Pouco tempo depois de formado, trabalhei em uma multinacional americana. A expressão parece um disparate, mas fica o americano para a origem e o multinacional para o estilo. Tratava-se de uma companhia grande com muitas ramificações e muitos departamentos. Eu trabalhava no planejamento e éramos quatro a cinco engenheiros, a secretária, um projetista e um desenhista. Tinha ainda o gerente, homem beirando os setenta, sobrenome inglês, cabelos grisalhos e pinta de galã. Sempre muito elegante, chegava por volta das nove horas da manhã, pendurava o paletó e depois desaparecia para reaparecer no final do expediente. Dizia-se que as amantes não lhe davam trégua.
Quando havia um serviço urgente para fazer, o gerente surgia do gabinete. Ficava na porta murmurando umas palavras ininteligíveis para chamar a atenção. Franzindo o cenho, coçando a cabeça e sorrindo à guisa de desculpa por não se lembrar do nome, chamava com a mão um dos engenheiros, explicando-lhe o serviço. Fosse entendida ou não a explicação, dava no mesmo, porque era mesmo o sinal da mão mandando andar e resolver e ficava o engenheiro, plantado no meio da sala com as dúvidas e o problema. Se na busca da solução, desse certo, não era mais do que obrigação. Se desse errado, o gerente demitia e assim desculpava o fracasso perante seus superiores.
Porque não mandavam o gerente embora eu não sei dizer, mas posso especular. Talvez fosse o nome inglês, talvez fosse a pinta de John Wayne ou então o perfeito domínio do idioma. Talvez fosse a amizade que tinha com os de cima ou talvez a estabilidade. A história que eu conto se passa em uma época, em que depois de algum tempo de casa, o funcionário era quase que indemissível, tão altos eram os custos de se mandar embora.
Posso garantir que se não mandavam o homem embora, a culpa não era das amantes, porque as morenas que volta e meia apareciam por lá, ancas grandes e quadris protuberantes, não tinham esta bola toda. Seja como for, os desmandos do departamento tinham chegado aos ouvidos do gerente geral, hoje se diria CEO, que tinha colocado um quinta-coluna lá para cuidar da sucessão. Era um engenheiro novo, muito empertigado, sorriso de garçom, óculos redondos, aro escuro, cabelo com brilhantina, calça social sem pregas, sapato com meia branca, o que na época não era comum cá por estas bandas. Ele se reportava diretamente ao CEO, recebendo dele as atribuições e baipassando o chefe imediato. Parece que o velho não se incomodava. Fizessem o que quisessem, contanto que lhe deixassem as morenas.
A rotatividade do departamento era grande pois como o gerente deixava tudo por conta dos engenheiros, e como estes eram sem experiência, os furos deixados eram frequentes e frequentes as demissões. Demitia-se, admitia-se outro também sem experiência e assim ia-se levando. O importante era ter explicação e bode expiatório. “Engenheiro hoje em dia não vale nada. Eles só querem praia e a universidade parece uma boate”, vi o velho comentando uma vez com o gerente geral. Explicava e, além disso, se valorizava. Eu tinha acabado de entrar. Talvez por isto o engenheiro novo tivesse me chamado para ajudá-lo, me livrando dos desmandos do gerente.
Antigos ali, além do gerente, havia tão somente o desenhista e o projetista. O desenhista, de nome espanhol, corpo de barril, papada imensa, estava lá há tanto tempo que tinha se adaptado completamente ao ritmo de trabalho do departamento. Chegava antes do chefe e ficava debruçado na prancheta, fingindo trabalhar. O chefe saía, ele se levantava. Ia fazer a ronda. De mesa em mesa, sentava-se nas cadeiras, refestelava-se, jogando conversa fora. Só voltava a trabalhar perto do final do expediente. Tinha um sexto sentido, prevendo a hora em que o chefe ia chegar, ou então era o costume ou o ouvido apurado. O chefe abrisse a porta, lá estava o espanhol debruçado na prancheta.
Passava o dia inteiro papeando. Muito debochado, não levava nada a sério, não acreditava em nada, colocando tudo em cheque. Estivesse chovendo, lá ia ele para a janela, dizer que a chuva ia parar. Se a chuva tivesse parado logo ele descobria uma nuvem querendo desabar. Nada valia a pena, todo mundo era salafrário, ninguém prestava, só havia mesmo ladrão, sovina, miserável, mentiroso, falsário e pilantra. Fazia pouco de tudo e de todos, dele inclusive. A única coisa que sobrava e que valia a pena era o riso da chacota. Imagino que fosse o que o mantivesse vivo.
O projetista era completamente diferente. Homem de experiência, providenciava pequenos reparos e reposição de peças estragadas. Tinha também nome estrangeiro, mas a origem era nórdica, Escandinávia ou alguma coisa deste tipo. Magro, magérrimo, faces encovadas, ficavam os ossos do corpo aparecendo. Era tão medroso, tão assustado que até para conversar comigo, eu que não era nada, coisa nenhuma, ele se curvava, amarrotava o rosto todo. Vincos profundos de preocupação cortavam a face. Falava baixo, olhando de lado. Se agarrava no cigarro, tábua de salvação, mamando o dia todo, sem parar. Teria morrido há muito tempo, tal a quantidade de fumaça que ingeria, não fosse a sabedoria da vida que fizera com que não a tragasse. Chupava o cigarro com desespero, enchia a bochecha por falta de alternativa e soprava com alívio.
Durei pouco mais de um ano. Um dia resolvi sair. A vida é um circo, foi o que eu pensei. Lá tinha mágico, domador e equilibrista. Tinha até engolidor de espada. Mas faltava palhaço, palhaço dos bons, desses que lava a alma e faz a gente rir não só nos lábios, mas no coração. Os palhaços que havia por lá eram sem graça, boca borrada, piada gasta.
Comunicada a minha demissão, o gerente geral, o CEO, mandou me chamar. Na certa tinha planejado substituir o velho gerente pelo rapaz novo e neste plano eu ocuparia uma função. Não disse claramente mas deixou subentendido. O que ele disse claramente foi que tinha planejado me mandar para os EUA, fazer um estágio de um ano em diversas unidades da matriz. Quando eu voltasse, cabeça feita, sotaque perfeito, sabendo sorrir e conversar, segurando o cálice da bebida de forma convincente, nada ia me segurar. Conhecimentos atualizados, sabendo de tudo e de todos, a par da tecnologia mais moderna, botando banca com as últimas descobertas e invenções, minha ascensão seria um fogetório. Eu seria um meteoro espalhando fogo pelas ventas. Deixei ele falar. Aquilo não me tocava, não me dizia respeito. Minha cabeça não estava mais ali.
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