi bem qual é o sentindo...
- Se eu conseguir trabalhar a minha ideia à vontade e se esta coisa funcionar como eu espero que funcione, já vais perceber qual é o sentido de tudo isto.
O outro esboçou um sorriso e retorquiu :
- Está bem, vou deixar-te trabalhar em paz.
Saiu e ele voltou a ficar sozinho. À já alguns dias que estava a trabalhar naquela ideia. Ela tinha-lhe surgido quando verificara a dificuldade que toda a gente tinha em tirar a água do poço. Foi como uma espécie de explosão, a ideia veio-lhe repentinamente à cabeça com uma força irresistível, e ele, como quase sempre acontecia, não conseguiu resistir-lhe. Aliás poucos esforços fazia para resistir a uma ideia daquelas e uma hora depois estava em sua casa a traçar os primeiros rudimentos num papel. Depois, à medida que a ideia se desenvolvia, os primeiros rudimentos começaram a tomar uma forma mais definitiva. Já não era a primeira vez que isto lhe acontecia e muitas das ideias que tivera estavam agora expostas como se fossem trofeus de caça nas paredes do seu quarto. Ou então, já prontas e acabadas, dentro do seu caderno pessoal que ele nunca largava. Estava lá tudo. Ideias que podiam melhorar a vida daquela gente. E para bem melhor. Algumas até já tinham sido aplicadas, outras ainda não. Talvez por serem demasiado complicadas, ou então, demasiado revolucionárias, adiantadas demais para àquela época. Aquela, surgira-lhe de repente, depois de ter observado durante alguns dias os esforços que toda a gente fazia para tirar a água do poço. A água era um bem precioso, um dos bens essenciais da vida, sem ela ninguém podia sobreviver. Mas, teria que ser sempre assim...? Não se podia arranjar uma maneira mais fácil de tirar a água do poço...? Sem precisar de tanto esforço e sacrifício...? Não se podia até arranjar uma maneira de fazer com que a água corresse livremente pela casa de toda a gente...? Foi então que a ideia lhe surgiu. Ele já tinha visto a água ficar ao mesmo nível quando estava em dois recipientes diferentes que se comunicavam e questionara-se sobre a razão de tão estranho fenómeno. Foi então que outra ideia lhe surgiu: e se ele aproveitasse aquele estranho fenómeno para fazer com que a água corresse livremente pela casa de toda a gente...? Era bem possível que resultasse...? Ficou tão excitado que se pôs imediatamente a trabalhar e em pouco tempo elaborou um esquema que, para a maioria das pessoas, pareceria de certeza complicado. Mas a melhor das suas ideias, aquela que ele mais amava e que não divulgara ainda a ninguém porque não se atrevera a tanto, era o sonho escondido de um dia poder construir uma máquina voadora. Até ali ainda ninguém se atrevera a fazer isso. Mas ele sonhava todas as noites com a possibilidade de construir uma. Seria de certeza a sua coroa de glória e o seu nome ficaria escrito a letras de oiro na História. Até já desenhara um esquema rudimentar, com grandes asas de morcego largas e compridas, que fariam inveja aos próprios morcegos.
- Filipe ! Já acabaste de trabalhar ? O jantar já está servido !
- Vou já ! Tenho que primeiro acabar uma coisa !
- Despacha-te ! Olha que o jantar arrefece !
Era sempre naquelas alturas cruciais, em que a sua imaginação estava ao rubro que o vinham interromper. Largou o trabalho e guardou-o dentro duma gaveta. Amanhã acabaria, era só terminar uns pormenores, já estava muito perto do fim.
O jantar esperava-o e ele sentou-se à mesa. A dona Eduarda, uma senhora de idade de ar bondoso, sorriu-lhe quando ele principiou a comer.
- Ainda bem que não te atrasaste muito, senão tinha arrefecido tudo.
Filipe sorriu-lhe, gostava da dona Eduarda que o tinha recebido com toda a simpatia e carinho quando repentinamente lhe apareceu á porta de casa, perdido, e sem saber em que lugar se encontrava. A memória tinha-lhe fugido e ele não fazia a mínima ideia do sitio onde estava. Ela pouco se importou com isso e deu-lhe guarida e comida. Em paga ele tratava-a como se fosse sua mãe e ajudava-a em tudo o que podia, arranjando aquilo que se estragava e melhorando o que podia melhorar. E até inventando coisas novas, coisas que revolucionaram a vida pacata da dona Eduarda. A sua fama espalhou-se tão rapidamente que, em breve, toda a aldeia solicitava a sua ajuda. Filipe fazia o que podia e ajudava naquilo que podia. Claro que foi criando invejas, principalmente entre os jovens da sua idade. Filipe era um jovem, embora ignorasse a idade que tinha. A memória que lhe tinha fugido ainda não regressara e ele não fazia a mínima ideia de onde era, que idade é que tinha e, o que era ainda mais grave, quem era. Filipe tinha sido o nome com que a dona Eduarda o baptizara.
- A Marianinha veio à tua procura.
- Quando ?
- Quando estavas lá em cima a trabalhar e como sei que não gostas de ser interrompido, pedi-lhe para vir mais tarde.
A Marianinha era a rapariga mais bonita da aldeia e também a mais tímida. Recatada, pouco saía e muito menos com rapazes. Os pais, bastante conservadores e um tanto possessivos, guardavam-na para o melhor partido e o melhor partido era sem dúvida a família mais rica da aldeia. Que tinha um filho já próximo da idade casadoira, com quem os pais da Marianinha sonhavam casá-la. Mas ela não gostava dele e embeiçara-se pelo Filipe a quem descobrira qualidades que não encontrava nos outros rapazes da aldeia. Ela não admirava só o seu espirito inventivo, ela gostava sobretudo da sua generosidade e bondade. Marianinha via no Filipe um exemplo que os outros rapazes deviam seguir. Tolerava-lhe as invenções, mas perguntava-se amiúde para que é que serviam se a maior parte delas parecia não servir para nada.
Filipe gostava da Marianinha. Gostava da sua companhia e do seu recato. Admirava-lha a beleza e a doçura do olhar, Mas ainda não se atrevera a pedi-la em casamento. Principalmente porque não tinha posses e por que a suas invenções não lhe tinham ainda dado aquele retorno que tanto precisava. A maioria delas tinham sido aplicadas sem que ele visse dali qualquer rendimento. A aldeia era pobre e os aldeões não tinham posses para lhe pagar o que ele merecia. Por isso, como não era rico, percebera que os pais da Marianinha nunca o aceitariam como genro. E também sabia, aliás toda a aldeia sabia, que ela já estava prometida ao filho da família mais rica da aldeia.
Jantou e esperou que ela aparecesse e ela apareceu como a dona Eduarda lhe tinha prometido. Veio radiosa com o seu o cabelo comprido doirado espalhado sobre os ombros e aquele sorriso doce na boca.
- Filipe...vamos até ao rio ?
Ele aceitou a sugestão e de mão dada seguiram sem pressas até ao rio para assistirem ao pôr do sol. Faziam isso muitas vezes, era um dos seus grandes prazeres estarem ali sozinhos, sentados na margem a assistiram em sossego ao ocaso do astro rei. Era também a melhor altura para confessarem os seus segredos mais íntimos. Seria numa ocasião dessas, pensava para consigo o Filipe, enquanto segurava na mão pequena e delicada da Marianinha, que ele acabaria por revelar todo o amor que sentia por ela.
Uma das coisas que o impedia de o revelar já, era não saber quem era e de onde tinha vindo. Isso mortificava-o e não deixava que a sua boca se abrisse para confessar o que tanto desejava. Era um homem sem passado e um homem sem passado não tinha futuro. A Marianinha nunca lhe perguntara quem era nem de onde tinha vindo. Ela sabia que ele não lhe podia responder e também parecia não se importar muito com isso. Só que os pais dela importavam-se, e ele sabia que nunca dariam a filha a um homem sem passado e muito menos sem futuro.
- Um dia vais-te lembrar, a tua memória um dia vai voltar, tenho a certeza disso.
Dizia-lhe ela com aqueles belos olhos azuis a brilharem de felicidade e com o sorriso que tanto o inebriava desenhado na boca.
- Não sei Marianinha...não sei...ela já devia ter voltado e ainda não voltou.
Era a sua cruz, a sua grande mortificação, não saber quem era. Toda a gente tinha um passado e ele não tinha nenhum.
- E se eu for um bandido um ladrão...e se eu andar fugido com as autoridades atrás de mim...?
- Se assim fosse, já tinhas sido preso. Toda a gente sabe que estás aqui, e á muito tempo que te tinham vindo buscar.
Ela tinha razão, mas, mesmo assim, ele não sossegava. O seu não passado oprimia-o, e o seu futuro era ainda uma incógnita para ele.
- Marianinha...tenho um novo projecto para uma invenção.
- Outra invenção ?
- Esta é diferente, é a mais importante em que me meti.
- Estás sempre a dizer isso quando tens uma ideia nova na cabeça.
- Mas esta é diferente... vai levar-me de certeza ás estrelas.
- Ah...sim...! E porquê ?
Ele hesitou, não tinha a certeza se lhe podia revelar tudo. Sabia que ela não compreendia a razão de tantas invenções e, sobretudo, a sua grande paixão por elas. As invenções eram a sua vida, o que lhe dava um sentido; e ela ainda não compreendera a verdadeira importância delas.
- Por que é uma invenção inovadora, uma invenção revolucionária.
Sem responder ela inclinou a cabeça e apanhou uma flor.
- Olha como é bonita e bem cheirosa...
Estendeu a mão para que ele também a cheirasse e ele não agarrou na flor.
- Marianinha, ouviste bem o que eu te disse ?
Ela suspirou e levou de novo a flor ao nariz.
- Claro que ouvi, tens um projecto duma invenção inovadora e revolucionária.
- É isso Marianinha, esta nova invenção pode levar-me longe, para muito longe.
- È só nisso que pensas ? Nas tuas grandes invenções ?
Os olhos dela fixaram-se nos dele e uma áurea de tristeza começou a envolvê-los.
- E eu...? Não conto nada para ti...? Não sou mais importante que qualquer das tuas invenções ?
Ele corou e baixou os olhos. Claro que ela era importante. Mas o projecto...especialmente aquele projecto, era, naquele momento, a coisa mais importante para ele. Se ele o conseguisse concretizar, não haveria ninguém que não o olhasse com inveja. E, acima de tudo, conseguiria pedir a Marianinha em casamento mesmo sem passado.
- Marianinha...esta invenção pode ser o nosso futuro.
- Ah sim...! E como ?
- Se eu a conseguir concretizar ficarei de certeza célebre e rico e já poderemos casar.
Ela olhou para ele como não acreditasse no que ouvira e voltou a pegar na flor.
- Não acreditas no que te estou a dizer ?
Ela levou de novo a flor ao nariz.
- Gostava de acreditar, só que, quando me falas numa nova invenção, dizes-me sempre a mesma coisa.
- Mas desta vez vai ser diferente, desta vez vou ficar célebre e rico.
Ela poisou com cuidado a flor no chão e voltou-se para ele.
- Juro que gostava mesmo de acreditar.
Levantou-se e começou a sacudir o vestido.
- Tenho que voltar, já devem estar preocupados com a minha ausência.
Ele não se mexeu. A falta de confiança dela mortificava-o, deixava-o macambúzio e sem vontade de reagir.
- Tenho mesmo que voltar, acompanhas-me ?
- Está bem.
Levantou-se contrariado e acompanhou-a até perto de casa. Não falaram pelo caminho, uma sombra interpunha-se. Quando se despediram ele não reparou numa lágrima furtiva que corria devagar pela face dela, tão embrenhado já estava a pensar na sua nova invenção.
- Amanhã voltaremos a passear até ao rio.
Ela não lhe respondeu, voltou-lhe simplesmente as costas e dirigiu-se apressadamente para casa. Ele viu-a partir sem compreender como ela estava magoada.
No dia seguinte ficou toda a manhã fechado no quarto e só à hora do almoço é que apareceu quando a dona Eduarda o chamou. Vinha com ar sério, compenetrado, de quem tinha acabado de tomar uma decisão importante.
- Filipe, o que é que se passa contigo ? Nunca te vi tão sério ?
- Oh...não é nada de especial, apenas tomei uma decisão.
- Ah sim...e que decisão é essa ?
- A decisão mais importante da minha vida.
Ele tinha decidido construir a máquina voadora. Era a única coisa pensava ele que poderia mostrar á Marianinha a importância das suas invenções. E também a única coisa que o poderia tornar célebre e rico. Ele não era uma pessoa vaidosa, longe disso. Mas percebera que tinha que inventar qualquer coisa importante e espectacular se a quisesse impressionar. A máquina voadora era tudo isso. Era importante por que levaria pela primeira vez o homem até ao céu, reino a que só as aves pertenciam, e espectacular por que não existia nada de parecido no mundo e toda a gente ficaria boquiaberta quando a vissem voar.
Contou tudo isto à dona Eduarda que o ouviu espantada e de boca aberta.
- E tens a certeza absoluta que podes construir uma máquina assim ?
- Tenho a certeza absoluta, por que tenho todos os planos metidos na minha cabeça.
Durante muitos dias ninguém o viu, fechado no seu quarto a pensar e a construir a sua máquina voadora. Nem mesmo a dona Eduarda que se fartou de o chamar nas horas das refeições. Nem mesmo a Marianinha que desistira de o conquistar e que se rendera aos apelos dos seus pais. Não valia a pena esperar por alguém que á muito tempo se casara com as suas invenções; e foi com as lágrimas nos olhos que ela acabou por concordar em casar com o rapaz mais rico da aldeia; e a data do casamento foi marcada.
Ignorando tudo isto Filipe trabalhava fechado no seu quarto. Finalmente, ao fim de muito tempo, de muitos dias sem ver nem falar com ninguém, deu por concluído o seu trabalho e com a alegria estampada num rosto cansado, anunciou á dona Eduarda que o seu projecto estava, finalmente, pronto.
- Está pronta ! A máquina voadora está pronta para voar !
- Infeliz...! Por que perdeste a Marianinha...!
O grito da dona Eduarda teve o condão de o trazer á realidade.
- O quê...? ! O que é que disse ? !
- Que a Marianinha vai casar.
- Vai casar...! Com quem ? !
O choque tinha sido tão grande que foi necessário que a dona Eduarda o abanasse para o trazer de novo de volta.
- Meu Deus... e eu que estava tão longe disso tudo.
Foi só nesse momento que compreendeu a verdadeira importância que a Marianinha tinha na sua vida.
- Tenho que a ir buscar ! Ela não pode casar !
- E será que ela quer casar contigo ?
Aquela pergunta causou-lhe novo choque. A dona Eduarda tinha razão, ela não esperara por ele e preferira um casamento rico e sem amor. Por que ele tinha a certeza que ela ainda o amava. Mas será que ela ainda o queria ? Aquela dúvida atormentava-o e foi então que tomou uma nova decisão.
- Já sei o que vou fazer.
E sem acrescentar mais nada subiu as escadas a correr, deixando a pobre da dona Eduarda sem saber muito bem o que fazer e o que pensar.
Minutos depois uma sombra larga e comprida de asas enormes começou a sobrevoar a aldeia sem fazer o menor ruído. Toda a gente que a viu passar ficou boquiaberta a olhar para o céu. Aquilo era impossível...! Não podia estar a acontecer...! Ninguém no seu perfeito juízo podia voar... ! Era contra as leis de Deus e da natureza...!
Só que estava a voar. A máquina voadora deslizava como uma ave de asas compridas pelo céu azul daquela manhã de primavera. Quem mais abriu os olhos e a boca de espanto foram os convidados do casamento e os pais da noiva. A Marianinha, essa, não se espantou muito. No fundo, bem lá no fundo sempre acreditou nas invenções do Filipe. Só que nunca o quis admitir. Porque, e isso ela não o confessou, porque tinha muitos ciúmes delas.
- Filipe ! És mesmo tu ?
- Sou ! Sou eu !
Gritou ele lá do alto todo contente.
- E já me lembro quem sou !
Ele tinha-se lembrado. Já sabia quem era e de onde viera. E o choque fora tão grande que por pouco não se despenhou. Os convidados é que sentiram o seu novo acordar, quando a súbita mudança de direcção da máquina voadora por pouco não os apanhou.
- Afinal como é que te chamas ?
Perguntou ela cá de baixo agitando o ramo de flores.
- Leonardo ! O meu verdadeiro nome é Leonardo !
- Leonardo...
Repetiu ela devagar como se quisesse guardar na memória o som de cada sílaba do seu nome.
Foi então que tomou uma decisão e bruscamente atirou com o ramo de flores para trás das costas. Agarrou no vestido com ambas as mãos e correu a toda a pressa até à porta da rua, apanhando de surpresa os seus pais e todos os convidados. Nunca mais ninguém a viu, nem ao Filipe Leonardo e nem á sua máquina voadora.


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