Eu já disse isso no meu grupo Baú de notas no facebook e repito: "que me perdoem os fãs de Machado de Assis, mas Lima Barreto sempre terá um lugar privilegiado na minha vida e na minha formação". E tenho dito. E mais do que isso: é sempre um enorme prazer ver a obra do mestre por traz de obras fundamentais da nossa literatura, como O triste fim de Policarpo Quaresma, Clara dos Anjos, Recordações do escrivão Isaías Caminha e Cemitério dos vivos revisitado em outras abordagens artísticas como o teatro, por exemplo.
Concluída esta abertura emocionada de um leitor apaixonado, atesto: Traga-me a cabeça de Lima Barreto, monólogo apresentado pelo ator Hilton Cobra, criador da Cia. dos Comuns, especialista em temáticas sobre o negro e seus costumes, é das melhores coisas que eu tive o prazer de assistir neste ano de 2017. E concluo: é muito mais do que mera autobiografia sobre o grande mestre mestiço de nossas letras - que anda em voga, tanto como homenageado da última FLIP em Parati, como pela biografia Triste Visionário, de autoria de Lilia Moritz Schwarcz - que sequer recebeu a honraria máxima de ser reconhecido pela tão famigerada Academia Brasileira de Letras.
Não, não, não, meus colegas e distintos leitores de minhas paranóias crônicas! O espetáculo, de autoria de Luiz Marfuz, é praticamente uma visão post-mortem sobre o autor e literato. Digo mais: em muitos momentos, faz uma grande sátira em forma de releitura do que aconteceu com o escritor após seu falecimento.
É preciso ser dito (pois muitos não o sabem): Lima Barreto foi perseguido pelos eugenistas de plantão da época, que acreditavam que por ele ser negro não poderia jamais ter criado uma obra literária tão vasta. Na cabeça de tais estudiosos (os demagogos e sofistas de sua era) um homem de "raça inferior" jamais estaria habilitado a criar um conjunto literário tão complexo. Pelo contrário: deveria se contentar com a lida, o trabalho pesado, braçal. Por isso, decidem abrir-lhe o cérebro para constatar possíveis deficiências.
Contudo, Lima, "negro, pobre, nascido livre, alforriado", como bem defende Hilton Cobra, luta com unhas e dentes para mostrar sua capacidade e defender sua obra dos abutres que teimam em qualificá-la como medíocre, menor, desnecessária. Uma batalha que já nasceu inglória para o velho Lima, tendo em vista em que eles, os arianos conservadores de sempre, nunca entenderão (ou permitirão) que ele mereça um lugar ao sol entre os maiores do mundo literário.
Todo o clima presente na sala exibidora do espetáculo cria uma relação de desafio com o público: desde o momento em que entro na sala e ouço os primeiros acordes de Nina Simone no rádio - uma escolha muito bem-vinda dos produtores para receber o público -, até o início da pela com a projeção de um vídeo que tenta explicar à plateia o que seria a arte, concluindo com a entrada serelepe de Lima Barreto cantando. Tudo é um convite à reflexão. E reflexão, em tempos tão sombrios e demagogos como os atuais, é algo que anda (e muito!) em falta.
Lima Barreto canta, afronta seus detratotes (cujas vozes a todo momento exibem-se braviamente, tentando colocar-lhe no papel de coadjuvante), exibe seu saber, demolindo os algozes que tentam diminuí-lo oferecendo um tradutor simultâneo, caso ele não entenda as perguntas em francês, expurga suas mazelas de infãncia de menino pobre, chora ao lembrar da tristeza de não poder se despedir dos únicos parentes que o amaram quando ele, já debilitado, parte deste para outro plano, quiçá mais evoluído, bebe (mais: oferece um trago a membros da própria plateia), questiona o fascínio e a idolatria existente em torno de Machado de Assis, ruge, desabafa melancolicamente, baba, respira sofregamente, rola no chão, rasga papéis, depoimentos inúteis que só servem para diminuir-lhe ainda mais.
Em suma: Hilton Cobra, exuberante do início ao fim, faz do seu tour de force constante, contínuo, seja no duelo confessional que trava com o seu próprio cérebro (presente no palco em forma de cabaça), seja ao desafiar a ira dos que o acusam (representados pelos alto-falantes), uma batalha de David contra Golias.
Resumo (da quase-ópera trágica): se eu já era fã do escritor notável e do homem que lutou diariamente contra o alcoolismo e sua própria condição de vida miserável - cheguei a relembrar em alguns momentos o curso de Metodologia do texto acadêmico que fiz com o professor Álvaro Dias na época em que estudava Letras lá pelos idos de 2003, 2004 -, saio do teatro em êxtase, sabendo que nunca fora tão lúcido numa escolha literária quanto esta.
Lima Barreto pode não ter sido laureado como o literato que merecia; Pode não ter alcançado a glória acadêmica de um Machado de Assis ou um Graciliano Ramos ou mesmo uma Raquel de Queiroz. Contudo, isso em nada indignifica sua obra, seu conteúdo artístico e sua personalidade humana. Durante a edição da Flip desse ano, li no site da Folha de São Paulo um dos palestrantes do evento (que fazia uma mesa em homenagem ao autor) dizer que, se vivo, Lima Barreto não seria convidado para palestrar na festa, por não condizer com o estilo de vida desse novo mercado editorial de hoje. E é provável que ele esteja certo.
Lima Barreto foi, antes de tudo - literato, pensador, cronista, estudioso da alma humana -, um indivíduo que incomodou o senso comum. O mesmo senso comum que hoje prega o regresso de um medievalismo cultural e social absurdo. Pergunto-me o que estaria ele dizendo hoje sobre a possível chegada da Reforma da Previdência, sobre a política religiosa enfadonha e caricata e sobre a sociedade omissa e hipócrita que acredita piamente que bater panelas e mudar os governantes no próximo pleito eleitoral alterará de fato o rumo dos acontecimentos.
Para aqueles que ainda não assistiram Traga-me a cabeça de Lima Barreto, corram! Coisas genais desse nível (em plena era das trevas em que nos encontramos) não costumam ficar em cartaz muito tempo. E precisam ser vistas - e refletidas - urgentemente.
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