Vazios do bordado
É assim mesmo que me sinto. Assim com todos os olhos do corpo e da alma. Com toda a largueza dos meus sentidos. Hoje estou incomodada. Alguma coisa, de uma frieza crua, descida dos espaços invisíveis pousou sobre mim. Escorreu tomando-me toda. De fino modo neste instante último começa a penetrar em minha pele. Dói a minha pele. É uma dor leve, mas é dor. Não sei se é dor que escurece o pensamento ou que entristece o coração. Só sei que é dor.
Estou perdendo a cor e sendo possuída. Estou gorda de palavras alegres, exuberantes. Outras tantas sem nenhuma alegria também escorrem do canto da boca. São palavras que querem dizer o indizível. O silêncio que dorme atrás das pedras. O silêncio de viver a vida que é bela. Quente. Doce. Azul.
A vida é a vida. Sussurro dentro do instante que pulsa. A vida dói. Dói uma dor comprida e pura. Pura como a vida além da vidraça. Como o sussurro da palavra dentro do instante que pulsa no pensamento escuro e calado.
Estou pronta. Pura como a vida. Pura como a palavra. Não. Eu sou a vida. Eu sou a palavra parida de mim em plena noite de ninguém. É feito palavra que não diz o que é, diz o que há de vir depois da ponte da vida, lá do outro lado, à margem do rio, que rostos mutilados me espreitam.
Tinta seca. Olhos arrancados de um tempo intocável cercam a minha solidão. Cores abertas ao relento das paixões pululam em harmonia, e no escuro do meu gesto mais singelo fantasmas despertam as minhas memórias.
Não estou alegre nem triste. Estou viva. Viva de uma vida leve, fluídica, úmida, efêmera.
Na efemeridade da vida me acomodo. Olho pela janela dos desejos azuis que se espraiam por sobre a areia transparente do tempo indomável.
Há quanto tempo estou aqui a te falar? Quanto tempo ainda há de vir perpassar minhas rugas entristecidas e belas? O que há de ti neste tempo estendido em tinta fresca que derramo sem qualquer pensamento? Estou só dentro da solidão que só ao tempo pertence e que cheira a morte. Em linhas tortas é que morro, desmorro, remorro. O tempo é redondo e gordo. Rolo dentro do tempo. Multiplico-me em cores e gestos. Vozes flecham-me de dentro para fora e sangro. Uma felicidade clandestina nasce da palavra que perfura o meu coração. Desmorro.
Você me vê? Estou nua. Crua. Primitiva. Rupestre. Primeira em mim e no mundo. Depois da morte é assim. Em algum lugar um silêncio acende o sol da escuridão. Uma fome arde. Entrego-me por inteira a eternidade desta hora aluada e sem esperança.
Sim. Este campo verde de memórias é meu. Ele foi feito de histórias inventadas. De histórias que um dia inventei para alimentar a vida dos homens. Elas são verdadeiras. A verdade é isto: A vida das coisas criadas num sopro de insatisfação.
E o tempo... Eu penso no tempo como se ele fosse uma fruta madura balançando no pé convidando-me a comer o seu caroço. Apresso-me a escalá-lo com sede de vida e morte. Foi ontem e já faz tanto tempo. O que restou na memória são fragmentos de lembranças vividas corroídas pelos vermes. O tempo passa e só chega para mim depois que eu debruço sobre o parapeito da janela a espiar à tarde que passa sem aviso. Às vezes, o tempo chega desgastado e seco, noutras vezes, aceso e vivo, mas já é outro tempo e não cabe em meus devaneios. Açoitada pelo tempo que teima em passar remonto os pedaços do quebra-cabeça que conta a minha passagem pelo tempo, ou não seria melhor dizer: da passagem do tempo em mim? E neste abismo cavado à beira da estrada rogo a piedade dos anjos do tempo que sempre a espreita vela os viajantes, que como eu, segue sem destino.
Da vida peço aos anjos do tempo o que voa no alto do céu, o que nada no escuro do mar, o que cheira no universo, o que queima e purifica o coração dos seres humanos. Peço a palavra feita de silêncios que alimenta o pulsar do meu coração, porque o amanhã não espera.
Abro os olhos e olho de viés pela fresta da janela. Uma sombra estende-se sobre a minha lucidez. Escorro úmida por entre veredas intocáveis abertas na profundeza da vida. De viés também me olha o outro. O outro que me toma. Invade os meus escuros feitos de silêncios. “Eu te amo até amanhã!” Escrevo em letras de amor porque eu sou este minuto que antecede sem esperança. Porque a esperança é efêmera. O amanhã é daqui a pouco, e não demora, já é passado. A vida – águas em mar revolto. Eu sou a matéria fluídica do próprio amor. A palavra da minha escritura. O amor de um dia que não morre. De um amanhã, de um amanhã, sem nome.
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