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  Texto selecionado
medo mortal
alfredo jose dias

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Sobre a obra:
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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por
dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."


ROBIN COOK

MEDO MORTAL
CÍRCULO DO LIVRO


Edição integral
Título original: Mortal fear
Tradução: José Luiz Meurer
Capa: Tide Hellmeister
Copyright © 1988 Robin Cook
Círculo do Livro


Agradecimentos
Este livro não poderia ter sido escrito sem
o apoio e o estímulo de todos os amigos que
me ajudaram numa época difícil.
Vocês todos sabem quem vocês são,
e vocês todos têm a minha mais profunda
gratidão.


Para meu irmão mais velho, Lee,
e para minha irmã mais nova, Laurie.
Nunca estive entre duas pessoas mais amigas.


PRÓLOGO
11 DE OUTUBRO, QUARTA-FEIRA, À TARDE
O súbito aparecimento das proteínas estranhas foi, no plano molecular, o equivalente da
Peste Negra. Foi uma sentença de morte, sem qualquer possibilidade de apelação, e Cedric
Harring não tinha nenhuma noção do drama que estava para acontecer no seu íntimo.
Em nítido contraste, cada célula do organismo de Cedric Harring sabia exatamente
quais as desastrosas conseqüências que estavam por vir. As misteriosas proteínas novas que
se infiltravam no meio das células atravessaram-lhe as membranas e tinham um poder
avassalador; as pequenas quantidades de enzimas capazes de fazer frente às invasoras eram
totalmente inadequadas, insuficientes. No interior da hipófise de Cedric, as novas proteínas
letais tinham condições de se ligar aos repressores que cobriam os genes do hormônio da
morte. Desse momento em diante, estando os genes fatais expostos, o desfecho era inevitável.
O hormônio da morte começou a ser sintetizado em quantidades sem precedentes. Penetrando
na corrente sangüínea, espalhou-se pelo organismo de Cedric. Célula alguma estava imune. O
fim era apenas uma questão de tempo. Cedric Harring estava por se desintegrar, retornando
aos seus elementos estelares.


1
A dor foi como a de uma facada, lancinante, começando em algum lugar do peito e
irradiando-se rapidamente para cima, em paroxismos que cegavam, chegando a paralisar-lhe a
mandíbula e o braço esquerdo. Instantaneamente Cedric sentiu o terror do medo fatal da morte.
Cedric Harring jamais havia sentido algo semelhante.
Num ato reflexo, agarrou com mais força o volante do carro e, respirando penosamente,
conseguiu manter o controle do veículo, que já começava a se desgovernar. Vindo da Berkeley
Street, terminou entrando na Storrow Drive, no centro de Boston, e acelerou rumando para
oeste, misturando-se ao tráfego enlouquecedor da cidade. Diante dele, as imagens da rua
flutuavam e depois recuavam, como que situadas ao fim de um longo túnel.
Com toda a sua força de vontade, Cedric resistiu à escuridão que ameaçava engoli-lo.
Gradualmente, o cenário clareou. Cedric ainda estava vivo. Em vez de aumentar o esforço,
assim lhe dizia o instinto, sua única possibilidade consistia em procurar um hospital o mais
rápido possível. Por uma feliz coincidência, o hospital do Good Health Plan não ficava muito
longe. Agüente, disse a si mesmo.
Junto com a dor veio um suor profuso, que começou na fronte, mas logo se espalhou
pelo restante do corpo. O suor provocava-lhe ardência nos olhos, mas Cedric não ousava
enxugar o rosto, com medo de perder o controle do volante. Saiu da avenida principal e entrou
em Fenway, complexo em forma de parque dentro de Boston, quando a dor retornou,
comprimindo-lhe o peito como se fora um arame de aço. Mais adiante os carros paravam por
causa de um sinal de trânsito. Ele não pôde parar. Não houve tempo. Inclinando-se para a
frente, apertou a buzina e meteu-se numa brecha. Os carros passavam por ele a centímetros de
distância. Ainda deu para ver as caras espantadas e irritadas dos outros motoristas. Estava
agora na esquina da Park Avenue com Back Bay Fens, e à sua esquerda havia jardins de
plantas maltratadas. A dor agora era constante, intensa, insuportável. Ele mal conseguia
respirar.
O hospital era adiante, à direita, onde antigamente se situava um edifício da Sears. Só
um pouco mais. Vamos, por favor… aparecia já uma grande tabuleta branca com uma seta
vermelha e letras em vermelho que diziam emergência.
Cedric conseguiu conduzir o carro diretamente até a plataforma diante da sala de
emergência, mas freou tarde demais, chocando-se contra o parapeito de concreto. Inclinandose para diante, acionou a buzina do carro.
A primeira pessoa que se aproximou do carro foi o guarda de segurança. Abriu
rapidamente a porta e, tendo dado uma olhada na palidez assustadora de Cedric, chamou por
auxílio. Cedric mal conseguiu murmurar, em meio à respiração difícil: “Dor no peito.” A
enfermeira-chefe, Hilary Barton, apareceu e pediu que trouxessem a maca. Depois que os
enfermeiros e o guarda retiraram Cedric do automóvel, um dos residentes que trabalhavam na
sala de emergência apareceu e ajudou a colocá-lo na maca. Seu nome era Emil Frank;
trabalhava como residente havia apenas quatro meses. Alguns anos antes, teria sido chamado
apenas de interno. Também ele notou a pele lívida e o suor abundante de Cedric.
– Sudorese – disse ele com ar importante. – Provavelmente um infarto.
Hilary fez uma expressão de impaciência. Naturalmente que era um infarto. Levou


rapidamente o paciente para dentro, ignorando o Dr. Frank, que acomodara o estetoscópio nos
ouvidos e se preparava para auscultar o coração de Cedric.
Tão logo chegaram à sala de tratamento, Hilary mandou vir oxigênio, soro para
aplicação endovenosa e monitorização eletrocardiográfica, instalando, ela própria, as três
principais derivações do eletrocardiograma. Assim que Emil terminou de instalar o soro, ela
sugeriu-lhe que fornecesse 4mg de morfina, a serem administrados imediatamente.
Mal a dor diminuiu um pouco, a mente de Cedric clareou. Embora ninguém lhe tivesse
dito, ele sabia que havia tido um infarto. Também sabia que tinha estado muito perto de
morrer. E mesmo agora, vendo a máscara de oxigênio, o equipamento de soro e o
eletrocardiógrafo desenrolando o papel até o chão, Cedric sentia-se mais vulnerável do que
em qualquer outra ocasião de sua vida.
– Vamos transferi-lo para a unidade de tratamento coronariano – disse Hilary, – Tudo
vai dar certo. – Ela tocou na mão de Cedric. Ele esboçou um sorriso. – Telefonamos para sua
esposa. Ela está a caminho.
A unidade de tratamento intensivo coronariano era semelhante à sala de emergência,
pelo que Cedric podia perceber – e era também um lugar assustador. Estava cheia de uma
tecnologia eletrônica ultra moderna, complexa. Ele podia ouvir seus batimentos cardíacos
sendo reproduzidos por um beep mecânico, e quando voltou a cabeça conseguiu ver um
traçado luminoso numa tela redonda de TV.
Os aparelhos, ainda que assustadores, davam-lhe certa tranqüilidade. Mas uma
tranqüilidade maior vinha do fato de que o seu médico particular, contactado por telefone logo
após a admissão de Cedric, acabava de chegar à UTCI.
Cedric era paciente do Dr. Jason Howard fazia cinco anos. Começara a consultá-lo
quando seu empregador, o Boston National Bank, insistira em que os executivos seniores se
submetessem a exames médicos anuais. Quando o Dr. Howard inesperadamente vendera seu
consultório particular, alguns anos antes, e passara a fazer parte do Good Health Plan (GHP),
Cedric obrigatoriamente o acompanhara. A mudança efetuada exigira que se mudasse o seu
plano de saúde da Blue Cross para a modalidade de pagamento prévio, mas o que atraíra
Cedric fora o Dr. Howard, e não o GHP, e Cedric dissera isto ao Dr. Howard, em termos
muito explícitos.
– Como está passando? – perguntou Jason, segurando no braço de Cedric, mas
prestando mais atenção à tela do ECG.
– Não… bem – murmurou Cedric. Precisou respirar várias vezes para poder emitir as
duas palavras.
– Quero que você procure relaxar. Cedric fechou os olhos. Relaxar! Que piada!
– Sente muita dor?
Cedric fez que sim com a cabeça. Lágrimas escorriam pelo seu rosto.
– Mais uma dose de morfina – ordenou Jason. Dentro de alguns minutos depois da
segunda dose, a dor tornou-se mais suportável. O Dr. Howard estava conversando com o
residente, assegurando-se de que tinham sido obtidas as amostras de sangue necessárias aos
diversos exames, e pediu um tipo de cateter. Cedric olhava o seu médico, tranqüilizado por
ver o Dr. Howard, com seu perfil elegante e aquilino, agir com competência e segurança. E o
melhor de tudo era poder sentir a sua dedicação afetuosa.
– Vamos ter que fazer uma pequena cirurgia – disse Jason. – Introduziremos um cateter


de Swan-Ganz para podermos ver o que está acontecendo aí dentro. Usaremos anestesia local,
de modo que não vai doer, está bem?
Cedric assentiu com a cabeça. Por ele, o Dr. Howard tinha carta branca para fazer tudo
que achasse necessário. Cedric apreciava o jeito de ser do Dr. Howard. Ele nunca repreendia
seus pacientes – nem mesmo quando, ao examiná-lo três semanas antes, alertara-o quanto à
alimentação de alto teor de colesterol, ao hábito de fumar dois maços de cigarros por dia e à
falta de exercícios físicos. Ah, se eu tivesse escutado, pensou Cedric. Mas embora o Dr.
Howard houvesse considerado de modo tão sombrio os hábitos de vida de Cedric, ainda
assim admitira que os exames estavam bons. Seu colesterol não estava alto demais, e seu
eletrocardiograma não revelara qualquer anormalidade. Tranqüilizado, Cedric adiara os
planos de parar de fumar e de começar a praticar exercícios.
Então, menos de uma semana depois do exame médico, Cedric sentira como se
estivesse para contrair gripe. Mas isso fora só o começo. Seu sistema digestivo começou a
desarranjar-se, e ele passou a sofrer de terrível artrite. Até mesmo a visão pareceu piorar.
Lembrou-se de ter falado à esposa de que se sentia como se tivesse envelhecido trinta anos.
Estava com todos os sintomas experimentados por seu pai nos seus meses finais de vida no
asilo. Às vezes, quando inesperadamente se via no espelho, tinha a impressão de estar olhando
para o fantasma do falecido pai.
Apesar da morfina, Cedric sentiu uma súbita dor em punhalada, um esmagamento no
peito. Sentiu-se como que desaparecendo dentro de um túnel, a mesma sensação que tivera
ainda dentro do carro. Ainda conseguiu ver o Dr. Howard, mas o médico estava demasiado
longe, e sua voz ia sumindo. Então o túnel começou a se encher de água. Cedric sentia-se
asfixiado e tentava nadar até a superfície. Seus braços buscavam desesperadamente um ponto
de apoio no ar.
Mais tarde, Cedric recuperou a consciência, por alguns momentos de agonia. Ao mesmo
tempo que lutava para voltar à lucidez, sentia uma pressão intermitente no tórax e algo
colocado na garganta. Alguém estava ajoelhado ao seu lado, apertando-lhe o peito com as
mãos. Cedric estava para emitir um grito, quando houve uma explosão no seu peito e sobre ele
desceu uma escuridão como um manto de chumbo.
A morte sempre tinha sido o inimigo para o Dr. Jason Howard. Quando era residente no
Massachusetts General Hospital, acreditava, até as últimas conseqüências, estar engajado
nesse combate contra a morte, e por isso nunca desistia de um caso de parada cardíaca, a
menos que ordens superiores mandassem suspender os esforços de ressuscitação.
Agora, recusava-se a acreditar que esse homem de 56 anos, que ele examinara havia
apenas três semanas e que fora considerado, de modo geral, uma pessoa sadia, estivesse a um
passo da morte. Era um desafio pessoal.
Levantando os olhos para o monitor, que ainda mostrava atividade eletrocardiográfica
normal, Jason apalpou o pescoço de Cedric. Não conseguiu sentir nenhuma pulsação.
– Dêem-me uma agulha cardíaca – pediu. – E alguém veja a pressão sangüínea. – Uma
grande agulha cardíaca foi posta na sua mão enquanto ele apalpava o tórax de Cedric para
localizar a borda do esterno.
– Não há pressão sangüínea – comunicou Philip Barnes, anestesiologista que atendera
ao chamado em código, emitido automaticamente quando Cedric sofrera parada cardíaca. Ele


colocara um tubo endotraqueal na traquéia de Cedric e ventilava-o com oxigênio,
comprimindo uma bolsa de Ambu. Para Jason, o diagnóstico era evidente: ruptura cardíaca.
Com o ECG ainda sendo registrado, mas não havendo ação de bombeamento do coração,
prevalecia uma situação de dissociação eletromecânica. Só podia significar uma coisa. A
parte do coração de Cedric que sofrera privação da irrigação sangüínea acabou por se romper
como um bago de uva espremido. Para comprovar esse diagnóstico extremamente sombrio,
Jason introduziu a agulha cardíaca no tórax de Cedric, perfurando o envoltório pericárdico.
Quando fez recuar o embolo da seringa, esta encheu-se de sangue. Não havia dúvida. O
coração de Cedric rompera-se dentro do tórax.
– Vamos levá-lo ao centro cirúrgico – ordenou Jason em voz alta, agarrando a
extremidade do leito. Philip fez uma cara de desalento para Judith Reinhart, a enfermeirachefe da unidade coronariana. Ambos sabiam que era inútil. Quando muito, conseguiriam
conectar Cedric à máquina coração-pulmão, mas, e daí?
Philip parou de ventilar o paciente. Mas, em vez de ajudar a empurrar o leito,
encaminhou-se para Jason e amavelmente colocou o braço sobre o seu ombro, apertando-o:
– Foi mesmo ruptura cardíaca. Você sabe. Eu sei. Este nós perdemos, Jason.
Jason fez um movimento para protestar, mas Philip apertou-o mais. Jason olhou para o
rosto de Cedric, que tinha a pali-dez do marfim. Sabia que Philip tinha razão. Por mais que
odiasse ter de admitir isso, o paciente estava perdido.
– Você tem razão – disse ele, e relutantemente permitiu que Philip e Judith o levassem
para fora da unidade, deixando os outros enfermeiros encarregados de preparar o corpo.
Enquanto caminhavam em direção ao posto central, Jason confidenciou que Cedric era
o terceiro paciente que morria depois de apenas algumas semanas de um exame clínico bom.
O primeiro tinha sido também um caso de ataque cardíaco, o outro sofrera um acidente
vascular cerebral fulminante.
– Talvez eu deva pensar em mudar de profissão – disse Jason, meio a sério. – Até
mesmo os meus pacientes hospitalizados têm tido uma evolução ruim.
– É só falta de sorte – disse Philip, dando um tapinha amistoso no ombro de Jason. –
Todos nós temos nossas fases ruins. Vai melhorar.
– Sim, claro – disse Jason.
Philip saiu para voltar ao centro cirúrgico.
Jason encontrou uma poltrona disponível e aí deixou-se cair pesadamente. Sabia que
tinha de estar pronto para enfrentar a esposa de Cedric; ela estaria chegando ao hospital a
qualquer momento. Sentiu-se esgotado.
– Você talvez achasse que agora fiquei um pouco mais acostumado com a morte – disse
ele em voz alta.
– O fato de você não ter se acostumado prova que continua sendo um bom médico –
disse Judith, cuidando dos papéis referentes a um caso de morte.
Jason aceitou o elogio, mas sabia que sua atitude diante da morte ia muito além da
profissão. Fazia só dois anos que a morte destruíra tudo que Jason mais amava. Ainda podia
lembrar-se da voz que ouvira ao telefone, quinze minutos depois da meia-noite, numa escura
noite de novembro. Ele adormecera no quarto do plantonista quando ainda se esforçava por
ler algo nas revistas médicas que tinha diante de si. Pensara que o telefonema era de sua


esposa, Danielle, chamando-o do Children’s Hospital para avisar que ia se atrasar. Ela era
pediatra e tinha sido chamada de volta ao hospital naquela noite para atender a um prematuro
com problema respiratório. Mas quem telefonava era a polícia rodoviária. Chamavam para
dizer que um caminhão vindo de Albany com um carregamento de chapas de alumínio havia
saltado o canteiro central e atingido em cheio o carro de sua esposa. Ela não tivera nenhuma
chance de escapar.
Jason ainda conseguiu lembrar a voz do patrulheiro rodoviário, era como se tivesse
sido ontem. Primeiro se sentira chocado e sem poder acreditar, depois fora invadido por uma
grande raiva. E mais tarde ainda, uma culpa terrível. Se pelo menos ele tivesse ido junto com
ela, como às vezes fazia, para ficar lendo na biblioteca da Countway Medical.
Ou se tivesse insistido para que ela dormisse no hospital.
Poucos meses depois, ele vendera a casa, onde o que valia era a presença de Danielle,
a clínica particular e o consultório que compartilhava com ela. Fora então que ele passara a
fazer parte do Good Health Plan. Ele fizera tudo que lhe fora sugerido por Patrick Quillan,
psiquiatra amigo seu. Mas a dor ele ainda sentia, e a raiva também.
– Com licença, Dr. Howard?
Jason levantou os olhos e viu o rosto largo de Kay Ramn, a secretária da unidade.
– A Sra. Harring está na sala de espera – comunicou Kay. – Eu lhe disse que o senhor
iria falar com ela.
– Oh, meu Deus! – disse Jason, esfregando os olhos. Falar com os parentes depois que
um paciente morria era difícil para qualquer médico; mas desde a morte de Danielle, Jason
sentia o sofrimento das famílias como se fosse o seu próprio.
Do outro lado da unidade de tratamento coronariano havia uma pequena sala de estar
com revistas velhas, poltronas de vinil e plantas de plástico. A Sra. Harring estava olhando
pela janela que dava para o Fenway Park e o Charles River. Era uma mulher magra e alta, cujo
cabelo ela deixara ir se tornando grisalho naturalmente. Quando Jason entrou na sala, ela se
voltou e olhou para ele com olhos assustados e vermelhos.
– Eu sou o Dr. Howard – falou Jason fazendo um gesto para que ela sentasse. Ela
sentou, mas bem na beirada da poltrona.
– Más notícias, suponho… – começou ela a falar. A voz sumiu.
– Lamento dizer que sim – disse Jason. – O seu marido faleceu. Fizemos tudo que foi
possível. Pelo menos ele não sofreu. – Jason sentiu ódio de si mesmo por estar ali dizendo
aquelas mentiras que as pessoas queriam ouvir. Sabia que Cedric tinha sofrido. Tinha visto o
medo mortal no rosto do homem. A morte era sempre uma luta, raramente era a serena retirada
da vida, como procuram fazer crer os filmes.
O rosto da Sra. Harring empalideceu, e por um momento Jason pensou que ela ia
desmaiar. Por fim, ela disse:
– Não posso acreditar nisso. Jason concordou:
– Eu sei – e foi só o que disse.
– Não é possível – disse ela. Olhava para Jason de um modo inquisitivo, suas faces
avermelhando. – Quero dizer, há pouco tempo o senhor deu a ele um atestado de saúde, e tudo
estava bem. Mandou que ele fizesse todos aqueles exames, e todos deram negativo! Por que
não encontrou nada? O senhor podia ter evitado isso.
Jason pôde identificar nela a indignação que sentia, a indignação que costuma preceder


o pesar e a tristeza. Sentiu grande compaixão por ela.
– O que eu dei a ele não foi exatamente um atestado de que estava tudo bem – disse com
amabilidade. – Os exames de laboratório foram satisfatórios, mas eu o adverti, como sempre o
fazia, em relação ao fumo e à alimentação. E lembrei-lhe o fato de que o pai morrera de
ataque cardíaco. Todos esses fatores colocavam-no em um grupo de risco, apesar dos
resultados de seus exames de laboratório.
– Mas o pai dele estava com 74 anos quando morreu. Cedric tem apenas 56 anos! Que
valor tem um exame médico, se apenas três semanas depois o meu marido morre?
– Desculpe, Sra. Harring – falou Jason de um modo suave. – A nossa capacidade de
prever é limitada. Isto nós sabemos. Só podemos fazer o melhor que nos é possível.
A Sra. Harring suspirou, soltando a respiração. Seus ombros estreitos inclinaram-se
para diante. Jason podia notar que a raiva dela desaparecia. E no lugar da inconformidade
surgia uma tristeza esmagadora. Quando ela começou a falar, sua voz tremia:
– Eu sei que o senhor fez o melhor que pôde. Desculpe.
Jason inclinou-se para a frente e colocou a mão no ombro dela. Ela parecia
extremamente frágil sob o vestido de seda fina.
– Eu sei como isso é difícil para a senhora.
– Eu posso vê-lo? – perguntou ela chorando.
– Naturalmente. – Jason levantou-se e ofereceu a mão para apoiá-la.
– Sabia que Cedric tinha marcado hora para se consultar com o senhor? – disse a Sra.
Cedric enquanto passavam pelo corredor. Ela enxugou os olhos com um lenço que tirou da
bolsa.
– Não, eu não sabia – admitiu Jason.
– Era para a próxima semana. A primeira hora disponível. Ele não estava se sentindo
bem.
Jason experimentou o desconforto de uma preocupação defensiva surgindo. Embora
tivesse certeza de que não fora cometida nenhuma negligência ou imperícia no caso, mesmo
assim não havia nenhuma garantia de estar livre de um processo judicial.
– Ele se queixou de dor no peito quando telefonou? – perguntou Jason. Ele fez a Sra.
Harring passar diante da porta da unidade de tratamento coronariano.
– Não, não. Apenas uma série de sintomas que não tinham nada a ver com isso.
Principalmente exaustão.
Jason deu um suspiro de alívio.
– As articulações dele doíam – continuou falando a Sra. Harring. – E os olhos dele
estavam dando problemas. Ele vinha tendo dificuldade de dirigir à noite.
Dificuldade de dirigir à noite? Embora tal sintoma não tivesse relação com infarto, foi
como se sua menção fizesse acender uma luz vermelha na mente de Jason.
– E a pele dele tornou-se muito seca. Ele também perdeu muito cabelo.
– O cabelo naturalmente vai sendo substituído – disse Jason maquinalmente. Era
evidente que essa série de sintomas inespecíficos não tinha qualquer relação com o ataque
cardíaco fulminante daquele homem. Jason empurrou a pesada porta que dava acesso à
unidade e fez um gesto para que a Sra. Harring o acompanhasse. Conduziu-a até o recinto
correspondente.
Cedric fora coberto com um lençol branco limpo. A Sra. Harring pôs a mão magra e


ossuda sobre a cabeça do marido.
– A senhora gostaria de ver o rosto dele? – perguntou Jason.
A Sra. Harring fez que sim; lágrimas reapareceram e começaram a escorrer-lhe pelo
rosto. Jason afastou o lençol e deu um passo atrás.
– Oh, meu Deus! – exclamou ela. – Ele está parecido com o pai antes de morrer. –
Voltou-se e murmurou: – Eu não sabia que a morte envelhecia tanto uma pessoa.
Geralmente não envelhece tanto, foi o que pensou Jason. Agora que não estava
concentrado no funcionamento do coração de Cedric, o médico pôde constatar as mudanças no
rosto do paciente morto. O cabelo se tornara mais fino. Os olhos evidentemente haviam
afundado nas órbitas, dando um aspecto descarnado e encovado ao rosto do falecido, um
aspecto muito diferente daquele que Cedric apresentara três semanas antes, quando
comparecera ao exame médico, e Jason estava bem lembrado. Jason recolocou o lençol e
levou a Sra. Harring de volta à pequena sala de espera. Fez com que ela sentasse e tomou
lugar numa poltrona em frente à mulher.
– Sei que isto não é um assunto agradável de falar, mas gostaríamos de ter autorização
para examinar o corpo de seu marido. Talvez possamos aprender alguma coisa que venha a ser
útil a alguém no futuro.
– Acho que se puder ser útil a outros… – A Sra. Harring mordia o lábio. Era-lhe difícil
pensar, e ainda mais difícil tomar uma decisão.
– Vai ser útil. E nós realmente reconhecemos a sua generosidade. Se a senhora esperar
aqui, mandarei alguém trazer os formulários para a autorização.
– Está bem – disse a Sra. Harring, resignada.
– Lamento tudo isso – voltou a falar Jason. – E, por favor, telefone-me se houver algo
em que eu possa ajudar.
Jason encontrou-se com Judith e disse-lhe que a Sra. Harring tinha concordado com a
autópsia.
– Telefonamos para o departamento médico-legal e falamos com a Dra. Danforth. Ela
disse que querem se encarregar do caso – disse Judith.
– Está bem, procure ter certeza de que nos mandarão os resultados. – Jason hesitava. –
Notou alguma coisa de estranho no Sr. Harring? Quero dizer, ele tinha um aspecto de pessoa
muito idosa para um homem de 56 anos?
– Não notei nada – disse Judith, afastando-se rapidamente. Numa unidade com onze
pacientes para atender, ela já estava envolvida com um outro problema.
Jason sabia que a emergência de Cedric estava atrasando seus horários, mas a sua
morte inesperada continuava a perturbá-lo. Tomou a decisão de telefonar para a Dra. Danforth,
que tinha uma voz grave e ressoante, e convenceu-a de deixar que a autópsia fosse feita no
próprio hospital, dizendo-lhe que a morte se devia a uma longa história de doenças cardíacas
na família e que desejava comparar o exame anatomo-patológico do coração com os
eletrocardiogramas de esforço que tinham sido feitos. A médica-legista gentilmente
concordou, liberando o caso.
Antes de sair da unidade de tratamento coronariano, Jason aproveitou para ver outro de
seus pacientes que não estava passando bem.
Com 61 anos de idade, Brian Lennox era mais uma vítima de infarto do miocárdio. Fora


internado três dias antes, e embora inicialmente estivesse bem, seu quadro clínico passara a
ter uma súbita mudança para pior. Nessa manhã, ao fazer uma visita aos leitos, Jason planejara
transferir Lennox da unidade de tratamento coronariano, mas o paciente estava com os
primeiros indícios de insuficiência cardíaca congestiva. Para Jason, isso fora um
desapontamento profundo, pois Brian Lennox tivera de ser acrescentado à lista dos pacientes
internados de Jason que recentemente haviam piorado. Em vez de transferir o paciente, Jason
instituíra um tratamento agressivo para a insuficiência cardíaca.
Quando Jason viu o Sr. Lennox, compreendeu que era inútil esperar que ele pudesse
retornar logo ao estado clínico anterior. O paciente estava sentado, apresentando uma
respiração rápida e superficial, embora em máscara de oxigênio. Sua face tinha uma cor
cinzenta maligna que Jason aprendera a temer. Uma enfermeira que atendia ao paciente ergueuse após ajustar o equipamento intravenoso.
– Como está passando? – perguntou Jason, forçando um sorriso. Mas nem precisava
perguntar. Lennox levantou a mão debilmente. Não conseguia falar. Toda a sua atenção estava
voltada para o seu esforço de respirar.
A enfermeira levou Jason para o meio do quarto um pouco longe do leito do paciente.
No crachá de identificação da moça lia-se Srta. Levay.
– Parece que nada funciona – disse ela, preocupada. – A pressão de encunhamento
pulmonar subiu, apesar de tudo que foi feito. Ele tomou o diurético, a hidralazina e o
nitroprussiato. Não sei o que fazer.
Jason ficou olhando por cima do ombro da Srta. Levay para o ambiente. A respiração
de Lennox era ofegante, ruidosa. Jason não tinha nenhuma idéia do que pudesse fazer, exceto
um transplante, e isto naturalmente estava fora das possibilidades. O paciente era fumante
inveterado e, sem dúvida, tinha enfisema, como também problemas cardíacos. Mas devia ter
reagido à medicação. A única coisa que Jason podia imaginar era que a área do coração
atingida pelo infarto estava se ampliando.
– Vamos pedir uma junta médica cardiológica – disse Jason. – Talvez os colegas tenham
condições de verificar se as coronárias estão mais atingidas. É a única coisa em que posso
pensar. Talvez ele seja candidato a uma cirurgia de revascularização.
– Bem, pelo menos é alguma coisa – disse a Srta. Levay. Sem esperar mais, ela dirigiuse ao posto central de enfermagem para telefonar.
Jason retornou ao leito de Brian Lennox para lhe dar alguma atenção. Desejava poder
fazer mais pelo paciente, mas pelo menos era de esperar que o diurético reduzisse a
quantidade de líquidos enquanto a hidralazina e o nitroprussiato certamente haveriam de
reduzir a pré-carga e a pós-carga no coração. Tudo isso tinha por finalidade diminuir o
esforço que o coração tinha de fazer para bombear o sangue. E permitiria que o coração
cicatrizasse depois de haver sofrido a lesão do infarto do miocárdio. Mas as coisas não
funcionavam. O estado de Lennox se agravava apesar de todas as tentativas e de toda a
tecnologia. Seus olhos agora estavam encovados e tinham um aspecto vítreo.
Jason colocou a mão na testa de Brian e ajeitou-lhe o cabelo, afastando-o da fronte,
onde suava muito. Para surpresa de Jason, uma certa quantidade de cabelos ficou em sua mão.
Sentindo-se confuso durante uns minutos, Jason ficou olhando para os fios de cabelo, depois
puxou cuidadosamente alguns outros fios. Estes também se desprenderam quase que sem
resistência. Verificando o travesseiro onde repousava a cabeça de Brian, Jason notou ali mais


fios de cabelo. Não uma quantidade enorme, porém mais do que era de se esperar. Ficou
pensando se algum dos medicamentos que prescrevera não teria como possível efeito colateral
a perda de cabelos. Resolveu anotar mentalmente esse detalhe, para estudá-lo ao fim do dia.
Evidentemente, perda de cabelos não era uma preocupação importante no momento. Mas
levava-o a lembrar-se do comentário da Sra. Harring. Que coisa intrigante!
Depois de deixar aviso para que o chamassem tão logo a junta médica de cardiologia
examinasse Brian Lennox, e de dar uma nova olhada, de masoquista, no corpo de Cedric
Harring envolto no lençol, Jason saiu da unidade de tratamento coronariano e tomou o
elevador, descendo ao segundo andar, que ligava o hospital ao prédio do ambulatório. O
centro médico do GHP era o imponente hospital central mantido pelo grande plano de saúde
com pagamento prévio. Englobava um hospital de quatrocentos leitos com um centro cirúrgico
ambulatorial, um departamento separado de pacientes ambulatoriais, uma pequena ala de
pesquisas e um andar inteiro destinado aos escritórios da administração. O prédio principal,
originalmente projetado como prédio dos escritórios da Sears, tinha elementos de art déco.
Internamente fora reformado e remodelado para abrigar o hospital e seus escritórios de
administração. O prédio dos ambulatórios e de pesquisas era novo, mas fora construído de
modo a combinar com a estrutura antiga, com os mesmos minuciosos detalhes. Erguia-se sobre
pilotis, entre os quais havia um parque de estacionamento. O consultório de Jason ficava no
terceiro andar, juntamente com os demais setores do departamento de medicina interna.
Havia dezesseis médicos no GHP Center. Em sua maioria, eram especialistas, embora
alguns, como Jason, exercessem a clínica geral. Jason sempre fora de opinião que lhe
interessava toda a gama de doenças do homem, e não apenas as peculiares a determinados
órgãos ou sistemas específicos.
Os consultórios médicos estavam dispostos num círculo, em cujo centro se localizava
uma escrivaninha circundada por uma área de espera com assentos confortáveis. Entre os
consultórios situavam-se salas de exame. Numa extremidade, salas para pequenos tratamentos
cirúrgicos. Havia numeroso pessoal de apoio, que devia revezar-se nos postos de trabalho,
embora, na realidade, as enfermeiras e secretárias naturalmente preferissem trabalhar com
este ou aquele médico. Semelhante situação favorecia a eficiência, pois assim podia haver
certo grau de adaptação às peculiaridades de cada médico. Uma enfermeira de nome Sally
Baunan e uma secretária chamada Claudia Mockelberg preferiam trabalhar com o Dr. Jason.
Ele se dava bem com ambas, porém mais especialmente com Claudia, que mantinha um
interesse quase maternal pelo bem-estar de Jason. Ela havia perdido o filho único no Vietnã e
afirmava ser Jason muito parecido com ele, apesar da diferença de idade. Ambas as mulheres
viram Jason chegando e o acompanharam até o seu consultório. Sally carregava nos braços
uma série de papeletas de pacientes que aguardavam. Ela era do tipo obsessivo, e a demora de
Jason perturbara a meticulosa rotina que planejara. Estava ansiosa por fazer o serviço
começar a andar, mas Claudia barrou-lhe o intento e a fez sair do consultório.
– O que houve para deixá-lo tão preocupado? – perguntou Claudia.
– Minha preocupação é tão visível assim? – falou Jason enquanto lavava as mãos na
pia, no canto da sala.
Ela assentiu com a cabeça.
– Parece que foi atropelado por um trem de emoções.
– Cedric Harring morreu – disse ele. – Lembra-se dele?


– Vagamente – admitiu Claudia. – Depois que o senhor foi chamado à sala de
emergência eu peguei a papeleta dele. Está na sua mesa.
Jason olhou para a mesa e viu a papeleta. A eficiência de Claudia às vezes era
enervante.
– Por que não senta e descansa por uns minutos? – sugeriu Claudia. Mais do que
ninguém no GHP, ela conhecia a reação de Jason diante da morte. Era uma dentre duas pessoas
no centro às quais Jason mencionara o acidente fatal de sua esposa.
– Devemos estar mesmo bem atrasados – disse Jason. – Sally vai ficar de cara feia.
– Ora, Sally que se dane. – Claudia deu a volta à escrivaninha de Jason e empurrou-o
amavelmente para a cadeira. – Sally pode esperar alguns minutos.
Jason sorriu, apesar de tudo que sentia. Inclinando-se para a frente, pegou a papeleta de
Cedric Harring.
– E você se lembra, no mês passado, dos dois outros que morreram logo depois de seus
exames?
– Briggs e Connoly – disse Claudia, sem hesitar.
– Que tal trazer aqui as papeletas deles? Não estou gostando do rumo dessas coisas.
– Só se o senhor prometer que não vai se deixar – Claudia fez uma pausa, tentando
encontrar a palavra certa – abalar muito por causa desse problema. As pessoas morrem.
Infelizmente, acontece. É a natureza das coisas. O senhor compreende? Por que não toma um
cafezinho?
– As papeletas – repetiu Jason.
– Está bem, está bem – falou Claudia, saindo. Jason abriu a papeleta de Cedric Harring,
percorrendo com os olhos a anamnese e o exame físico. Com exceção dos hábitos de vida
pouco sadios do paciente, nada havia digno de nota. Voltando ao eletrocardiograma e ao ECG
de esforço, Jason examinou atentamente o traçado do registro, procurando por algum sinal de
desastre iminente. Mesmo agora, armado de um olho crítico muito atento, não conseguiu
encontrar nada.
Claudia voltou e abriu a porta sem bater. Jason pôde ouvir a voz lamentosa de Sally
dizendo: “Claudia…” Mas Claudia fechou a porta atrás de si, ignorando Sally, e aproximou-se
da mesa de Jason. Colocou diante dele os prontuários de Briggs e Connoly.
– Os nativos estão ficando impacientes – disse ela, e voltou a sair.
Jason abriu as duas papeletas. Briggs morrera de um ataque cardíaco fulminante,
provavelmente parecido com o de Harring. A autópsia revelara extensa oclusão de todos os
vasos coronarianos, embora nada de anormal tivesse sido detectado no seu exame médico
realizado quatro semanas antes. A exemplo do que ocorrera com Harring, o ECG de esforço
de Briggs tinha sido normal. Jason sacudiu a cabeça desalentado. Era de esperar que o ECG
de esforço, com bem maiores possibilidades que o ECG simples, fosse capaz de detectar
essas anomalias potencialmente fatais. Se isso não acontecia, tudo levava a crer que o exame
médico executivo era uma tarefa inútil. Além de não estar conseguindo detectar esses
problemas graves, ele dava aos pacientes uma falsa sensação de segurança. Com os resultados
normais, os pacientes não se sentiam motivados para mudar seus hábitos de vida malsãos.
Briggs, assim como Harring, tinha 56 anos, fumava muito e nunca praticava exercícios.
O segundo paciente, Rupert Connoly, falecera de um acidente vascular cerebral
fulminante. Também neste caso, a morte viera pouco tempo depois de um exame médico tipo


executivo, que, a exemplo dos outros, não revelara nenhuma anormalidade alarmante. Além de
levar uma vida de modo geral nada saudável, Connoly bebia muito, embora não fosse um
alcoólatra. Jason estava para fechar a papeleta quando notou algo que não percebera antes. No
relatório da autópsia, o patologista registrava importante desenvolvimento de catarata.
Achando que não se lembrava corretamente da idade do homem, Jason voltou à página onde
estavam os dados da identificação do paciente. Connoly tinha apenas 58 anos. Claro, não
constitui surpresa o surgimento de catarata numa pessoa de 58 anos de idade, mas, sem
dúvida, é uma ocorrência rara. Voltando aos dados do exame clínico, Jason resolveu verificar
se ele próprio havia notado a catarata. Constatou, embaraçado, que não incluíra essa
anomalia, tendo diagnosticado olhos, ouvido, nariz e garganta como dentro dos limites
normais. Jason chegou a especular se não estaria ficando esquecido na sua idade de “velho”.
Mas então percebeu que, quanto às retinas do paciente, havia-as descrito também como de
aspecto normal. Para poder visualizá-las evidentemente Jason tinha que ter enxergado através
da catarata. Sabia de suas limitações nesse aspecto, pois não era oftalmologista. Pôs-se a
pensar se determinados tipos de catarata impediriam, mais que outros, a passagem da luz.
Acrescentou esta pergunta à sua lista mental de coisas a investigar.
Empilhou as papeletas. Três homens evidentemente sadios tinham morrido um mês
depois de um checkup. Meu Deus, pensou ele. As pessoas tinham tanto medo de entrar num
hospital. Do jeito que as coisas estavam indo, as pessoas talvez viessem a fugir de qualquer
checkup.
Recolhendo as três papeletas, Jason saiu de seu consultório. Viu Sally levantar-se junto
à mesa na área central e olhá-lo de um modo ansioso. Ele fez um sinal de “dois minutos” ao
passar pelo recinto do salão de espera. Passou por vários pacientes seus conhecidos,
dispensando-lhes um aceno de cabeça ou um sorriso. Entrou na sala que dava para o
consultório de Roger Wanamaker. Roger era um clínico geral que se especializara em
cardiologia; seus pareceres eram muito respeitados por Jason. Nesse momento ele saía de uma
das salas de exame. Roger era um homem obeso, com uma cara que lembrava um sabujo
velho, com barbelas e pele sobrando.
– Que tal uma consulta aqui mesmo? – perguntou Jason.
– Eu topo – brincou Roger. – Qual é o problema? Jason seguiu o colega até seu
consultório em desordem.
– Infelizmente, algumas provas muito embaraçosas. – Jason abriu os prontuários de seus
três pacientes na parte dos eletrocardiogramas e colocou-os diante de Roger. – Eu tenho até
vergonha de discutir isso, mas o fato é que três pacientes meus, de meia-idade, morreram
pouco tempo depois de terem sido submetidos a exames médicos que mostraram um estado de
saúde bastante bom. Um morreu hoje. Ruptura cardíaca após um infarto maciço. Eu realizei
seu exame há três semanas. É este aqui. Mesmo sabendo o que sei agora, não consigo
encontrar o mais remoto sinal de que houvesse algum problema ou algum traçado anormal. O
que você acha?
Houve uns momentos de silêncio enquanto Roger analisava os eletrocardiogramas.
– Bem-vindo ao clube – disse ele finalmente.
– Clube?
– Estes eletrocardiogramas estão bons. – disse Roger. – Todos nós temos tido a mesma
experiência. Tive quatro casos assim nestes últimos meses. Se fôssemos publicar o que se tem


encontrado, cada um de nós teria pelo menos um ou dois casos.
– E por que não se publicam esses casos?
– Diga-me uma coisa – começou Roger, meio sem graça. – Você por acaso publicou a
sua experiência? Esse é um assunto sujo. O melhor é não dar atenção a isso. Mas você está na
função de chefe de serviço. Por que não convoca uma reunião?
Jason assentiu pensativamente. Sob a égide da administração executada pela GHP, que
tomava todas as principais decisões organizacionais, chefe de serviço não era um cargo
desejável. Nele se revezavam todos os clínicos gerais, um ano cada um; e havia dois meses
que essa responsabilidade caíra sobre os ombros de Jason.
– Acho que devo fazer isso – disse Jason, pegando suas papeletas de cima da mesa de
Roger. – Se não for por outra coisa, pelo menos os outros médicos devem saber que não estão
sozinhos se tiverem tido a mesma experiência.
– Isso parece acertado – concordou Roger. E levantou-se com seu corpo enorme. – Mas
não espere que todos sejam tão francos como você.
Jason dirigiu-se para a mesa central, fazendo um sinal a Sally para mandar entrar o
primeiro paciente. Sally providenciou de imediato. Ele então dirigiu-se a Claudia.
– Claudia, preciso de um favor. Quero que você faça uma lista de todos os exames
médicos que eu realizei de um ano para cá; traga todos os prontuários correspondentes e
verifique o estado de saúde dessas pessoas. Quero ter a certeza de que nenhum dos outros teve
problemas graves. Aparentemente alguns dos outros médicos têm experimentado situações
parecidas. Acho que é algo que precisamos pesquisar.
– Vai ser uma lista grande – avisou Claudia.
Jason sabia disso. No desejo de promover o que chamava medicina preventiva, o GHP
vinha defendendo com grande empenho a realização desses exames de saúde e checkup, e
havia dinamizado o processo no sentido de angariar o maior número de clientes para isso.
Jason sabia que realizava, por semana, em média, cinco a dez desses exames.
Nas horas que se seguiram, Jason dedicou-se a atender seus pacientes, que lhe
apresentavam uma interminável série de problemas e queixas. Sally não parava, enchendo as
salas de exame mal o paciente anterior saía. Deixando de almoçar, Jason realmente conseguiu
recuperar tempo.
Pelo meio da tarde, quando Jason voltava de uma das salas de tratamento, onde fora
fazer uma sigmoidoscopia num paciente portador de colite ulcerativa recorrente, Claudia
chamou sua atenção e fez-lhe sinal para ir à mesa central. Claudia mostrava um sorriso
matreiro quando Jason se aproximou. Ele concluiu que alguma coisa estava em ebulição.
– Uma ilustre visita para o senhor – falou Claudia, apertando os lábios.
– Quem? – perguntou Jason, de imediato perscrutan-do a sala de espera adjacente.
– Ele está no seu consultório – disse Claudia.
Jason olhou em direção ao seu consultório. A porta estava fechada. Não era hábito de
Claudia instalar alguém dessa maneira na sala de Jason. Tornou a olhar para sua secretária.
– Claudia? – indagou, prolongando o nome dela como se tivesse mais sílabas do que
tinha. – Como é que você deixa alguém entrar no meu consultório?
– Ele insistiu – disse Claudia –, e quem sou eu para impedir?
Evidentemente, fosse quem fosse, essa pessoa devia ter obrigado Claudia a ceder. Jason
a conhecia bem nesse aspecto. E quem quer que fosse essa visita, devia ser alguém com certa


autoridade dentro do Good Health Plan. Mas Jason estava cansado para continuar essa
brincadeira.
– E então, vai dizer quem é, ou será que devo mesmo ter uma surpresa?
– Dr. Alvin Hayes – disse Claudia. Ela piscou o olho e deu um sorriso brincalhão.
Agnes, a secretária que trabalhava com Roger, conteve o riso.
Jason fez um sinal de contrariedade e dirigiu-se para sua sala. Uma visita do Dr. Alvin
era um acontecimento fora do comum. Esse médico era um pesquisador famoso, contratado
pelo GHP para promover a imagem da organização. Sua situação era parecida com a da
contratação do Dr. William DeVries, o famoso cirurgião que criara o coração artificial, e que
trabalhava para a Humana Corporation. O Good Health Plan era uma organização de
manutenção da saúde, e não apoiava a pesquisa em si, mas contratara o Dr. Alvin Hayes,
mediante um salário fantástico, para expandir e melhorar a imagem da empresa, especialmente
na comunidade científica de Boston. Afinal de contas, o Dr. Hayes era um cientista da área de
biologia molecular, tinha renome internacional, e aparecera na capa da revista Time depois
que desenvolvera um método para produzir o hormônio do crescimento do homem a partir da
tecnologia do ADN recombinante. O hormônio do crescimento que ele conseguira produzir era
exatamente igual à variedade humana desse hormônio. Tentativas anteriores haviam resultado
num hormônio que era semelhante, mas não exatamente o mesmo. Esse avanço havia sido
considerado extremamente importante.
Jason chegou ao seu consultório e abriu a porta. Não conseguiu entender o motivo da
visita do Dr. Hayes, que simplesmente o ignorava desde o dia em que fora contratado, um ano
antes, apesar de ambos terem sido colegas na mesma turma na Faculdade de Medicina de
Harvard. Depois que se formaram, cada um seguira seu próprio caminho, mas quando Alvin
Hayes fora contratado pelo GHP, Jason procurara pessoalmente o colega e lhe dera as boasvindas. Mas Hayes se mantivera distante, obviamente deslumbrado com seu próprio status de
celebridade e visivelmente depreciara a decisão de Jason de ficar fazendo clínica geral.
Exceto quanto a alguns encontros casuais, um ignorava o outro. Na realidade, Hayes ignorava
a todos no GHP, tornando-se cada vez mais o que as pessoas denominavam “cientista louco”.
Tinha mesmo chegado a uma extrema negligência com seu aspecto pessoal, usando roupas
muito folgadas e amarrotadas e deixando o cabelo desgrenhado e comprido, como se fosse um
retorno aos turbulentos anos 60. Embora as pessoas falassem e reparassem, e ele tivesse
poucos amigos, mesmo assim todos o respeitavam. Hayes trabalhava longas horas e produzia
uma incrível quantidade de trabalhos e artigos científicos.
Alvin Hayes estava estirado numa das poltronas diante da antiquada mesa de Jason.
Hayes tinha mais ou menos a mesma altura de Jason, um rosto rechonchudo de menino, e sua
cabeleira desalinhada pendia dos lados do rosto, que parecia mais pálido que nunca. Ele
sempre ostentava aquela particular palidez dos acadêmicos, característica dos cientistas que
passam o tempo todo dentro de laboratórios. Mas o olho clínico de Jason notou uma
intensificação da cor amarelada e também flacidez que davam a Hayes um aspecto doentio de
visível exaustão. Jason indagou-se se seria uma visita profissional.
– Desculpe incomodá-lo – disse Hayes, fazendo um esforço para se pôr de pé. – Sei
que deve estar ocupado.
– Absolutamente – mentiu Jason, dando a volta à escrivaninha e sentando-se. Tirou o
estetoscópio que estava pendurado em volta do pescoço. – O que podemos fazer por você? –


Hayes parecia nervoso e cansado, como se não tivesse dormido fazia vários dias.
– Preciso conversar com você – ele disse, baixando a voz e inclinando-se para a frente,
com um jeito confidencial.
Jason recuou um pouco na sua cadeira. O hálito de Hayes era fétido, e seus olhos tinham
uma aparência vítrea, desfocada, o que lhe dava um certo ar de pessoa louca. Seu avental
branco, que usava em laboratório, estava amarfanhado e manchado; as mangas arregaçadas até
acima dos cotovelos. O relógio lhe ficava tão frouxo no pulso que Jason se perguntou como
conseguia não perdê-lo.
– Pois diga o que o está preocupando.
Hayes inclinou-se ainda mais para a frente, e seus dedos repousaram no mata-borrão de
Jason. Murmurou:
– Aqui não. Quero conversar com você hoje à noite. Fora do GHP.
Por uns momentos, houve um silêncio tenso. O comportamento de Hayes era
visivelmente anormal, e Jason ficou imaginando se devia tentar encaminhá-lo ao seu amigo
Patrick Quillan, que, como psiquiatra, poderia ajudá-lo de forma mais efetiva. Se Hayes
desejava conversar longe do hospital, essa conversa não devia ser a respeito de sua saúde.
– É importante – acrescentou Hayes, tamborilando com os dedos impacientemente na
mesa de Jason.
– Está bem – disse Jason em seguida, receoso de que Hayes pudesse ter um acesso de
cólera caso hesitasse mais um pouco. – Que tal jantarmos juntos? – Ele desejava encontrar-se
com Hayes num lugar público.
– Está bem. Onde?
– Qualquer lugar. – Jason encolheu os ombros. – Que tal o North End, onde há comida
italiana?
– Ótimo. Quando e onde?
Jason lembrou-se dos diversos restaurantes que conhecia no bairro de North End, em
Boston, um conjunto de ruas tortuosas que fazem a pessoa sentir-se misteriosamente
transplantada para a Itália meridional.
– Que tal o Carbonara? – sugeriu ele. – É na Rachel Revere Square, em frente à Paul
Revere House.
– Eu conheço – disse Hayes. – A que horas?
– Oito?
– Está muito bem. – Hayes levantou-se e saiu caminhando com passos um tanto
inseguros em direção à porta. – E não convide ninguém mais. Quero conversar com você a
sós. – Sem esperar por uma resposta, saiu, fechando a porta atrás de si.
Jason sacudiu a cabeça, surpreso, e retornou a seus pacientes.
Dentro de alguns minutos, estava novamente absorto no seu trabalho, e sumiu-lhe no
inconsciente o estranho encontro com Hayes. A tarde transcorreu sem surpresas
desagradáveis. Pelo menos os seus pacientes ambulatoriais pareciam estar passando bem e
reagindo favoravelmente aos medicamentos que prescrevera. Isso deu-lhe um novo ânimo e
confiança, depois do revés representado pelo caso de Harring. Faltando atender ainda mais
dois pacientes, Jason cruzou pela sala de espera, depois de haver realizado uma pequena
intervenção cirúrgica em uma das salas de tratamento. Justamente quando ia entrar em seu
consultório para registrar a pequena cirurgia, notou Shirley Montgomery inclinada sobre a


mesa central e conversando com as secretárias. Dentro do ambiente do hospital, Shirley se
destacava como a Cinderela no baile. Contrastando com as demais mulheres, que vestiam saia
e blusa brancas ou um terninho branco, Shirley usava um conservador vestido de seda, que
tentava em vão esconder suas formas atraentes. Embora fossem poucas as pessoas que
pudessem prever quando iriam encontrá-la, Shirley era a funcionária executiva chefe de toda a
organização do Good Health Plan. Além de ser tão atraente quanto uma modelo, tinha diploma
de doutorado em administração hospitalar pela Colúmbia e mestrado na Harvard Business
School.
Com seus atributos físicos e psicológicos, Shirley poderia ser uma pessoa temível mas
não era. Extrovertida e sensível, dava-se bem com todos: pessoal da manutenção, secretárias,
enfermeiras e até mesmo os cirurgiões. Shirley Montgomery tinha o mérito pessoal de ter
contribuído em grande parte para o espírito de união existente no GHP, mantendo-o unido e
fazendo-o funcionar em harmonia.
Quando ela viu Jason, pediu licença às secretárias e afastou-se, encaminhando-se na
direção dele com a naturalidade e a graça de uma dançarina. Seu cabelo castanho e abundante
estava penteado para trás e também caía para o lado em espessa madeixa. Sua maquiagem era
tão bem-feita que ela nem parecia estar maquiada. Seus grandes olhos azuis tinham um brilho
inteligente.
– Com licença, Dr. Howard – disse ela, de um modo formal. No canto de seus lábios
pairava o leve sinal de um sorriso. Sem que a equipe do hospital soubesse, Shirley e Jason já
se haviam encontrado várias vezes, nos últimos meses, em ocasiões sociais. Isso havia
começado durante um dos encontros semestrais da equipe hospitalar, quando se encontraram
no coquetel. Assim que soube que o marido dela morrera recentemente de câncer, Jason sentiu
formar-se um vínculo imediato.
Durante o jantar que se seguira, ela contara a Jason que, num dia de manhã, três anos
atrás, o marido dela acordara com forte dor de cabeça. Dentro de poucos meses, ele morreria
de um tumor cerebral, resistente a qualquer tipo de tratamento. Naquela época, ambos
trabalhavam na Humana Hospital Corporation. Depois, tal como Jason, ela também se vira
compelida a mudar-se e viera para Boston. Quando contara a Jason essa história, acabara
impressionando-o tão profundamente que ele rompera seu próprio muro de silêncio. Nessa
mesma noite conversaram sobre a angústia que ele havia passado em decorrência do acidente
e morte da esposa.
Passagens tão semelhantes em suas vidas concorreram para aproximá-los; Jason e
Shirley começaram um relacionamento que de certo modo pairava entre a amizade e o namoro.
Um sabia que o outro se mantinha cauteloso em suas emoções, num certo grau, e não iria
se decidir muito rapidamente. Jason ficou surpreso. Ela nunca o havia procurado da maneira
como o fazia agora. Habitualmente, ele tinha apenas uma noção muito vaga do que se passava
no interior da mente sempre ativa de Shirley. Sob muitos aspectos, ela era a mulher mais
complexa que ele já havia encontrado.
– Posso ajudar em alguma coisa? – perguntou ele, procurando captar algum indício do
que ela pretendia.
– Naturalmente você deve estar ocupado, mas fiquei pensando se não estaria livre hoje
à noite. – Ela baixou a voz, voltando as costas para o olhar insistente de Claudia. – Terei um
jantar, uma festa inesperada, com alguns conhecidos da Harvard Business School. Eu gostaria


que você participasse. Que acha?
Imediatamente Jason lamentou haver feito planos para ir jantar com Alvin Hayes. Bem
que podia ter combinado encontrar-se com Hayes só para uns drinques.
– Sei que você precisa de tempo para pensar um pouco – acrescentou Shirley
percebendo a hesitação em Jason.
– Não é esse o problema. A dificuldade é que prometi sair para jantar com Alvin
Hayes.
– O nosso Dr. Hayes? – perguntou Shirley, visivelmente surpresa.
– Ele mesmo. Sei que isso parece estranho, mas ele me pareceu muito perturbado. E
embora não tivesse sido amistoso, fiquei com pena dele. O jantar foi sugestão minha.
– Droga! – praguejou Shirley. – Você iria gostar do grupo. Bom, numa próxima vez…
– O convite é bom, fica para uma oportunidade melhor – disse Jason. Ela estava para
sair quando ele se lembrou da conversa que tivera com Roger Wanamaker. – Provavelmente
terei de lhe dizer que vou convocar uma reunião de todo o pessoal. Alguns pacientes têm
morrido de doença coronariana que os nossos exames não puderam detectar. Como atual chefe
de serviço, parece-me que devo investigar isso. Uma pessoa faleceu menos de um mês depois
de um exame de saúde em que foi dada como sadia; isso é o tipo de coisa que pode nos
comprometer.
– Por Deus! – exclamou Shirley. – Não vá espalhar um comentário desses por aí.
– Bom, não deixa de ser preocupante ver uma pessoa que examinamos com todos os
recursos técnicos e declaramos essencialmente sadia de repente voltar ao hospital
apresentando um estado clínico catastrófico e morrer. O objetivo do exame médico executivo
é justamente evitar que isso aconteça. Penso que deveríamos procurar aumentar a
sensibilidade dos nossos testes de esforço.
– Excelente objetivo – concordou Shirley. – Só lhe peço que mantenha isso em sigilo.
Nossos exames médicos executivos têm um papel importante na campanha que estamos
desenvolvendo para angariar clientes de algumas grandes empresas desta região. Vamos
manter isso como assunto interno do hospital.
– Sem dúvida – disse Jason. – Lamento não poder sair com você hoje à noite.
– Eu também lamento – disse Shirley, baixando a voz. – Mas não sabia que o Dr. Hayes
era dado a programas desse tipo. O que há com ele?
– Isso é um mistério para mim – admitiu Jason –, mas depois eu lhe conto.
– Eu lhe agradeço – disse Shirley. – Foi por minha causa principalmente que o GHP
contratou o homem. Sinto-me com responsabilidade nisso. Espero que possa conversar com
você em breve. – Ela afastou-se, sorrindo para o paciente que estava por perto.
Jason ficou olhando-a por um momento, e então percebeu que Claudia o olhava. Com
um jeito culpado, ela baixou os olhos para o seu trabalho. Jason se perguntou se o segredo não
estava sendo divulgado. Com um movimento de ombros, voltou para atender os seus dois
últimos pacientes.


2
O fim do outono em Boston era uma época estimulante para Jason, apesar do rigoroso
inverno que prenunciava. Usando um chapéu estilo Indiana Jones e vestindo uma capa
impermeável Burberry bastante usada, ele estava adequadamente protegido da noite fria de
outubro.
Rajadas de vento arrastavam folhas de olmo amareladas em torno dos pés de Jason à
medida que ele subia com esforço a Mt. Vernon Street e cruzava pela passagem entre pilotis
sob à State House. Atravessou a alameda do Government Center, contornou o Faneuil Hall
Marketplace, com seus artistas performáticos de rua, e entrou em North End, onde ficava a
Little Italy de Boston. Por toda parte havia gente. Homens parados nas esquinas conversando
com gestos animados; mulheres debruçadas nas janelas e conversando com suas amigas do
outro lado da rua. O ar enchia-se dos cheiros de café moído e de comidas com sabor de
amêndoa. Esse lugar era como a Itália, uma delícia para os sentidos.
Dois quarteirões além da Hanover Street, Jason dobrou à direita e logo se viu perto da
modesta casa de madeira de Paul Revere. A praça pavimentada com pequenas pedras
redondas era circundada por uma pesada corrente naval de cor preta, pendente entre pilares de
ferro. Bem em frente da casa de Paul Revere localizava-se o Carbonara, um dos restaurantes
preferidos de Jason. Havia nessa praça dois outros restaurantes, mas nenhum deles era tão
bom quanto o Carbonara. Jason subiu os degraus que davam acesso à porta da frente e foi
saudado pelo maitre, que o levou até sua mesa junto a uma das janelas da frente, que
proporcionava uma vista da graciosa e velha praça. À semelhança de muitos outros locais de
Boston, ali o cenário parecia um tanto irreal, como se fosse o local para uma filmagem.
Jason pediu uma garrafa de vinho branco Gavi e ficou beliscando uma ou outra coisa do
couvert enquanto aguardava a chegada de Hayes. Dentro de dez minutos, um táxi se aproximou
e parou, dele desembarcando Hayes. Por uns momentos após o táxi ter ido embora, o homem
permaneceu parado na calçada e ficou olhando atentamente em direção à North Street, de onde
viera. Jason olhava a cena, perguntando-se o que estaria o homem esperando. Este, por fim,
voltou-se e entrou no restaurante.
Enquanto o maitre acompanhava Hayes até a mesa, Jason observou como o seu colega
parecia deslocado naquele ambiente distinto e entre aqueles clientes elegantemente vestidos.
Em lugar de seu manchado avental de laboratório, Hayes usava agora um paletó de tweed
muito folgado e com uma cotoveleira meio descosida. Parecia ter dificuldade de caminhar, e
Jason se perguntou se ele não teria bebido.
Sem dar importância à presença de Jason, Hayes deixou-se cair na cadeira vazia e ficou
olhando fixamente através da janela, novamente perscrutando a North Street. Apareceu na rua
um casal, andando de braço dado. Hayes ficou observando o casal até que a dupla
desaparecesse de vista na Prince Street. Seus olhos ainda conservavam um aspecto baço, e
Jason observou uma teia de novos capilares avermelhados que se ramificavam na superfície
do nariz como uma aranha. Sua pele era pálida como o marfim, não muito diferente da pele de
Harring quando Jason o examinara na unidade de tratamento coronariano. Tudo indicava que
Hayes não estava bem.
Remexendo num dos bolsos volumosos de seu paletó de tweed, Hayes encontrou um


maço amarrotado de cigarros Camel sem filtro. Acendeu um com mãos trêmulas e disse, com
um brilho nos olhos, evidenciando alguma emoção intensa.
– Alguém está me seguindo. Jason sabia bem como reagir.
– Tem certeza?
– Não há dúvida – disse Hayes, puxando uma longa tragada do seu cigarro. Uma brasa
acesa caiu sobre a toalha branca da mesa. – Um sujeito moreno, bem-apessoado e bemvestido, um estrangeiro – acrescentou ele, com um tom sinistro.
– Isso o deixa preocupado? – perguntou Jason, tentando bancar o psiquiatra.
Aparentemente, acima de qualquer outra coisa, Hayes apresentava uma paranóia aguda.
– Mas é claro que sim – exclamou Hayes em voz alta. Algumas cabeças já se voltavam,
e Hayes baixou a voz. – Você não ficaria preocupado se alguém estivesse querendo matá-lo?
– Matá-lo? – Jason repetiu a pergunta, agora com a certeza de que Hayes enlouquecera.
– Certeza absoluta. E a meu filho também.
– Eu não sabia que você tinha um filho – disse Jason. Na verdade, não sabia nem
mesmo se Hayes era casado. No hospital comentava-se que Hayes freqüentava discotecas nas
poucas vezes em que saía para se distrair.
Hayes apagou o cigarro no cinzeiro, praguejou em voz baixa e acendeu outro, soprando
a fumaça para longe em baforadas curtas e nervosas. Jason compreendeu que Hayes estava no
ponto de ruptura e que era preciso ter uma conduta cautelosa. O homem estava prestes a
descompensar.
– Desculpe-me se dou a impressão de não estar entendendo – disse Jason –, mas eu
gostaria de ajudar. Suponho que é por isso que você quer conversar comigo. Sinceramente,
Alvin, parece que você não está bem.
Hayes encostou o dorso do pulso direito na testa, mantendo o cotovelo sobre a mesa. O
cigarro aceso estava perigosamente perto de sua cabeleira despenteada. Jason sentiu-se
tentado a afastar ou o cigarro ou a cabeleira; não queria que o homem pegasse fogo como uma
pira. Mas não fez nem uma coisa nem outra, receoso diante do estado de perturbação de
Hayes.
– O que os senhores gostariam de pedir? – perguntou um garçom que se aproximara
silenciosamente da mesa.
– Pelo amor de Deus! – rosnou Hayes, levantando a cabeça. – Não vê que estamos
conversando?
– Desculpe-me, senhor – disse o garçom, inclinando-se e afastando-se.
Tendo respirado profundamente, Hayes tornou a voltar sua atenção para Jason.
– Então, parece que não estou bem?
– Isso mesmo. A sua cor não está boa, e parece que você está exausto e também
perturbado.
– Ah, o clínico clarividente! – falou Hayes num tom de sarcasmo. E depois acrescentou:
– Desculpe, não pretendo ser desagradável. Você tem razão. Não estou me sentindo bem. Na
realidade, estou me sentindo terrivelmente mal.
– Qual é o problema?
– É tudo, simplesmente. Artrite, perturbações gastrintestinais, visão turva. Pele seca
também. Meus tornozelos comicham tanto que estão me deixando louco. Meu corpo está
literalmente se despedaçando.


– Talvez fosse melhor termos o encontro no meu consultório – disse Jason. – Pode ser
que eu tenha de fazer um exame completo em você.
– Talvez mais tarde, mas não foi por isso que eu quis ter este encontro com você. Pode
ser que seja muito tarde para mim, de qualquer modo, mas se eu pudesse salvar meu filho… –
Interrompeu-se, apontando para fora da janela. – Lá está ele!
Voltando-se na sua cadeira, Jason ainda pôde divisar uma pessoa desaparecendo na
North Street. Virando-se para Hayes, Jason perguntou:
– Como é que você pôde ver que era ele?
– Ele vem me seguindo desde o momento em que saí do GHP. Acho que ele planeja me
matar.
Não tendo como distinguir entre o fato e o delírio, Jason pôs-se a estudar o seu colega.
O homem estava agindo de maneira estranha, para dizer o mínimo, mas também ecoou no
cérebro de Jason o velho lembrete: “Até mesmo os paranóides têm inimigos.” Talvez alguém
estivesse realmente seguindo Hayes. Jason tirou do balde de gelo a garrafa de Gavi resfriada,
serviu vinho no copo de Hayes e encheu o seu próprio.
– Talvez fosse melhor você me contar toda a história direitinho.
Depois de beber o vinho de um só gole como se fosse um trago de aguardente, Hayes
enxugou os lábios com o dorso da mão.
– É uma história tão esquisita… Que tal um pouco mais de vinho?
Jason tornou a encher o copo de Hayes enquanto este continuou a falar.
– Acho que você não sabe muita coisa sobre o meu interesse na pesquisa…
– Tenho alguma idéia.
– Crescimento e desenvolvimento – disse Hayes. – O modo como os genes são ativados
e desativados. Por exemplo, a puberdade; o que é que ativa os genes correspondentes. A
solução desse problema seria uma conquista importante. Não só nós potencialmente
influenciaríamos o crescimento e o desenvolvimento, como também provavelmente seríamos
capazes de desativar ou “desligar” os cânceres, ou, após infartos do miocárdio, ativar a
divisão celular para produzir músculo cardíaco novo. De qualquer modo, em termos
simplificados, a ativação e a desativação dos genes do crescimento e do desenvolvimento têm
sido o objeto de meu principal interesse. Mas como acontece tantas vezes em pesquisas, o
inesperado também desempenhou seu papel. Há uns quatro meses, no decorrer de minhas
pesquisas, deparei com uma descoberta inesperada, irônica mas assombrosa. Estou falando de
uma importante descoberta científica. Acredite-me: é material para um Nobel.
Jason estava propenso a suspender sua descrença, mas mesmo assim ficou imaginando
se Hayes, com sua paranóia, não estaria apresentando sintomas de um delírio de grandeza.
– Qual foi a sua descoberta?
– Só um momento – disse Hayes. Colocou o cigarro no cinzeiro e apertou a mão direita
contra o peito.
– Está tudo bem com você? – perguntou Jason. Pareceu que Hayes passava a apresentar
uma cor um tanto mais cinzenta, e uma fileira de bagas de suor apareceu-lhe na linha de
implantação dos cabelos.
– Estou bem – tranqüilizou-o Hayes. Deixou a mão cair sobre a mesa. – Eu não
publiquei essa descoberta porque compreendi que ela é o primeiro passo em direção a uma
descoberta ainda maior. Estou falando de algo equivalente aos antibióticos ou à estrutura


helicoidal do ADN. Minha excitação é tão grande que tenho trabalhado ininterruptamente, 24
horas por dia. Mas aí verifiquei que minha descoberta original já não era mais um segredo.
Que ela estava sendo utilizada. Quando suspeitei disso, eu… – Hayes parou no meio da frase.
Olhou fixamente para Jason, com uma expressão que inicialmente foi de confusão mas que
logo se transformou em medo.
– Alvin, qual é o problema? – perguntou Jason. Hayes não respondeu. Sua mão direita
novamente estava apertada contra o peito. Um gemido escapou de seus lábios, depois ambas
as mãos se estenderam e agarraram a toalha da mesa, puxando-a em sua direção. Os copos de
vinho tombaram. Hayes tentou pôr-se de pé, mas não conseguiu mais. Com uma violenta tosse
e sufocação, vomitou um jato de sangue por sobre a mesa, até o outro lado, empapando a
toalha e respingando Jason, que pulou para trás, derrubando a cadeira. O sangue não parou.
Vinha em borbotões sucessivos, salpicando tudo ao redor, enquanto os fregueses nas mesas
próximas começavam a gritar.
Como médico, Jason sabia o que estava acontecendo. O sangue era vermelho vivo e
literalmente estava sendo bombeado para fora da boca de Hayes. Isso significava que vinha
diretamente do coração. Nos segundos que se seguiram, Hayes permaneceu hirto na sua
cadeira, enquanto em seus olhos a confusão e a dor tomavam o lugar do medo. Jason contornou
a mesa e segurou-o pelos ombros. Infelizmente não havia como estancar o fluxo de sangue.
Hayes ou ia ficar exangue ou morreria sufocado. Não havia nada que Jason pudesse fazer,
exceto segurar o homem à medida que a vida o abandonava.
Quando o corpo de Hayes se tornou flácido, Jason distendeu-o no chão. Embora o
corpo humano contenha aproximadamente pouco mais de cinco litros de sangue, a quantidade
que se via sobre a mesa e no chão parecia consideravelmente maior. Jason voltou-se para uma
mesa próxima que tinha sido esvaziada e pegou um guardanapo para limpar as mãos.
Pela primeira vez desde o início da tragédia, Jason tomou consciência do ambiente. Os
outros fregueses do restaurante tinham se afastado apressadamente de suas mesas, reunindo-se
na outra extremidade do salão. Infelizmente, algumas pessoas estavam se sentindo mal.
O maitre, ele próprio, estava com uma cor muito pálida e tentava tomar alguma
providência.
– Eu chamei uma ambulância – foi o que ele conseguiu dizer através de uma das mãos,
com que tampava a boca para não vomitar.
Jason baixou os olhos para Hayes. Sem uma sala cirúrgica imediatamente próxima, com
máquina coração-pulmão, ajustada e pronta para funcionar, não havia nenhuma possibilidade
de salvá-lo. A essa altura, uma ambulância era inútil. Mas pelo menos podia levar o corpo
embora. Olhando mais uma vez para o corpo imóvel, Jason concluiu que o colega devia ter
morrido de câncer de pulmão. Um tumor podia ter causado erosão na aorta, provocando o
sangramento. Ironicamente, o cigarro de Hayes ainda estava aceso na beirada do cinzeiro,
agora inundado de sangue espumoso. Um fio de fumaça subia vagarosamente até o teto.
Jason ouviu, ao longe, o som alternante de uma ambulância que se aproximava. Mas
antes que esta chegasse, um carro de patrulha da polícia, com uma luz intermitente azul, parou
em frente ao restaurante, e dois policiais uniformizados entraram apressadamente no salão.
Ambos pararam assim que viram a cena de sangue. O mais jovem, Peter Carbo, um rapaz de
cabelos louros, aparentando uns dezenove anos, imediatamente empalideceu. Seu
companheiro, Jeff Mario, imediatamente lhe determinou que tomasse informações com os


fregueses. Jeff Mario tinha a idade de Jason, dois anos a mais ou a menos.
– Mas o que foi que aconteceu? – perguntou ele, estarrecido com a quantidade de
sangue.
– Eu sou médico – apresentou-se Jason. – O homem está morto. Esvaiu-se em sangue.
Não se pôde fazer nada.
Depois de haver se inclinado sobre o corpo de Hayes, Jeff Mario cuidadosamente
tomou-lhe o pulso. Certificando-se da morte, levantou-se e voltou sua atenção para Jason.
– Era amigo dele?
– Mais propriamente colega – falou Jason. – Ele e eu trabalhamos para o Good Health
Plan.
– Ele era médico também? – perguntou Jeff Mario, apontando com o polegar em direção
a Hayes.
Jason fez um gesto afirmativo.
– Ele estava doente?
– Não tenho certeza – disse Jason. – Mas se eu tivesse que apontar uma doença, diria
que era câncer. Mas não estou certo.
Jeff Mario tirou do bolso uma pequena caderneta e um lápis. Abriu a caderneta.
– Qual é o nome desse homem?
– Alvin Hayes.
– O Sr. Hayes tem família?
– Acho que sim – disse Jason. – Para dizer a verdade, eu não sei muita coisa a respeito
da vida particular dele. Ele mencionou que tinha um filho, por isso eu suponho que tenha
família.
– O senhor sabe o endereço da casa dele?
– Infelizmente não.
O policial Mario ficou olhando Jason uns momentos mais, depois inclinou-se e
examinou minuciosamente os bolsos de Hayes, encontrando uma carteira. Achou também
cartões de crédito.
– Este camarada não tem carteira de motorista – disse Jeff Mario. Olhou para Jason em
busca de confirmação.
– Isso eu não saberia dizer. – Jason sentiu que começava a tremer. Agora o horror do
episódio começava a afetá-lo.
O som da ambulância, que se tornava progressivamente mais forte, cessou do lado de
fora das janelas. Havia agora uma luz intermitente vermelha ao lado da azul da polícia. Dentro
de uns instantes dois funcionários uniformizados do pronto-socorro entraram no salão do
restaurante, um deles carregando uma espécie de maleta metálica parecida com uma caixa de
ferramentas. Dirigiram-se diretamente ao corpo de Hayes.
– Este senhor é médico – disse Jeff Mario, apontando com o lápis para Jason. – Ele
disse que o homem está morto. E que teve sangramento em conseqüência de câncer.
– Não tenho certeza se foi câncer – falou Jason. Sua voz saiu mais aguda do que ele
desejava. Agora tremia visivelmente, e por isso juntou as mãos firmemente.
Os socorristas examinaram rapidamente Hayes, depois se ergueram. Aquele que
portava a maleta disse ao outro que descesse à ambulância e trouxesse a maca.
– Certo, aqui está o endereço – disse Jeff Mario, que tinha voltado a examinar a carteira


de Hayes. Encontrou um cartão. – Ele mora perto do Boston City Hospital. – Copiou o
endereço na sua caderneta. O policial mais jovem estava tomando nota dos nomes e endereços
dos circunstantes, inclusive Jason.
Quando estavam prontos para partir, Jason perguntou se podia ir junto com o corpo de
Hayes. Sentia-se mal enviando Hayes completamente sozinho ao necrotério. Os policiais
disseram que, por eles, não haveria problema nisso. Quando saíram para a praça, Jason pôde
ver que ali já se formara uma considerável multidão. Notícias assim espalhavam-se
rapidamente pelo North End, mas a multidão mantinha-se em silêncio, assustada com a
presença da morte.
Os olhos de Jason surpreenderam um homem vestido com elegância e que pareceu
tentar desaparecer ao longe na multidão. Seu aspecto era o de um homem de negócios – mais
latino-americano ou hispânico do que italiano, em especial suas roupas –, e por uns momentos
Jason até se admirou de estar percebendo esse detalhe.
Então um dos socorristas chamou:
– O senhor vem com o seu amigo? – Jason fez que sim e embarcou na ambulância pela
porta traseira. Acomodou-se num assento baixo, no lado oposto ao de Hayes, perto dos pés do
morto. Um dos socorristas ia sentado num assento parecido, mais perto da cabeça de Hayes.
Com um solavanco brusco, a ambulância partiu. Pela janela traseira Jason viu o restaurante e a
multidão desaparecerem. Quando entraram na Hanover Street, Jason teve de se segurar. A
sirene ainda não fora ligada, mas a luz piscante ainda estava funcionando. Jason podia vê-la
refletida nos vidros das vitrines.
A viagem foi curta, uns cinco minutos. O socorrista tentou puxar conversa, mas Jason
demonstrou estar preocupado. Olhando demoradamente para o corpo encoberto de Hayes,
tentou pôr em ordem suas idéias. Não conseguiu deixar de pensar que a morte estava a rondálo. Isso fez com que se sentisse estranhamente responsável por Hayes, como se o colega ainda
pudesse estar vivo se não tivesse tido a infelicidade de se encontrar com ele. Jason sabia que,
no plano racional, tais idéias eram absurdas. Mas os sentimentos nem sempre têm por base a
racionalidade.
Após um súbita curva para a esquerda, a ambulância deu marcha à ré, depois parou. A
porta traseira se abriu, e então Jason reconheceu o lugar em que estavam. Tinham chegado ao
pátio do Massachusetts General Hospital. Para Jason, esse era um lugar muito conhecido. Ali
ele fizera, anos atrás, residência em medicina interna. Jason desembarcou da ambulância. Os
dois socorristas retiraram eficientemente o corpo de Hayes e colocaram-no na maca, depois
de terem baixado as rodas desta. Em silêncio, empurraram o corpo até a sala de emergência
onde um enfermeiro da triagem os conduziu até uma sala vazia na traumatologia.
Apesar de ser médico, Jason não estava a par de todas as formalidades para lidar com
uma situação como a da morte de Hayes. Ficou um tanto surpreso por terem de passar por uma
sala de emergência, pois já não havia o que fazer por Hayes. Mas, refletindo sobre o caso,
compreendeu que era necessário comprovar e atestar formalmente a morte do colega.
Lembrou-se de que ele próprio, quando funcionário desse hospital, havia realizado esse
procedimento.
A sala de traumatologia estava montada da maneira usual, com todos os tipos de
equipamentos prontos para uso imediato. Num canto havia uma pia com torneira. Jason lavou
de suas mãos o sangue de Hayes. Num pequeno espelho acima da pia pôde ver também no seu


rosto uma grande quantidade de sangue já coagulado, que havia respingado. Depois de lavar o
rosto, enxugou-se com toalhas de papel. Havia sangue na sua capa, no peito da camisa e
também nas calças, mas, quanto a isso, pouco podia ser feito. Quando estava terminando de se
lavar, um funcionário do hospital entrou às pressas na sala com uma papeleta. Sem maior
cerimônia, puxou para baixo o lençol que cobria Hayes; a seguir, pegou no estetoscópio que
trazia em volta do pescoço. A face de Hayes parecia ter uma palidez lúgubre sob a dura luz
fluorescente.
– O senhor é parente? – perguntou o residente, com negligência, enquanto auscultava o
peito de Hayes.
Quando o residente tirou o estetoscópio dos ouvidos, Jason falou.
– Não, sou um colega. Trabalhávamos juntos no Good Health.
– Então é médico? – perguntou o residente, parecendo usar de um pouco mais de
deferência.
Jason fez que sim.
– O que aconteceu ao seu amigo? – Ele olhava dentro dos olhos de Hayes com uma
pequena lanterna oftalmoscópica.
– Morreu de hemorragia na mesa de jantar – disse Jason, sendo deliberadamente duro
por ter se sentido um tanto ofendido com a atitude insensível do residente.
– Não há dúvida, acabou-se. Está morto, não há dúvida. – E puxou o cobertor
novamente para cobrir a cabeça de Hayes.
Foi preciso Jason usar de todo o seu autocontrole para não dizer ao residente o que
pensava de sua insensibilidade; sabia que seria perda de tempo. Em vez disso, encaminhou-se
para a entrada e ficou observando a intensa atividade da sala de emergência, lembrando-se
dos seus tempos de residente. Parecia que muito tempo já se havia passado, e nada mudara
realmente.
Trinta minutos mais tarde, o corpo de Hayes foi novamente transportado em maca para a
ambulância. Jason acompanhou e observou a transferência do corpo.
– Você se importa se eu for junto? – perguntou, incerto quanto aos seus motivos,
sabendo apenas que certamente estava agindo em função do choque dos acontecimentos.
– Só estamos indo ao necrotério – disse o motorista –, mas venha, está convidado.
Quando saíam do pátio do hospital, Jason de repente se surpreendeu ao ver o que lhe
pareceu ser o mesmo homem de negócios elegantemente vestido que havia visto do lado de
fora do restaurante. Mas não acreditou muito. Provavelmente não passava de uma
coincidência. De qualquer modo, achou estranho que o rosto do homem tivesse a mesma
aparência hispânica.
Jason nunca tinha estado no instituto médico-legal da cidade. Enquanto transportavam
em maca o corpo de Hayes e passavam por portas desmanteladas e com a pintura descascada,
para deixar o cadáver na sala de depósito de cadáveres, Jason desejava não ter vindo a tal
lugar em tal ocasião. O ambiente era tão desagradável quanto sua imaginação poderia sugerirlhe. A sala de depósito de cadáveres era grande; em ambos os lados alinhavam-se portas
quadradas, como as de geladeiras, que em outras épocas tinham sido brancas. Os azulejos das
paredes e os ladrilhos do piso eram velhos, manchados, e muitos estavam rachados. Havia
uma série de macas de rodas, algumas ocupadas com cadáveres cobertos com lençóis, alguns
deles manchados de sangue. A sala toda tinha um cheiro nauseante de anti-séptico ou de peixe,


um bafio que dificultava a respiração de Jason. Um homem pesadão e rosado, que usava
avental e luvas de borracha, aproximou-se do corpo de Hayes e ajudou a transferir o cadáver
para uma das velhas e enferrujadas macas do necrotério. Em seguida, todos desapareceram
numa outra sala para despachar a papelada necessária.
Por uns minutos Jason ficou de pé na sala dos cadáveres e pensou no brusco fim da vida
de celebridade de Hayes. Depois, perseguido pela vivida imagem de sua viagem até o
hospital, por ocasião da morte de Danielle, seguiu atrás dos socorristas.
Na época em que o necrotério da cidade de Boston fora construído, meio século antes,
sua concepção fora considerada um marco artístico de seu tempo. Enquanto subia os largos
degraus que levavam às salas do andar de cima, Jason pôde observar alguns detalhes
arquitetônicos com motivos egípcios. Mas o prédio, com o passar dos anos, sofrera a ação do
tempo. Agora estava escuro, sujo e inadequado. Os horrores que ele presenciara, isto estava
além da imaginação de Jason.
Numa sala precariamente instalada, Jason encontrou os dois socorristas e o rubicundo
funcionário do necrotério. Tinham terminado de preencher a papelada e estavam rindo de
alguma coisa, totalmente esquecidos do opressivo ambiente da morte.
Jason interrompeu a conversa dos homens para perguntar se algum dos médicos-legistas
estava ali no momento.
– Sim – disse o funcionário. – A Dra. Danforth está terminando um caso de emergência
na sala de autópsias.
– Há algum lugar em que eu possa ficar esperando por ela? – perguntou Jason. Ele não
se sentia em condições de comparecer à sala de autópsias.
– Há uma biblioteca, subindo a escada – falou o funcionário. – Logo à direita da sala da
Dra. Danforth.
A biblioteca era um lugar escuro e com opressivo cheiro de coisas guardadas, com
grandes volumes encadernados dos relatórios de autópsias, datando do século XVIII. No
centro da sala havia uma grande mesa de carvalho com seis cadeiras de espaldar alto. E o
mais importante: um telefone. Depois de alguma hesitação, Jason decidiu telefonar para
Shirley. Ele sabia que ela devia estar envolvida com a festa, mas achou que desejaria saber o
que se passava.
– Jason! – exclamou ela. – Você está vindo para cá?
– Infelizmente não. Houve alguns problemas.
– Problemas?
– O que houve vai ser um choque para você – advertiu Jason. – Espero que esteja
sentada.
– Não brinque comigo – disse Shirley. Dava para notar na sua voz uma preocupação
crescente.
– Alvin Hayes morreu.
Houve uma pausa. Podia-se ouvir, ao fundo, ruído e risadas, coisa inadequada para o
momento.
– O que aconteceu?
– Não estou inteiramente certo – disse Jason, desejando poupá-la dos detalhes
horríveis. – Uma espécie de desastre em medicina interna.
– Assim como um infarto?


– Mais ou menos – disse Jason, evasivo.
– Meu Deus. Pobre Hayes!
– Você sabe alguma coisa sobre a família dele? Fui indagado a respeito e não soube
dizer nada.
– Eu também não sei muita coisa. Ele é divorciado. Tem filhos, mas acho que é a esposa
que tem a custódia. Mora em algum lugar perto de Manhattan, é só isso que eu sei. Hayes era
muito reservado em relação à sua vida pessoal.
– Desculpe incomodá-la com esse assunto agora.
– Ora, não está incomodando não. Onde você está?
– No necrotério.
– Como foi que chegou aí?
– Eu vim na ambulância junto com o corpo de Hayes.
– Eu vou até aí e apanho você.
– Não é necessário – disse Jason. – Eu tomarei um táxi depois que conseguir falar com
o médico-legista.
– Como está se sentindo? – perguntou Shirley. – Deve ter sido uma experiência
horrorosa.
– Sem dúvida – admitiu Jason. – Mas já estou melhor.
– Bem, está combinado. Passarei aí para apanhá-lo.
– Mas, e os seus convidados? – protestou Jason, meio indeciso. Sentiu-se culpado por
estragar a festa dela, mas não o suficiente para recusar o seu oferecimento. Sabia que não
estava em condições de ficar sozinho com as lembranças dessa noite.
– Eles sabem como cuidar de si mesmos – disse Shirley. – Onde você está exatamente?
Jason deu-lhe o endereço e as informações necessárias, depois desligou. Deixou a
cabeça pender entre as mãos e fechou os olhos.
– Com licença – disse uma voz grave, atenuada por um ligeiro sotaque irlandês. – O
senhor é o Dr. Jason Howard?
– Sim, sou – disse Jason, com um movimento de surpresa, endireitando-se na cadeira.
Um personagem pesadão entrou na sala. O sujeito tinha um rosto largo e olhos
empapuçados, nariz achatado e dentes quadrados. O cabelo era preto com reflexos
avermelhados.
– Sou o detetive Michael Curran, do departamento de homicídios. – E estendeu sua mão
larga e pesada.
Jason apertou-lhe a mão, perturbado com o súbito aparecimento do detetive à paisana.
Compreendeu que estava sendo estudado quando os olhos do detetive percorreram-no da
cabeça aos pés e novamente dos pés à cabeça.
– O funcionário Mario relatou que o senhor estava com a vítima – disse o detetive
Curran, puxando uma cadeira.
– O senhor está investigando a morte de Hayes?
– É só rotina – disse Curran. – Deve ter sido uma cena bastante dramática, de acordo
com a descrição de Mario. Não quero que o meu chefe depois venha me perturbar com
perguntas, no caso de haver problemas com este caso.
– Compreendo – disse Jason. Na verdade, o aparecimento do detetive Curran fez com
que Jason se lembrasse da insistência de Hayes dizendo que alguém estava tentando assassiná-


lo. Embora a morte de Hayes parecesse mais uma catástrofe natural do que um assassinato,
Jason compreendeu que, em parte, o medo manifestado por Hayes tinha sido o motivo de ter
vindo ao necrotério para averiguar a causa da morte.
– Bem – disse o detetive Curran –, farei as perguntas de costume. Na sua opinião, a
morte de Hayes era esperada? Quero dizer, ele estava doente?
– Não que eu soubesse – disse Jason –, embora, ao vê-lo hoje à tarde e novamente à
noite, eu realmente tivesse a impressão de que ele não estava bem de saúde.
As pesadas pálpebras do detetive Curran ergueram-se ligeiramente.
– O que o senhor quer dizer com isso?
– O aspecto dele era péssimo. E quando eu lhe mencionei este fato, ele mesmo admitiu
não estar se sentindo bem.
– Quais eram os sintomas? – perguntou o detetive. Ele tirou um pequeno bloco de
anotações.
– Cansaço, perturbações digestivas, dor nas juntas. Pensei que ele talvez estivesse com
febre, mas disto eu não tenho certeza.
– O que o senhor achou desses sintomas?
– Fiquei preocupado – admitiu Jason. – Disse-lhe que talvez fosse melhor nós
conversarmos no meu consultório, de maneira que eu pudesse mandar fazer uns exames. Mas
ele insistiu em que nos encontrássemos longe do hospital.
– E por que isso?
– Não tenho certeza. – Então Jason passou a descrever o que provavelmente era a
paranóia de Hayes e falou sobre a descoberta científica que ele afirmara ter feito.
Depois de ter anotado tudo isso, Curran levantou os olhos do seu bloco de anotações.
Parecia estar mais alerta.
– Que é que o senhor quer dizer com “paranóia”?
– Ele disse que alguém o estava seguindo e que pretendiam assassiná-lo e ao filho.
– Ele mencionou nomes?
– Não – falou Jason. – Para ser sincero, julguei que ele estava delirante. Seu
comportamento era bastante esquisito. Achei que ele estava prestes a descompensar.
– Descompensar? – perguntou Curran.
– Colapso nervoso – disse Jason.
– Compreendo – disse Curran, voltando ao seu bloco de anotações. Jason observava o
homem escrever. Ele tinha o curioso hábito de lamber a ponta do lápis de vez em quando.
Nesse momento um outro personagem surgiu no vão da porta. Contornando a mesa, veio
colocar-se à direita de Jason. Este e o detetive puseram-se de pé. A recém-chegada era uma
mulher baixinha e franzina que mal chegava a ter metro e meio de altura. Apresentou-se como
Dra. Danforth. Contrastando com sua estatura reduzida, sua voz ressoou forte na pequena sala.
– Sentem-se – disse ela, sorrindo para Curran, que ela evidentemente conhecia.
Jason ficou a pensar que a mulher devia estar na casa dos trinta. Os traços de sua
fisionomia eram delicados, suas sobrancelhas eram levemente arqueadas, dando-lhe uma
aparência de candura. Tinha o cabelo curto e muito encaracolado. Usava um vestido preto, de
aspecto recatado, com gola fechada. Para Jason, pareceu difícil associar a aparência pessoal
dela com a posição funcional que ocupava, como médica-legista da cidade de Boston.
– Qual é o problema? – perguntou ela, indo diretamente ao assunto. Notavam-se


círculos negros sob os olhos da médica, e Jason imaginou que ela devia ter estado trabalhando
desde o início da manhã.
O detetive Curran tamborilou no encosto da cadeira que ocupava e falou com hesitação.
– Morte súbita de um médico num restaurante em North End. Aparentemente vomitou
grande quantidade de sangue…
– Melhor seria dizer que ele tossiu o sangue – interrompeu-o Jason.
– Como assim? – perguntou o detetive Curran, inclinando-se bruscamente para diante.
Lambeu a ponta do lápis para fazer uma correção.
– Vomitar significaria que o sangue teria vindo do aparelho digestivo – disse Jason. –
Mas aquele sangue obviamente veio dos pulmões. Era sangue vermelho vivo e espumoso.
– Espumoso! Gosto dessa palavra – falou Curran. Inclinou-se sobre suas anotações,
fazendo uma correção.
– Suponho que era sangue arterial – disse a Dra. Danforth.
– É o que eu penso – disse Jason.
– Que significa…? – perguntou Curran.
– Provavelmente ruptura da aorta – respondeu Danforth. Ela mantinha as mãos postas no
regaço, como se estivesse num chá em sociedade. – A aorta é a artéria principal que sai do
coração – acrescentou, para conhecimento de Curran. – Leva sangue oxigenado para o corpo.
– Obrigado – disse Curran.
– Parece ter sido ou câncer de pulmão ou aneurisma – acrescentou Danforth. –
Aneurisma é uma dilatação anormal do vaso sangüíneo.
– Obrigado, mais uma vez – disse Curran. – Fica fácil quando as pessoas sabem que
ignoro essas coisas.
Jason teve uma recordação momentânea de Peter Falk fazendo o papel do detetive
Columbo. Tinha um bom grau de certeza de que Curran era tudo, menos um ignorante.
– O senhor concordaria, doutor? – perguntou Danforth, olhando diretamente para Jason.
– Acho mais provável câncer de pulmão – falou Jason. – Hayes era um fumante
inveterado.
– Isso reforça essa probabilidade.
– Alguma possibilidade de crime? – perguntou Curran, olhando por sob as pálpebras
pesadas para a médica-legista.
A Dra. Danforth deu uma risada curta.
– Se o diagnóstico confirmar o que penso, o único crime em jogo no caso teria sido
cometido pelo Criador, ou então pela indústria do fumo.
– Exatamente o que eu pensei – disse Curran, fechando com um piparote o seu bloco de
anotações e colocando o lápis no bolso.
– A senhora vai fazer a autópsia agora? – perguntou Jason.
– Por amor de Deus, não – disse a Dra. Danforth. – Se houvesse algum motivo urgente,
poderíamos fazer. Mas não há. De qualquer modo, vamos fazê-la amanhã cedo, na primeira
hora. Deveremos ter algumas respostas mais ou menos às dez e meia, se o senhor desejar
telefonar para saber.
Curran pôs as mãos sobre a mesa, como se estivesse pronto para se levantar. Em vez
disso, porém, disse:
– O Dr. Howard mencionou que a vítima achava que alguém estava tentando matá-lo.


Certo, doutor?
Jason concordou.
– Bem… – disse Curran –, a senhora poderia ter isso em mente quando fizer a autópsia?
– Sem dúvida – disse a Dra. Danforth. – Nós ficamos abertos a todas as possibilidades
em qualquer exame que realizamos. Faz parte do nosso trabalho. Agora, se vocês me dão
licença, eu gostaria de ir para casa. Ainda não tive nem tempo para jantar.
Jason sentiu uma ligeira onde de náusea. Ficou a imaginar como poderia a Dra.
Margareth Danforth sentir fome depois de passar o dia retalhando cadáveres. E foi o que
realmente Curran disse a Jason enquanto desciam ao primeiro andar. Ofereceu-lhe carona, mas
Jason lhe disse que esperava um amigo. Nem bem ele terminara de falar isso, e já a porta que
dava para a rua se abria e Shirley entrava.
– Uma amiga – murmurou Curran, dando uma piscadela e saindo.
Mais uma vez Shirley surgia como uma miragem. Ela trajava um vestido curto, de seda
vermelha, justo, com um cinto preto de couro. Seu aspecto pessoal transmitia tão intensamente
vida e vitalidade, que sua presença no necrotério sujo era um choque de contrários. Jason
sentiu o ímpeto súbito, uma necessidade fora do comum de tirá-la dali o mais rápido possível,
para que não a tocasse alguma força maligna. Mas ela opôs resistência a tal ímpeto. Atirou
seus braços em torno dele e apertou-lhe a cabeça contra a sua, numa verdadeira demonstração
de carinho. Jason sentiu que se derretia. A reação dela surpreendeu-o. Teve dificuldade para
conter as lágrimas, como um adolescente. Sentiu-se embaraçado.
Ela afastou-se um pouco e olhou-o nos olhos. Ele esboçou um sorriso sem graça.
– Que dia – disse ele.
– Que dia! – concordou ela. – Algum motivo para você continuar aqui?
Jason sacudiu a cabeça negativamente.
– Venha, vou levá-lo para casa – disse ela, levando-o apressadamente para fora, para
onde estava estacionado o seu BMW, numa área de estacionamento proibido. Entraram no
carro; e logo partiram em direção à vida. – Você está bem? – perguntou Shirley assim que se
dirigiram para a Massachusetts Avenue.
– Estou muito melhor agora. – Jason olhou para o perfil de Shirley, iluminada por
cintilações das luzes da cidade.
– Só estou arrasado com todas essas mortes. Como se eu devesse cumprir melhor o meu
dever.
– Você é duro demais para com você mesmo. Não pode querer assumir
responsabilidade por todos. Além do mais, Hayes não era seu paciente.
– Eu sei.
Durante algum tempo, mantiveram-se em silêncio. Então Shirley falou:
– É uma tragédia, esse caso de Hayes. Ele estava muito perto de ser um gênio, e não
devia ter mais que 45 anos.
– Ele era da minha idade – disse Jason. – Era de minha turma na Faculdade de
Medicina.
– Eu não sabia disso – falou Shirley. – Ele parecia muito mais velho.
– Especialmente nestes últimos tempos – disse Jason. Passaram pela Symphony Hall.
Algum evento estava terminando justamente naquele momento; homens de black-tie desciam as
escadarias da frente.


– O que o médico-legista tinha a dizer? – perguntou Shirley.
– Provavelmente câncer. Mas só irão fazer a autópsia amanhã de manhã.
– Autópsia? Quem deu a autorização?
– Não há necessidade de autorização se o médico-legista verifica que há dúvidas
quanto à causa da morte.
– Mas que tipo de dúvidas? Você disse que o homem teve um ataque cardíaco.
– Eu não disse que foi ataque cardíaco. Eu disse que foi alguma coisa parecida. De
qualquer modo, aparentemente é rotina obrigatória fazer autópsia em todo caso de morte
súbita. Um detetive chegou mesmo a me fazer perguntas.
– Isso tudo parece um desperdício do dinheiro dos contribuintes – disse Shirley quando
faziam uma curva à esquerda, na Beacon Street.
– Para onde estamos indo? – perguntou Jason de repente.
– Estou levando você para minha casa. Meus convidados ainda estarão lá. Vai ser bom
para você.
– De modo algum – disse Jason. – Não estou em condições de ir a uma reunião social.
– Você tem certeza? Não quero que fique por aí ruminando desgraças. Meus amigos vão
compreender.
– Por favor – disse Jason. – Eu não estou com disposição para mais discussões. Só
preciso dormir. Além de tudo, olhe para mim, estou muito esmolambado.
– Está bem, já que você quer assim – disse Shirley. Fez uma curva para a esquerda no
quarteirão seguinte, depois saiu novamente na Commonwealth Avenue, dirigindo-se para
Beacon Hill. Depois de um tempo em silêncio, ela falou. – Receio que a morte de Hayes
venha a ser um sério golpe para o GHP. Contávamos com ele para obter certos resultados de
impacto. Seu falecimento será especialmente doloroso para mim, pois fui responsável pela sua
contratação.
– Nesse caso, procure seguir o conselho que você mesma estava dando há pouco –
disse Jason. – Não pode julgar-se responsável pelo estado clínico dele.
– Eu sei. Mas vá dizer isso à diretoria.
– Bem, se é assim, parece-me que devo contar a você. Há ainda mais uma notícia ruim
– disse Jason. – Aparentemente Hayes acreditava ter feito uma descoberta científica muito
importante. Alguma coisa extraordinária. Você sabe algo sobre isso?
– Absolutamente nada – disse Shirley, espantada. – Ele contou a você o que era?
– Infelizmente não – falou Jason. – E eu não pude ter certeza se podia acreditar nele ou
não. Ele estava tendo um comportamento bastante esquisito, para dizer o mínimo; afirmou que
alguém queria assassiná-lo.
– Você acha que ele estava tendo um colapso nervoso?
– Cheguei a fazer essa suposição.
– Pobre homem. Se ele chegou mesmo a fazer algum tipo de descoberta, então o GHP
vai ter uma dupla perda.
– Mas se ele fez alguma descoberta fundamental, você não teria condições de averiguar
o que seria?
– É evidente que você não conhecia o Dr. Hayes – disse Shirley. – Ele era um homem
extraordinariamente reservado, pessoal e profissionalmente. Metade do que ele sabia
permanecia em segredo nos seus pensamentos.


Passaram junto ao Boston Garden, depois seguiram o trajeto de contorno para chegar a
Beacon Hill, um enclave residencial de casas com fachadas em tijolos no centro de Boston,
cujas ruas de mão única tornavam um pesadelo a circulação de automóveis naquela área.
Depois de cruzarem a Charles Street, Shirley foi dirigindo seu carro pela Vernon Street
e dobrou para entrar na Louisburg Square, uma praça com calçamento de pedras. Quando
decidira deixar de morar em bairro para tentar morar na área central da cidade, Jason tivera a
grande sorte de encontrar um apartamento de um quarto com vista para a praça. Ficava num
prédio cujo proprietário mantinha para si um dos apartamentos, embora raramente o ocupasse.
Era um local perfeito para Jason, pois o apartamento vinha com uma verdadeira dádiva
urbana: um local para estacionamento.
Jason saiu do carro e inclinou-se junto à janela do carro aberta.
– Obrigado por ter ido me buscar. Foi muito importante. – Ele estendeu a mão para
dentro do carro e apertou o ombro de Shirley, agarrando-o com firmeza.
Shirley subitamente estendeu os braços para fora e puxou Jason pela gravata. Deu-lhe
um beijo rápido, ligou o carro e partiu.
Jason ficou parado, de pé, junto ao meio-fio, num círculo de luz da lâmpada da rua,
vendo Shirley desaparecer na Pinckney Street. Dirigindo-se para a porta de casa, ele remexeu
nos bolsos em busca das chaves. Sentiu-se contente por Shirley ter aparecido em sua vida, e
pela primeira vez pensou na possibilidade de um relacionamento de verdade.


3
Não foi uma noite boa. Cada vez que Jason fechava os olhos, via a expressão medonha
de Hayes logo antes do desastre e tornava a experimentar o terrível sentimento de não poder
fazer nada por Hayes enquanto este se esvaía em sangue, que lhe jorrava pela boca.
De manhã, enquanto ia de carro para o trabalho, a cena ainda não saía de sua mente, e
ele se lembrou de algo que esquecera de contar a Curran e a Shirley. Hayes dissera que sua
descoberta já não era mais um segredo e que estava sendo utilizada. Fosse qual fosse o
significado disso, Jason planejou telefonar para o detetive quando chegasse ao GHP, mas, no
momento em que entrou, chamaram-no para ir diretamente à unidade de tratamento
coronariano.
Brian Lennox estava muito pior. Depois de um rápido exame, Jason verificou que havia
pouco a fazer. Até mesmo a consulta cardiológica, que ele havia solicitado no dia anterior, não
era otimista, embora Harry Sarnoff tivesse marcado para esta manhã um estudo coronariano de
emergência. A única esperança era que a cirurgia imediata pudesse ter algo a oferecer.
Do lado de fora do cubículo de Brian, a enfermeira perguntou:
– Se houver parada cardíaca, o senhor vai ordenar ressuscitação? Até mesmo o rim
parece estar com insuficiência.
Jason odiava esse tipo de decisões, mas ordenou, com firmeza, que se fizesse
ressuscitação no paciente pelo menos até que chegassem os resultados do estudo coronariano.
As demais visitas aos leitos foram igualmente deprimentes para Jason. Seus casos de
diabete, todos com comprometimento multissistêmico, apresentavam um quadro desanimador.
Dois dos pacientes apresentavam insuficiência renal, e um terceiro caso ameaçava ir no
mesmo rumo. O lado desalentador de tudo isso era o fato de que esses pacientes não tinham
sido internados no hospital por esse motivo. A insuficiência renal desenvolvera-se enquanto
Jason os tratava por outros problemas.
Dois pacientes de leucemia também não estavam respondendo ao tratamento conforme o
esperado. Ambos haviam desenvolvido sérios problemas cardíacos, embora internados
inicialmente por causa de afecções respiratórias. E seus dois pacientes de AIDS tiveram
agravado seu estado. Os dois únicos pacientes que evoluíam bem eram duas adolescentes com
hepatite. O último paciente a ser visitado neste dia era um homem de 35 anos, internado para
uma avaliação de suas válvulas cardíacas. Tinha tido febre reumática quando criança.
Felizmente seu quadro não sofrera alterações.
Chegando ao seu consultório, Jason teve de agir energicamente com Claudia. A notícia
da morte de Hayes já se espalhara por todo o complexo do GHP, e Claudia não conseguia
conter-se na sua curiosidade. Jason disse-lhe que não iria falar sobre isso. Ela insistia. Ele
pediu que ela saísse do consultório. Mais tarde, pediu desculpas e contou-lhe uma versão
resumida do acontecido. Pelas dez e meia, ele recebeu um telefonema de Henry Sarnoff com
notícias desalentadoras. As artérias coronárias de Brian Lennox estavam muito piores, mas
sem bloqueio focai. Em outras palavras, as artérias estavam sendo obstruídas uniformemente
pela aterosclerose em rápida evolução, e não havia qualquer possibilidade de cirurgia.
Sarnoff disse nunca ter visto uma evolução tão rápida e pediu a Jason permissão para relatar o
caso por escrito, visando posterior comunicação científica. Jason disse que, por ele, não havia


o que objetar.
Após o telefonema de Sarnoff, Jason manteve-se trancado em seu consultório durante
alguns minutos. Depois, ao sentir-se emocionalmente preparado, telefonou para a unidade de
tratamento coronariano e pediu que chamassem a enfermeira que cuidava de Brian Lennox.
Quando ela veio ao telefone, ele falou sobre os resultados da coronariografia. E então lhe
disse que Brian Lennox não tinha indicação para medidas de ressuscitação. Sem esperanças,
não havia razão para se prolongar o sofrimento desse homem. Ela concordou. Depois de
desligar, Jason ficou olhando para o aparelho. Era em momentos assim que ele se sentia
levado a especular sobre os motivos que o tinham levado à carreira médica.
Por ocasião do intervalo para almoço, Jason decidiu averiguar pessoalmente os
resultados da autópsia feita em Hayes. À luz do dia, o necrotério não era um lugar tão
fantasmagórico assim, era apenas mais um prédio velho, gasto pelo tempo e pelo uso, não
muito limpo. E mesmo os detalhes arquitetônicos egípcios eram antes cômicos que
imponentes. Mas Jason evitou a sala onde ficavam as câmaras frias e eram guardados os
cadáveres; foi diretamente à procura de Margaret Danforth, na estreita sala ao lado da
biblioteca. Ela estava curvada sobre sua escrivaninha, comendo algo que parecia ser um Big
Mac. Fez um sinal para ele, sorrindo.
– Seja bem-vindo.
– Desculpe incomodá-la – disse Jason, sentando-se. Mais uma vez, admirou-se de como
Margaret parecia muito delicada e feminina para o trabalho que fazia.
– Não incomoda em nada – disse ela. – Fiz a autópsia no Dr. Hayes agora de manhã. –
Inclinou-se para trás na sua cadeira, que rangeu suavemente. – Fiquei um tanto surpresa. Não
era câncer.
– O que era?
– Aneurisma. Aneurisma da aorta, que se rompeu para dentro da árvore
traqueobrônquica. Esse homem nunca teve sífilis, não é mesmo?
Jason sacudiu a cabeça.
– Não, que eu saiba. Tive minhas dúvidas.
– Bem, pareceu estranho – disse Margaret. – Você se importa se eu continuar comendo?
Tenho outra autópsia para daqui a uns minutos.
– Absolutamente – disse Jason, indagando-se como é que ela conseguia. Seu próprio
estômago não estava muito dócil. O prédio todo exalava um cheiro de peixe. – O que foi que
pareceu estranho?
Margaret mastigou, depois engoliu.
– A aorta tinha um aspecto caseoso, friável. A mesma coisa com a traquéia, nesse
aspecto. Eu nunca tinha visto nada parecido, com exceção daquele sujeito que tinha 114 anos.
Você consegue acreditar? O caso saiu publicado em The Globe. O homem tinha 44 anos
quando a Primeira Guerra Mundial começou. Impressionante.
– Quando terá o relatório da microscopia? Margaret fez um gesto de embaraço.
– Duas semanas – disse ela. – Não temos verbas para ter pessoal de apoio suficiente.
As lâminas saem um bocado caro.
– Se pudesse me dar algumas amostras do material, eu poderia mandar o nosso
departamento de patologia realizar os exames e as lâminas.
– Nós mesmos é que temos de processá-los. Tenho certeza que você entende.


– Não quero dizer que não os farão – falou Jason. – Apenas que também poderíamos
fazê-los. Isso pouparia algum tempo.
– Não vejo por que não. – Levantando-se, Margaret mordeu mais uma grande porção de
seu hambúrguer e fez um sinal para que Jason a acompanhasse. Usaram as escadas e subiram
um andar até a sala de autópsia.
Era uma sala retangular comprida com quatro mesas de aço inoxidável colocadas
perpendicularmente ao eixo principal. O cheiro de formol e de outros líquidos inomináveis
era sufocante. Duas mesas se achavam ocupadas, e as duas outras estavam sendo limpas.
Margaret, perfeitamente à vontade no ambiente, ainda mastigava o último pedaço de seu
lanche enquanto ia conduzindo Jason até a pia. Depois de haver examinado uma grande
quantidade de frascos com peças de material de autópsia cobertas com plástico, separou do
restante algumas delas. Então, pegando uma de cada vez, pescou para fora dos frascos as
peças anatômicas, colocou-as sobre uma tábua e cortou uma fatia de cada uma, usando uma
lâmina muito parecida com uma faca de cozinha. Depois pegou outros frascos, etiquetou-os,
encheu-os de formol e colocou neles as peças que havia cortado. Quando terminou essa parte,
embrulhou os frascos e colocou-os numa sacola de papel pardo que entregou a Jason. Tudo
fora feito com notável eficiência.
De volta ao GHP, Jason dirigiu-se ao departamento de anatomia patológica, onde
encontrou o Dr. Jackson Madsen ao microscópio. O Dr. Madsen era um homem de elevada
estatura, magro, que, aos sessenta anos de idade, ainda se orgulhava de correr maratonas.
Assim que viu Jason, expressou-lhe seu pesar por tudo que ele havia passado com Hayes.
– Não há muitos segredos por aqui – disse Jason, um pouco aborrecido.
– Certamente não – falou Jackson. – Socialmente, o centro médico é como uma dessas
cidades pequenas. Falatório que não acaba mais. – Dando com os olhos na sacola de papel
pardo, acrescentou: – Você tem alguma coisa para mim?
– De certa maneira, sim – disse Jason, e passou a explicar quais eram as peças para
exame, acrescentando que, como o laboratório municipal ia levar duas semanas para
processar as lâminas, achara que talvez isso pudesse ser feito no laboratório do GHP.
– Com todo prazer – disse Jackson, pegando a sacola. – Por falar nisso, você está
interessado em ver agora os resultados do caso Harring?
Jason surpreendeu-se.
– Naturalmente.
– Ruptura cardíaca. O primeiro caso que eu vi em muitos anos. Rompeu-se o ventrículo
esquerdo. Pelo aspecto, era como se praticamente todo o coração tivesse sido atingido no
infarto, e quando eu o seccionei, tive a impressão de que todos os vasos coronarianos estavam
comprometidos. Esse homem teve a pior coronariopatia que já vi em toda a minha vida.
De que valem os nossos maravilhosos exames preventivos, pensou Jason. Ainda se
sentia muito na defensiva para explicar a Jackson que ele, Jason, havia revisado o prontuário
dos exames de Harring e que mesmo assim não conseguira encontrar nenhuma evidência de
algum problema iminente no eletrocardiograma de Harring, realizado menos de um mês antes
da sua morte.
– Talvez seja melhor você fazer uma verificação nos seus aparelhos de eletro – disse
Jackson. – É como estou lhe dizendo, o coração desse homem estava em mau estado. As
lâminas para exame deverão estar prontas amanhã, se você estiver interessado.


Saindo do departamento de anatomia patológica, Jason ficou pensando no comentário
de Jackson. A idéia de um defeito no aparelho de eletrocardiograma não tinha lhe passado
pela cabeça. Mas quando chegou ao seu consultório, descartou-a. Haveria muitas maneiras de
saber se o eletrocardiógrafo não estava funcionando a contento. Além do mais, dois aparelhos
diferentes estavam sendo utilizados, para o eletro em repouso e para o eletro de esforço. Ao
pensar no assunto, porém, lembrou-se de algo. Da mesma forma como acontecera com ele
próprio, também Hayes, ao entrar para a equipe do GHP, devia ter passado por um exame
clínico completo. Todos passavam.
Depois que Claudia transmitiu por telefone seus recados, Jason pediu-lhe que
verificasse se o Dr. Alvin Hayes tinha um prontuário médico, e, em caso afirmativo, que o
trouxesse. Enquanto aguardava resposta, evitou Sally e dirigiu-se à radiologia. Com o auxílio
de uma das secretárias do departamento, localizou o envelope de Alvin Hayes. Conforme
esperava, o envelope continha uma radiografia de tórax, de rotina, feita seis meses antes.
Olhou-a por uns momentos. Depois, levando-a, procurou um dos quatro radiologistas da
equipe. Milton Perlman, médico radiologista, vinha saindo da sala de radioscopia quando
Jason se acercou dele, descreveu a morte de Hayes e os resultados da autópsia, e passou-lhe
às mãos a radiografia. Milton levou-a à sua sala de trabalho, colocou-a no negatoscópio e
acendeu a luz. Esquadrinhou-a atentamente durante pelo menos um minuto antes de virar-se
para Jason.
– Aneurisma aqui não tem não – falou ele. Nascera na Virgínia Ocidental e costumava
falar como se tivesse acabado de chegar de uma fazenda.
– A aorta está normal, não tem calcificação.
– Será possível? – perguntou Jason.
– Deve ser. – Milton tornou a verificar o nome e o número da chapa. – Acho que
sempre há uma possibilidade de termos trocado os nomes, mas duvido. Se esse homem morreu
de aneurisma, então deve ter desenvolvido essa anomalia neste último mês.
– Nunca ouvi dizer que tal coisa pudesse acontecer.
– O que é que eu posso dizer? – Milton estendeu as mãos com as palmas para cima.
Jason voltou ao seu consultório, refletindo sobre o problema. Um aneurisma podia
dilatar-se muito rapidamente, em especial se o paciente apresentava uma combinação de
doença vascular e hipertensão; mas quando Jason verificou os dados do exame de Hayes, viu
que a pressão sangüínea e as bulhas cardíacas do homem eram, como ele suspeitava, normais.
Não havendo sinais de patologia vascular, Jason compreendeu que pouca coisa poderia fazer,
nesse aspecto; apenas devia aguardar os cortes para a microscopia. Talvez Hayes tivesse
contraído alguma estranha doença infecciosa que teria atacado seus vasos sangüíneos,
inclusive a aorta. Pela primeira vez, Jason ficou se indagando se não estariam diante dos
primeiros casos de uma doença nova e terrível.
Tendo trocado o paletó por um jaleco branco, Jason saiu do consultório, praticamente
se chocando com Sally.
– O senhor está atrasado! – repreendeu ela.
– Alguma outra novidade? – disse Jason, dirigindo-se para a sala de exames A.
Graças a uma combinação de muito trabalho e sorte, Jason colocou seu trabalho em dia.
A sorte era que não houvera pacientes novos que precisassem de exames extensos ou pacientes
antigos com problemas novos. Lá pelas três horas, pôde até fazer uma pausa no trabalho.


Alguém pedira para cancelar uma consulta.
A tarde toda, Jason não conseguiu tirar de sua mente o caso Hayes. E tendo à sua
disposição algum tempo de sobra, subiu ao sexto andar. Era ali que estava localizado o
laboratório do Dr. Alvin Hayes. Jason imaginou que talvez o assistente de Hayes tivesse algo
a dizer e pudesse esclarecer se a grande descoberta mencionada por Hayes tinha alguma base
em fatos.
Assim que saiu do elevador, Jason sentiu como se estivesse em outro mundo. Como
parte dos incentivos para que Hayes pertencesse aos quadros do GHP, sua diretoria havia
construído para o cientista um laboratório novo em folha, ocupando uma boa parte do sexto
andar.
A área perto do elevador estava mobiliada com poltronas de couro confortáveis,
forrada com carpetes macios, e possuía até mesmo uma grande estante com portas de vidro em
que se alinhavam publicações atualizadas sobre biologia molecular. Adiante dessa sala de
recepção havia uma sala que servia de vestiário, onde os visitantes deviam colocar aventais
brancos compridos e pantufas protetoras sobre os sapatos. Jason experimentou a porta. Estava
aberta, por isso entrou.
Jason vestiu um avental comprido e pantufas e experimentou a porta de dentro.
Conforme imaginara, estava chaveada. Perto da porta havia o botão de uma campainha.
Apertou-o e esperou. Acima do lintel acendeu-se uma pequena luz vermelha piscante numa
câmera de TV em circuito fechado. Quando a fechadura elétrica da porta abriu, Jason entrou.
O laboratório era dividido em duas seções principais. A primeira era construída em
fórmica branca e azulejos brancos, compreendendo uma grande sala central com diversas
saletas de um lado. Com as luzes fluorescentes no teto, o efeito era ofuscante. A sala estava
cheia de equipamentos sofisticados; a maioria deles, Jason não reconheceu. Uma porta de aço
fechada a chave separava a primeira seção da segunda. Numa placa perto da porta lia-se:
biotério e incubadores de bactérias: entrada proibida.
Sentada junto a uma das extensas bancadas do laboratório, na primeira seção, estava
uma mulher muito loura, que Jason, em algumas ocasiões, vira na cafeteria do GHP. Tinha
feições bem delineadas, nariz ligeiramente aquilino, e seu cabelo estava penteado todo para
trás, terminando em um coque. Jason viu que os olhos dela estavam vermelhos, como se ela
tivesse estado a chorar.
– Com licença, eu sou o Dr. Jason Howard – disse ele, estendendo a mão. Ela apertou a
mão dele. A pele dela estava fria.
– Helene Brennquivist – falou ela, com um leve sotaque escandinavo.
– Você tem uns minutos para conversar?
Helene não respondeu. Em vez disso, fechou o caderno de anotações e afastou de si uma
pilha de placas de Petri.
– Eu gostaria de fazer algumas perguntas – continuou Jason. Ele viu que ela possuía uma
incomum capacidade de manter uma expressão facial absolutamente neutra. Este é, ou era, o
laboratório do Dr. Hayes? – perguntou Jason fazendo com a mão um gesto que abrangia o
ambiente.
Ela fez que sim com um movimento de cabeça.
– E suponho que você trabalhava com o Dr. Hayes. Ela repetiu o movimento de cabea,
confirmando, mas de modo menos perceptível que na primeira vez. Jason teve a sensação de


que já havia induzido um estado defensivo na mulher.
– Suponho que ouviu falar da má notícia referente ao Dr. Hayes – disse Jason.
Desta vez ela piscou, e Jason pensou estar vendo nos olhos dela a cintilação de uma
lágrima.
– Eu estava com o Dr. Hayes quando ele morreu – explicou Jason, observando
atentamente Helene. Não fossem os olhos úmidos, a mulher parecia estranhamente destituída
de emoção, e Jason ficou a ponderar se isto não seria nela uma forma de sentir o pesar da
perda. – Pouco antes de morrer, ele me falou que havia feito uma descoberta cientifica
importante…
Jason deixou seu comentário incompleto no ar, esperando que houvesse alguma resposta
correspondente. Não houve. Helene simplesmente permanecia olhando fixamente para ele.
– Então, é verdade? – disse Jason, inclinando-se para ela.
– Eu não sabia que você tinha terminado de falar – disse Helene. – Não foi uma
pergunta, você sabe.
– É verdade – admitiu Jason. – Eu estava só esperando que você respondesse. Espero
que saiba o que o Dr. Hayes pretendia dizer.
– Lamento, mas não sei. Outras pessoas da administração já subiram até aqui para me
fazer a mesma pergunta. Infelizmente, não tenho nenhuma idéia do que o Dr. Hayes poderia
estar querendo dizer.
Jason imaginou que Shirley teria conversado com Hele-ne na primeira hora de trabalho
desse dia.
– Você é a única pessoa, além do Dr. Hayes, que trabalha neste laboratório?
– Isso mesmo – disse Helene. – Nós tínhamos uma secretária, mas o Dr. Hayes a
dispensou há uns três meses. Ele achava que ela falava demais.
– Falava demais de quê?
– De tudo, de todas as coisas. O Dr. Hayes era uma pessoa muitíssimo reservada.
Especialmente em relação ao seu trabalho.
– Compreendo – disse Jason. Sua impressão inicial, de que Hayes se tornara paranóide,
parecia agora mais fundamentada. Mas Jason insistiu: – O que é exatamente que você faz, Srta.
Brennquivist?
– Eu sou biologista molecular, como o Dr. Hayes. Mas não tenho absolutamente a
capacidade dele. Uso técnicas de recombinação do ADN para modificar bactérias E. coli com
o objetivo de produzir diversas proteínas nas quais o Dr. Hayes estava interessado.
Jason fez um gesto afirmativo como se estivesse entendendo. Já ouvira falar em “ADN
recombinante”, mas só tinha uma idéia muito vaga do que isso realmente significava. Nessa
área da ciência, tinha havido uma verdadeira explosão de conhecimentos desde a época em
que ele passara pela Faculdade de Medicina. Mas havia uma coisa da qual ele se lembrava
muito bem: o temor de que as pesquisas sobre o ADN recombinante pudessem produzir
bactérias capazes de causar doenças novas e desconhecidas. Tendo em mente a morte súbita
de Hayes, Jason perguntou:
– Você deparou com alguma cepa de bactéria nova e particularmente perigosa?
– Não – disse Helene, sem hesitação.
– Como pode ter tanta certeza?
– Por duas razões. Antes de mais nada, fui eu que realizei todo o trabalho de


recombinação em bactérias, não o Dr. Hayes. Depois, nós usamos uma cepa de bactérias E.
coli que não consegue se desenvolver fora de laboratório.
– Ah – disse Jason, com um movimento de cabeça, encorajando-a.
– O Dr. Hayes estava interessado em crescimento e desenvolvimento. Ele dedicou a
maior parte do seu tempo a isolar os fatores do crescimento, provenientes do eixo hipotálamohipófise, responsáveis pelo aparecimento da puberdade e pelo desenvolvimento sexual. Os
fatores de crescimento são proteínas. Tenho certeza que você conhece isto.
– Naturalmente – disse Jason. Que interessante esta mulher, pensou. No começo, a
conversação com ela tinha sido uma coisa muito árdua. Agora, quando ela estava em terreno
científico, era extremamente falante.
– O Dr. Hayes me dava uma proteína e eu passava a produzi-la mediante técnicas de
recombinação do ADN. É o que estou fazendo agora. – Ela virou-se para as pilhas de placas
de Petri e, levantando uma, retirou a tampa. Estendeu uma em direção a Jason. Na superfície
havia numerosas manchas esbranquiçadas de colônias bacterianas.
Helene recolocou a placa na pilha correspondente.
– O Dr. Hayes era fascinado pela ativação e desativação dos genes, o equilíbrio entre
repressão e expressão, e estudou muito o papel das proteínas repressoras e o lugar onde elas
se ligam ao ADN. Usou como protótipo o gene do hormônio do crescimento. Você gostaria de
ver o último mapa que ele fez do cromossomo 17?
– Claro – disse Jason, forçando um sorriso.
Uma campainha soou no laboratório, sobrepondo-se momentaneamente ao débil
zumbido dos equipamentos eletrônicos. Uma tela diante de Helene acendeu, mostrando quatro
pessoas e um cão na ante-sala. Jason reconheceu duas das pessoas imediatamente: Shirley
Montgomery e o detetive Michael Curran. As outras duas estranhas.
– Oh, meu Deus! – disse Helene, enquanto acionava eletronicamente a abertura da
porta.
Jason pôs-se de pé quando os recém-chegados entraram na sala. Shirley demonstrou
momentânea surpresa ao ver Jason, mas calmamente apresentou a Helene o detetive Curran.
Enquanto este começou a fazer perguntas a Helene, Shirley pegou Jason pelo braço e levou-a
até a sala mais próxima, que Jason percebeu deve ter sido a sala de Hayes. Cobrindo as
paredes, havia fotografias, numa série progressiva, em close, de genitais humanos na sua
evolução anatômica através da puberdade. Todas as fotos estavam colocadas em lindas
molduras em aço inoxidável.
– Que decoração interessante – comentou Jason em tom jocoso e irônico.
Shirley agiu como se nem tivesse visto as fotos. Sua fisionomia, habitualmente
tranqüila, tinha uma expressão de preocupação e irritação.
– Este caso está fugindo ao controle.
– O que você quer dizer? – perguntou Jason.
– Parece que na noite passada a polícia recebeu um telefonema anônimo dizendo que o
Dr. Alvin Hayes fazia tráfico de drogas. Vasculharam o apartamento dele e encontraram
significativa quantidade de heroína, cocaína e dinheiro. Agora vieram com um mandado de
busca para revistar o laboratório.
– Meu Deus! – Jason de repente entendeu por que tinham vindo com o cão.
– E como se isso não bastasse, descobriram que ele estava vivendo com uma mulher


chamada Carol Donner.
– Esse nome me parece familiar – disse Jason.
– Não devia ser! – falou Shirley com severidade. – Carol Donner é bailarina de striptease no Club Cabaret, na zona do meretrício.
– Bem, nessa eu me dei mal – gracejou Jason.
– Jason! – interrompeu bruscamente Shirley. – O assunto não é para rir.
– Não estou rindo – protestou ele. – Só estou pasmo.
– Se você próprio está pasmo, o que haverão de dizer os diretores? E pensar que insisti
na contratação de Hayes. Só a morte do homem já foi uma coisa ruim demais. Isso logo vai se
tornar um pesadelo para um relações-públicas.
– O que pretende fazer? – perguntou Jason.
– Não tenho a menor idéia – admitiu Shirley. – No momento, minha intuição me diz que
quanto menos agirmos, melhor.
– E o que é que pensa da suposta descoberta de Hayes?
– Eu acho que ele andava fantasiando – disse Shirley. – Quero dizer, ele estava
envolvido com drogas e com uma bailarina de strip-tease, veja só!
Irritada, ela retornou à parte principal do laboratório, onde o detetive Curran ainda
conversava atentamente. Os dois outros homens e o cão davam buscas meticulosas no
laboratório. Jason ficou olhando por alguns momentos, depois pediu licença para sair, pois
tinha de concluir seus trabalhos no consultório. Ainda tinha que atender alguns pacientes não
só no consultório como no hospital.
A caminho de casa, embora mais do que nunca agora convencido de que Hayes estivera
à beira de um colapso nervoso, e não em vias de realizar uma grande descoberta científica,
Jason passou na biblioteca e retirou um livro, um volume fino, intitulado adn Recombinante:
Uma Introdução para o Não-Cientista.
O tráfego na hora do rush era tradicionalmente crítico em Boston, e quando Jason
finalmente parou o carro no estacionamento em frente à sua casa, sentiu o habitual alívio de ter
conseguido sobreviver ileso. Levou consigo sua valise e subiu até o seu apartamento,
colocando-a sobre a escrivaninha, no pequeno escritório que dava vista para a praça. Os
olmos agora sem folhas eram como esqueletos aparecendo contra o céu noturno. O sistema de
economia diurna de luz já se achava desligado; na rua já estava escuro, embora fossem apenas
6:45. Tendo trocado de roupa e vestido um abrigo de jogging, Jason iniciou uma corrida
passando pela Mt. Vernon Street, cruzou pela Storrow Drive junto à ponte Arthur Fiedler e
depois seguiu pela Charles Street. Prosseguiu correndo até a Boston University Bridge, de
onde retornou. Diferentemente do que acontecia no verão, agora havia poucas pessoas
praticando jogging. Na volta, parou no supermercado De Luca, onde comprou anchova fresca,
ingredientes para uma salada e uma garrafa de vinho Chardonnay, da Califórnia, resfriado.
Jason gostava de cozinhar; assim, depois de tomar um banho de chuveiro, preparou o
peixe, assando-o temperado com alho e azeite puro. Preparou a salada e depois tirou o vinho
do congelador, onde o colocara para que o resfriamento apurasse o sabor. Pôs vinho num
copo. Quando tudo ficou pronto numa bandeja, levou-a ao seu pequeno escritório. Assim
preparado, abriu o pequeno livro na parte que tratava da recombinação do ADN e ocupou-se
com essa leitura até a hora de dormir.
A primeira parte do livro fazia uma revisão do assunto. Jason sabia muito bem que o


ácido desoxirribonucléico, mais conhecido como ADN, é uma molécula, com a forma
semelhante à de um cordão, torcido em hélice, de duplo filamento. É formado de subunidades,
que se repetem, chamadas bases, com a propriedade de se emparelharem umas com as outras
segundo um padrão muito específico. Determinadas partes do ADN recebem o nome de genes,
e cada gene está associado à produção de uma proteína específica.
Jason sentiu-se mais encorajado ao tomar um gole de seu vinho. O livro estava bem
escrito e fazia com que o assunto parecesse claro. Gostou de conhecer pequenas curiosidades,
como, por exemplo, o fato de que cada célula humana tem quatro bilhões de pares de bases. A
parte seguinte do livro tratava das bactérias e demonstrava a facilidade e rapidez com que
elas se reproduzem. Em questão de dias, trilhões de células idênticas podem ser produzidas a
partir de uma única célula inicial. Isto tem sua importância especial na engenharia genética,
pois as bactérias servem como receptores de pequenos fragmentos de ADN. Este ADN
“estranho” é incorporado ao próprio ADN da bactéria; a partir daí, quando se divide, a célula
fabrica os fragmentos originais. A variedade de bactéria com o ADN recentemente
incorporado é chamada de recombinante, e a nova molécula de ADN, de ADN recombinante.
Até aí tudo bem, dava para entender.
Jason comeu um pouco do peixe e da salada, saboreando mais vinho. O capítulo
seguinte tornou-se um tanto mais complexo. Falava de como os genes na molécula de ADN
passam a produzir suas respectivas proteínas. A primeira parte envolve a produção de uma
cópia de segmento do ADN com uma molécula chamada ARN mensageiro. Daí em diante, este
dirige a produção da proteína, um processo chamado transcrição. Jason bebeu um pouco mais
de vinho. A última parte do capítulo tornava-se especialmente interessante, pois explicava os
delicados mecanismos que regem a ativação e a desativação dos genes.
Levantando-se da sua escrivaninha, Jason atravessou a sala e foi até a cozinha. Tendo
aberto o congelador, pôs mais vinho no copo. De volta ao escritório, olhou através da vidraça,
vendo as luzes do St. Margaret’s Convent, no outro lado da praça. Sempre achara divertida a
idéia de que havia um convento na praça residencial mais cobiçada de Boston. Abandone o
mundo material, torne-se freira e mude-se para Louisburg! Jason sorriu, depois tornou a pôr os
olhos no livro que tratava do ADN recombinante. Sentando-se novamente, releu a parte que
explicava o timing da expressão dos genes. O assunto era complicado e fascinante.
Aparentemente havia sido descoberta uma série de proteínas que servem de repressores do
funcionamento dos genes. Essas proteínas ligam-se ao ADN ou fazem com que este se torne
espiralado, para encobrir os genes envolvidos.
Jason fechou o livro. Já era o bastante para uma noite. Além disso, o capítulo sobre o
controle do funcionamento dos genes era o que ele inconscientemente andava procurando. Ao
ler essa parte, voltou-lhe à mente o comentário de Hayes de que o seu interesse principal era
“saber de que modo os genes são ativados e desativados”. Helene dissera a mesma coisa, mas
com palavras diferentes.
Jason bebeu um gole de vinho e pôs-se a andar pela sala. Olhando absorto para um
castiçal sobre a lareira, deixou seus pensamentos considerarem as diversas possibilidades. O
que estaria Hayes querendo dizer quando dissera ter feito uma importante descoberta
científica? Por agora, Jason descartava a idéia de que Hayes estaria sofrendo de delírios de
grandeza. Afinal de contas, era um pesquisador mundialmente conhecido e trabalhava
intensamente. Havia, portanto, a possibilidade de ter falado a verdade. Se ele tinha feito


alguma descoberta, esta seria na área da ativação e desativação de genes, e provavelmente era
algo que tinha a ver com crescimento e desenvolvimento. A imagem das fotos com os genitais
turvou a mente de Jason durante um momento.
Jason foi arrancado desses pensamentos pelo som do telefone. Era a enfermeira-chefe
falando da unidade de tratamento coronariano.
– Brian Lennox acabou de morrer. Teve um episódio terminal de taquicardia ventricular
que avançou até a assistolia.
– Já vou indo para aí – disse Jason. Desligou o telefone e pensou no jargão científico
utilizado pela enfermeira, reconhecendo nesse modo de falar sua defesa contra emoções. Mais
uma vez, como nuvem agourenta, a sombra da morte pairava sobre ele.


4
O radiorrelógio despertador tirou Jason da cama. Ele havia aumentado o volume do
aparelho, temendo passar da hora por excesso de sono. Passara boa parte da noite dando
assistência à esposa de Brian Lennox. Tendo recolhido o jornal dos degraus da frente de sua
porta, foi fazer a barba e tomar banho de chuveiro enquanto a sua máquina de café realizava o
costumeiro milagre matinal. Quando Jason terminou de se vestir, o apartamento se encheu do
aroma gostoso de café passado na hora. Com a xícara na mão, afastou-se para o quarto,
tirando o Boston Globe da capa protetora de plástico transparente.
Planejava ir diretamente à seção de esportes do jornal, mas deparou com a manchete da
primeira página: médico, drogas E bailarina. Não era uma reportagem elogiosa sobre o Dr.
Alvin Hayes. Trazia em detalhes a notícia da sua morte, associando-a, de um modo parcial,
faccioso, às drogas encontradas no seu apartamento; chegava mesmo a comparar o caso
amoroso entre o médico e a bailarina com o do professor Tufts, da Faculdade de Medicina,
que fora condenado pelo assassinato de uma prostituta. Na matéria do jornal havia também
duas fotos: a de Hayes, tal como aparecera na capa da revista Time, e a de uma mulher
entrando no Club Cabaret, com a legenda “Carol Donner entrando no seu local de trabalho”.
Jason tentou ver na foto como era a fisionomia de Carol Donner, mas isto foi impossível. Ela
estava com uma das mãos erguida na frente, ocultando o rosto. No fundo da foto via-se um
letreiro: lindas colegiais de topless. Quem diria, pensou Jason, com um sorriso.
Leu o restante da reportagem e sentiu pena de Shirley. A polícia informava que uma
quantidade de heroína e cocaína fora encontrada no apartamento, localizado no South End, que
Hayes ocupava juntamente com Carol Donner.
Ao chegar ao hospital, Jason viu, na visita aos leitos, que seus pacientes estavam indo
mal. Matthew Cowen, que no dia anterior se submetera a cateterismo cardíaco, estava com
sintomas estranhos, alarmantemente parecidos com os do falecido Cedric Harring: artrite,
constipação intestinal e pele seca. Normalmente, nenhum desses sintomas causaria muita
preocupação a Jason. Mas, tendo em vista os acontecimentos recentes, ele se sentiu inquieto.
Novamente eles lembraram a inquietante possibilidade de alguma doença infecciosa nova,
desconhecida, que ele não conseguiria controlar. Teve a impressão de que o quadro clínico de
Matthew tendia a piorar.
Depois de pedir uma consulta dermatológica para Cowen, Jason, preocupado, desceu
para o seu consultório. Claudia o cumprimentou com a informação de que reunira o exames
médicos executivos até a letra P.
Havia telefonado para os pacientes e descobrira que somente dois deles se queixavam
de problemas de saúde.
Jason pegou os prontuários e abriu-os. O primeiro era de Holly Jennings, o outro, de
Paul Klinger. Ambos tinham passado pelo exame médico do último mês.
– Peça-lhes que compareçam aqui assim que puderem, mas sem alarmá-los.
– Será difícil não deixá-los preocupados. Que devo dizer?
– Diga-lhes que queremos repetir alguns exames. Use a sua imaginação.
Mais tarde, Jason decidiu tentar obter mais algumas informações sobre Hayes junto à
assistente de laboratório deste; mas quando viu Helene, compreendeu que ela não estava


inclinada a conversar.
– A polícia encontrou algo? – perguntou Jason, já sabendo que a resposta era não.
Depois que a polícia fora embora, Shirley lhe telefonara e lhe contara sobre isso, dizendo-lhe:
“Meu Deus, que alívio!”
Helene sacudiu a cabeça.
– Sei que está ocupada – disse Jason –, mas será que podia me conceder um minuto? Eu
gostaria de lhe fazer mais algumas perguntas.
Afinal, ela interrompeu o trabalho e voltou-se para ele.
– Obrigado – disse ele, e sorriu. A fisionomia dela não mudou. Não era antipática,
apenas neutra. – Detesto voltar ao assunto – disse Jason –, mas continuo pensando sobre o que
o Dr. Hayes falou, a respeito de uma descoberta importante. Você tem certeza de que não tem
nenhuma idéia do que poderia ser isso? Seria trágico se uma descoberta médica real viesse a
se perder.
– Eu já lhe disse tudo que sabia – respondeu Helene.
– Eu poderia lhe mostrar o último mapa que ele fez do cromossomo 17. Isso ajudaria
em algo?
– Vamos ver.
Helene foi adiante, conduzindo-o até a sala de trabalho de Hayes. Ignorou as fotos que
cobriam as paredes, mas Jason não pôde deixar de prestar atenção nelas. E imaginava que tipo
de homem poderia trabalhar num tal ambiente. Helene apresentou uma grande folha de papel,
toda ela escrita em letra miúda, descrevendo a seqüência dos pares de bases da molécula de
ADN que abrangiam uma parte do cromossomo 17. Havia um número impressionante de pares
de bases: centenas e centenas de milhares.
– A área do Dr. Hayes é esta. – Ela apontou para uma grande seção onde os pares
estavam impressos em vermelho.
– Estes são os genes relacionados ao hormônio do crescimento. É muito complexo.
– Nisso você tem razão – disse Jason. Ele sabia que teria de ler muito mais para poder
entender aquilo. – Há alguma possibilidade de que este mapeamento possa ter levado a uma
descoberta científica importante?
Helene pensou uns momentos, depois balançou negativamente a cabeça.
– Essa técnica é conhecida há algum tempo.
– E o que tem a dizer sobre câncer? – perguntou Jason, dando um tom de conjectura à
sua idéia. – O Dr. Hayes poderia ter descoberto algo sobre câncer?
– Nós absolutamente não trabalhávamos com câncer – disse Helene.
– Mas se ele estava interessado em divisão e maturação celular, é possível que tivesse
descoberto algo a respeito de câncer. Especialmente com o interesse que ele tinha em ativação
e desativação dos genes.
– Suponho que seja possível – disse Helene, sem convicção.
Jason teve certeza de que Helene não estava ajudando tanto quanto poderia. Como
assistente de Hayes, ela devia ter uma idéia bem mais completa do trabalho de Hayes. Mas
não havia maneira de Jason forçá-la a falar sobre o assunto.
– E que tal os livros de registro de laboratório do Dr. Hayes?
Helene voltou ao seu lugar na bancada. Abrindo a segunda gaveta da mesa, tirou de
dentro um livro de registro.


– O que eu tenho é só isto – disse ela, e passou-o às mãos de Jason.
Três quartas partes do livro estavam preenchidas. Jason pôde ver que era apenas um
livro de dados, sem os registros das experiências; sem tais registros, os dados careciam de
significado.
– Não há outros livros de registro do laboratório?
– Havia alguns – admitiu Helene –, mas o Dr. Hayes levava-os consigo, especialmente
nestes últimos três meses. Em geral ele guardava tudo na cabeça. Tinha uma memória
fabulosa, especialmente para números… – Por um breve instante Jason viu um brilho nos
olhos de Helene e pensou que ela podia abrir-se mais, mas tal esperança logo se desvaneceu.
Ela novamente se retraiu em silêncio. Retomou o livro das mãos de Jason e recolocou-o
na gaveta.
– Deixe que eu lhe faça mais uma pergunta – falou Jason, procurando achar as palavras
certas. – Até onde você pôde saber, o Dr. Hayes estava tendo um comportamento normal
nestas últimas semanas? Ele parecia estar angustiado e extremamente cansado quando o vi. –
Jason deliberadamente exagerou um pouco na descrição do estado de Hayes.
– Para mim, ele parecia estar normal – disse Helene, sem emoção.
Droga!, pensou Jason. Agora tinha certeza de que Helene não estava sendo sincera com
ele. Infelizmente nada podia fazer quanto a isso. Agradecendo e pedindo licença, retirou-se do
laboratório de Hayes. Desceu pelo elevador, evitando ser visto por Sally, cruzou em direção
ao edifício principal e subiu para o departamento de patologia.
Encontrou Jackson Madsen no laboratório de química, onde havia um problema com um
dos aparelhos automáticos. Estavam ali dois representantes da empresa fabricante, e Jackson
sentiu-se contente por poder voltar à sua sala de trabalho, junto com Jason, para mostrar-lhe
as lâminas do coração de Hayes.
– Espere um momento até ver isto – disse ele, enquanto colocava uma lâmina no
microscópio.
Jackson aproximou os olhos das oculares e, com o polegar e o indicador, ajustou
habilmente a posição da lâmina, deixando que Jason olhasse ao microscópio.
– Vê essa artéria? – perguntou ele. Jason disse que sim. – A luz da artéria está quase
totalmente obstruída. É um dos piores casos de aterosclerose que já vi. Essa massa rosada
parece substância amilóide. É surpreendente, ainda mais se você diz que o eletrocardiograma
do homem estava normal. Mas deixe que eu lhe mostre mais uma coisa. – Jackson colocou no
microscópio uma outra lâmina. – Veja agora.
Jason olhou novamente ao microscópio.
– Que é que eu devo ver?
– Observe como os núcleos estão edemaciados – disse Jackson. – E o material cor-derosa. Isso é amilóide, com certeza.
– O que significa isso?
– É como se o coração desse paciente estivesse sitiado. Observe as células
inflamatórias.
Desacostumado de praticar microscopia com cortes histológicos, Jason não havia
percebido tais células inicialmente, mas agora elas lhe apareciam com toda a nitidez.
– O que acha disso? – perguntou ele.
– Não tenho certeza. Que idade você disse que esse homem tinha?


– Cinqüenta e seis – disse Jason, levantando-se. – Há alguma possibilidade, segundo a
sua avaliação, de estarmos diante de alguma doença infecciosa nova?
Jackson pensou alguns momentos, depois sacudiu negativamente a cabeça.
– Acredito que não haja inflamação suficiente para isso. Parece mais doença
metabólica, mas é só o que posso dizer. Ah, mas uma coisa – acrescentou ele, colocando no
microscópio outra lâmina. Enquanto focalizava, falou: – isto aqui faz parte do núcleo rubro do
cérebro. Diga-me, o que vê? – Recuou para deixar Jason olhar.
Jason olhou novamente ao microscópio. Identificou um neurônio. Dentro do neurônio
havia um núcleo volumoso e também uma área granulosa corada de preto. Descreveu a
Jackson o que estava vendo.
– Isto é lipofuscina – disse Jackson. Retirou o slide. Jason levantou-se.
– O que significa tudo isso?
– É o que eu desejaria saber – disse Jackson. – Tudo inespecífico, mas certamente uma
indicação de que esse seu Sr. Harring estava mesmo mal de saúde. Essas lâminas poderiam
ser do meu avô.
– Essa é a segunda vez que ouço dizerem algo parecido – disse Jason lentamente. –
Você não pode me dar algo mais específico?
– Infelizmente não – disse Jackson. Gostaria de poder cooperar mais. Vou fazer alguns
exames para me certificar de que esses depósitos no coração e em outros órgãos são realmente
substância amilóide. Darei notícias a você.
– Obrigado – disse Jason. – E o que me diz das lâminas de Hayes?
– Ainda não estão prontas – disse Jackson.
Jason voltou ao segundo andar e encaminhou-se para a área do ambulatório. Como
médico, ele sempre se fazia perguntas quanto à eficácia de certos exames, procedimentos e
medicamentos. Mas, de um modo geral, nunca tivera motivos para pôr em dúvida sua própria
competência. Na realidade, na maioria das situações se considerava eficiente acima da média.
Agora, porém, não tinha certeza disso. Essas dúvidas causaram-lhe certa perturbação,
especialmente porque, desde a morte de Danielle, vinha se utilizando do trabalho como
principal esteio de sua individualidade.
– Onde o senhor esteve? – perguntou Sally, aproximando-se de Jason quando este
procurava entrar no consultório sem ser notado. Em poucos instantes já sobrecarregava Jason
com uma infinidade de pequenos problemas que felizmente absorveram a atenção do médico.
Quando pôde respirar um tanto mais aliviado, passava um pouco do meio-dia. Atendeu o seu
último paciente da agenda, que precisava de orientação clínica e injeções para uma viagem à
Índia, depois ficou livre.
Claudia procurou convencê-lo a ir fazer um lanche junto com ela e outras secretárias,
mas Jason declinou do convite. Retirou-se para seu consultório e ali permaneceu, pensativo.
Para ele o pior era o sentimento de frustração. Sentia que havia algo de terrivelmente errado,
mas não sabia o que era, nem o que haveria de fazer. Foi tomado de um sentimento de solidão.
– Droga! – disse Jason, batendo com a palma da mão no tampo da escrivaninha com
força suficiente para fazer voar folhas de papel soltas. Precisava evitar cair em depressão.
Tinha de fazer alguma coisa. Trocando o jaleco branco pelo paletó, apanhou o beeper e
desceu até o seu carro. Saiu dirigindo, contornou Fenway, passou em frente ao Gardner
Museum e ao Museum of Fine Arts, à direita. Então, rumando para o sul, na Storrow Drive,


saiu em Arlington. Seu destino era a Central de Polícia de Boston.
Na Central de Polícia, um policial conduziu-o ao quinto andar. Assim que saiu do
elevador, viu o detetive vindo pelo saguão daquele andar, equilibrando na mão uma caneca de
café bem cheia. Curran estava sem paletó, trazia a camisa desabotoada junto ao colarinho e a
gravata afrouxada. Sob seu braço esquerdo pendia um coldre de couro gasto. Quando viu
Jason, pareceu ficar perplexo, até que o médico o lembrou de que haviam se encontrado no
necrotério e no GHP.
– Ah, sim – disse Curran, com seu leve acento irlandês. – O caso Alvin Hayes.
Convidou Jason a entrar na sua sala, que tinha apenas o essencial e utilitário, mobiliada
com escrivaninha metálica e um arquivo de aço. Na parede havia um calendário com a
programação de basquetebol do Celtics.
– Que tal um cafezinho? – sugeriu Curran, colocando sua caneca sobre a mesa.
– Não, obrigado – disse Jason.
– O senhor é esperto – disse Curran. – Todo mundo se queixa do café que servem nas
repartições públicas, mas este aqui é letal. – Puxou uma cadeira metálica de perto da parede e
fez um sinal para que Jason sentasse. – Então, que posso fazer pelo senhor, doutor?
– Não sei bem ao certo. Esse caso do Hayes me preocupa. Lembra-se de que eu lhe
contei que o Dr. Hayes acreditava ter feito uma importante descoberta? Pois bem, agora eu
penso que há boas possibilidades de que ele estivesse certo. Afinal, o homem era um
pesquisador mundialmente famoso, e trabalhava numa área de grandes potencialidades.
– Mas, um momento. O senhor também não me disse que achava que Hayes estava tendo
um colapso nervoso?
– Na ocasião em que o vi, ele apresentava um comportamento inadequado – disse
Jason. – Achei que estava paranóide e delirante. Agora, não tenho certeza. E se ele realmente
fez uma importante descoberta e não a revelou porque ainda pretendia aperfeiçoá-la? Alguém
pode ter ficado sabendo, e, por algum motivo, tentado impedi-lo.
– Mandando matá-lo – interrompeu Curran, de modo indulgente. – Doutor, o senhor
esqueceu um fato importante: Hayes morreu de causas naturais. Não houve crime, não houve
ferimentos por arma de fogo na cabeça, não houve facada pelas costas. E, acima de tudo, ele
estava traficando drogas. Encontramos heroína, cocaína e dinheiro no seu apartamento em
South End. Não é de admirar que ele estivesse paranóide. O mundo das drogas é barrapesada.
– E esse telefonema anônimo, não é um tanto estranho? – indagou Jason, com súbita
curiosidade.
– Acontece toda hora. O cara faz uma sujeira, os outros logo nos telefonam e o entregam
para se desforrarem.
Jason olhou atentamente para o detetive. Considerou que a conexão com drogas não se
encaixava no caso, mas não sabia dizer por quê. Aí se lembrou de que Hayes estivera
morando com uma bailarina de cabaré. Talvez, afinal de contas, tal conexão não fosse tão
improvável assim.
Como se estivesse lendo os pensamentos de Jason, Curran falou:
– Escute, doutor, fico satisfeito por ter vindo até aqui, mas fatos são fatos. Não sei se
esse sujeito fez uma descoberta ou não, mas deixe-me dizer uma coisa. Se ele andava
traficando drogas, então também as tomava. Isso é o que se vê sempre. Eu pedi que o


departamento de narcóticos checasse o nome dele nos computadores. Não encontraram nada,
mas isso significa apenas que ele ainda não tinha sido apanhado. Sorte dele, morrer de causas
naturais. De qualquer modo, o departamento de homicídios não pode perder tempo com essa
morte. Não há como justificar isso.
– Mesmo assim, penso que há mais coisa aí. Curran sacudiu a cabeça, com descrença.
– O Dr. Hayes tentou contar-me alguma coisa – insistiu Jason. – Acho que ele queria
ajuda.
– Claro – falou Jason. – Provavelmente estava tentando atraí-lo para o seu círculo de
drogas. Escute, doutor, siga o meu conselho. Esqueça esse assunto. – Levantou-se, indicando
que a conversa estava terminada.
Descendo para a rua, Jason retirou o talão de estacionamento do limpador do pára-brisa
do seu carro. Sentando-se junto ao volante, pensou na sua conversa com o detetive. Curran
havia sido cordial, mas evidentemente dera pouco crédito às suas idéias e intuições. Dando
partida no carro, lembrou-se de algo mais que Hayes dissera em relação à sua descoberta.
Tinha dito que era irônica. Ora, essa era uma forma esquisita de caracterizar uma importante
descoberta científica, especialmente se alguém estivesse inventando uma história.
De volta ao GHP, Jason retomou a visita aos seus pacientes, indo de quarto em quarto,
escutando, apalpando, demonstrando atenção, dando orientação. Era disso que ele gostava na
medicina. As pessoas se abriam para ele, no sentido literal e figurado. Sentia-se necessário e
privilegiado. A confiança retornou-lhe, em parte.
Eram quase quatro da tarde quando se aproximou da sala C de exames e pegou o
respectivo prontuário. Lembrava-se do nome. Era Paul Klinger, o homem cujo exame médico
ele realizara. Antes de entrar no quarto, Jason revisou rapidamente os dados constantes do
prontuário. O paciente parecia ser sadio, com nível baixo de colesterol e triglicerídios, e
eletrocardiograma normal. Jason entrou no quarto.
Klinger era um homem esbelto, com os cabelos ruivos alourados e a tranqüila atitude de
segurança de um velho ianque endinheirado.
– O que houve de errado com os meus exames? – perguntou ele preocupado.
– Nada, realmente.
– Mas a sua secretária me disse que o senhor queria repetir alguns deles. Que eu tinha
de vir hoje.
– Desculpe, quanto a isso. Não havia necessidade de alarmar. Quando ela soube que o
senhor não estava passando bem, pensou que era melhor darmos uma olhada.
– Estou saindo de uma gripe, é só o que eu tenho – disse Paul. – As crianças trouxeram
a gripe do colégio para casa. Agora estou bem melhor. O único problema é que a gripe me
impediu de praticar exercícios durante uma semana.
Gripe não era coisa que assustasse Jason. Pessoas sadias não morrem de gripe. Mesmo
assim, examinou meticulosamente Paul Klinger e repetiu várias provas cardíacas. Por fim,
disse a Klinger que telefonaria se os exames de sangue revelassem alguma anormalidade.
Tendo atendido mais dois pacientes, chegou a vez de Holly Jennings, 54 anos, executiva
de uma das maiores empresas de publicidade de Boston. Ela não se sentia feliz e certamente
não demonstrava muita timidez para expressar seus sentimentos. E embora houvesse letreiros
proibindo expressamente o fumo, ela permanecera fumando enquanto esperava.
– Mas, então, o que é que está acontecendo? – perguntou ela com jeito autoritário assim


que Jason entrou na sala. Seu exame médico, feito um mês antes, tinha dado resultados bons,
embora Jason lhe tivesse recomendado abandonar o fumo e perder os nove a treze quilos de
peso que ela adquirira nos últimos cinco anos.
– Fiquei sabendo que a senhora não andou se sentindo bem – disse Jason, com
delicadeza. Notou que a paciente parecia cansada e tinha olheiras.
– Só isso? – perguntou ela com impaciência. – A secretária me disse que o senhor
queria repetir alguns exames. O que deu errado neles?
– Nada. Só queríamos fazer um acompanhamento. Conte-me como vai a sua saúde.
– Oh, meu Deus! Quer dizer que o senhor me faz vir até aqui, deixando-me
tremendamente assustada, fazendo-me perder duas reuniões importantes, só para ter uma
conversa? Isso não podia ser feito por telefone?
– Bom, já que a senhora está aqui, por que não me conta como vem se sentindo?
– Cansada.
– Alguma coisa mais?
– Apenas sono e preguiça, geralmente. Não tenho conseguido dormir. Tenho pouco
apetite. Nada específico… bem, não é verdade. Meus olhos têm me incomodado. Tenho tido
necessidade de usar óculos escuros, muitas vezes, até mesmo no escritório.
– Isso é tudo? – perguntou Jason, sentindo uma desagradável ponta de medo.
Holly fez um gesto de desalento.
– Por alguma razão infeliz, meu cabelo está se tornando mais fino.
Com todo o tato possível, Jason examinou a mulher. A freqüência do pulso e a pressão
sangüínea estavam elevadas, se bem que isso pudesse dever-se a estresse. A pele estava seca,
especialmente nas extremidades. Quando Jason repetiu o eletrocardiograma, achou que
poderia estar havendo algumas alterações muito discretas de ST, sugestivas de redução da
oxigenação cardíaca. Ao sugerir à paciente uma outra prova de esforço, ela recusou.
– Posso vir num outro dia para isso?
– Eu preferiria que fosse agora – disse Jason. – Na verdade, o que acha de permanecer
no hospital por alguns dias?
– O senhor está brincando? Eu não tenho tempo. Além do mais, não me sinto tão mal
assim. Aliás, por que está sugerindo isso?
– Só para ter certeza de que nada foi deixado de lado. Gostaria que tivesse consulta
com um cardiologista e também com um oftalmologista.
– Na próxima semana. Segunda ou terça-feira. Porque tenho uns prazos que não posso
prorrogar.
Com relutância, Jason deixou que Holly fosse embora, depois de colher uma amostra de
seu sangue. Não havia maneira de poder obrigá-la a permanecer no hospital, até porque não
tinha nada específico para convencê-la de que estava com problemas. Ele tinha uma sensação:
uma sensação ruim.
Seguindo a rotina usual depois de voltar para casa, Jason fez o seu jogging, parou no
supermercado De Luca, onde comprou frango Perdue, pôs a refeição no forno, tomou banho e
encaminhou-se para o quarto levando uma cerveja bem gelada. Pondo-se à vontade, continuou
a leitura sobre o ADN. Começou a compreender de que modo Hayes conseguia isolar genes
específicos. Isso provavelmente era o que Helene Brennquivist estivera fazendo naquela


manhã. Depois de se encontrar uma colônia de bactérias adequada, estas eram colocadas em
cultura até se reproduzirem aos trilhões. A seguir, empregando-se enzimas, o ADN das
bactérias era separado, fragmentado, tornando-se então possível isolar e purificar o gene
desejado. Mais tarde, esse gene podia ser introduzido novamente, em diferentes bactérias, nas
regiões do ADN que podiam ser “ligadas” ou ativadas pelo pesquisador. Dessa forma, as
cepas de bactérias recombinantes atuavam como fábricas em miniatura capazes de produzir a
proteína para a qual tinham o código. Fora este o método que o Dr. Hayes usara para produzir
o seu hormônio do crescimento humano. Tinha começado com um fragmento de ADN humano,
o gene que produzia o hormônio do crescimento, reproduzira-o clonalmente com auxílio de
bactérias, depois introduzira-o no ADN de bactérias numa área controlada por um gene
responsável pela digestão da lactose. Acrescentando-se lactose à cultura, as bactérias da cepa
recombinante de Hayes tinham sido “ligadas” ou ativadas para produzir o hormônio do
crescimento humano.
Jason terminou de beber sua cerveja, foi à cozinha e abriu mais uma. Estava muito
impressionado com o que acabara de ler. Não era de admirar que cientistas como Hayes
fossem pessoas esquisitas. Sabiam que tinham o poder de manipular a vida. A apreensão desse
aspecto empolgou Jason e, ao mesmo tempo, causou-lhe certa compreensão. A tecnologia do
ADN tinha uma incrível possibilidade de fazer o bem ou o mal. O rumo a partir daí, pensou
ele, era uma questão de cara ou coroa.
Munido dessa informação, Jason sentiu-se ainda mais inclinado a acreditar que Hayes,
embora sob condições de estresse generalizado, havia dito a verdade – pelo menos quanto à
descoberta científica. Jason não tinha muita certeza quanto à afirmação de Hayes de que
alguém desejava matá-lo. Sentiu vontade de ter passado mais tempo em companhia do
cientista nos últimos meses de sua vida. Desejou saber mais a seu respeito.
Abrindo o forno, Jason verificou como estava indo o preparo do frango; a carne
começava a adquirir uma bela cor dourada e parecia deliciosa. Colocou água para ferver a
fim de cozinhar o arroz, depois voltou ao escritório. Levantou as pernas, colocando os pés
sobre o tampo da escrivaninha, e inclinou para trás a cadeira. E começou a ler o capítulo
seguinte, relacionado a técnicas de laboratório de engenharia genética. A primeira parte
tratava dos métodos pelos quais as moléculas de ADN eram fragmentadas com enzimas
chamadas endonucleases de restrição. Jason teve de ler esta parte várias vezes. A matéria era
difícil.
O apito estridente do detector de fumaça fez Jason acordar sobressaltado. Num pulo
abandonou a escrivaninha, sobre a qual adormecera, e dirigiu-se apressadamente à cozinha. A
água para o arroz tinha se evaporado completamente, e o revestimento de teflon estava
provocando fumaça, enchendo a cozinha com vapores acres. Jason colocou rapidamente sob
água corrente a panela, que respingou água e deu um chiado. Ligou o exaustor e abriu uma das
janelas da sala de estar; lentamente a cozinha ficou livre da fumaça, e por fim o detector de
fumaça voltou ao silêncio. Jason sentiu-se contente com o fato de o proprietário estar fora da
cidade, como de hábito.
Quando, por fim, o jantar ficou pronto, sem arroz, Jason levou-o até sua escrivaninha,
colocando para um lado os jornais e os livros. Ao começar a comer, viu-se de repente olhando
a primeira página do jornal Boston Globe com a manchete “Médico, Drogas e Bailarina”,
estampada na primeira página. Pegando o jornal com a mão esquerda, olhou novamente para a


foto de Carol Donner. A idéia de que Hayes podia ter vivido com essa mulher deixou-o
confuso. Imaginou que Hayes talvez tivesse sido presa da velha fantasia masculina de redimir
a prostituta que, a despeito do seu trabalho, tem um coração de ouro. Considerando que Hayes
era colega e com antecedentes e origens parecidos com os seus, inclusive a mesma Faculdade
de Medicina, Jason achou inverossímil a hipótese de o colega se encaixar nesse clichê. Mas,
como havia dito Curran, fatos são fatos. Obviamente, Hayes tinha vivido com essa mulher.
Jason atirou o jornal para o lado.
Depois de ler o que pôde com referência a pele seca, o que não era muito, Jason levou
para a cozinha os pratos sujos e lavou-os. A imagem de Carol Donner com a mão na frente do
rosto não lhe saía da mente. Olhou o relógio. Eram dez e meia da noite.
– Por que não? – disse ele em voz alta. Afinal, se Hayes vivera com essa mulher, talvez
ela soubesse algo que pudesse lhe dar uma pista sobre a descoberta feita por ele.
De qualquer modo, não tinha nada a perder. Tendo vestido uma suéter e um paletó de
tweed, Jason saiu do apartamento.
Desde Beacon Hill até a zona do meretrício eram apenas quinze minutos a pé. Mas eram
quinze minutos que significavam para Jason uma distância social enorme. Beacon Hill era a
síntese da prosperidade e da propriedade confortável, com suas ruas calçadas de pedras
antigas e seus lampiões de rua. A zona do meretrício era o contrário. Para chegar lá, Jason
contornou o Boston Common e, passando pela Boylston Street, chegou à Washington Street,
com sua fileira de casas noturnas. Havia transeuntes perambulando e se misturando
confusamente com grupos de estudantes ruidosos e operários de Dorchester, vestidos com
jaquetas de couro. O Club Cabaret ficava no meio do quarteirão, entre um cinema pornô e uma
loja de artigos eróticos que expunha em suas vitrines uma série de artigos com fins
supostamente sexuais. Luzes fluorescentes destacavam o letreiro lindas colegiais de topless.
Jason aproximou-se da porta e entrou. O bar consistia em um salão comprido e escuro,
iluminado no centro para destacar a pista de dança, que era de madeira. O bar propriamente
possuía a forma de U e circundava a pista. Dos lados havia pequenas divisões com mesas e
assentos estofados. Música de rock martelava o salão, despejada de grandes alto-falantes
colocados dos lados de uma escadaria que dava do andar de cima para a pista de dança.
O ar estava empestado de fumaça de cigarro e desse cheiro característico de produtos
químicos usados como desodorizantes baratos. O lugar se achava quase todo tomado por
homens debruçados sobre seus copos de bebida no bar. Era difícil enxergar o que havia nos
recantos laterais, mas, ao passar, Jason pôde divisar numerosas mulheres com minivestidos
decotados. Encontrou um assento livre no bar. Uma garçonete, usando uma blusa branca e
short preto apertado, veio atendê-lo quase de imediato.
Quando ele pegou a cerveja e um copo, uma dançarina seminua desceu pela escada e
entrou rebolando na pista de dança. Jason olhou para ela, atraindo-lhe o olhar por uns
instantes. Ela parecia entediada, com o rosto pesadamente maquiado, e seus cabelos de loura
artificial tinham a consistência de palha. Jason imaginou que ela devia ter mais de trinta anos
de idade, certamente não era nenhuma colegial.
Prestando atenção ao ambiente, Jason notou a mesma expressão de tédio no rosto dos
homens enquanto eles reflexamente acompanhavam com os olhos os movimentos da dançarina
indo e vindo na pista de dança. Jason tomou uns goles de cerveja diretamente da garrafa.
Naquele lugar, ninguém conseguia reunir coragem para pôr a boca num copo.


Quando a música de rock terminou, a dançarina agiu como se estivesse tendo uma
dificuldade momentânea. De um modo contrafeito, constrangido, ficou mudando de um pé para
outro, em cima dos sapatos de salto alto de dez centímetros, enquanto aguardava o número
seguinte. Jason notou na sua coxa direita um coração tatuado.
Anunciado com ruidoso rufar de tambores, começou o número seguinte, e a loura
imediatamente reiniciou seus movimentos. Enquanto se movia, foi tirando o minúsculo sutiã.
Só tinha sobre o corpo um cordão e os sapatos. Mesmo assim, os homens que bebiam no bar
pareciam ter a indiferença das pedras. Os únicos movimentos que faziam eram aqueles
necessários para levar os copos ou os cigarros aos lábios. Pelo menos até que a dançarina
começasse a circular pela pista. Aí alguns lhe estendiam cédulas de dinheiro.
Jason ficou observando um pouco, depois perscrutou novamente o salão. A uns dez
metros de distância havia uma mesa ocupada por um homem de terno preto, com um charuto na
boca e óculos escuros, lendo atentamente um livro razão. Jason não pôde entender como esse
homem conseguia enxergar algo, mas concluiu que era o gerente. Diversos sujeitos
musculosos, parecendo halterofilistas, com pescoços de 45 centímetros de perímetro, usando
camisetas brancas, mantinham-se de pé, de ambos os lados da mesa do gerente, com os braços
musculosos cruzados e as cabeças constantemente se movendo para os lados, para vigiar o
salão.
Assim que a música terminou, a strip-teaser apanhou suas coisas e, correndo, subiu os
degraus da escada. Houve aplausos esparsos. Quando a música iniciou novamente, uma nova
dançarina desceu pela escada e rodopiou pela pista. Vestida em roupas de cigana, vistosas e
volumosas, podia ser a irmã da primeira dançarina – a irmã mais velha, certamente.
Logo Jason entendeu como era o programa. Uma garota aparecia com roupagens
exóticas, dançava e progressivamente ia tirando suas roupas à medida que o número
prosseguia. Passaram-se 45 minutos, e Jason se perguntava se Carol Donner estaria
programada para aparecer nessa noite. Perguntou a uma das garçonetes.
– Ela deve ser a próxima. O senhor quer mais alguma bebida?
Jason sacudiu a cabeça negativamente. Decidira ficar com a sua primeira cerveja
durante todo o tempo que permanecesse ali. Olhando em torno, notou que várias dançarinas
haviam descido de volta ao andar térreo. Paravam junto ao homem de óculos escuros,
conversavam com ele e depois circulavam pelo salão, conversando com os fregueses. Jason
tentou imaginar o famoso biologista molecular ali no bar. Por mais que se esforçasse, não
conseguiu imaginar tal cena.
Houve uma pausa na música, as luzes da pista de dança diminuíram. O sistema de som
entrou no ar, pela primeira vez, para anunciar a artista a seguir: a famosa Carol Donner. Os
entediados fregueses escorados no bar de repente pareceram acordar. Houve alguns assobios
de animação. A música mudou para um rock mais suave e uma figura apareceu na pista.
Quando as luzes aumentaram de intensidade, Jason ficou atônito. Para sua surpresa, Carol
Donner era uma mulher jovem e linda. Sua pele tinha um brilho sadio e seus olhos cintilavam.
Estava vestida com um collant, usava testeira e polainas de malha, como se estivesse numa
aula de ginástica. Tinha os pés descalços. Movimentava-se pela pista com graça e
naturalidade, e Jason notou que o seu sorriso evidenciava um sentimento de genuína
satisfação.
À medida que prosseguia com seu número, ela removeu as polainas, tirou uma faixa de


seda que trazia em torno da cintura, e depois o collant. A fascinada platéia realmente vibrou
quando ela, de topless, subiu os degraus da escada. Assim que ela desapareceu, os fregueses
recaíram no torpor de antes. Jason ficou esperando Carol Donner aparecer no andar térreo do
salão, junto com as outras garotas, mas, depois de vinte minutos de espera, concluiu que ela
certamente não desceria. Deixou a banqueta que ocupava e encaminhou-se na direção do
homem de óculos escuros. Um dos atletas notou sua aproximação e descruzou os braços.
– Com licença – disse Jason ao homem com o livro. – Seria possível conversar com
Carol Donner?
O homem tirou o charuto da boca.
– Mas quem é você? – Jason sentia relutância em dizer o seu nome verdadeiro, e,
enquanto hesitava, o homem de óculos escuros fez um gesto a um dos guarda-costas. Jason
sentiu mãos enormes agarrarem seu braço e levarem-no em direção à porta.
– Eu só quero… – Mas não conseguiu mais nada. Foi agarrado pelo paletó e levado às
pressas ao longo do bar e pela escuridão do ambiente, com os pés mal tocando o chão.
Bastante humilhado, viu-se posto à força na rua.


5
Tendo sido despertado pelo radiorrelógio, Jason teve de permanecer sob o chuveiro
vários minutos para se sentir em condições de enfrentar o dia. Na noite anterior, depois de
retornar da desagradável visita ao Club Cabaret, fora chamado ao hospital. Um dos seus
pacientes, portador de aids, chamado Harvey Rachman, sofrera uma parada cardíaca. Quando
Jason chegara, a equipe já estava tentando ressuscitação cardiopulmonar havia quinze minutos.
Mantiveram esse esforço durante duas horas, até que se viram forçados a desistir e considerar
o paciente morto. O comentário da enfermeira-chefe, de que pelo menos ele deixaria de sofrer,
não serviu de grande consolo para Jason, já estressado. Parecia-lhe que a morte estava
vencendo a competição.
O único lado positivo das suas visitas aos pacientes internados, na parte final da manhã
desse dia, foi a alta que deu a um dos seus casos de hepatite. Ver a moça ir embora foi uma
tristeza para Jason. Porque ele agora só tinha uma única paciente com quadro favorável.
Na unidade de tratamento coronariano, Matthew Cowen não estava nada melhor. Além
das suas queixas, agora apresentava também problemas de visão. Esse sintoma deixou Jason
preocupado. Harring e Lennox também haviam apresentado problemas de visão semanas antes
de morrerem, e de novo passou pela mente de Jason a possibilidade de alguma doença
multissistêmica nova. Pediu uma consulta oftalmológica. Terminada a visita aos leitos, dirigiuse ao departamento de anatomia patológica para ver se as lâminas de autópsia de Hayes
estavam prontas. Talvez elas ajudassem a explicar por que tantas pessoas aparentemente
sadias estavam tendo acidentes cardiovasculares.
Teve de esperar enquanto Jackson dava por telefone o resultado de uma lâmina à sala
de cirurgia. Era uma biópsia de mama, o resultado era positivo.
– Isso sempre me faz mal – disse Jackson, pondo o telefone no gancho. Depois, numa
voz mais alegre, acrescentou: – Aposto como você vai querer ver as lâminas de Hayes.
Procurou em cima de sua escrivaninha até que encontrou o envelope certo. Abrindo-o,
retirou dele uma lâmina com corte histológico e focalizou-a no microscópio para Jason.
– Procure ver isto. É a aorta de Alvin Hayes – explicou Jackson, enquanto Jason
examinava a lâmina ao microscópio. A morte celular e a desorganização do tecido eram
evidentes até mesmo para um observador menos experiente. – Não é de admirar que tenha se
rompido – continuou Jackson. – Uma deterioração assim eu nunca tinha visto numa pessoa com
menos de setenta anos, a não ser nos casos de doença aórtica estabelecida. Mas deixe que eu
lhe mostre uma outra coisa. – Substituiu a lâmina por uma outra. – Isto aqui é do coração de
Hayes. Observe a artéria coronária. Está parecida com a de Cedric Harring. Todas as artérias
coronárias apresentam oclusão quase total. Se a aorta de Hayes não tivesse se rompido, ele
teria morrido de infarto. O homem era uma bomba-relógio ambulante. E não somente isto, ele
apresentava igualmente inflamação na tireóide, também como no caso de Harring. De fato,
havia tantos aspectos paralelos, que eu voltei a examinar a aorta de Harring. E sabe o que
descobri? A aorta de Harring estava a ponto de se romper.
– O que é que você quer dizer exatamente com isso? – perguntou Jason.
Jackson estendeu as mãos.
– Não sei. Existem enormes semelhanças entre os dois casos. A inflamação


generalizada. Mas não acho que seja de origem infecciosa. Tem mais a aparência de autoimunidade, como se o sistema imunológico deles tivesse começado a atacar seus próprios
órgãos.
– Como no caso do lupo?
– Sim, mais ou menos. De qualquer modo, Alvin Hayes estava em péssimo estado.
Praticamente todos os seus órgãos se achavam em estado de deterioração. Seu corpo estava se
desfazendo em pedaços.
– Ele disse apenas que não se sentia muito bem – disse Jason.
– Ora – exclamou Jackson. – Isso é que se chama subestimar a própria doença.
Jason saiu do departamento de anatomia patológica tentando entender o que Jackson
dissera. Novamente na possibilidade de alguma doença infecciosa desconhecida, apesar das
opiniões de Jackson. Afinal de contas, que tipo de doença auto-imune seria capaz de agir com
tanta rapidez? O próprio Jason respondeu à sua pergunta: nenhuma.
Antes de começar a atender os seus pacientes no consultório, Jason decidiu dar uma
chegada ao laboratório de Hayes. Não que esperasse receber alguma ajuda de Helene, mas
imaginou que ela poderia estar interessada em saber que Ha-yes estivera tão doente nas suas
últimas semanas de vida. Para sua surpresa, notou que Helene tinha estado a chorar.
– O que é que há?
Helene sacudiu negativamente a cabeça.
– Nada.
– Você não está trabalhando?
– Já terminei – disse Helene.
De imediato Jason compreendeu que, sem Hayes ali para lhe dar instruções, a moça se
achava desorientada. Aparentemente não estava informada do esquema global da pesquisa,
fato que deixou Jason pessimista quanto à possibilidade de ela saber algo sobre a descoberta
de Hayes, se é que esta ocorrera. A preferência de Hayes por manter segredo sobre o seu
trabalho resultara em perda para a comunidade científica.
– Você não se incomoda se eu conversar com você uns minutos? – perguntou Jason.
– Não – disse Helene, com seu jeito lacônico habitual. Ela fez um gesto para que
fossem para a sala de Hayes. Jason acompanhou-a, impressionado, mais uma vez, pelas fotos
de genitais expostas na parede.
– Eu acabo de vir da anatomia patológica – começou a falar Jason assim que se
sentaram. – O Dr. Hayes era um homem visivelmente doente. Você está certa de que ele não
disse que se sentia mal?
– Disse, sim – admitiu Helene, invertendo sua afirmação anterior. – Ele andou dizendo
que se sentia fraco.
Jason olhou atentamente, de lado, a moça. Ela pareceu mais delicada, mais franca, e ele
percebeu que, ao contrário das vezes anteriores em que a vira, seus cabelos agora estavam
soltos, caindo até os ombros, em vez de austeramente atados atrás.
– Da última vez, você disse que o comportamento dele não tinha mudado.
– E não tinha mesmo. Ele só disse que se sentia indisposto.
Frustrado com essa distinção semântica, Jason novamente se convenceu de que ela
estava encobrindo alguma coisa. Perguntou-se por quê. Mas achou que não iria obter nada se a
interrogasse mais minuciosamente.


– Srta. Brennquivist – disse Jason, falando com paciência. – Eu quero perguntar
novamente. Tem absoluta certeza de que não faz idéia do que Hayes podia estar querendo
dizer quando me revelou que havia realizado uma importante descoberta científica?
Ela sacudiu a cabeça.
– Eu realmente não sei. A verdade é que, no laboratório, as coisas não estavam indo
bem. Há uns três meses, os ratos que recebiam fatores de liberação de hormônio de
crescimento começaram a morrer misteriosamente.
– De onde vinham os fatores de liberação?
– O próprio Dr. Hayes os extraía dos cérebros de ratos. Principalmente do hipotálamo.
Depois eu os conduzia mediante técnicas do ADN recombinante.
– Então os experimentos foram um fracasso?
– Um completo fracasso – disse Helene. – Mas, como qualquer grande pesquisador, o
Dr. Hayes não se deixou abater. Ao contrário, passou a trabalhar com mais afinco. Tentou usar
proteínas diferentes, mas infelizmente chegou aos mesmos resultados fatais.
– Você acha que o Dr. Hayes estava mentindo quando me disse que havia feito uma
descoberta?
– O Dr. Hayes nunca mentia – disse Helene, indignada.
– Bom, então como explica isso? – perguntou Jason. – De início, pensei que ele estava
tendo um colapso nervoso. Agora, não tenho tanta certeza. O que você acha?
– Essa hipótese é absolutamente infundada – disse Helene, levantando-se para deixar
claro que a conversa estava encerrada. Jason atingira um nervo exposto. Ela não estava
disposta a ouvir calúnias contra o seu falecido chefe.
Contrariado, Jason desceu para o seu consultório, onde Sally já estava com dois
pacientes esperando para fazer exames médicos. Entre os dois exames, Jason escapou de Sally
o tempo suficiente para verificar os exames de laboratório de Holly Jennings. A única
alteração significativa em relação aos exames anteriores da publicitária foi uma elevação da
gama-globulina, o que levou novamente Jason a considerar a possibilidade de uma epidemia
não relacionada à AIDS e que envolvia o sistema auto-imune. Em vez de desativar o sistema
auto-imune, como ocorre na AIDS, este problema novo parecia ativá-lo de uma forma
destrutiva.
Pelo meio da manhã, Jason recebeu um telefonema de Margaret Danforth, que disse,
sem maiores preâmbulos:
– Achei que você deveria saber que a urina do Dr. Hayes revelou níveis moderados de
cocaína.
Então Curran tinha razão, deduziu Jason, desligando o telefone. Hayes andara usando
drogas. Mas Jason não podia saber com certeza se isso estava relacionado com a afirmação
do cientista de que realizara uma descoberta, com seu medo de ser atacado, ou mesmo com
sua morte real.
Viu-se forçado a pôr de lado essas indagações, porque a enorme lista de pacientes a
atender estava sobrecarregando sua agenda. A pressão aumentou quando recebeu um
telefonema de Shirley, que aparentemente soubera da visita que ele fizera a Helene.
– Jason – disse ela, com uma ponta de irritação na voz –, por favor, não ponha lenha na
fogueira. Deixe o caso de Hayes esfriar.
– Eu acho que Helene sabe mais do que está dizendo – ponderou Jason.


– Do lado de quem você está? – perguntou Shirley.
– Está bem, está bem – disse ele, interrompendo-a com rudeza ao ver diante de si
Madaline Krammer, uma paciente idosa que tinha sido passada à frente dos outros como
emergência. Até então seu quadro cardiológico tinha sido estável. Subitamente ela passara a
apresentar edema maleolar e estertores pulmonares. Apesar da medicação enérgica, a
cardiopatia congestiva da paciente aumentara de gravidade, a ponto de Jason ter de insistir
pela hospitalização.
– Neste fim de semana não – protestou Madaline. – Meu filho está chegando da
Califórnia com a filhinha dele. Eu ainda não consegui ver a minha netinha. Por favor! –
Madaline era uma mulher alegre, de sessenta e poucos anos, o cabelo cinza-prateado. Jason
sempre tivera simpatia por ela, pois Madaline raramente se queixava e era
extraordinariamente agradecida pelo seu trabalho.
– Sra. Madaline, desculpe-me. Eu não faria isso se não achasse necessário. Mas a única
maneira de podermos ajustar a sua medicação é usando monitoração contínua.
Resmungando, porém resignada, Madaline concordou. Jason disse-lhe que a veria mais
tarde, e entregou-a aos cuidados competentes de Claudia. Pelas quatro da tarde, quase
conseguira pôr em dia os compromissos de sua agenda. Ia sair do consultório, quando deu de
cara com Wanamaker, que, com seu corpo enorme e volumoso, bloqueava por completo a
estreita passagem para a sala.
– Agora é a minha vez – disse Roger. – Consegue um minuto para uma conversa?
– Claro – disse Jason, que nunca dizia não a um colega. E indicou o caminho de volta
ao seu consultório. Roger cerimoniosamente colocou uma papeleta sobre a escrivaninha.
– Assim pelo menos não vai achar que é só com você que tais coisas acontecem – falou
ele. – Essa papeleta é de um executivo de 53 anos, da Data General, que acabou de ser trazido
para a sala de urgências morto, mais morto que uma pedra. Pois faz menos de três semanas que
realizei nele um exame de saúde executivo completo.
Jason abriu o prontuário e olhou os resultados dos diversos exames, inclusive
eletrocardiograma e exames de laboratório. O colesterol estava alto, mas não muito.
– Mais um infarto? – perguntou ele, passando ao resultado da radiografia de tórax. Era
normal.
– Não – disse Roger. – Acidente vascular cerebral maciço. O sujeito teve uma
convulsão em plena reunião de diretoria. A esposa dele enlouqueceu de desespero. Fez-me
sentir horrivelmente mal. Disse que ele andava sentindo a saúde abalada desde que fizera o
exame conosco.
– Quais eram os sintomas dele?
– Nada específico – disse Roger. – Principalmente insônia e tensão, esse tipo de coisas
de que os executivos vivem se queixando.
– Que diabos anda acontecendo? – perguntou Jason de um modo enfático.
– Sei lá – disse Roger. – Mas estou tendo uma sensação desagradável; como se
estivéssemos no início de algum tipo de epidemia ou coisa parecida.
– Eu conversei com Madsen, na patologia. Perguntei-lhe se havia possibilidade de ser
uma doença infecciosa desconhecida. Ele disse que não. Que era coisa metabólica, talvez
auto-imune.
– Penso que seria melhor fazermos alguma coisa. E aquela reunião que você sugeriu?


– Ainda não a convoquei – admitiu Jason. – Vou pedir a Claudia que reúna todos os
exames médicos que realizei de um ano para cá e verifique como os pacientes estão de saúde.
Talvez você deva fazer a mesma coisa.
– Boa idéia.
– E quanto à autópsia deste caso? – perguntou Jason, devolvendo a Roger o prontuário.
– Os resultados estão com o médico-legista.
– Então depois me ponha a par do que ele achou. Quando Roger saiu, Jason redigiu um
aviso para que se convocasse uma reunião com os outros médicos no começo da semana
seguinte. Ainda que não quisesse conhecer a extensão do problema, Jason entendia que não
podia permanecer tranqüilamente sentado a olhar enquanto pacientes com exames de saúde
aparentemente normais iam parar no necrotério.
Quando se preparava para seu último paciente nesse dia, Jason viu-se novamente
pensando em Carol Donner. Tendo subitamente uma idéia, contornou a mesa central e
encontrou-se com Claudia. Pediu que ela descesse ao setor de pessoal e procurasse obter o
endereço residencial de Hayes. Acreditava que se houvesse alguém capaz para isso, esse
alguém era Claudia.
Voltando a seguir na direção de seu consultório, para atender o último paciente de
ambulatório, Jason ficou a imaginar por que não havia pensado antes em obter o endereço de
Hayes. Se Carol Donner estivera vivendo com Hayes, seria muito mais fácil conversar com
ela no seu apartamento do que no Club Cabaret, onde evidentemente era de se esperar que a
protegessem de estranhos. Talvez ela tivesse alguma idéia da descoberta feita por Hayes, ou
pelo menos soubesse como andava a sua saúde. Quando Jason terminou de atender seu último
paciente, Claudia veio trazer o endereço. Era no South End.
Depois de haver atendido todos os pacientes de ambulatório, Jason deixou registradas
as anotações correspondentes e dirigiu-se ao elevador principal para iniciar as visitas aos
leitos. A primeira paciente foi Madaline Krammer.
Ela já estava passando melhor. Uma dose maior de diurético havia conseguido
diminuir-lhe consideravelmente a inchação dos pés e das mãos, mas quando Jason tornou a vêla, ficou preocupado ao verificar que as suas pupilas pareciam amplamente dilatadas e sem
reação à luz. Fez uma anotação na papeleta dela e partiu para os outros casos.
Antes de examinar Matthew Cowen, pegou a sua papeleta para ver o que o
oftalmologista havia registrado em relação aos olhos do paciente. Muito chocado, Jason leu:
“Discreta formação de catarata em ambos os olhos. Realizar novo exame em seis meses.”
Jason não conseguia acreditar no que estava vendo. Catarata aos 35 anos? Lembrou-se de que
a autópsia havia assinalado a presença de catarata nos olhos de Connoly. Lembrou-se também
de que acabara de constatar dilatação pupilar em Madaline Krammer. Com que diabo de
doença estavam lidando? Ficou ainda mais confuso quando examinou Matthew.
– O senhor está me prescrevendo algum remédio misterioso? – quis saber o paciente tão
logo viu Jason.
– Não. Por quê?
– Porque meu cabelo está caindo. – Para mostrar o que dizia, puxou algumas mechas de
cabelo, que realmente se desprenderam. Espalhou tudo sobre o travesseiro.
Jason apanhou alguns fios, rolando-os entre o polegar e o indicador. Pareciam normais,
exceto quanto a uma cor acinzentada na raiz. Jason examinou o couro cabeludo de Matthew.


Também este pareceu normal, sem nenhuma inflamação ou solução de continuidade.
– Há quanto tempo isso vem acontecendo? – perguntou ele, lembrando-se de Brian
Lennox, com extraordinária nitidez, e também do comentário da Sra. Harring de que o seu
marido começara a apresentar queda de cabelo.
– Piorou muito hoje – disse Matthew. – Não quero dar a impressão de paranóide, mas
parece que tudo acontece comigo.
– É apenas coincidência – disse Jason, procurando fortalecer sua própria confiança
tanto quanto a de Matthew. – Vou pedir um novo exame ao dermatologista. Vai ver, isso está
associado ao seu problema de pele seca. Por falar nisso, houve alguma melhora nesse
aspecto?
– Que nada. Ficou pior, se isso é possível. Eu não devia ter vindo para o hospital.
Jason sentiu-se propenso a concordar, especialmente tendo em conta que muitos dos
seus pacientes estavam tendo um quadro desfavorável. Quando terminou as visitas aos
pacientes internados, sentia-se exausto. Quase ia se esquecendo de que alguns amigos bemintencionados tinham insistido com ele para que comparecesse a um jantar, à noite, de modo
que pudessem apresentá-lo a uma bonita advogada de 34 anos de idade chamada Penny
Lambert. Tendo apenas uma hora disponível, Jason concluiu que não valia a pena ir para casa.
Em vez disso, pegou o mapa da cidade de Boston, que trazia no carro, e localizou a
Springfield Street, onde estava situado o apartamento de Hayes. Era um tanto longe da
Washington Street.
Jason achou que era uma boa hora para conseguir encontrar Carol Donner, e por isso
decidiu ir de carro diretamente para lá. Mas a execução foi mais difícil que o planejamento.
Dirigindo-se para o sul, viu-se preso no trânsito engarrafado da Massachusetts Avenue. Com
persistência, chegou à Washington Street e dobrou à esquerda, depois novamente à esquerda,
já na Springfield Street. Localizou o edifício de Hayes, a seguir encontrou um estacionamento.
A vizinhança era uma mistura de prédios reformados e não reformados. O de Hayes
fazia parte destes últimos. Na escadaria da frente havia pichações em spray. Jason entrou na
portaria e notou que diversas das caixas de correspondência estavam quebradas e que a porta
interna da portaria se achava aberta. Na realidade, a fechadura da porta apresentava sinais de
ter sido arrombada havia muito tempo e de nunca ter sido recolocada. O apartamento de Hayes
ficava no terceiro andar. Jason começou a subir a escadaria mal iluminada. Havia um cheiro
desagradável de mofo e umidade.
O edifício era grande, com apartamentos de solteiro em todos os andares. No terceiro
andar, Jason tropeçou em diversos números do Boston Globe ainda nos seus envoltórios
plásticos. Não havia campainha, por isso Jason bateu na porta com os nós dos dedos. Não
ouviu resposta: bateu novamente, com mais força. Com um rangido, a porta abriu uns poucos
centímetros. Olhando para baixo, Jason viu que a porta tinha sido forçada recentemente e que
havia madeira lascada no marco. Jason abriu-a cautelosamente, empurrando-a com o dedo
indicador. A porta rangeu de novo, como se sentisse dor. “Oi”, chamou ele. Não houve
resposta. Deu dois ou três passos para dentro do apartamento. “Oi”, chamou de novo. Nenhum
ruído, exceto o de água escorrendo no banheiro. Fechou a porta atrás de si e começou a
atravessar uma sala escura em direção a uma porta parcialmente aberta.
Deu uma olhada e quase teve de sair às pressas. O lugar tinha sido revirado. Na sala,
anteriormente decorada com peças antigas e reproduções de obras de arte, a desordem era


geral. Todas as gavetas da escrivaninha e de uma estante haviam sido puxadas para fora e
esvaziadas. As almofadas do sofá tinham sido cortadas e abertas e o conteúdo de uma grande
estante estava espalhado desordenadamente pelo chão.
Pisando com cautela no meio de toda aquela desordem, Jason espiou para dentro de um
pequeno quarto de dormir, que se encontrava nas mesmas condições da sala; depois, passou
pela sala e chegou até um quarto maior, que supôs ser o principal do apartamento. Também ali
a desarrumação era total. Todas as gavetas tinham sido removidas e esvaziadas; as roupas do
closet tinham sido tiradas dos cabides e jogadas no chão. Jason pegou algumas peças de
roupa, notando que eram todas de homem.
Subitamente, a porta principal do apartamento rangeu, fazendo com que Jason sentisse
um frio na espinha. Ele deixou cair no chão as peças de roupa que segurava. Decidiu
novamente chamar, esperando que fosse Carol Donner, mas, por uns momentos, sentiu-se
apavorado demais para falar. Permaneceu absolutamente imóvel, com os ouvidos atentos, à
procura de qualquer som. Quem sabe, uma corrente de ar teria empurrado a porta… Então
ouviu um baque surdo, como o de um sapato se chocando contra um livro ou uma gaveta
virada. Não havia dúvida, alguém estava no apartamento, e Jason teve a sensação de que,
fosse quem fosse, esse alguém sabia que ele estava ali. O suor começou a escorrer-lhe pela
testa e ao longo do nariz. A advertência do detetive Curran de que o mundo das drogas era
perigoso surgiu-lhe como um relâmpago na memória. Conjeturou se não haveria uma saída
para escapar dali. Então se deu conta de que se encontrava na extremidade de um longo
corredor.
De súbito, um vulto enorme ocupou todo o vão da porta. Mesmo com a escuridão
reinante, Jason pôde notar que a pessoa enorme segurava uma arma.
O pânico dominou-o, seu coração disparou. Mesmo assim, porém, ele não se moveu.
Uma segunda pessoa, de estatura menor, juntou-se à primeira, e ambas entraram no quarto.
Então avançaram na direção de Jason, inexoravelmente, passo a passo. Pareceu uma
eternidade. Jason quis gritar ou correr.


6
No instante seguinte, Jason pensou que tinha morrido. Houve um clarão. Mas ele
compreendeu que não era a arma, e sim a lâmpada bem acima de sua cabeça. Ainda estava
vivo. Dois policiais uniformizados estavam postados diante dele. De tão aliviado, Jason
sentiu vontade de abraçá-los.
– Que satisfação ver vocês – disse Jason.
– Vire – ordenou o policial mais encorpado, ignorando o comentário de Jason.
– Eu posso explicar… – começou a falar, mas disseram-lhe que calasse a boca e
colocasse as mãos na parede, mantendo as pernas abertas.
O segundo policial revistou-o, retirando-lhe a carteira do bolso. Quando constataram
que Jason estava desarmado, tiraram-lhe os braços da parede e algemaram-no pelos pulsos.
Levaram-no através do apartamento, desceram com ele as escadas e conduziram-no até a rua.
Alguns transeuntes pararam para ver Jason sendo colocado no assento de trás de um carro sem
placa.
Os policiais permaneceram em silêncio durante o percurso até a delegacia de polícia, e
Jason concluiu que não fazia sentido tentar explicar enquanto não chegassem. Agora que se
sentia mais calmo, começou a pensar no que haveria de fazer. Calculou que teria a
possibilidade de dar um telefonema, e imaginou se devia telefonar para Shirley ou para o
advogado que lhe dera assessoria quando resolvera vender a casa e o consultório.
Mas quando chegaram à delegacia, os policiais simplesmente o conduziram até uma
sala pequena e sem móveis, onde o deixaram.
Ao saírem, chavearam a porta, e aí Jason entendeu que estava preso.
Nunca antes fora posto na cadeia; a sensação não foi boa.
Enquanto os minutos passavam, Jason compreendeu a gravidade da situação. Lembrouse do pedido de Shirley, de que não pusesse lenha na fogueira. Só Deus podia saber que efeito
teria sua prisão sobre sua clientela se o caso viesse a público.
Por fim, a porta da sala se abriu e o detetive Michael Curran entrou, acompanhado pelo
policial menor. Jason sentiu-se contente ao ver Curran, mas imediatamente percebeu que o
detetive não correspondeu a esta sua emoção. As rugas no seu rosto pareciam mais acentuadas
do que nunca.
– Tire as algemas dele – disse Curran, sem sorrir. Jason ficou de pé enquanto o policial
lhe soltava as mãos.
Olhou para o rosto de Curran, tentando sondar-lhe os pensamentos, mas o detetive
permanecia indecifrável.
– Quero conversar com ele a sós – disse ele ao policial, que assentiu e deixou a sala. –
Tome a sua maldita carteira – disse Curran, pondo-a nas mãos de Jason. – Para o senhor é
difícil seguir um conselho, não é mesmo? Que é que eu tenho de fazer para convencê-lo de que
esse assunto de drogas é coisa séria?
– Eu só estava querendo falar com Carol Donner…
– Era só o que faltava. Quer dizer que de repente o senhor resolve se meter onde não foi
chamado, querendo zonear o nosso serviço?
– Como assim? – perguntou Jason, começando a se sentir irritado.


– O departamento de narcóticos está vigiando o apartamento de Hayes desde que
soubemos que ele foi revistado. Esperamos pegar alguém mais interessante do que o senhor.
– Desculpe.
Curran sacudiu a cabeça contrariado.
– Bom, a coisa podia ter sido pior. O senhor podia ter se machucado. Por favor, doutor,
não é melhor voltar para o seu trabalho de médico?
– Estou livre, posso ir embora? – perguntou Jason, incrédulo.
– Está sim – disse Curran, voltando-se em direção à porta. – Não vou registrar esta
ocorrência. Seria absurdo perdermos nosso tempo.
Jason saiu da delegacia de polícia e tomou um táxi para retornar à Springfield Street,
onde retomou seu carro. Lançou um olhar ao prédio de Hayes e sentiu um calafrio. Essa fora
uma experiência apavorante.
Com a sensação, agora, de que tinha adrenalina suficiente no seu organismo para correr
uma milha em quatro minutos, Jason sentiu-se contente por ter um programa para essa noite.
Seus amigos, os Alics, tinham convidado um grupo animado de pessoas, e a comida e o vinho
eram realmente bons. A moça que eles desejavam apresentar-lhe, Penny Lambert,
impressionou-o por ser uma jovem algo yuppie, com sua roupa conservadora, um terninho azul
com uma volumosa gravata-borboleta de seda. Felizmente, ela era alegre e comunicativa, e
haveria de compensar essa frustração que ele agora sentia por se ver incapaz de parar de
pensar no apartamento de Hayes e na sua necessidade de falar com Carol Donner.
Depois de haver tomado o cafezinho e o licor, Jason teve uma idéia. Se se oferecesse
para levar Penny para casa, talvez conseguisse persuadi-la a fazer uma parada no Club
Cabaret. Evidentemente, Carol não estava mais morando no apartamento de Hayes, e Jason
calculou que poderia ter uma oportunidade melhor de falar com Carol se estivesse
acompanhado de outra mulher. Para seu contentamento, Penny aceitou seu oferecimento de uma
carona. Quando estavam no carro, ele lhe perguntou se estava com disposição para alguma
aventura.
– O que quer dizer com isso? – perguntou ela, cautelosa.
– Achei que você poderia gostar de ver um outro lado de Boston.
– Algo como uma discoteca?
– Mais ou menos – disse Jason. De um modo levemente perverso, conjeturou que a
experiência poderia ser boa para Penny. Ela era muito bonita, mas um tanto certinha e
previsível demais.
Ela relaxou sorrindo e conversando até chegarem diante do Club Cabaret.
– Tem certeza de que é uma boa idéia? – perguntou ela.
– Ora, não se preocupe – tranqüilizou-a Jason.
No caminho, ele a colocara ligeiramente a par das coisas, explicando que desejava ver
a moça com quem o Dr. Hayes estivera envolvido. Penny lembrou-se da história que lera nos
jornais, e isso não lhe aumentara a confiança; mas com um pouco de insistência, ele a
persuadira a deixar que estacionasse e a conduzisse até ali.
Sexta-feira era evidentemente uma noite especial. Segurando a mão de Penny, Jason
abriu caminho pelo salão, esperando poder evitar o homem de óculos escuros e seus dois
hercúleos guarda-costas. Com a ajuda de uma nota de cinco dólares, conseguiu que uma das
garçonetes lhe desse uma mesa localizada junto à parede lateral, diversos degraus acima do


piso do salão. Dali podiam ver a pista de dança, ao mesmo tempo que permaneciam
parcialmente ocultos dos dançarinos pelas espessas sombras das silhuetas dos homens que
ficavam de pé, ao fundo, no bar.
Entraram no meio de dois números. Tinham acabado de pedir drinques quando os altofalantes anunciaram o número seguinte. Os olhos de Jason já tinham-se adaptado à escuridão,
e mesmo assim ele mal conseguia enxergar o rosto de Penny. O que conseguia enxergar melhor
era o branco dos olhos dela. Ela não piscava muito.
Uma strip-teaser apareceu no meio de um torvelinho de tecido crepe transparente.
Houve alguns assobios de provocação. Penny permanecia em silêncio. Enquanto pagava à
garçonete os drinques, Jason perguntou-lhe se Carol Donner iria dançar essa noite. A
garçonete disse que o primeiro número de Carol era às onze horas. Jason sentiu um alívio –
pelo menos ela não havia sido eliminada junto com a destruição do apartamento de Hayes.
Quando a garçonete se afastou, ele pôde perceber que a strip-teaser estava terminando
a sua exibição e que Penny olhava com os lábios muito apertados.
– Isto é repugnante – falou ela com desdém.
– Não é propriamente a Sinfônica de Boston – concordou Jason.
– Essa aí tem até celulite.
Jason olhou com mais atenção quando a dançarina subiu as escadas, de volta aos
camarins. A parte posterior das coxas da dançarina estava toda marcada de celulite. Jason
sorriu. Era curioso como uma mulher percebia logo essas coisas.
– Será que esses homens realmente apreciam isso? – perguntou Penny, com aversão.
– Boa pergunta. Na verdade, não sei. A maioria deles parece que sente tédio.
Mas ninguém ficou entediado quando Carol apareceu. Tal como acontecera na noite
anterior, os espectadores adquiriram vida quando ela começou a apresentar o seu número.
– O que acha? – perguntou Jason.
– É uma bela dançarina, mas não posso acreditar que esse seu amigo estivesse
envolvido com ela.
– Exatamente o que eu pensava – disse Jason. Agora ele não tinha tanta certeza. Carol
Donner evidenciava uma personalidade muito diferente daquela que ele imaginava.
Depois que Carol terminou o seu número e novamente não apareceu entre os
freqüentadores da casa, Jason achou que era a hora de ir. Penny estava ansiosa por sair, e
Jason notou, a caminho de casa, que ela tinha pouco a falar. Achou que o Club Cabaret não
tinha lhe causado uma boa impressão. Quando a deixou à porta de casa, nem mesmo se
preocupou em dizer que lhe telefonaria. Sabia que os Alics ficariam desapontados, mas
também considerou que eles deviam ter tido o bom senso de fazer algo melhor do que
apresentá-lo a uma gravata-borboleta.
De volta a seu apartamento, Jason tirou a roupa com que saíra e pegou no seu escritório
o livro sobre ADN. Foi para a cama e começou a ler. Lembrando-se de como se sentira
exausto de tarde, achou que adormeceria em seguida. Mas não foi isso que aconteceu.
Continuou a ler sobre bacteriófagos, as partículas virulentas que infectam bactérias, e ficou
sabendo como eram utilizados em engenharia genética. Depois leu um capítulo sobre
plasmídios, dos quais nunca ouvira falar antes de começar a ler sobre ADN. Ficou muito
admirado ao saber que os plasmídios são pequenas moléculas circulares de ADN que existem
nas bactérias e se reproduzem com inteira fidelidade quando da reprodução destas.


Também desempenham uma função de extrema importância como veículos para a
introdução de segmentos de ADN nas bactérias.
Ainda plenamente desperto, Jason olhou a hora. Passava das duas da madrugada, e sono
era o que não tinha mesmo. Tendo se levantado, foi para a sala de estar e olhou para a
Louisburg Square. Um carro parou. Era o inquilino que morava no térreo do prédio onde Jason
ocupava um apartamento. Também ele era médico, e embora mantivessem um trato amistoso
um com o outro, Jason pouco sabia desse homem, a não ser que ele tinha encontros com grande
número de mulheres bonitas. Jason costumava se perguntar onde é que o sujeito encontrava
tanta mulher bonita. Como sempre, também desta vez ele saiu do carro com uma loura atraente,
e no meio de uma risada abafada desapareceram de vista, entrando no andar de baixo. Jason
ouviu a porta principal do prédio se fechar. O silêncio retornou. Não conseguia tirar da mente
a imagem de Carol Donner; desejava conversar com ela. Olhando o relógio da sala, teve uma
idéia. Às pressas, voltou ao quarto, tornou a se vestir e saiu em direção ao seu carro.
Com alguns pressentimentos e dúvidas a respeito das possíveis conseqüências, voltou à
zona do meretrício. Contrariamente ao que acontecia no restante da cidade, ali tudo ainda
estava em grande atividade. Passou uma vez de carro em frente ao Club Cabaret, depois deu
uma volta, engrenou marcha à ré numa rua lateral sem movimento e estacionou o carro.
Desligou o motor. Havia alguns tipos duvidosos e mal-encarados parados em vãos de portas e
na ruazinha lateral, o que fez Jason sentir-se desconfortável. Procurou certificar-se de que as
portas do seu carro estavam efetivamente trancadas.
Fazia um quarto de hora que havia chegado quando viu surgir um grande grupo de
pessoas que saíam do clube e seguiam cada uma o seu caminho. Uns dez minutos depois,
apareceu um grupo de dançarinas. Conversavam umas com as outras diante do clube, depois
se separaram. Carol não estava entre elas. Justamente quando Jason começou a sentir-se
preocupado com a possibilidade de não ter percebido a passagem dela, Carol apareceu com
um dos guarda-costas do clube. Ele usava uma jaqueta de couro aberta sobre uma camisa
branca tipo T-shirt. Dobraram à direita, dirigindo-se ao Filene’s, na Washington Street.
Jason deu partida no seu carro, não sabendo o que fazer. Felizmente havia muito tráfego,
de carros e de pedestres. Para poder ficar de olho em Carol, Jason forçou a entrada na
Washington Street trafegando perto da calçada. Um guarda de trânsito viu e fez sinal para que
ele prosseguisse. Carol e o amigo dobraram à esquerda, na Boylston Street, encaminharam-se
para um estacionamento aberto e entraram num enorme Cadillac preto.
Bom, pelo menos vai ser fácil mantê-los à vista, pensou Jason. Mas nunca tendo
seguido alguém, descobriu que a coisa não era tão fácil como imaginava, especialmente se não
quisesse ser notado. O Cadillac contornou a frente do prédio da Common, prosseguiu para
norte na Charles Street e depois dobrou à esquerda na Beacon Street, passando pela
Hampshire House. Alguns quarteirões mais adiante, o carro parou no lado esquerdo da rua e
ali estacionou em fila dupla. Essa era uma área da cidade chamada Back Bay, formada por
edifícios grandes e antigos, do início do século, a maioria deles transformados em prédios
para aluguel ou condomínios. Jason passou junto ao Cadillac no momento em que Carol
desembarcava do carro. Diminuindo a marcha, observou pelo espelho retrovisor; pôde vê-la
subir a escadaria dianteira de um prédio com uma grande frente envidraçada. Dobrou à
esquerda em Exeter, a seguir novamente à esquerda em Marlborough. Depois de esperar por
uns cinco minutos, deu a volta no quarteirão. Ao chegar novamente à Beacon Street, procurou


pelo Cadillac preto. O carro sumira.
Jason estacionou em frente a um hidrante de incêndio, a meia quadra do edifício de
Carol. Às três horas da madrugada, Back Bay era um lugar sossegado – não havia transeuntes,
e só ocasionalmente passava algum carro. Jason virou-se e caminhou pela calçada que levava
ao edifício de Carol. Percorreu com o olhar a fachada de seis andares e não viu luz acesa em
nenhuma das janelas. Entrou no corredor de entrada do edifício e leu com atenção os nomes
dos moradores apostos nos botões das campainhas. Eram quatorze. Ficou desapontado ao
verificar que não constava o nome de Donner.
Deu uns passos para voltar à rua e ficou pensando no que poderia fazer. Lembrou-se de
que havia uma ruela que interligava as ruas Beacon e Marlborough; deu a volta no quarteirão,
contando os prédios até localizar o de Carol. Havia uma luz acesa numa janela do quarto
andar. Achou que devia ser o apartamento de Carol, pois era improvável que alguém mais
estivesse acordado a essa hora.
Com a intenção de voltar à portaria e tocar a respectiva campainha, Jason voltou e
encaminhou-se novamente para a frente do prédio. Avistou imediatamente um homem, sozinho,
mas continuou andando, na esperança de que o sujeito simplesmente passasse. Como a
distância entre eles diminuía, Jason diminuiu o passo, depois parou. Para seu espanto,
percebeu que era o halterofilista, com a jaqueta de motociclista aberta, mostrando uma
camiseta branca justa por sobre uma musculatura poderosa. O mesmo indivíduo que o havia
tirado à força do Club Cabaret na noite anterior.
O homem continuou andando em direção a Jason, com a mão fechada; era visível o que
ele tencionava. Jason calculou que ele deveria ter seus vinte e poucos anos e percebeu que
tinha uma cara redonda, indicativa de que o sujeito tomava esteróides. Evidentemente tudo
fazia prever que haveria problemas. E a esperança de Jason de que o sujeito não o
reconheceria logo se desfez, pois o leão-de-chácara rosnou:
– Tá querendo o quê, seu babaca?
Jason não precisou ouvir mais nada. Deu meia-volta e disparou em direção ao outro
extremo da rua. Infelizmente seus mocassins leves de sola de couro não podiam competir com
os tênis do halterofilista.
– Seu anormal de merda! – gritou ele, obrigando Jason a parar.
Jason abaixou-se para desviar-se de um murro violento e conseguiu agarrar a perna do
brutamontes, tentando derrubá-lo. Infelizmente, era como agarrar a perna de um piano. Jason é
que foi levantado do chão. Para ele já se tornara evidente que a luta era desigual, e por isso
preferiu algum tipo de diálogo.
– Por que você não vai procurar alguém do seu tamanho? – gritou ele exasperado.
– Porque não gosto de anormais – disse o halterofilista, praticamente erguendo Jason no
ar.
Girando para um lado, depois para outro, Jason conseguiu desembaraçar-se do paletó e
disparou rua fora, derrubando, na arrancada, uma lata de lixo.
– Eu vou te ensinar a ficar fuçando por perto de Carol; – gritou o gorila, chutando para
o lado a lata de lixo, ao mesmo tempo que saía em perseguição a Jason. Mas este, com seus
anos de prática de jogging, levou vantagem. Embora o haterofilista, corpulento, fosse rápido
em seus movimentos, na corrida ficou em desvantagem, e Jason conseguiu perceber que a
respiração do sujeito ficava cada vez mais ofegante. Jason estava quase no fim da pequena rua


quando escorregou em cascalho solto, perdendo o equilíbrio por um instante. Conseguiu
aprumar-se novamente, quando uma pesada mão o agarrou pelo ombro e o fez girar sobre si
mesmo.


7
– Pare aí! Polícia! – Uma voz rompeu o silêncio da noite de Boston. Jason ficou imóvel,
e o mesmo fez o halterofilista. As portas de um carro da polícia, sem placas, estacionado
perto da entrada da rua, subitamente se abriram, e três policiais à paisana saltaram para fora.
Novamente Jason ouviu a ordem: – De pé contra a parede. De pernas abertas! – Ele obedeceu,
mas o halterofilista ainda relutou por uns instantes. Por fim, resmungou para Jason:
– Sorte a sua, seu filho da puta. – E então obedeceu à ordem dos policiais.
– Calem a boca! – ordenou um policial. Jason e seu perseguidor foram revistados
rapidamente, depois tiveram de virar de frente e receberam ordem de pôr as mãos na nuca. Um
tira pegou uma lanterna e verificou as identidades dos dois.
– Bruno DeMarco? – perguntou o policial, mirando a lanterna no rosto do halterofilista.
Bruno sacudiu a cabeça afirmativamente. Depois a luz enfocou o rosto de Jason. – Dr. Jason
Howard?
– Isto mesmo.
– O que é que anda acontecendo aqui? – perguntou o policial.
– Esse merda estava querendo perturbar a minha namorada – informou Bruno, com voz
irada. – Tava seguindo ela.
O policial olhou para Bruno, depois para Jason, e novamente para Bruno; então
caminhou até onde estava o carro, abriu a porta e apanhou alguma coisa no banco de trás.
Quando voltou, devolveu a Bruno a sua carteira e disse-lhe que fosse para casa e tentasse
dormir. Num primeiro momento, Bruno agiu como se não tivesse compreendido, mas depois
pegou a sua carteira.
– Eu vou me lembrar de você, seu bundão! – gritou ele para Jason, enquanto
desaparecia em direção à Beacon Street.
– O senhor – disse o policial, apontando para Jason.
– Ali no carro! Jason sentiu-se atordoado. Não conseguia acreditar que mandassem
embora o brutamontes e não a ele. Ia começar a protestar quando o policial pegou-lhe o braço
e o forçou a sentar-se no banco de trás do carro.
– O senhor está começando a torrar o meu saco – disse o detetive Curran. Ele estava
sentado impassível, fumando. – Eu devia ter deixado aquele cara enchê-lo de porrada.
Jason não sabia o que dizer.
– Espero que tenha alguma idéia – prosseguiu Curran – da imensa cagada que está
fazendo. Primeiro, estamos vigiando o apartamento de Hayes, o senhor se intromete. Depois
estamos de olho em Carol Donner, lá vem o senhor novamente. Podia ter estragado todo o
nosso trabalho. Desse jeito não vamos poder saber nada dela. E, pombas!, onde está o seu
carro? Suponho que veio de carro.
– Está ali perto da esquina – falou Jason, docilmente.
– Pois eu sugiro que pegue o seu carro e vá para casa – disse Curran, devagar. – Depois
volte ao seu trabalho de médico e deixe esta investigação para nós. O senhor está tornando o
nosso trabalho impossível.
– Desculpe – disse Jason. – Eu não sabia…
– Agora vá – disse Curran, com um gesto de aborrecimento.


Jason desembarcou do carro dos policiais, sentindo-se muito aturdido. Naturalmente
que eles estavam observando Carol. Se ela estivera morando com Hayes, provavelmente
também estava envolvida com drogas. Na realidade, tendo-se em conta o trabalho que ela
fazia, isso era quase certo. Entrando no seu carro, Jason praguejou ao se lembrar de seu
paletó. Dirigiu-se para casa.
Eram três e meia da madrugada quando ele subiu penosamente os degraus que levavam
ao seu apartamento; primeiro teve o cuidado de telefonar para o hospital. Jason não havia
levado consigo o seu beeper quando saíra de casa para seguir Carol Donner, e esperava,
agora, que não tivesse havido telefonemas para ele. Sentia-se cansado demais para atender
alguma urgência. Do hospital não havia chamados, mas Shirley tinha deixado um recado
pedindo-lhe que telefonasse tão logo chegasse em casa, qualquer que fosse a hora. O
telefonista que dera o recado dissera que era urgente.
Meio aturdido, Jason discou. Shirley atendeu ao primeiro toque do telefone.
– Mas, afinal, por onde você andava?
– Isso é uma história comprida.
– Preciso que você me faça um favor. Venha aqui agora mesmo.
– São três e meia – suplicou Jason.
– Eu não pediria se não fosse importante.
Jason colocou um outro paletó, voltou ao carro e saiu dirigindo em direção a Brookline,
imaginando por que essa emergência não podia ter esperado um pouco mais. Só tinha certeza
de que a coisa tinha a ver com Hayes.
Shirley morava na Lee Street, uma rua que descreve uma curva em torno de Brookline
Reservoir e se estende até uma área residencial de belas casas antigas. A residência dela era
um casarão antigo de estilo rural, amplo, com telhado de duas águas quebradas e frontão
duplo. Ao se aproximar pela entrada pavimentada de pedras, viu que a casa estava com todas
as luzes acesas. Estacionou em frente, e quando desembarcou do carro, Shirley já abria a porta
da frente.
– Obrigada por ter vindo – disse ela, dando-lhe um abraço. Ela vestia uma suéter de
cashmere e jeans desbotados, e, pela primeira vez, dede que Jason a conhecera, pareceu
extremamente angustiada.
Ela o levou para dentro, até uma sala de estar espaçosa, e apresentou-o a dois
executivos do GHP, que também pareciam visivelmente nervosos. Jason apertou a mão
primeiramente de Bob Walthrow, um homem de baixa estatura e com uma calvície avançada, e
depois cumprimentou, também com um aperto de mão, Fred Ingelnook, um sósia de Robert
Redford.
– Que tal um drinque? – perguntou Shirley. – Parece que você precisa disso.
– Apenas um refrigerante – disse Jason. – Estou tão cansado que não me agüento em pé.
O que é que está acontecendo?
– Mais problemas. Recebi um telefonema da segurança: o laboratório de Hayes foi
arrombado esta noite e praticamente demolido.
– Vandalismo?
– Não temos certeza.
– É pouco provável – disse Bob Walthrow. – Deram buscas lá dentro.
– Levaram alguma coisa? – perguntou Jason.


– Ainda não sabemos – disse Shirley. – Mas esse não é o problema. Queremos manter o
caso longe da imprensa. O Good Health não pode agüentar mais nenhuma publicidade
negativa. Temos dois grandes clientes em vias de assinar contrato com o Plan. Eles poderão
desistir se ficarem sabendo que a polícia pensa que o laboratório de Hayes foi revistado por
causa de drogas.
– É possível – disse Jason. – O médico-legista me falou que Hayes tinha cocaína na
urina.
– Que merda! – disse Bob Walthrow. – Esperemos que os jornais não fiquem sabendo
disso.
– Temos de limitar os prejuízos! – disse Shirley.
– E como vocês planejam fazer isso? – perguntou Jason, conjeturando por que razão o
teriam chamado.
– A diretoria administrativa quer que mantenhamos em sigilo este último incidente.
– Isso pode ser difícil – disse Jason, tomando um gole do seu refrigerante. – Os jornais
provavelmente ficarão sabendo pelos registros da polícia.
– É justamente esse o ponto – disse Shirley. – Decidimos não dar parte à polícia. Mas
queríamos ouvir a sua opinião.
– A minha? – perguntou Jason, surpreso.
– Bom – disse Shirley –, nós queremos ouvir a opinião da equipe médica. Você é chefe
atualmente. Acho que poderia sigilosamente averiguar o que os outros pensam desse caso.
– Acho que entendi – disse Jason, imaginando de que maneira conseguiria sondar os
outros clínicos e ainda assim manter em sigilo esse episódio. – Mas se vocês querem a minha
opinião pessoal, não acho que isso seja uma boa idéia, de maneira nenhuma. Além de tudo,
vocês não conseguirão receber o seguro se não comunicarem o caso à polícia.
– Isso é verdade – disse Fred Ingelnook.
– Certo – disse Shirley –, mas esse ainda é um problema menor em comparação com o
problema de relações públicas. Por ora não comunicaremos nada. Mas vamos consultar a
companhia de seguros e ouvir a opinião dos chefes de departamento.
– Isso me parece acertado – disse Fred Ingelnook.
– Assim está bem – completou Bob Walthrow.
A conversa foi terminando aí, e Shirley despediu-se dos dois executivos, que foram
para casa. Reteve Jason quando este pretendia sair junto com eles; sugeriu-lhe que a
encontrasse às oito da manhã.
– Eu pedi a Helene que chegasse cedo. Talvez possamos entender um pouco do que está
acontecendo.
Jason concordou, ainda conjeturando por que Shirley não pudera dizer-lhe tudo por
telefone. Mas sentia-se demasiadamente cansado para se preocupar com isso. Tendo dado um
rápido beijo no rosto dela, caminhou cambaleando até o seu carro, esperando poder ter duas
ou três horas de sono.


8
Mal passava das oito horas daquela manhã de sábado quando Jason, com os olhos
turvos de sono, entrou na sala de trabalho de Shirley. A sala tinha as paredes revestidas de
mogno escuro, o chão era forrado com tapete verde-escuro, os acessórios em bronze. Parecia
mais o escritório de um banqueiro do que a sala de trabalho da executiva-chefe de uma
empresa de assistência médica. Shirley estava ao telefone, conversando com um especialista
em seguros; Jason sentou-se e esperou. Depois que desligou o telefone, ela falou:
– Você tinha razão quanto ao seguro. Eles não pretendem pagar indenização se não for
comunicado o arrombamento.
– Então comunique.
– Primeiro vamos ver a extensão dos danos e o que está faltando.
Passaram por dentro do edifício dos ambulatórios e tomaram o elevador para o sexto
andar. Um guarda de segurança esperava por eles e, com uma chave, abriu a porta interna.
Dispensaram o uso das pantufas e dos aventais brancos.
Assim como acontecera com o apartamento de Hayes, também o laboratório estava em
completa desordem. Todas as gavetas e compartimentos tinham sido esvaziados no chão, mas
o equipamento de tecnologia avançada parecia estar intacto; assim, ficou evidente para ambos
que ali tinha havido buscas, e não um arrombamento para destruir. Jason olhou para dentro da
sala de Hayes; estava igualmente em grande desordem, com o conteúdo da escrivaninha e de
diversas gavetas dos arquivos esvaziados no chão.
Helene Brennquivist apareceu no chão da porta que dava para o laboratório; seu rosto
estava pálido e tenso. Trazia novamente o cabelo penteado liso para trás, deixando todo o
rosto descoberto; mas não usava seu costumeiro avental de laboratório, uma vestimenta
informe; e Jason pôde ver que ela possuía um físico atraente.
– Você pode dizer se está faltando alguma coisa? – perguntou Shirley.
– Bem, não encontro os meus cadernos de anotações – disse Helene. – E algumas das
culturas bacterianas de E. coli desapareceram. Mas o pior foi o que aconteceu com os
animais.
– Que houve com eles? – perguntou Jason, observando que o rosto de Helene,
habitualmente impassível, agora tremia de medo.
– Talvez você devesse olhar. Todos eles foram mortos! Jason passou por perto de
Helene, transpôs uma porta de aço e entrou no biotério. Logo suas narinas foram invadidas por
um mau cheiro intenso, penetrante, próprio de recinto onde vivem animais. Acendeu a luz. Era
uma sala maior, com uns quinze metros de comprimento por dez de largura. As gaiolas dos
animais estavam organizadas em fileiras e empilhadas umas em cima das outras, numa altura
de até seis. Jason começou a olhar a fileira de baixo, mais próxima, cada gaiola de uma vez.
Por trás dele a porta fechou-se com um clique audível. Helene não havia exagerado. Todos os
animais que Jason viu estavam mortos, impressionantemente contorcidos nas posições mais
incríveis, muitos apresentando as línguas ensangüentadas, como se as tivessem mordido na
fase final da agonia.
De repente Jason parou horrorizado. Olhando dentro de um conjunto de gaiolas grandes,
enxergou algo que lhe embrulhou o estômago: ratos de um tipo que ele nunca tinha visto. Eram


enormes, quase do tamanho de porcos, e suas caudas glabras, como chicotes, tinham o
diâmetro dos punhos de Jason. Os dentes expostos tinham 10 centímetros de comprimento.
Passando adiante, Jason chegou às gaiolas dos coelhos, de tamanho igualmente avantajado, e
às de camundongos brancos, do tamanho de cachorrinhos.
Essa faceta da engenharia genética horrorizou Jason. Embora receoso daquilo que
poderia ver, uma curiosidade mórbida o impelia adiante. Devagar, olhou para o interior das
outras gaiolas e caixas, e viu aberrações de animais conhecidos, que lhe causaram mal-estar.
A ciência enlouquecera: coelhos com várias cabeças, camundongos com patas excedentes e
conjuntos de olhos adicionais. Para Jason, uma coisa era a manipulação dos genes de
bactérias primitivas; outra coisa muito diferente, a distorção provocada em mamíferos.
Retornou à parte central do laboratório, onde Shirley e Helene tinham verificado as
culturas de cintilação.
– Você viu os animais? – perguntou Jason a Shirley sentindo repugnância.
– Infelizmente. Quando Curran esteve aqui. Não me faça lembrar isso.
– O GHP tinha autorizado essas experiências? – perguntou Jason.
– Não – respondeu Shirley. – Nunca fizemos perguntas a Hayes. Nunca achamos que
fosse necessário.
– O poder da celebridade – disse Jason, com ironia.
– Os animais faziam parte do trabalho do Dr. Hayes com o hormônio do crescimento –
disse Helene, na defensiva.
– Pouco importa – disse Jason. Ele não estava interessado em discutir questões de ética
com Helene naquele momento. – De qualquer modo, estão todos mortos.
– Todos? – interrompeu Shirley. – Que coisa esquisita. O que vocês acham que
aconteceu?
– Veneno – disse Jason, com expressão sombria. – Mas não posso entender por que
alguém que procurasse drogas iria se preocupar em matar animais de laboratório.
– Você tem alguma explicação para tudo isto? – perguntou Shirley com irritação,
voltando-se para Helene.
A mulher mais jovem sacudiu a cabeça negativamente; seu olhar percorria
nervosamente a sala.
Shirley continuou a olhar para Helene, que agora mudava de um pé para outro, sentindose pouco à vontade. Jason observava, intrigado com o inesperado comportamento agressivo de
Shirley.
– Seria melhor você cooperar – continuou ela falando –, ou terá sérios problemas. O
Dr. Howard está convencido de que você está nos escondendo alguma coisa. Se isso for
verdade e nós descobrirmos, sua carreira estará ameaçada. A angústia de Helene, por fim,
tornou-se evidente.
– Eu apenas obedecia às ordens do Dr. Hayes – falou ela, com a voz trêmula.
– Que ordens? – perguntou Shirley, baixando a voz ameaçadoramente.
– Fizemos alguns trabalhos free-lance aqui…
– De que tipo?
– O Dr. Hayes trabalhava extraordinariamente à noite para uma empresa chamada Gene,
Inc. Nós desenvolvemos uma espécie recombinante de E. coli com o objetivo de produzir um
hormônio para essa companhia.


– Você sabia que, pelo contrato do Dr. Hayes, era expressamente proibido fazer
trabalho por conta própria?
– Foi o que ele me disse – admitiu Helene. Shirley ficou olhando mais uns instantes
para Helene. Por fim, falou:
– Eu não quero que fale disso a ninguém. Faça uma lista detalhada de todos os animais
ou objetos que estejam faltando ou foram danificados neste laboratório, e traga a lista
pessoalmente para mim. Compreendeu?
Helene fez que sim com a cabeça.
Jason acompanhou Shirley na saída do laboratório. Ela evidentemente conseguira um
êxito onde ele fracassara, rompendo a couraça aparente de Helene. Mas não tinha feito as
perguntas certas.
– Por que não a interrogou a respeito da descoberta de Hayes? – falou Jason quando
chegaram junto ao elevador. Shirley apertou repetidamente o botão de baixo, obviamente
furiosa.
– Nem me ocorreu isso. Toda vez que penso ter o problema Hayes sob controle, surge
alguma coisa nova. Eu tinha exigido especialmente esta cláusula no contrato: proibir qualquer
trabalho extra por conta própria.
– Agora isso não importa muito – disse Jason, entrando no elevador, atrás de Shirley. –
O homem está morto.
Ela suspirou.
– Você tem razão. Talvez a minha reação seja exagerada. Eu só queria que todo esse
assunto estivesse encerrado.
– Eu continuo achando que Helene sabe mais do que revelou.
– Conversarei com ela novamente.
– Depois de ver todos aqueles animais, não acha que devia chamar a polícia?
– Junto com a polícia vêm os jornais – lembrou Shirley a Jason. – Com os jornais vêm
os problemas. Afora os animais, não parece que algo de grande valor tenha sido danificado.
Jason conteve-se para não falar. Obviamente, comunicar à polícia o arrombamento era
uma decisão administrativa. Ele estava mais preocupado em saber qual fora a descoberta de
Hayes, e tinha consciência de que a polícia e os jornais não ajudariam a descobrir isso.
Perguntou a si mesmo se a descoberta científica não teria relação com os animais
monstruosos. Esse pensamento causou-lhe um calafrio.
Jason iniciou a visita nos leitos, começando por Matthew Cowen. Infelizmente, o
quadro desse paciente apresentava aspectos novos. Além dos seus outros problemas, Matthew
agora estava tendo um comportamento esquisito. Poucos minutos antes, o pessoal de
enfermagem encontrara-o andando sem rumo pelo corredor, murmurando para si mesmo coisas
desconexas. Quando Jason entrou no quarto, ele estava contido no leito, olhando para o
médico como se olhasse para um estranho. Matthew apresentava visíveis sinais de estar
desorientado quanto ao tempo, ao lugar e à própria pessoa. Pelo que Jason entendia do
assunto, aquilo só podia significar uma coisa. O paciente havia sofrido embolia cerebral,
provavelmente devido a coágulos sangüíneos originários das válvulas cardíacas lesadas, e
que foram alojar-se no seu cérebro. Em outras palavras, o paciente sofrera um acidente
vascular cerebral, ou diversos desses acidentes.
Sem esperar mais, Jason solicitou que um neurologista examinasse o doente. Também


mandou que solicitassem a presença do cirurgião cardíaco que havia examinado o caso.
Embora considerasse a conveniência de entrar imediatamente com terapia anticoagulante,
decidiu aguardar a opinião do neurologista. Nesse meio tempo, começou o tratamento com
aspirina e Persantin, para reduzir a adesividade das plaquetas. Os acidentes vasculares
cerebrais eram uma forma de evolução inquietante, um péssimo sinal.
Jason fez rapidamente o restante das suas visitas aos leitos e estava pronto para retornar
a casa e dormir, do que precisava muito, quando foi chamado pela sala de urgência para
atender um de seus pacientes. Praguejando entre dentes, desceu as escadas esperando que o
problema, fosse qual fosse, pudesse ser resolvido com facilidade. Lamentavelmente, não foi
isso que aconteceu.
Chegou, quase sem fôlego, na sala principal de tratamento; aí encontrou um grupo de
residentes aplicando ressuscitação cardiopulmonar numa paciente comatosa. Uma rápida
olhada na tela do monitor foi o bastante para Jason saber que não havia absolutamente
nenhuma atividade cardíaca.
Jason foi se informar com Judith Reinhart; esta lhe disse que a paciente fora encontrada
já inconsciente pelo marido, quando este tentara acordá-la pela manhã.
– Os socorristas encontraram algum sinal de atividade cardíaca ou respiratória?
– Nenhum sinal – disse Judith. – Na realidade, para mim ela parece já estar fria.
Jason tocou na perna da mulher e concordou. O rosto da paciente estava voltado para o
outro lado.
– Qual o nome dela? – perguntou Jason, intuitivamente se preparando para receber o
golpe.
– Holly Jennings.
Jason sentiu como se tivesse levado um soco no estômago.
– Meu Deus! – murmurou ele.
– Algum problema com o senhor? – perguntou Judith. Jason acenou positivamente com a
cabeça, mas insistiu em que a equipe de ressuscitação mantivesse os esforços até bem além de
qualquer tempo razoável. Quando examinara essa paciente na quinta-feira, ele suspeitara que
houvesse algum problema, mas não este. Não podia simplesmente aceitar o fato de que, como
Cedric Harring, a Srta. Holly morreria menos de um mês após um exame clínico ter revelado
que ela estava bem e dois dias depois de um novo exame.
Abalado, Jason pegou o telefone e chamou Margaret Danforth.
– Então mais uma vez não há antecedentes de cardiopatia? – perguntou Margaret.
– Isso mesmo.
– Mas, afinal, o que é vocês andam fazendo por aí? – indagou Margaret.
Jason não respondeu. Ele queria que Margaret liberasse o caso, de modo que eles
pudessem fazer a autópsia no GHP, porém Margaret hesitava.
– Nós faremos esse caso hoje – disse Jason. – Vocês terão um relatório no início da
próxima semana.
– Lamento – disse Margaret, tomando uma decisão. – É que há umas perguntas na minha
mente, e penso que sou obrigada por lei a fazer a autópsia.
– Compreendo. Mas suponho que não se incomodaria de nos ceder algumas peças do
material para que também possamos realizar os exames aqui.
– Possivelmente – disse Margaret, sem nenhum entusiasmo. – Para dizer a verdade, nem


mesmo sei se isso é legal. Mas irei verificar. Preferiria não ter de esperar duas semanas para
ter o resultado da microscopia.
Jason foi para casa e deitou-se. Dormiu quatro horas, e seu sono foi interrompido pelo
telefonema do neurologista, a propósito do caso de Matthew. O colega pretendia usar
anticoagulantes e submeter o paciente a uma tomografia computadorizada. Jason implorou ao
colega que fizesse tudo que considerasse ser o melhor.
Jason tentou voltar a dormir, mas não conseguiu. Sentia-se incapaz de repousar,
angustiado. Levantou-se. Era o entardecer de um dia sombrio do final do outono, e uma garoa
fina contribuía para tornar Boston desagradável. Lutando contra a depressão, ele ficou
andando pelo apartamento, tentando encontrar algo com que ocupar a mente. Compreendeu que
não podia ficar ali; vestiu uma roupa informal e desceu para pegar o carro. Sabia que
provavelmente ia em busca de problemas, mas saiu dirigindo em direção à Beacon Street e
estacionou em frente ao apartamento de Carol.
Dez minutos mais tarde, como se Deus finalmente houvesse decidido conceder a Jason
uma trégua, Carol apareceu. Trajava jeans e um blusão de gola alta, trazia a espessa cabeleira
castanha amarrada num rabo-de-cavalo; parecia ser a própria colegial que o Club Cabaret
anunciava. Sentindo a garoa fina, ela abriu a sombrinha com desenhos de flores e saiu a
caminhar pela calçada da rua, passando a apenas alguns passos de distâncias de Jason; este se
encolheu no assento do carro, com um temor irracional de ser reconhecido por ela.
Deixando que ela tomasse uma boa dianteira, saiu do carro para segui-la a pé. Perdeu-a
de vista na Dartmouth Street, mas tornou a vê-la na Commonwealth Avenue. Enquanto
continuava a segui-la, ficava também de olho atento em tipos como Bruno ou Curran. Na
esquina de Dartmouth com Boylston, Jason passou numa banca de revistas e folheou uma.
Carol passou por ele, esperou o sinal abrir e então atravessou às pressas a Boylston. Jason
estudava atentamente as pessoas e os carros, tentando ver qualquer coisa suspeita. Mas não
havia nenhuma indicação de que Carol não estivesse sozinha.
Agora ela estava passando diante da Biblioteca Pública de Boston, e Jason achou que
ela se dirigia ao Copley Plaza Shopping Mall. Tendo comprado a revista, que casualmente era
The New Yorker, Jason continuou a segui-la. Quando ela fechou a sombrinha e entrou no
Copley Plaza, Jason apressou o passo. Era um grande complexo arquitetônico dotado de
shopping center e hotel. Jason sabia que ali ele facilmente podia perdê-la de vista.
Nos três quartos de hora que se seguiram, Jason manteve-se ocupado em simular que
olhava atentamente as vitrines, ou fazer de conta que lia a sua New Yorker, ou que
simplesmente olhava as pessoas. Carol parecia feliz em ir de uma loja de Louis Vuitton para
outra de Ralph Lauren ou para a de Vic-toria’s Secret. Num certo momento, Jason pensou que
ela estava sendo acompanhada, mas viu que o homem, no caso, simplesmente tentava abordála. Ela aparentemente repeliu a tentativa do homem quando este finalmente se aproximou dela,
porque ele desapareceu rapidamente.
Um pouco depois das três e meia, Carol apanhou suas sacolas e a sombrinha e fez uma
pausa na sua caminhada, entrando na loja Au Bon Pain. Jason seguiu-a, postando-se a pouca
distância dela enquanto aguardavam a vez de fazer os pedidos; e teve oportunidade de
observar o rosto oval dela, sua pele lisa e azeitonada, os seus olhos de um negrume líquido.
Era uma mulher jovem e linda. Jason achou que devia ter mais ou menos 24 anos.
– Está uma tarde boa para um café – disse ele, esperando começar uma conversação.


– Eu prefiro chá.
Jason sorriu timidamente. Ele não era bom nessa coisa de abordar uma mulher e
começar uma conversa.
– Chá também é bom – disse ele, receoso de estar fazendo papel de tolo.
Carol pediu sopa, chá e um croissant simples, depois carregou sua bandeja até uma das
grandes mesas comuns.
Jason pediu um cappuccino; depois, hesitando como se não encontrasse lugar para
sentar, aproximou-se da mesa dela.
– Com licença – falou ele, puxando uma cadeira. Várias das pessoas sentadas à mesa
levantaram os olhos, inclusive Carol. Um homem fez lugar puxando para um lado alguns dos
seus pacotes. Jason sentou-se, dando a todos um sorriso meio vacilante.
– Que coincidência – disse Jason a Carol. – Nós nos encontramos de novo.
Carol olhou-o por sobre a borda da xícara de chá. Não disse nada, nem precisava. A
expressão do seu rosto refletia contrariedade.
De imediato Jason reconheceu que tudo que ele fizera poderia dar a impressão de que
estava dando em cima dela, e que era bem possível que o mandasse passear.
– Você me desculpe – falou ele –, não quero importuná-la. Meu nome é Jason Howard.
Eu fui colega do Dr. Alvin Hayes. Você é Carol Donner, e eu gostaria muito de conversar com
você.
– Você trabalha no GHP? – perguntou Carol desconfiada.
– Eu sou o atual chefe da equipe médica. – Era a primeira vez que Jason usava o seu
título. Num hospital universitário de verdade, um título assim tinha grande importância, mas no
GHP esse cargo era um emprego incômodo.
– Como posso ter certeza do que você diz? – perguntou Carol.
– Eu posso lhe mostrar minha identidade.
– Está bem.
Jason levou a mão ao bolso da calça para pegar a carteira, mas Carol segurou-lhe o
braço.
– Não se preocupe – falou ela. – Acredito em você. Alvin costumava falar a seu
respeito. Dizia que era o melhor clínico do hospital.
– Sinto-me elogiado – disse Jason. Ele estava surpreso, tendo em conta os escassos
contatos que tivera com Hayes.
– Desculpe a minha desconfiança – disse Carol –, mas andei me preocupando muito,
especialmente nestes últimos dias. Sobre o que gostaria de falar?
– Sobre o Dr. Hayes – disse Jason. – Primeiro eu gostaria de dizer que a morte dele foi
realmente uma perda para nós. Saiba que eu sinto muito.
Carol encolheu os ombros.
Jason não sabia exatamente o que pensar da resposta dela.
– Também não consigo acreditar que o Dr. Hayes estivesse envolvido com drogas. Você
soube disso? – perguntou ele.
– Soube. Mas os jornais erraram. Alvin consumia bem pouca droga, geralmente
maconha, só ocasionalmente cocaína. Heroína certamente que não.
– Não era traficante?
– Absolutamente não. Acredite em mim, eu teria sabido.


– Mas encontraram muita droga e dinheiro no apartamento dele.
– A única explicação que posso encontrar é que a polícia colocou tudo isso lá. Das
duas coisas, Alvin sempre teve pouco. Quando ele por acaso tinha dinheiro sobrando, enviava
para a família.
– Você quer dizer, para a ex-mulher dele?
– Sim. Ela tem a custódia dos filhos.
– Por que a polícia faria uma coisa dessas? – perguntou Jason, achando que o
comentário dela correspondia à paranóia de Hayes.
– Realmente não sei. Mas não consigo imaginar de que outra maneira as drogas
poderiam ter ido parar lá. Posso garantir: ele não tinha drogas quando saí de lá às nove horas
daquela noite.
Jason inclinou-se para diante, baixando a voz.
– Nessa noite, o Dr. Hayes me falou que havia feito uma importante descoberta. Ele lhe
contou algo sobre isso?
– Ele mencionou qualquer coisa. Mas isso foi há três meses.
Por um momento Jason se permitiu sentir-se otimista. Aí Carol explicou que não sabia
que descoberta era essa.
– Ele não confiava em você?
– Ultimamente não. Nós estávamos assim meio separados.
– Mas você estava vivendo com ele. Ou será que os jornais noticiaram errado quanto a
isso também?
– Nós estávamos vivendo juntos – admitiu Carol –, mas no final éramos só
companheiros de apartamento. O nosso relacionamento tinha se deteriorado. Ele realmente
mudara. Não era apenas um problema físico; toda a sua personalidade estava diferente. Ele
parecia retraído, quase paranóide. Vivia dizendo que precisava conversar com você, e eu
procurei encorajá-lo nesse sentido.
– Você realmente não tem nenhuma idéia sobre o teor da descoberta? – insistiu Jason.
– Lamentavelmente, não. – disse Carol, abrindo as mãos num gesto de quem pede
desculpas. – Só me lembro de ele ter dito que a descoberta era uma espécie de ironia da
ciência. Lembro-me disso porque me pareceu uma forma esquisita de caracterizar o êxito.
– Ele me disse a mesma coisa.
– Pelo menos ele era coerente. Seu único comentário foi que, se tudo corresse bem, eu
iria gostar da descoberta, porque era bonita. Foram essas exatamente as palavras dele.
– Ele não esclareceu mais nada?
– Foi só isso que ele disse.
Tomando um gole do cappuccino, Jason olhou mais demoradamente o rosto de Carol.
De que maneira uma descoberta que era uma ironia da ciência haveria de beneficiar uma moça
bonita? Sua mente procurou conciliar essa afirmação com a impressão que tinha de que a
descoberta de Hayes se relacionava com a cura do câncer. Mas nada se encaixava.
Terminando de tomar seu chá, Carol levantou-se.
– Foi um prazer encontrá-lo – disse ela, estendendo a mão.
Jason levantou-se, sem jeito, agarrando sua cadeira para evitar que ela tombasse.
Estava surpreso com a súbita despedida dela.
– Eu não pretendo ser rude – disse ela –, mas tenho um compromisso. Espero que


solucione o mistério. Alvin trabalhava com muito empenho. Seria uma tragédia se ele tivesse
descoberto algo importante e isso se perdesse.
– É exatamente o que penso – falou Jason, inconformado por ver que ela poderia
desaparecer. – Podemos nos encontrar de novo? Ainda há tanta coisa que eu gostaria de
discutir.
– Suponho que sim. Mas estou bastante ocupada. Quando você acha que pode?
– Que tal amanhã? – sugeriu Jason, avidamente. – Almoço de domingo.
– Teria de ser tarde. Eu trabalho à noite, e sábado é o dia mais movimentado.
Isso Jason bem podia imaginar.
– Por favor – disse ele. – Pode ser importante.
– Está bem. Digamos, duas horas da tarde. Onde?
– Que tal na Hampshire House?
– De acordo – disse Carol, juntando suas sacolas e a sombrinha. Com um sorriso de
despedida, ela saiu do café.
Olhando no seu relógio de pulso, apressou o passo. O imprevisto encontro com Jason
não figurava no seu apertado horário, e ela não queria chegar atrasada ao encontro com o
orientador de PhD. Ficara até tarde desse dia e no início da manhã retocando o terceiro
capítulo da tese que estava escrevendo, e ansiava por ouvir a opinião do professor. Tomou a
escada rolante que levava até ao andar térreo, enquanto pensava na conversa que tivera com
Dr. Howard.
Fora uma surpresa encontrar o homem, depois de ter ouvido falar nele por tanto tempo.
Alvin lhe contara que Jason perdera a esposa e reagira a essa tragédia modificando
completamente o seu ambiente e entregando-se totalmente ao trabalho. Carol achara essa
história fascinante, porque sua tese tinha a ver com a psicologia do luto. Parecia, assim, que o
caso do Dr. Jason Howard, como um caso clínico, ilustrava sua tese.
O porteiro do Weston Hotel soprou o apito e produziu um silvo que feriu os ouvidos de
Carol, fazendo-a encolher-se. Enquanto o táxi se aproximava roncando, ela admitiu que sua
reação diante do Dr. Jason Howard fora um pouco além do puro interesse profissional. Achara
que ele possuía uma atração incomum, e compreendeu que, conhecendo seus pontos
vulneráveis, maior era a atração que ele exercia. Até mesmo a sua falta de desenvoltura social
tinha uma qualidade cativante.
– Harvard Square – disse Carol, assim que entrou no táxi. E se deu conta de que
pensava no almoço do dia seguinte.
Ainda sentado diante da xícara de café que esfriava, Jason admitiu que fora pego
inteiramente de surpresa diante da inesperada inteligência e encanto pessoal de Carol. Ele
esperava encontrar uma moça de pouca instrução, vinda de alguma pequena cidade, uma
garota que de algum modo largara os estudos seduzida pela perspectiva de ganhar dinheiro ou
pelas drogas. Mas encontrara uma mulher madura e afável bastante capaz de manter uma
conversação. Que tragédia, uma pessoa assim, com suas evidentes aptidões, ter-se misturado
ao mundo sórdido em que vivia…
O som insistente e estridente do seu beeper forçou-o a voltar à realidade. Desligou o
aparelhinho e olhou no pequeno mostrador. A palavra “urgente” piscou duas vezes, seguida de


um número de telefone que Jason não identificou. Tendo visto a identidade médica apresentada
por Jason, o gerente do Au Bon Pain permitiu que ele usasse o telefone localizado atrás da
caixa registradora.
– Obrigada por ter telefonado, Dr. Howard. Aqui é a Sra. Farr. Meu marido, Gerald
Farr, passou a sentir terríveis dores no peito e está com dificuldade de respirar.
– Chame uma ambulância – disse Jason. – Leve-o à emergência do GHP. O Sr. Farr é
paciente meu? – Jason tinha a impressão de que esse nome lhe era conhecido, mas não
conseguia lembrar a pessoa.
– Sim – disse a Sra. Farr. – O Sr. fez um exame de saúde nele há duas semanas. Ele é
vice-presidente sênior da Boston Banking Company.
Oh, não!, pensou Jason enquanto recolocava o telefone no gancho. Está acontecendo de
novo. Tendo-se decidido por deixar seu carro na Beacon Street até ter resolvido essa
emergência, saiu apressadamente do café e dirigiu-se para o ponto de táxi junto ao hotel que
fazia parte do conjunto Copley Plaza, onde tomou um táxi.
Jason chegou à sala de emergência do GHP antes do casal Farr. Avisou Judith do que se
tratava, e também o serviço de anestesia, ficando satisfeito ao saber que era Philip Barnes que
estava de plantão.
Ao ver Gerald Farr, Jason percebeu imediatamente que seus piores receios se
concretizavam. O homem estava com uma dor insuportável, tinha uma cor pálida de leite
desnatado e visíveis bagas de suor na testa.
O eletrocardiograma, feito de imediato, mostrou que uma extensa área do seu coração
havia sofrido lesão. Não ia ser um caso fácil. Morfina e oxigênio ajudaram a acalmar o
paciente; administraram-lhe também lidocaína para prevenir a ocorrência de extra-sístoles.
Mas, apesar de tudo, ele não apresentou melhoras. Estudando um outro eletrocardiograma,
Jason teve a impressão de que a área enfartada estava se expandindo.
Em desespero, experimentou de tudo. Mas nada deu certo. Quando faltavam cinco
minutos para as quatro da tarde, os olhos do paciente viraram para cima e seu coração parou.
Como de hábito, Jason não quis desistir de nenhuma possibilidade e por isso liderou
ele mesmo as tentativas de ressuscitação. Estas fizeram com que o coração, recomeçasse a
pulsar várias vezes, só que, sempre que eram suspensas, ele retornava ao padrão de
inatividade da morte.
Farr nunca mais recuperou a consciência. Às 6:30, Jason finalmente declarou o paciente
morto.
– Merda! – disse Jason, com aversão a si mesmo e à vida em geral. Ele não tinha o
costume de dizer palavrões, e por isso desta vez Judith Reinhart teve sua atenção voltada para
a exclamação de Jason. Ela inclinou a cabeça no ombro de Jason e passou o braço em torno
do seu pescoço.
– Jason, você fez tudo que foi possível – disse ela com delicadeza. – Fez o melhor que
qualquer um poderia fazer. Mas os nossos poderes são limitados.
– Esse homem tinha só 58 anos – disse Jason, refreando lágrimas de frustração.
Judith pediu que os residentes e enfermeiras saíssem da sala. Voltando para perto de
Jason, colocou a mão no seu ombro.
– Olhe para mim, Jason! – disse ela.
Com relutância, Jason voltou o rosto para a enfermeira. Uma única lágrima escorreu do


canto do seu olho, ao longo do sulco paranasal. De um modo delicado, mas ao mesmo tempo
firme, ela falou a Jason que ele não podia enfrentar esses casos de uma forma tão pessoal.
– Sei que duas mortes num dia são uma carga terrível – acrescentou ela. – Mas não é
falha sua.
Jason sabia, intelectualmente, que ela estava com a razão; emocionalmente, porém, era
uma outra história. Além disso, Judith não tinha nenhuma idéia da evolução ruim dos pacientes
internados de Jason, especialmente de Matthew Cowen, e o médico achava embaraçoso ter de
falar sobre isso. Pela primeira vez, pensou seriamente em abandonar a medicina. Infelizmente,
não tinha nenhuma idéia de que outra coisa poderia fazer. Não estava preparado para nenhum
outro tipo de atividade.
Depois de garantir a Judith que estava bem, saiu para enfrentar a situação diante da Sra.
Farr, procurando mostrar-se forte diante da sua possível inconformidade e irritação. Mas a
Sra. Farr, no seu profundo sentimento de pesar, terminou por assumir a carga de culpa. Contou
que o marido se queixara de estar se sentindo mal durante uma semana, mas que ignorara suas
queixas porque, sinceramente, ele sempre tinha sido um pouco hipocondríaco. Jason tentou
consolar a mulher assim como Judith procurara consolá-lo. O êxito que obteve foi mais ou
menos o mesmo.
Confiando em que o médico-legista se encarregaria do caso, Jason não sobrecarregou a
Sra. Farr com uma solicitação para que autorizasse a autópsia. Por lei, o médico-legista não
necessitava de autorização para efetuar autópsia em casos de morte questionáveis. Mas, para
ter certeza, Jason telefonou para Margaret Danforth. A resposta foi conforme esperava: ela
realmente queria se encarregar do caso; enquanto falava com ele ao telefone, aproveitou para
conversar a respeito de Holly Jennings.
– Eu retiro aquele comentário indevido que fiz hoje pela manhã – disse Margaret. –
Vocês aí estão tendo simplesmente má sorte. Essa senhora Jennings estava num estado tão mau
quanto Cedric Harring. Todos os seus vasos sangüíneos estavam com péssimo aspecto, e não
só o coração.
– Isso não é grande consolo – falou Jason. – Eu tinha acabado de realizar um exame
completo nela e constatara que tudo estava bem. Fiz um eletrocardiograma de
acompanhamento na quinta-feira, mas ele acusava apenas alterações mínimas.
– É mesmo? Pois então espere para ver os cortes histológicos. Pelo exame
macroscópico, as artérias coronárias pareciam apresentar uma oclusão de noventa por cento, e
disseminada, não focai. A cirurgia não teria adiantado nada. Aliás, andei verificando e concluí
que não há nenhum problema em cedermos a vocês algumas amostras do material do caso
Jennings. Mas vou precisar de uma solicitação por escrito.
– Não há problema – disse Jason. – A mesma coisa no caso de Farr?
– É claro.
Jason tomou um táxi para voltar ao local em que deixara o seu carro, e depois foi para
casa. Apesar do nevoeiro e da chuva, quando chegou em casa, resolveu sair para praticar
jogging. Ficar respingado de lama e empapado de água de chuva teve um leve efeito catártico.
Depois de tomar um banho de chuveiro, sentiu-se um pouco mais aliviado de suas emoções
penosas e dos sentimentos de depressão. Justamente quando começava a pensar em comida,
Shirley telefonou e convidou-o para jantar. Sua primeira reação foi dizer não. Mas depois
reconheceu que se sentia muito deprimido para ficar sozinho, e por isso aceitou. Tendo vestido


uma roupa razoável, desceu para apanhar o carro e dirigiu-se para Brookline.
A aeronave do vôo 409 da Eastern, sem escalas, de Miami para Boston, fez uma
inclinação acentuada antes de alinhar para a aproximação final. Tocou o solo às 7:37, quando
então Juan Díaz fechou sua revista e olhou para fora, para a paisagem de Boston envolta em
nevoeiro. Esta era a segunda viagem que ele fazia a Boston, e não se sentia lá muito satisfeito.
Ficou a pensar que motivo levaria alguém a resolver morar numa cidade assim, onde o mau
tempo era tão freqüente. Também havia chovido na sua viagem anterior, apenas alguns dias
antes. Olhando para a pista pavimentada com asfalto, pôde perceber o vento e a chuva nas
poças d’água, e, com nostalgia, lembrou-se de Miami, onde o final do outono põe um fim no
calor escaldante do verão.
Puxou a bolsa que estava debaixo do assento em frente, e se pôs a conjeturar por quanto
tempo haveria de permanecer em Boston. Lembrou-se de que, na viagem anterior, ficara ali
apenas dois dias, e não tivera nada a fazer. Imaginou se não teria agora a mesma boa sorte.
Afinal de contas, não importava como, ele ganhara seus cinco mil dólares.
O avião taxiou em direção ao terminal. Juan olhou ao seu redor na cabine de
passageiros, com um sentimento de orgulho. Desejava que sua família, que ficara em Cuba,
pudesse vê-lo agora. Seus familiares ficariam admirados! Aí estava ele, voando na primeira
classe. Depois de ter sido condenado à prisão perpétua pelo governo de Castro, fora libertado
depois de uma pena de somente oito meses e enviado primeiramente a Mariel e, depois, sua
maior surpresa, para os Estados Unidos. Essa então era a sua punição por ter sido considerado
culpado e condenado por diversos assassinatos e estupros – ser mandado para os Estados
Unidos! Era bem mais fácil executar o seu tipo de trabalho nos Estados Unidos. Juan sentia
que a pessoa que ele mais gostaria de cumprimentar com um aperto de mão era um certo expresidente, que, através de uma iniciativa supostamente humanitária, acolhera nos Estados
Unidos grande número de criminosos “exportados” de Cuba.
O avião deu uma freada final, e então parou completamente. Juan pôs-se de pé e
espreguiçou-se. Pegou a sua bolsa de mão e dirigiu-se para o setor de recepção de bagagem.
Tendo apanhado sua mala, tomou um táxi para o Royal Sonesta Hotel, onde se registrou como
Carlos Hernández, de Los Angeles. Tinha até um cartão de crédito nesse nome, com um
número legítimo. Sabia que o número era verdadeiro, pois o tirara de uma receita que havia
encontrado no shopping center Bal Harbour em Miami. Depois de confortavelmente relaxado
em seu quarto, com seu segundo terno pendurado no armário, sentou-se à escrivaninha e deu
um telefonema para um número que lhe havia sido dado em Miami. Quando a chamada foi
atendida, ele disse à pessoa que precisava de uma arma, de preferência calibre 22. Depois de
tomar essa providência, riscou do caderninho o nome e o endereço, e verificou a localização
no mapa da cidade fornecido pelo hotel. Não era longe.
As horas da noite passadas com Shirley foram muito agradáveis. Jantaram frango
assado, alcachofra e arroz. Depois, tomaram Grand Marnier, diante da lareira na sala, e
conversaram. Jason sabia que o pai de Shirley fora médico e que ela, em outra época, quando
estudante, andara pensando em seguir os passos do pai.
– Mas meu pai me dissuadiu disso – falou Shirley. – Disse que a medicina estava
mudando.


– Tinha razão quanto a isso.
– Ele me dizia que a medicina ia ser dominada por grandes empresas e que todo aquele
que se preocupasse em ter uma carreira profissional deveria entrar para a área de
administração. Por isso eu mudei e resolvi fazer cursos de administração; acredito que fiz a
escolha acertada.
– Tenho certeza que sim – concordou Jason, pensando na papelada que sempre tinha de
preencher e nos problemas médicos de responsabilidade profissional. A medicina realmente
havia mudado. O fato de que ele agora trabalhava por um salário para uma empresa constituía
uma prova dessa mudança. Quando freqüentava a faculdade de medicina, sempre havia
imaginado que iria trabalhar por conta própria. Isso fazia parte da atração que a medicina
exercia sobre ele.
No fim da noite, houve um certo constrangimento. Jason disse que achava melhor ir
embora, mas Shirley encorajou-o a ficar.
– Você acha que isso seria uma boa idéia? – perguntou Jason. Ela fez que sim.
Jason não tinha tanta certeza assim, e disse que tinha de acordar cedo para as visitas
aos leitos no hospital e não gostaria de incomodá-la. Shirley insistiu, dizendo que costumava
acordar às sete e meia, inclusive aos domingos.
Permaneceram olhando um para o outro durante algum tempo; a chama da lareira fazia o
rosto de Shirley ficar iluminado.
– Não há nenhuma obrigação – disse Shirley, com delicadeza. – Sei que ambos temos
de ir devagar com isso. Vamos simplesmente ficar juntos. Temos estado sob tensão.
– Está bem – disse Jason, reconhecendo que não tinha forças para resistir. Além disso,
sentia-se lisonjeado por Shirley insistir dessa maneira. Estava se tornando mais permeável à
idéia de que não só poderia dedicar-se a uma pessoa, como também essa pessoa poderia
dedicar-se a ele.
Mas Jason não conseguiu dormir a noite toda. Às três e meia da madrugada, sentiu a
mão dela no seu ombro; sentou-se na cama, por uns momentos sentindo-se confuso quanto ao
lugar em que estava. Na penumbra, mal conseguia divisar o rosto de Shirley.
– Desculpe-me ter que incomodá-lo – disse ela com amabilidade –, mas me parece que
o telefonema é para você. – Ela alcançou-lhe o receptor do telefone na mesinha-de-cabeceira.
Jason pegou o telefone e agradeceu. Ele não tinha sequer ouvido o telefone tocar.
Escorou-se num dos cotovelos e colocou o fone no ouvido. Teve certeza de que vinha notícia
ruim, e foi o que aconteceu. Matthew Cowen tinha sido encontrado morto no leito;
aparentemente sofrera um acidente vascular cerebral fulminante, mortal.
– A família foi notificada? – perguntou Jason.
– Sim – disse a enfermeira. – Moram em Minneapolis. Disseram que viriam de manhã.
– Obrigado – disse Jason, meio zonzo, devolvendo o telefone a Shirley.
– Algum problema? – perguntou Shirley. – Ela recolocou o fone no gancho.
Jason sacudiu a cabeça afirmativamente. Problemas eram o que de mais tinha agora.
– Um paciente jovem morreu. Trinta e cinco anos, mais ou menos. Tinha cardiopatia
reumática. Estava internado para avaliação com vistas a cirurgia.
– Era muito grave a cardiopatia? – perguntou Shirley.
– Sim – disse Jason, que ainda podia ver o rosto de Matthew; lembrava-se da ocasião
em que ele fora internado no hospital. – Três das quatro válvulas cardíacas estavam afetadas.


Seria necessário substituir todas.
– Então não havia nenhuma garantia – disse Shirley.
– Nenhuma – concordou Jason. – Substituir três válvulas podia ser coisa muito
arriscada. Teve insuficiência cardíaca congestiva durante muito tempo, e isso, sem dúvida,
afetou-lhe o coração, pulmões, rins e fígado. Teria havido problemas, mas ele estava numa
idade ainda favorável.
– Talvez tenha sido melhor assim – sugeriu Shirley. – Vai ver, ele foi poupado de muito
sofrimento. É bem possível que tivesse de levar o resto da vida com internações em hospital
de vez em quando.
– Quem sabe – disse Jason, sem convicção. Sabia o que Shirley estava tentando fazer:
melhorar o seu ânimo.
Jason soube dar valor ao esforço dela. Tocou-lhe a coxa, através da fina cobertura da
camisola: – Obrigado pelo seu apoio.
A noite parecia terrivelmente fria quando Jason saiu às pressas para apanhar seu carro.
Ainda chovia, e bem mais forte que antes. Ligando a calefação, Jason esfregou as mãos nas
coxas para ativar a circulação. Pelo menos não havia tráfego. Às quatro horas da madrugada
de domingo, as ruas da cidade estavam desertas. Shirley procurara convencê-lo a ficar,
argumentando que não havia nada a fazer se o paciente havia morrido e a família ainda nem
comparecera ao hospital. Embora isso fosse verdade, Jason sentia, em relação ao seu
paciente, uma obrigação da qual não conseguia fugir. Além do mais, sabia que não conseguiria
conciliar novamente o sono. Pelo menos não agora, quando mais uma morte lhe afligia a
consciência.
O estacionamento do GHP estava quase totalmente vazio. Jason pôde estacionar perto
da portaria do hospital, em vez de sob o prédio dos ambulatórios, onde habitualmente
estacionava. Ao sair do carro, preocupado com seus pensamentos em torno de Matthew
Cowen, não percebeu um vulto envolto na sombra e agachado junto à porta do hospital.
Contornando a frente do carro, o vulto avançou rápido em direção a Jason. Pego totalmente
desprevenido, Jason deu um grito. Mas aí percebeu que o vulto era um dos bêbados de rua que
freqüentava a sala de emergência do GHP, e que pedia uns trocados. Com as mãos ainda
tremendo, Jason deu-lhe um dólar, esperando que o homem pelo menos fosse comprar um
pouco de comida.
Shirley tinha razão. Não havia nada que Jason pudesse fazer, exceto escrever uma
anotação final na papeleta de Matthew Cowen. Ele entrou e viu o corpo do morto. Pelo menos
sua fisionomia parecia tranqüila, e, conforme observara Shirley, ele agora estava livre de
sofrimentos. Em silêncio, Jason pediu desculpas ao homem morto.
Telefonou para o residente de plantão e deu-lhe instruções no sentido de obter da
família autorização para a autópsia. Explicou que nas próximas horas não estaria disponível.
Sentia-se mais inútil do que nunca, depois dessas noites; saiu do hospital e voltou ao seu
apartamento. Ficou deitado por algum tempo, olhando para o teto, sem conseguir dormir. E
imaginou se haveria algum tipo de atividade que pudesse desempenhar na indústria
farmacêutica.


9
Cedric Harring, Brian Lennox, Holly Jennings, Gerald Farr, e agora Matthew Cowen.
Jason nunca perdera tantos pacientes num período de tempo tão curto. A noite toda, as
fisionomias desses pacientes não pararam de interferir em seus sonhos. Quando acordou, pelas
onze horas da manhã, estava tão exausto como se absolutamente não tivesse dormido. Teve de
se obrigar a fazer os seus dez quilômetros, um hábito dominical, depois tomou um banho de
chuveiro e vestiu as roupas que escolhera com cuidado: camisa bege com colarinho branco e
mangas compridas, calça marrom-escura e paletó xadrez marrom-claro de linho e seda.
Sentiu-se contente por ter esse encontro com Carol para distraí-lo.
A Hampshire House ficava na Beacon Street, em frente aos jardins do parque municipal
de Boston. Num nítido contraste com o dia anterior, que fora chuvoso, agora o céu brilhava
com a luz do sol e havia nuvens esparsas impelidas pelo vento. A bandeira dos Estados
Unidos, hasteada no alto da entrada da Hampshire, tremulava na brisa do fim de outono. Jason
chegou cedo e pediu uma mesa no salão da frente, no primeiro andar. Uma lareira acesa
crepitava, dando um clima acolhedor, e um pianista executava antigas músicas de sucesso.
Jason reparou nas pessoas em torno. Eram pessoas bem vestidas e distintas,
conversando animadas; evidentemente ignoravam completamente alguma nova doença capaz
de devastar sua cidade… Aí Jason se deu conta de que não devia deixar sua imaginação
correr solta, nem se deixar levar por essas impressões. Afinal, uma meia dúzia de mortes não
significava uma epidemia. Além do mais, nem mesmo sabia se o problema era de natureza
infecciosa. Mesmo assim, não conseguia afastar da mente esses óbitos recentes.
Carol chegou cinco minutos depois das duas. Jason levantou-se, fazendo um gesto para
atrair a sua atenção. A moça usava umas roupas que lhe ficavam muito bem: uma blusa branca
de seda e calça comprida de lã preta. Seu aspecto jovem, inocente e bem disposto, longe do
clube, sempre impressionava Jason. Ao notar sua presença, ela deu um largo sorriso e
encaminhou-se diretamente para a mesa onde ele a esperava. Pareceu um pouco ofegante.
– Desculpe o meu atraso – falou ela, ajeitando suas coisas, uma jaqueta de camurça,
uma sacola de lona, cheia de material de estudo, e uma bolsa a tiracolo. Depois de tê-las
colocado em ordem, ao lado, olhou diversas vezes para a entrada do recinto.
– Você está esperando alguém? – perguntou Jason.
– Naturalmente que não. Mas tenho aquele patrão maluco, que insiste em ser
superprotetor. Especialmente depois que Alvin morreu. Ele mantém alguém junto a mim a
maior parte do tempo, supostamente para minha proteção. À noite, não me importo; mas,
durante o dia, não gosto disso. O Sr. Músculos apareceu hoje pela manhã, mas eu o mandei
embora. Talvez ele tenha dado um jeito de me seguir.
Jason conjeturou se deveria mencionar aquele seu encontro com Bruno, mas decidiu
silenciar. Somente depois de terem sido servidos, e de não terem avistado o corpanzil de
Bruno, foi que ambos começaram a se sentir um pouco mais à vontade.
– Eu provavelmente deveria ser mais agradecida ao meu patrão – disse Carol. – Ele
tem sido muito bom para mim. Agora mesmo, estou morando em um dos apartamentos dele, na
Beacon Street. Nem mesmo pago aluguel.
Jason não quis pensar em todos os motivos para o patrão de Carol querer que ela


tivesse um bom apartamento. Um tanto perturbado com essas idéias, voltou a atenção para sua
omelete.
– Então… – disse Carol, gesticulando com o garfo. – O que mais você queria me
perguntar? – Ela tomou uma porção de seu assado.
– Você se lembra de algo mais a respeito da descoberta feita por Alvin Hayes?
– Não – disse Carol, engolindo. – Além disso, mesmo quando ele costumava conversar
comigo sobre o seu trabalho, eu achava suas explicações incompreensíveis. Ele sempre
esquecia que nem todo mundo é físico nuclear. – Carol riu, e seus olhos tinham uma cintilação
atraente.
– Soube que Alvin fazia trabalho free-lance para uma outra empresa de bioengenharia –
disse Jason. – Você sabe algo sobre isso?
– Acho que você está se referindo a Gene, Inc. – Carol fez uma pausa, enquanto seu
sorriso desaparecia. – Isso devia ser um grande segredo. – Ela inclinou a cabeça para um
lado. – Mas agora que ele está morto, parece-me não haver razão para isso. Ele trabalhou para
eles durante mais ou menos um ano.
– Você sabe o que ele fez para essa empresa?
– Não, realmente não sei. Alguma coisa de hormônio do crescimento. Mas ultimamente
tinham tido um desentendimento. Alguma coisa referente a dinheiro. Não sei dos detalhes…
Jason compreendeu que, afinal de contas, estava certo. Helene havia sonegado alguma
informação. Se Hayes tinha tido desentendimento com Gene, Inc., Helene devia ter
conhecimento disso.
– O que você sabe a respeito de Helene Brennquivist?
– Ela é uma boa pessoa. – Carol depôs o seu garfo no prato. – Bom… isso não é
totalmente sincero. Ela provavelmente é uma boa pessoa, claro. Mas, para lhe dizer a verdade,
foi por sua causa que Alvin e eu deixamos de ser amantes. Como eles trabalhavam juntos em
tantas coisas, ela começou a vir até ao nosso apartamento. Depois descobri que estavam tendo
um caso. Isso eu não pude agüentar. Incomodou-me que ela agisse assim, com tanto segredo,
ainda mais debaixo do meu nariz, em minha casa.
Jason sentiu-se surpreso. Achava que Helene estava retendo informações, mas nunca lhe
passara pela cabeça a idéia de que a moça tinha tido um caso amoroso com Hayes. Tentou
perscrutar a fisionomia de Carol. Pôde perceber que a menção do caso havia redespertado
nela sentimentos desagradáveis. Ficou a imaginar se Carol sentira em relação a Hayes a
mesma irritação que sentia em relação a Helene.
– E quanto à família de Hayes? – perguntou ele, mudando, deliberadamente, de assunto.
– Não sei muito da família dele. Falei com sua ex-esposa, ao telefone, uma ou duas
vezes, mas nunca pessoalmente. Eles estavam divorciados fazia cinco anos, mais ou menos.
– Hayes tinha filhos?
– Três. Dois meninos e uma menina.
– Sabe onde eles moram?
– Numa cidadezinha em Nova Jersey. Leonia, ou algo parecido. Lembro-me, porém, da
rua – Park Avenue. Esse nome me pareceu muito pretensioso.
– Ele alguma vez disse algo sobre doença de um dos seus filhos?
Carol balançou a cabeça negativamente. Fazendo sinal para uma garçonete, indicou que
desejava mais café. Comeram em silêncio durante algum tempo, apreciando a comida e o


ambiente.
De repente o beeper de Jason tocou, e ambos tiveram um leve sobressalto. Felizmente
era apenas um chamado do hospital, avisando que a família de Cowen finalmente chegara de
Minneapolis e esperava poder encontrar Jason no hospital por volta de quatro da tarde.
Voltando do telefone, Jason sugeriu que aproveitassem o tempo bom e dessem uma
caminhada no parque em frente. Depois que haviam cruzado pela Beacon Street, ela tomou seu
braço. Ele se sentiu surpreso, e gostou do gesto dela. Apesar da profissão um tanto dúbia que
ela exercia, Jason tinha de admitir que a sua companhia lhe agradava imensamente. Além de
ter uma aparência pessoal saudável, ela possuía também uma vitalidade que se transmitia a
ele.
Andando, contornaram a parte do lago onde ficavam os barquinhos de passeio,
passaram junto à estátua eqüestre de Washington e depois atravessaram a ponte que transpõe
um braço do lago. Os barquinhos tinham sido retirados porque já era a estação fria.
Encontrando um banco vazio, debaixo de um salgueiro já sem folhas, ali se sentaram, e Jason
reconduziu a conversa para Hayes.
– Ele fez alguma coisa fora do habitual nestes últimos três meses? Alguma coisa
inesperada… fora da rotina?
Carol pegou no chão uma pedrinha e atirou-a na água.
– Essa é uma pergunta difícil – falou ela. – Uma das coisas de que eu gostava em Alvin
era a sua impulsividade. Fazíamos um bocado de coisas com base no impulso do momento,
como viajar, por exemplo.
– Ele viajou muito recentemente?
– Ah, sim – falou Carol, procurando no chão mais um seixo. – Ainda neste último mês
de maio ele foi à Austrália.
– E você foi?
– Não. Ele não me levou. Disse que era uma viagem estritamente de trabalho e que
precisava que Helene o ajudasse com diversos testes. Na época, acreditei nele, de boba que
eu era.
– Você alguma vez descobriu quais eram os negócios dele?
– Era algo que envolvia camundongos australianos. Lembro-me dele dizendo que esses
camundongos tinham hábitos peculiares. Mas foi só isto que eu soube. Ele tinha muitos
camundongos e ratos no seu laboratório.
– Eu sei – disse Jason, lembrando-se, com toda a nitidez, dos animais mortos, todos
contorcidos, Jason tinha perguntado se Hayes andara tendo algum comportamento estranho.
Uma súbita viagem à Austrália podia ser considerada uma coisa esquisita; mas não se sabendo
nada sobre seus estudos atuais, era difícil ter certeza. Jason teria de averiguar isso com
Helene.
– Alguma outra viagem?
– Eu fui com ele a Seattle.
– Quando foi isso?
– Em meados de julho. Parece que a velha Helene não estava em condições de ir, e
Alvin precisava de motorista.
– Motorista?
– Essa era uma outra coisa estranha em Alvin – disse Carol. – Ele não sabia dirigir.


Dizia que nunca aprendera e nem iria aprender.
Jason lembrou-se de que, na noite em que Hayes morrera, o policial comentara que ele
não tinha consigo carteira de motorista.
– Que aconteceu em Seattle?
– Pouca coisa. Estivemos na cidade só uns dois dias. Visitamos, sim, a Universidade de
Washington. Depois fomos até as Cascades. Certamente que é uma região bonita, mas se você
acha que chove muito em Boston, então espere até visitar a Costa Noroeste, no Pacífico. Já
esteve lá?
– Não – disse Jason, distraído. Ele estava procurando adivinhar que tipo de descoberta
exigiria viagens a Seattle e à Austrália.
– Quanto tempo você esteve em viagem?
– Em que ocasião?
– Quero dizer, viajou mais de uma vez?
– Duas vezes – disse Carol. – A primeira viagem foi de cinco dias. Visitamos a
Universidade de Washington e os principais pontos turísticos da cidade. Na segunda, algumas
semanas mais tarde, ficamos lá somente duas noites.
– Você fez as mesmas coisas nas duas vezes? Carol balançou a cabeça negativamente.
– Na segunda viagem nem paramos em Seattle, fomos diretamente às Cascades.
– Mas, afinal de contas, o que vocês fizeram?
– Eu simplesmente não fiz nada, apenas relaxei. Ocupamos uma cabana. Foi
maravilhoso.
– E Alvin? O que fez ele?
– Mais ou menos a mesma coisa. Mas estava interessado em ecologia, essas coisas.
Você sabe, sempre o cientista.
– Então foi como umas férias – perguntou Jason, profundamente perplexo.
– Acho que sim. – Ela jogou outra pedrinha na água.
– O que Alvin fez na Universidade de Washington? – perguntou Jason.
– Avistou-se com um velho amigo. Não consigo lembrar o nome. Era alguém com quem
se formara em Colúmbia.
– Um geneticista molecular, como ele?
– Acredito que sim. Mas não ficamos lá por muito tempo. Eu visitei o departamento de
psicologia enquanto eles dois conversavam.
– Isso deve ter sido interessante. – Jason sorriu, imaginando que o departamento de
psicologia teria gostado de pôr suas mãos acadêmicas em algo parecido com Carol Donner.
– Droga! – exclamou ela de repente, olhando para o seu relógio de pulso. – Vou ter que
correr. Tenho um outro compromisso.
Jason levantou-se, tomando a mão dela. Sentia-se impressionado com a delicadeza com
que ela se referia ao seu trabalho. “Um compromisso” soava muito profissional. Caminharam
até a orla do parque.
Carol recusou a carona que Jason lhe ofereceu. Despediu-se e foi andando pela Beacon
Street. Jason ficou olhando a moça até o vulto desaparecer na distância. Ela parecia tão
despreocupada e feliz. Que tragédia, pensou ele. O tempo, que parece ilimitado para a sua
mente jovem, logo virá cobrar sua dívida. Que destino estranho: ganhar a vida dançando de
topless e tendo encontros com homens. Jason não gostou de pensar nisso. Voltando-se para a


direção oposta, foi a pé até o supermercado De Luca e comprou os ingredientes para um jantar
simples: frango assado e verduras para salada. Enquanto isso, repassava na memória a
conversação que tivera com Carol. Tinha, agora, mais informações, só que estas suscitavam
mais perguntas do que conclusões. Mesmo assim, agora tinha certeza de duas coisas. Primeira,
Hayes efetivamente havia realizado uma descoberta; segunda, a chave era Helene
Brennquivist.
Em menos de 24 horas, Juan tinha todo o cenário planejado. Como este golpe
certamente fugiria aos padrões tradicionais, a coisa exigia mais reflexão. A tática usual
consistia em executar a vítima no meio de uma multidão, encostar-lhe uma pistola de pequeno
calibre na cabeça e pou!, tudo acabado. Esse tipo de operação exigia pouco planejamento,
apenas as circunstâncias certas. O êxito da ação baseava-se na psicologia típica das
multidões. Depois de um evento chocante, cada um se concentra tanto na vítima, que o autor da
execução pode se misturar à multidão sem ser notado, até mesmo simular ser um dos
circunstantes curiosos. Tudo que tinha a fazer era deixar cair a arma.
Mas as instruções na presente incumbência eram diferentes. O serviço de agora devia
ter a aparência de um estupro, a especialidade de Juan. Ele sorriu para si mesmo, surpreso por
se ver pago por uma coisa que costumava fazer como uma diversão. Os Estados Unidos eram
um lugar estranho e maravilhoso, onde a lei, em muitos casos, dispensava mais consideração
ao criminoso do que à vítima.
Juan compreendeu que, desta vez, tinha de apanhar sua vítima sozinha. E esse era o
desafio principal agora. E também o que tornava a coisa mais divertida, porque, sem
testemunhas, ele podia fazer o que bem lhe aprouvesse com a mulher, contanto que, ao
abandoná-la, ela estivesse morta.
Juan decidiu seguir a vítima e abordá-la no hall de entrada do edifício onde morava. A
ameaça de agressão física imediata, feita num tom de voz baixo mas decidido, devia ser
suficiente para persuadi-la a levá-lo consigo até seu apartamento. Uma vez ali, seria tudo uma
enorme diversão, um jogo.
Ele seguiu o alvo numa curta caminhada para compras, na Harvard Square. Ela
comprou uma revista numa banca na esquina, depois dirigiu-se a uma mercearia chamada
Sages. Juan ficou no outro lado da rua, em frente, examinando a vitrine de uma livraria,
surpreso por ver o estabelecimento aberto no domingo. O alvo saiu da mercearia com uma
sacola de plástico de compras, atravessou a rua em diagonal e desapareceu numa padaria e
café. Juan acompanhou-a – café era bom, ainda que do tipo americano. Ele preferia café
cubano: espesso, doce, com aroma forte.
Enquanto bebericava seu café meio aguado, olhou demoradamente sua vítima. Estava
encantado com a sua boa sorte. A mulher era linda. Calculou que devia ter vinte e poucos
anos. Que coisa, pensou. Já podia sentir-se todo retesado. Não iria fraquejar.
Meia hora depois, o alvo terminou, pagou e saiu do café. Juan jogou uma nota de dez
dólares sobre a mesa. Sentiu-se generoso. Afinal de contas, estaria cinco mil dólares mais
rico quando voltasse a Miami.
Para sua satisfação, a mulher prosseguiu andando pela Brattle Street. Ele retardou o
passo, contentando-se com simplesmente mantê-la à vista. Quando ela dobrou na Concord, ele
apressou o passo, pois sabia que ela estava quase chegando em casa. Quando ela alcançou o


Conjunto Residencial Craigie Arms, Juan estava logo atrás dela. Uma rápida olhada para os
dois lados da Concord Avenue indicou-lhe que o momento era perfeito. Agora a coisa
dependia do que estava acontecendo no interior do edifício.
Juan fez uma pausa por um tempo suficiente para ter certeza de que a porta interna tinha
sido aberta. No tempo de uma fração de segundo ele estava dentro, na portaria, e colocou um
pé sobre a soleira da porta interna. Foi então que falou.
– Srta. Brennquivist?
Tomada imediatamente de surpresa e sobressalto, Helene olhou para o rosto hispânico
bem-apessoado e moreno de Juan.
– Sim – disse ela com seu sotaque escandinavo, imaginando que ele devia ser um
inquilino do mesmo prédio.
– Eu estava morrendo de vontade de conhecer você. Meu nome é Carlos.
Helene fez uma pausa fatal, com as suas chaves ainda na mão.
– Você mora aqui? – perguntou ela.
– Claro que sim – falou Juan, com estudada naturalidade. – Segundo andar. E você?
– Terceiro – disse Helene. E entrou pela porta interna, Juan logo atrás dela.
– Prazer em conhecê-lo – acrescentou ela. Sentiu-se na dúvida, usar as escadas ou o
elevador. A presença de Juan despertava nela um mal-estar.
– Eu estava esperando pela oportunidade de podermos conversar – disse Juan, andando
ao lado dela. – Que tal você me convidar para um drinque?
– Eu acho que não… – Helene viu a arma e se sentiu engasgada.
– Por favor, não me deixe com raiva, senhorita – disse Juan, com uma voz macia. –
Quando estou com raiva, faço coisas que lamento. – Ele calcou o botão do elevador. As portas
abriram. Fez um gesto para Helene entrar e entrou atrás dela. Tudo estava funcionando com
perfeição.
Quando o elevador fechou as portas e iniciou a subida, Juan sorriu amistosamente. Era
melhor manter tudo tranqüilo.
Helene estava paralisada pelo pânico. Não sabendo o que fazer, nada fez. O homem a
aterrorizava, embora parecesse razoável, e estivesse muito bem vestido. Tinha a aparência de
um próspero homem de negócios. Talvez fosse alguém associado à Gene Inc., incumbido de
dar buscas no seu apartamento. Por uns instantes pensou em gritar ou tentar correr, mas aí se
lembrou da arma.
O elevador abriu no terceiro andar. Juan fez um gesto cortês para ela sair na frente.
Com suas chaves nas mãos trêmulas, Helene encaminhou-se para a porta de seu apartamento e
abriu-a. Juan imediatamente colocou o pé na soleira, assim como fizera na portaria. Depois
que ambos entraram, ele fechou a porta e chaveou-a, usando as três trancas. Helene ficou de
pé, aturdida, no pequeno hall de entrada, incapaz de se mover.
– Por favor – disse Juan, educadamente, fazendo um gesto para que ela entrasse no
living. Para sua surpresa, uma loura gorducha estava sentada no sofá. Haviam dito a Juan que
Helene morava sozinha. Não se preocupe, pensou ele. – Como é mesmo que vocês costumam
dizer? – murmurou ele. – Quando chove, chove pra valer. Esta festa vai ser duas vezes melhor
do que eu esperava.
Ele fez um gesto com a arma no ar, para que Helene sentasse do outro lado da sala, em
frente à companheira de apartamento. As duas mulheres trocaram olhares angustiados. Aí,


Juan, com um puxão, arrancou da parede os fios do telefone, deixando pender soltos no ar os
três terminais de cores codificadas. Aproximou-se do aparelho estéreo de Helene e ligou o
sintonizador. Uma música clássica começou a tocar. Mexendo nos controles digitais, mudou
para uma estação que tocava hard rock e aumentou o volume.
– Como é que pode haver festa se não há música? – gritou ele, ao mesmo tempo que
tirou do bolso uma corda fina.


10
Jason chegou cedo ao hospital, na manhã da segunda-feira. Esteve bastante pensativo ao
visitar os pacientes internados. Nenhum deles estava passando bem. Depois que foi para o
consultório, começou a dar telefonemas para Helene sempre que estava livre. Ela nunca
atendia. Pelo meio da manhã, chegou mesmo a subir apressadamente ao laboratório no sexto
andar, mas encontrou-o às escuras e abandonado. De volta ao seu consultório, estava irritado.
Sentia que, desde o começo, Helene não colaborara, e agora, não deixando que a
encontrassem, estava agravando o problema.
Jason pegou o telefone, comunicou-se com o departamento de pessoal e obteve o
endereço da residência de Helene e o número do seu telefone. Telefonou imediatamente.
Depois de ter tocado umas dez vezes, Jason, contrariado, bateu com o fone no gancho. A
seguir, telefonou para o departamento de pessoal e pediu para falar com a diretora, Jean
Clarkson. Quando ela atendeu, Jason perguntou por Helene Brennqui-vist:
– Ela avisou se estava doente? Tenho procurado entrar em contato com ela a manhã
toda.
– Estou surpresa – disse a Sra. Clarkson. – Nem tivemos notícias dela, e ela sempre tem
sido pontual, de confiança. Acho que em um ano e meio não chegou a faltar um dia sequer.
– E se ela estivesse doente – perguntou Jason –, a senhora acha que telefonaria?
– Com toda a certeza.
Jason recolocou o fone no gancho. Sua irritação transformou-se em preocupação. Teve
uma sensação ruim em relação à ausência de Helene.
A porta do seu consultório abriu-se, e Claudia enfiou a cabeça para dentro.
– Dra. Danforth na linha dois. O senhor quer falar com ela?
Jason fez um sinal afirmativo.
– Precisa de papeleta de alguém?
– Não, obrigado – disse Jason enquanto levantava o fone do gancho. A voz da Dra.
Danforth ressoou no telefone:
– Eu diria que o Good Health faria melhor em examinar a fundo seus pacientes. Nunca
vi cadáveres em tão mau estado. O de Gerald Farr está tão ruim como os demais. Não havia
um único órgão nele que parecesse ter menos de cem anos de idade!
Jason não respondeu.
– Alô? – disse Margaret.
– Estou ouvindo – disse Jason. Mais uma vez ele se sentia constrangido em dizer a
Margaret que, apenas um mês atrás, havia feito um exame de saúde completo em Farr e não
encontrara nenhum problema de saúde, apesar do tipo de vida pouco sadio que o paciente
levava.
– Estou surpreso de ele não ter tido um acidente vascular cerebral há alguns anos –
disse Margaret. – Todas as artérias estavam ateromatosas. As carótidas, quase totalmente
obstruídas.
– E que me diz do paciente de Roger Wanamaker? – perguntou Jason.
– Qual era seu nome?
– Não sei – admitiu Jason. – O homem morreu de um acidente vascular cerebral, na


sexta-feira. Roger falou que você se encarregaria do caso.
– Ah, sim. Também esse apresentava uma degeneração quase total. Eu sempre achei que
os planos de saúde tinham por finalidade proporcionar primordialmente medicina preventiva.
Mas vocês não vão fazer muito dinheiro se continuarem apresentando tal estatística de casos
tão graves. – Margaret riu. – Brincadeiras à parte, esse foi mais um caso de doença
multissistêmica.
– E vocês, aí, fazem exame toxicológico de rotina? – perguntou Jason à queima-roupa.
– Claro que sim. Especialmente hoje em dia. Fazemos testes para cocaína, coisas assim.
– E que tal fazer exames toxicológicos em Gerald Farr? Seria possível isso?
– Acho que ainda temos sangue e urina – disse Margaret. – O que você quer que
pesquisemos?
– Tudo, simplesmente. Estou tentando descobrir mas não tenho nenhuma idéia do que
anda acontecendo aqui.
– Terei prazer em fazer uma bateria de testes – disse Margaret –, mas Gerald Farr não
foi envenenado, isso eu posso dizer. Morreu de velho. Era como se ele fosse trinta anos mais
velho. Sei que isso não parece uma afirmação muito científica, mas é a verdade.
– Mas, mesmo assim, eu gostaria de ter os exames toxicológicos.
– Pois terá – disse Margaret. – E mandaremos algumas amostras para vocês
processarem o material. Lamento que levemos tanto tempo para fazer os exames
microscópicos.
Jason desligou o telefone e retornou ao trabalho, vacilando entre dúvidas sobre si
mesmo e a sensação desconcertante de que estava acontecendo algo além da sua compreensão.
Sempre que tinha um momento de folga, discava o número do telefone do laboratório. Mas
nunca havia resposta. Telefonou novamente para Jean Clarkson, que se disse disposta a lhe
telefonar se tivesse notícias da Srta. Brennquivist, pedindo-lhe, por favor, que não
importunasse mais. E bateu com o telefone. Jason lembrou-se, com nostalgia, daqueles tempos
em que era tratado com mais respeito por parte da equipe hospitalar.
Depois de haver atendido o último paciente da manhã, Jason ficou sentado diante de sua
escrivaninha, tamborilando nervosamente com os dedos. De repente, sentiu-se tomado por uma
onda de convicção de que a ausência de Helene era não somente significativa mas também um
fato grave. Tão grave, convenceu-se, que devia informar à polícia imediatamente.
Jason trocou o avental branco por um paletó e saiu em direção ao carro. Concluiu que o
melhor era ir procurar pessoalmente o detetive Curran. Depois do último encontro que tinham
tido, não achava que Curran pudesse levá-lo a sério por telefone.
Sem maior dificuldade, Jason lembrou-se do trajeto que poderia levar ao gabinete de
trabalho de Curran. Dando uma olhada para dentro da sala escassamente mobiliada, viu o
detetive trabalhando com um formulário colocado sobre sua escrivaninha metálica, seu
enorme punho agarrando o lápis como se este fosse um preso tentando escapar.
– Curran – disse Jason, esperando que o homem agora estivesse com um humor melhor
do que aquele que apresentara naquela noite.
Curran levantou os olhos.
– Ah, não! – exclamou ele, jogando o lápis sobre o formulário ainda incompleto. – Meu
médico predileto! – Ele fez uma expressão exagerada de irritação, depois gesticulou para
Jason entrar na sala.


Jason puxou uma cadeira com encosto metálico para junto da mesa de Curran. O
detetive olhava-o com evidente desconfiança.
– Houve um acontecimento novo – falou Jason. – Achei que o senhor devia saber.
– Pensei que tinha voltado à sua prática médica. Ignorando o ataque, Jason prosseguiu.
– Helene Brennquivist não compareceu ao trabalho hoje.
– Talvez esteja doente. Talvez esteja cansada. Talvez tenha adoecido e se cansado do
senhor e de todas as suas perguntas.
Jason procurou manter a calma.
– O departamento de pessoal me disse que ela é pontual e não falta ao serviço. Nunca
faltou um dia sem que telefonasse. E todas as vezes que telefonei para o apartamento dela, não
houve resposta.
O detetive Curran olhou Jason com desdém.
– O senhor não pensou na possibilidade de que essa mulher atraente tivesse passado um
fim de semana prolongado com um namorado?
– Não. Depois daquela última vez que conversei com o senhor, fiquei sabendo que ela
estava tendo um caso amoroso com Hayes.
Curran endireitou-se na cadeira, e pela primeira vez prestou muita atenção ao que Jason
dizia.
– Sempre achei que ela estava encobrindo alguma coisa em favor da Hayes – continuou
Jason a falar. – Agora eu sei por quê. E agora acredito que ela saiba sobre o trabalho dele
muito mais do que diz, e isto porque os lugares em que ele vivia e trabalhava foram
vasculhados. Acho que Hayes fez uma descoberta científica importante, e alguém anda
querendo pôr as mãos nas suas anotações.
– Se é que houve essa descoberta.
– Tenho certeza que houve – disse Jason. – E isso faz aumentarem as minhas suspeitas
quanto à morte de Hayes. Essa morte interessava a alguém.
– O senhor está tirando conclusões apressadas.
– Hayes disse que alguém estava tentando matá-lo – falou Jason. – Eu penso que ele fez
uma descoberta científica importante e foi assassinado por causa disso.
– Alto lá! – exclamou Curran em voz alta, batendo com o punho na mesa. – O médicolegista concluiu que o Dr. Alvin Hayes morreu de causas naturais.
– Aneurisma, para ser exato. Mas também estava sendo seguido.
– Pensou que estava – corrigiu Curran, a voz alteando-se, irritada.
– Acho que ele estava mesmo sendo seguido – falou Jason com igual veemência. – Isso
explicaria por que alguém revirou o seu apartamento e o seu…
– Nós sabemos por que o apartamento dele foi vasculhado e revirado – falou Curran,
interrompendo. – Só que achamos primeiro as drogas e o dinheiro.
– Hayes pode ter feito uso de cocaína. – Jason agora falava alto. – Mas não era
traficante. E eu sei que plantaram essas drogas lá, e… – Aí, Jason passou a relatar a conversa
que tinha tido com Carol, depois parou de falar. Não sentia vontade de dizer a Curran que
havia insistido em se encontrar com a bailarina. – De qualquer modo – falou ele, agora mais
calmo –, creio que o motivo da destruição do laboratório foi que alguém estava em busca dos
cadernos de laboratório de Hayes.
– Que história é essa de laboratório? – Os olhos semicerrados com pesadas pálpebras


se abriram muito e o rosto do detetive apresentava umas manchas avermelhadas.
Jason engoliu em seco.
– Pombas! – exclamou Curran, com a voz alterada. – Você quer dizer que o laboratório
de Hayes foi arrombado e destruído, e isso não foi comunicado? Mas, afinal, o que vocês
acham que estão fazendo?
– O hospital ficou preocupado com a repercussão negativa através da imprensa – falou
Jason, forçado a defender a decisão que ele não aprovara.
– Quando aconteceu isso?
– Sexta-feira à noite.
– O que foi levado?
– Diversos livros de anotações de dados e algumas culturas bacterianas. Mas não
levaram nada de equipamento de mais valor. E não foi roubo – Jason observava o rosto canino
de Curran em busca de algum sinal de que sua preocupação por Helene era justificada.
– Algum dano, vandalismo? – foi só o que falou.
– Bom, viraram o lugar de pernas para o ar e esvaziaram tudo no chão. De modo que o
laboratório virou uma desordem total. Mas a única destruição deliberada foi a que atingiu
aqueles animais horrorosos.
– Bem – disse Curran –, aqueles monstros precisavam ser destruídos. Eu próprio me
senti mal. Como foram mortos?
– Provavelmente envenenados. O nosso departamento de anatomia patológica está
esclarecendo isso.
O detetive Curran passou os dedos pelos seus cabelos outrora ruivos.
– Quer saber de uma coisa? – perguntou ele, com um tom retórico. – Com toda essa
cooperação que recebi de vocês, seus trapalhões, estou mais do que satisfeito por ter passado
esse caso para o departamento de narcóticos. Eles é que lidam com isso. Que tal seguir por
esse corredor e ir berrar e reclamar com o pessoal desse departamento? Talvez lá eles levem
a sério esse negócio do seu cientista louco andar comendo a sua assistente de laboratório e
também a bailarina de strip-tease…
– Hayes e a bailarina já não eram amantes.
– Não me diga! – ironizou Curran, dando uma risada curta e oca, que terminou num
arroto. – Por que não vai ao departamento de narcóticos e me deixa em paz, doutor? Tenho um
monte de homicídios de verdade para investigar.
Curran pegou o lápis e voltou aos seus formulários. Irritado, Jason desceu ao andar
térreo e devolveu o crachá de visitante. Depois saiu para apanhar o carro. No seu trajeto de
volta ao hospital, passou pela Storrow Drive; à sua direita, o Charles River se espraiava
preguiçosamente, e pareceu que essa imagem finalmente o acalmou. Mesmo assim, continuava
convencido de que alguma coisa havia acontecido a Helene. Mas concluiu que se a polícia não
estava preocupada com isso, ele pouco poderia fazer.
Deixou o carro no estacionamento do GHP e voltou ao seu consultório. Claudia e Sally
ainda não tinham retornado do almoço. Alguns pacientes já estavam à espera. Jason trocou o
paletó pelo jaleco branco e interfonou para saber da consulta cardiológica de Madaline
Krammer. Harry Sarnoff concordou com a avaliação feita por Jason, e Madaline estava se
submetendo a uma angiografia.
Assim que Sally retornou, Jason começou a atender os seus pacientes com hora


marcada. Estava atendendo o terceiro paciente dessa tarde, quando Claudia entrou na sala de
exames.
– Uma visita para o senhor.
– Quem? – perguntou Jason, destacando uma receita.
– A nossa destemida chefe. E ela vem espumando pela boca. Achei melhor alertá-lo.
Jason entregou a receita ao paciente, colocou o estetoscópio em torno do pescoço e
encaminhou-se, pelo corredor, até o seu consultório. Shirley estava de pé junto à janela. No
momento em que ouviu Jason chegar, voltou o rosto na direção dele. Não havia dúvida, ela
estava furiosa.
– Espero que você certamente tenha uma boa explicação, Dr. Howard – falou ela. –
Acabei de receber um telefonema da polícia. Estão vindo para cá; querem que eu preste uma
declaração explicando por que não dei parte do arrombamento do laboratório de Hayes.
Disseram que ficaram sabendo disso por seu intermédio. E ameaçam até abrir processo por
obstrução à justiça.
– Desculpe – disse Jason. – A coisa saiu acidentalmente. Foi na central de polícia. Eu
não tinha a intenção de mencionar isso.
– Mas, que diabo, o que você foi fazer na central de polícia?
– Eu quis conversar com Curran – disse Jason, sentindo-se culpado.
– Por quê?
– Havia algumas informações que eu achei que seriam do seu interesse.
– Sobre o arrombamento?
– Não – disse Jason, deixando cair os braços. – Helene Brennquivist não apareceu para
trabalhar hoje. Descobri que ela e Hayes estavam tendo um caso. Creio que consegui chegar a
certas conclusões. E aí me escapou essa história do arrombamento.
– Acho que é melhor você ficar fazendo o seu trabalho de médico – disse Shirley, com a
voz um pouco mais suave.
– Foi o que Curran me disse também – suspirou Jason.
– Bom – disse Shirley, abrindo os braços e tocando no braço de Jason –, pelo menos
você não fez isso de propósito. Porque houve momentos em que cheguei a me perguntar de que
lado afinal você estava. Droga, esse caso Hayes parece que não termina nunca. Toda vez que
eu penso que o problema está sob controle, surge um fato novo.
– Lamento muito – disse Jason com sinceridade. – Eu não tive a intenção de piorar as
coisas.
– Está bem. Mas lembre-se: a morte de Hayes já está atingindo esta instituição. Não
vamos complicar mais os nossos problemas. – Apertou com força a mão de Jason, depois saiu
em direção à porta.
Jason voltou a atender seus pacientes, decidido a deixar a investigação com a polícia.
Eram quase quatro da tarde quando Claudia o interrompeu de novo.
– Um telefonema para o senhor – murmurou ela.
– Quem é? – perguntou Jason, nervoso. O procedimento usual era Claudia anotar os
recados e depois, no fim do dia, Jason dar os telefonemas que fossem necessários. A menos,
naturalmente, que se tratasse de uma emergência. Mas, Claudia não costumava cochilar
quando era uma emergência.
– Carol Donner – falou ela.


Jason hesitou um instante, depois disse que atenderia o telefonema no seu consultório.
Claudia seguiu-o, ainda murmurando.
– É essa a tal Carol Donner?
– Que Carol Donner?
– A bailarina que trabalha num cabaré na zona do meretrício – disse Cláudia.
– Eu não sabia – disse Jason, entrando no seu consultório. Fechou a porta, deixando
Claudia de fora, e tomou o fone.
– Aqui é o Dr. Howard – disse ele.
– Jason, aqui é Carol Donner. Desculpe incomodá-lo.
– Não há do que se desculpar. – A voz dela trouxe a Jason a imagem agradável da moça
sentada à sua frente, na mesa da Hampshire House. Ele ouviu um clique. – Só um momento,
Carol. – Colocou o fone sobre a escrivaninha, abriu a porta e olhou para Claudia. Com
expressão irritada, fez um sinal para que ela colocasse a extensão no gancho. – Desculpe –
disse Jason quando voltou ao telefone.
– Eu não telefonaria se não achasse que poderia ser algo importante – disse Carol. –
Mas é que encontrei um pacote no meu armário, lá onde trabalho. Aliás, eu queria dizer que
sou bailarina no Club Cabaret…
– Ah – disse Jason vagamente.
– Tive de ir ao clube hoje e encontrei o pacote. Alvin havia me pedido que o colocasse
no meu armário, há algumas semanas; eu até já tinha me esquecido completamente disso.
– O que havia nele?
– Livros de anotações de laboratório, papéis, trabalhos científicos e correspondência.
Esse tipo de coisa. Não havia drogas, se era nisso que você estava pensando.
– Não – disse Jason –, não era nisso que eu estava pensando. Mas estou contente por
você ter telefonado. Os livros podem ser importantes. Eu gostaria de vê-los.
– Está bem – disse Carol. – Estarei no clube hoje à noite. Vou estudar a melhor maneira
de entregá-los a você. Meu patrão anda me causando muitos problemas com essa história de
me dar proteção. Alguma coisa sinistra está acontecendo e ninguém me diz nada, mas eu estou
mais aborrecida é com esse brutamontes que me segue por toda a parte. Não gostaria de
envolver você nessas coisas.
– Que tal eu ir lá e apanhar essas coisas?
– Não, não me parece uma boa idéia. Eu lhe direi por quê. Se você me der o número do
seu telefone, eu ligarei hoje à noite, quando chegar em casa.
Jason deu-lhe o número do seu telefone.
– Uma coisa mais – disse Carol. – Ontem à noite eu me dei conta de que havia mais uma
coisa que não lhe contara. Há um mês, Alvin disse que ia terminar seu caso com Helene.
Queria que ela se concentrasse no trabalho deles.
– Você acha que ele disse isso a ela?
– Não tenho a mínima idéia.
– Helene não apareceu para trabalhar hoje.
– Não brinque! – disse Carol. – Isso é estranho. Pelo que ouvi dizer, ela era obsessiva
com o trabalho. Talvez ela seja o motivo de meu patrão estar agindo de modo tão maluco.
– Como é que o seu patrão tinha conhecimento de Helene Brennquivist?
– Ele possui uma grande rede de informações. Sabe do que se passa em toda a cidade.


Encerrado o telefonema, Jason ficou pensando na confusão gerada pelas incoerências
que ele notava entre o trabalho de Carol e a sua sofisticação intelectual. Rede de informações
era um termo de tecnologia de computadores – um termo que não se esperaria ouvir na
conversação de uma bailarina de strip-tease.
Retornando ao atendimento de seus pacientes, Jason evitou, cautelosamente, os olhares
inquiridores de Claudia. Ele sabia que ela estava com uma curiosidade incontrolável, mas
decidiu não lhe dar nenhuma satisfação.
Já bem no fim da tarde, o Dr. Jerome Washington, um musculoso médico negro, que
havia se especializado em doenças gastrintestinais, interrompeu Jason solicitando-lhe uma
rápida consulta.
– Naturalmente – disse Jason, levando-o até o seu consultório.
– Roger Wanamaker sugeriu que eu conversasse com você a respeito deste caso. – De
debaixo do braço o médico tirou uma volumosa pasta e colocou-a sobre a escrivaninha. – Se a
coisa continuar desse jeito, acho melhor eu procurar outra atividade.
Jason abriu o prontuário. O paciente era um homem de sessenta anos de idade.
– Fiz um exame de saúde completo no Sr. Lamborn há 23 dias – disse Jerome. – O
sujeito estava com um pouco de peso a mais, mas quem de nós não está? Afora isso, achei que
ele estava bem, e foi isso que eu disse a ele. Aí, há uma semana, ele veio à consulta com um
aspecto péssimo. Havia perdido uns dez quilos. Fiz com que se internasse, pois pensei que
pudesse ter algum câncer que eu deixara de diagnosticar. Mandei fazer todos os exames
possíveis. Nada. E então, há três dias, ele morreu. Pressionei muito a família para que fosse
feita uma autópsia. E o que é que a autópsia mostrou?
– Nada de câncer.
– Certo – disse Jerome. – Nada de câncer, mas todos os órgãos do paciente
apresentavam uma degeneração completa. Conversei com Roger, e ele me disse para procurálo, porque você haveria de compartilhar da minha preocupação.
– Bom, eu tive alguns problemas parecidos – disse Jason. – E Roger também. Para
dizer a verdade, estou preocupado com a possibilidade de estarmos na iminência de alguma
catástrofe desconhecida na medicina.
– O que faremos? – perguntou Jerome. – Não estou podendo suportar essa pressão
emocional.
– Você tem razão. Com todas as mortes que tenho tido entre meus pacientes ultimamente,
também eu ando pensando em mudar de profissão. E não compreendo como é que não
conseguimos detectar sintomas nos nossos exames de saúde. Eu tinha dito a Roger que iria
convocar uma reunião para a próxima semana, mas agora acho que não podemos nos permitir
esperar mais. – Passou pela mente de Jason aquele flash da imagem de Hayes esguichando
sangue pela boca em cima da mesa do jantar. – Vamos nos reunir amanhã à tarde. Mandarei
Claudia datilografar a convocação, e vou pedir que as secretárias organizem uma lista com
todos os exames de saúde que fizemos no período de um ano para cá. Talvez possamos
descobrir o que aconteceu com os nossos pacientes.
– Parece-me uma boa medida – disse Jerome. – Casos como este não ajudam em nada a
autoconfiança de alguém.
Depois que Jerome se foi, Jason saiu do consultório e dirigiu-se ao balcão central para
planejar a reunião da equipe médica. Sabia que algumas pessoas teriam de trabalhar mais que


o habitual, e agradeceu a todos as providências para obter auxílio dos computadores. Houve
alguns resmungos quando ele explicou o que era necessário fazer, inclusive remarcar todos os
pacientes da tarde para outro dia, mas Claudia se encarregou dessa tarefa. Jason sentiu-se
confiante de poder tomar todas as providências que o tempo exíguo permitia.
Às 5:30 da tarde, depois de atender seu último paciente, Jason tentou dar um telefonema
para a casa de Helene. Ninguém atendeu. Num impulso, decidiu fazer uma parada no caminho
de casa para ir até o apartamento dela. Conferiu o endereço que havia obtido do departamento
de pessoal e verificou que ela morava em Cambridge, na Concord Avenue. Então identificou o
local correspondente. Era o conjunto residencial Craigie Arms.
Que coincidência, pensou. Antes de conhecer Danielle, ele tinha tido encontros com
uma garota no Craigie Arms.
Desceu, tomou seu carro e dirigiu-se para Cambridge. O trânsito estava horroroso, mas
Jason, por estar familiarizado com aquela área, não teve dificuldade em localizar o endereço.
Estacionou o carro e entrou na portaria do prédio, já sua conhecida. Procurou pelo nome no
quadro do interfone, encontrou Brennquivist e apertou a campainha. Sempre havia a
possibilidade alternativa de Helene não atender o telefone mas responder a uma chamada da
portaria. Não houve resposta. Jason percorreu a lista de moradores do edifício; o nome de
Lucy Hagen não constava. Afinal, já haviam se passado quinze anos.
Então, resolveu tocar a campainha do zelador e apertou-a.
Um pequeno alto-falante localizado acima dos botões dos apartamentos foi ligado e
emitiu um ruído, e a voz áspera do Sr. Gratz feriu o silêncio da portaria azulejada.
– Não fizemos nenhum pedido.
Jason logo se identificou, admitindo que o Sr. Gratz poderia não estar lembrado dele,
passados tantos anos. E disse que estava preocupado com uma colega de trabalho, que morava
no prédio. O Sr. Gratz não disse nada, mas a porta se abriu a um comando eletrônico. Jason
apressou-se a entrar. Dentro da portaria, sentiu o cheiro inconfundível do qual se lembrava
desde quinze anos antes. Era o cheiro de cebola frita. Uma porta metálica abriu-se nos fundos
do hall azulejado, e o Sr. Gratz apareceu, vestido, como sempre, com camiseta e jeans sujo e
surrado. Sua barba não era feita havia dois dias. Estudou a fisionomia de Jason, perguntou-lhe
novamente o nome, depois indagou:
– O senhor não costumava ter encontros com a Hagen, a garota do 2-J?
Jason ficou impressionado. O homem certamente não venceria um concurso de beleza,
mas evidentemente possuía uma memória muito precisa. E Jason chegara a conhecê-lo porque
Lucy tinha problemas crônicos com suas torneiras, e Larry vivia entrando e saindo do
apartamento dela para fazer os consertos.
– Em que posso servi-lo? – perguntou Larry.
Jason explicou que Helene Brennquivist não tinha aparecido para trabalhar e não
atendia o telefone. Jason disse que estava preocupado.
– Não posso deixá-lo ir ao apartamento dela.
– Eu compreendo – disse Jason –, mas só quero ter certeza de que tudo está bem.
Gratz olhou-o por mais uns instantes, deu um grunhido, depois encaminhou-se em
direção ao elevador. Tirou do bolso um molho de chaves que parecia suficiente para abrir
todas as portas do distrito de Cambridge. Subiram sem trocar palavras.
O apartamento de Helene ficava no fim de um longo corredor. Antes mesmo de


chegarem perto da porta, já podiam ouvir música de rock em alto volume.
– Parece que está havendo uma festa aí – disse Gratz. Tocou a campainha por alguns
instantes, mas não houve resposta. Chegou o ouvido à porta e tocou novamente a campainha. –
Com todo esse barulho, não admira que não ouçam a campainha da porta – disse ele. – Não
sei como ainda não houve reclamação dos vizinhos.
Levantando a mão peluda, Gratz bateu à porta, com força. Por fim, escolheu uma chave
e girou-a na fechadura. Assim que a porta se abriu, o volume da música aumentou
desmedidamente.
– Merda – disse Gratz. Depois gritou alto: – Olá! – Não houve resposta.
O apartamento tinha um pequeno vestíbulo com uma abertura em arco para a esquerda,
mas, mesmo de onde estava, Jason identificou o inconfundível cheiro da morte. Quis começar
a falar, mas Gratz o fez parar.
– É melhor o senhor esperar aqui – disse Gratz, alteando a voz acima da música
ruidosa, ao mesmo tempo que avançou em direção à sala de estar. – Meu Deus! – gritou ele um
momento mais tarde. Seus olhos estavam arregalados, e o seu rosto, contorcido de horror.
Jason olhou por entre o arco e o corpo de Larry. A sala era um pesadelo.
O zelador correu em direção à cozinha, a mão apertada contra a boca. Jason, mesmo
com toda sua experiência de médico, sentiu o estômago revolto. Helene e uma outra mulher
estavam lado a lado sobre o sofá, nuas, com as mãos amarradas atrás das costas. Os dois
corpos se encontravam indescritivelmente mutilados. Uma grande faca de cozinha,
enferrujada, estava cravada na mesa de refeição.
Jason voltou-se e olhou para dentro da cozinha. Larry estava debruçado sobre a pia da
cozinha, vomitando. Jason pensou em lhe prestar ajuda, mas decidiu-se por outra coisa.
Dirigiu-se ao corredor e abriu a porta de entrada em busca de ar respirável. E já em seguida
Larry passava por ele, cambaleante.
– Por que o senhor não vai chamar a polícia? – disse Jason, deixando que a porta se
fechasse atrás dele. A calma relativa era reconfortante. Sua náusea diminuiu.
Aliviado por ter outra coisa para cuidar, Larry desceu apressadamente as escadas.
Jason inclinou-se contra a parede e tentou não pensar. Estava trêmulo.
Dois policiais chegaram em pouco tempo. Eram jovens e ficaram pálidos ao olharem
para o interior da sala de estar. Mas providenciaram o isolamento do local e interrogaram
cuidadosamente Jason e Gratz. Com cuidado para não perturbar mais ninguém, por fim
desligaram da tomada o aparelho de som. Chegaram mais policiais, inclusive detetives à
paisana. Jason aventou a hipótese de que talvez o detetive Curran pudesse estar interessado no
caso, e alguém telefonou para ele. Um fotógrafo pertencente aos quadros da polícia chegou e
começou a tirar fotos e mais fotos do apartamento devastado. Depois chegou o médico-legista
da Cambridge.
Jason estava esperando no corredor quando Curran chegou e com seu andar pesado
encaminhou-se para o apartamento de Helene.
Ao ver Jason, parou apenas para dizer, alto:
– Que diabos o senhor está fazendo aqui?
Jason absteve-se de falar, e Curran voltou-se para o policial postado junto à porta:
– Onde está o detetive de plantão encarregado deste caso? – e mostrou o seu distintivo
brilhante. O policial apontou com o polegar na direção da sala de estar. Curran entrou,


deixando Jason no corredor do andar.
O pessoal da imprensa apareceu com sua habitual parafernália de máquinas fotográficas
e cadernos de notas. Tentaram entrar no apartamento de Helene, mas o policial uniformizado,
postado à porta, manteve-os à distância. Isto fez com que se limitassem a entrevistar qualquer
pessoa que estivesse no local, incluindo Jason. Ele disse que não sabia de nada, e por fim
deixaram-no em paz.
Passado pouco tempo, Curran reapareceu. Até mesmo ele parecia um pouco pálido.
Veio para perto de Jason. Tirou um cigarro de um maço todo amassado e teve dificuldades de
achar fósforos. Por fim, olhou para Jason.
– Não venha me dizer “eu bem que lhe falei” – disse ele.
– Não foi só assassinato com estupro, não é mesmo? – disse Jason tranqüilamente.
– Isso não sou eu quem deve dizer. Claro, foi estupro. O que é que o levou a pensar que
foi algo mais?
– A mutilação foi feita após a morte.
– Ah, é? Por que o senhor diz isto, doutor?
– Ausência de sangue. Se as mulheres ainda estivessem com vida, teria havido
hemorragia.
– Estou impressionado – disse Curran. – E embora deteste admitir isso, não achamos
que tenha sido esse seu louco manjado. Há provas que não posso expor, mas parece que foi
serviço de profissional. Foi usada uma arma de pequeno calibre.
– Então o senhor concorda em que a morte de Helene tem ligação com a de Hayes.
– Positivamente – disse Curran. – Disseram-me que foi o senhor quem descobriu os
cadáveres.
– Com a ajuda do zelador.
– O que foi que o trouxe até aqui, doutor? Jason não respondeu imediatamente.
– Não tenho certeza – respondeu, por fim. – Conforme lhe falei, tive uma sensação
desconfortável quando Helene não apareceu para trabalhar.
Curran coçou a cabeça, deixando sua atenção vagar pelo ambiente do corredor. Deu
uma longa tragada no seu cigarro, deixando a fumaça escapar pelo nariz. Havia uma multidão
de pessoas da polícia, repórteres e moradores curiosos. Duas macas estavam alinhadas ao
longo da parede do corredor, esperando para a remoção dos corpos.
– Talvez eu não passe este caso para o departamento de narcóticos – disse Curran,
finalmente. E saiu andando sem rumo.
Jason aproximou-se do policial que montava guarda na porta do apartamento de Helene.
– Eu estava pensando se já podia ir embora.
– Rosati! – gritou o policial.
O detetive de plantão, um homem magro, de rosto encovado e cabeleira preta e
desgrenhada, apareceu.
– Ele quer ir embora – disse o policial, apontando para Jason.
– Já temos o nome e endereço dele? – perguntou Rosati.
– Nome, endereço, telefone, seguro social, carteira de motorista, tudo.
– Acho que está tudo certo – disse Rosati. – Manteremos contato.
Jason fez um sinal afirmativo e saiu pelo corredor, com as pernas bambas. Quando
chegou no lado de fora do prédio, na Concord Avenue, surpreendeu-se por ver que havia


escurecido. O ar frio do anoitecer estava pesado de emanações dos escapamentos dos carros.
Como aborrecimento final, Jason encontrou um tíquete de estacionamento a pagar colocado
sob o limpador do pára-brisa do carro. Irritado, arrancou o papel, compreendendo que havia
estacionado numa área que exigia adesivo de residente do distrito de Cambridge.
O percurso de retorno ao GHP foi muito mais demorado do que na vinda. O tráfego na
Storrow Drive estava invertido, saindo na Fenway, e por isso já eram quase sete e meia da
noite quando, enfim, estacionou o carro e entrou no prédio do GHP. Ao chegar ao seu
consultório, encontrou sobre sua escrivaninha uma grande folha impressa de computador com
uma lista de todos os pacientes do GHP que haviam se submetido a exames de saúde no último
ano, juntamente com uma anotação sobre o estado de saúde atual de cada um. As secretárias
fizeram um grande trabalho, pensou Jason, colocando a folha de papel na sua pasta.
Subiu ao outro andar para efetuar as visitas aos pacientes internados. Uma das
enfermeiras deu-lhe os resultados da arteriografia de Madaline Krammer. Todos os vasos
coronarianos apresentavam estreitamentos importantes, difusos, não focais. Comparando-se
esses resultados com outros obtidos de um exame semelhante realizado seis meses antes, viase uma deterioração significativa. Harry Sarnoff, o cardiologista consultado, não achava que a
paciente fosse candidata a cirurgia, e, dados os seus baixos níveis atuais de colesterol e
ácidos graxos, tinha pouco a sugerir com relação ao tratamento dela. Para ter cem por cento de
certeza, Jason solicitou uma consulta em cirurgia cardíaca, e depois foi examinar a paciente.
Como de hábito, Madaline estava de excelente humor, minimizando seus sintomas.
Jason lhe disse que havia pedido que um cirurgião viesse vê-la e prometeu encerrar os exames
no dia seguinte. Ele tinha a sensação agourenta de que a mulher não iria durar muito tempo
mais. Quando examinou-lhe os tornozelos, em busca de sinais de edema, notou a presença de
algumas escoriações.
– A senhora andou se coçando ultimamente? – perguntou ele.
– Um pouco – teve de admitir Madaline, agarrando o lençol e puxando-o para cima,
como se estivesse constrangida.
– Sente coceira nos tornozelos?
– Acho que é da calefação daqui. É muito seca, o senhor sabe.
Jason não sabia. Na realidade, o sistema de ar condicionado do hospital mantinha a
umidade num nível normal, constante.
Com uma horrível sensação de déjà vu, Jason retornou ao posto de enfermagem e
solicitou uma consulta dermatológica e também uma série de exames bioquímicos que
abrangiam uns quarenta testes automatizados. Devia haver alguma coisa que ele até então não
percebera.
As demais visitas aos leitos foram igualmente desalentadoras. Pareceu-lhe que todos os
seus pacientes estavam piorando. Ao sair do hospital, decidiu ir até a casa de Shirley. Estava
ansioso por conversar, e ela, sem dúvida, demonstrara que se sentia contente em vê-lo. Ele
também achava que devia levar a Shirley a notícia do assassinato de Helene antes que ela
soubesse do fato pela imprensa. Sabia que a notícia ia deixá-la arrasada.
Levou cerca de vinte minutos para chegar até a rua com calçamento de pedras onde ela
morava. Ficou satisfeito ao ver luzes acesas.
– Jason! Que agradável surpresa – disse Shirley, atendendo à campainha. Ela vestia
uma malha de ginástica vermelha e uma testeira branca. Eu estava justamente saindo para a


minha sessão de ginástica.
– Eu devia ter telefonado.
– Mas que absurdo – disse Shirley, pegando a mão dele e puxando-o para dentro. – Eu
sempre ando à procura de uma desculpa para não ir à ginástica. – Ela conduziu-o até a
cozinha, onde verdadeira montanha de relatórios e memorandos cobria a mesa. Jason estava
bem lembrado da enorme quantidade de trabalho que era necessária para fazer funcionar uma
organização como o GHP. Como sempre, ele se achava impressionado com a capacidade de
trabalho de Shirley. Depois que ela lhe trouxe um drinque, Jason lhe perguntou se havia
ouvido as notícias.
– Não sei – disse Shirley, tirando a faixa que usava na cabeça e sacudindo a espessa
cabeleira. – A respeito de quê?
– Helene Brennquivist – disse Jason. E foi só o que disse.
– Será essa um notícia que agrade? – perguntou Shirley, pegando o copo de bebida dele.
– Dificilmente, imagino – disse Jason. – Ela e a sua companheira de apartamento foram
assassinadas.
Shirley deixou cair bebida no sofá e depois se ocupou maquinalmente em tentar enxugar
o líquido que se esparramara.
– Que foi que aconteceu? – perguntou ela, depois de longo silêncio.
– Estupro e assassinato. Pelo menos foi o que se viu. – Jason sentia-se mal só de
relembrar a cena.
– Que coisa terrível – disse Shirley, levando a mão ao peito.
– Foi horroroso – concordou Jason.
– É o pior pesadelo de qualquer mulher. Quando aconteceu?
– A polícia acha que talvez tenha sido a noite passada. Shirley ficou olhando no vazio,
pensativa.
– Acho melhor eu telefonar para Bob Walthrow. Isso só vai agravar o nosso problema
de relações públicas.
Com esforço, Shirley se pôs de pé e caminhou vacilante até junto do telefone. Jason
pôde sentir a comoção na sua voz enquanto ela explicava o que havia acontecido.
– Eu não invejo o seu trabalho – disse ele quando ela desligou o telefone. Ele pôde ver
nos olhos dela um brilho de lágrimas contidas.
– O mesmo digo eu em relação ao seu – falou ela. – Toda vez que o vejo depois que um
paciente morre, sinto um alívio por não ter feito medicina.
Embora nem Shirley nem Jason estivessem com fome, prepararam um espaguete rápido
para o jantar. Shirley pensou em tentar convencer Jason a passar a noite na sua casa, mas
achou que ele já se sentia reconfortado por ter ido conversar com ela, ajudando-o a suportar o
horror da morte de Helene, e ele sabia que não podia ficar. Tinha de estar em casa para
aguardar o telefonema de Carol. Alegando ter muito trabalho para concluir, voltou ao seu
apartamento.
Depois de ter praticado jogging um tanto mais tarde do que era seu hábito e de ter
tomado um banho de chuveiro, Jason sentou-se e se pôs a ler as fichas de todos os pacientes
que haviam se submetido a exame de saúde no GHP no último ano. Com os pés sobre a
escrivaninha, repassou a lista cuidadosamente, observando que o número de exames
realizados tinha sido dividido por igual entre todos os clínicos gerais. Como a lista fora


impressa em ordem alfabética, e não em ordem cronológica, Jason levou algum tempo para
compreender que os casos que tiveram má evolução eram muito mais freqüentes nos últimos
seis meses do que no começo do ano. Na realidade, mesmo sem ter um gráfico do material,
ficou visível que tinha havido um acentuado aumento de casos de morte inesperada no período
correspondente aos últimos seis meses.
Jason pegou um lápis e copiou o número de ordem dos casos fatais recentes. Ficou
chocado com o índice. Resolveu então telefonar para o principal operador de dados do GHP e
pediu para que o colocasse em contato com o setor de registros. Conseguiu contatar uma das
secretárias de plantão nessa noite, deu-lhe a lista dos números anotados e perguntou se os
prontuários dos pacientes de ambulatório podiam ser separados e colocados sobre a sua
escrivaninha no consultório. A secretária lhe disse que não haveria absolutamente nenhum
problema.
Jason recolocou a lista do computador na sua pasta e tomou nas mãos o Textbook of
Endocrinology, de Williams; começou a ler na parte referente ao hormônio do crescimento. O
assunto era como tantos outros; quanto mais lia, menos sabia do assunto. O hormônio do
crescimento e sua relação com o crescimento e a maturação sexual era um tema extremamente
complicado. Tão complicado, na verdade, que Jason adormeceu com o pesado livro fazendo
pressão sobre o seu abdome.
O telefone acordou-o num sobressalto – e tão abruptamente que ele derrubou o livro no
assoalho. Agarrou o telefone, imaginando que era do hospital. Levou uns momentos até
entender que era Carol Donner quem lhe telefonava. Olhou a hora – onze minutos para as três
da madrugada.
– Espero que ainda não tenha adormecido – disse Carol.
– Não, não – mentiu Jason. Suas pernas estavam enrijecidas de terem ficado tanto tempo
apoiadas na mesa. – Eu estava esperando pelo seu telefonema. Onde está?
– Estou em casa – disse Carol.
– Posso ir buscar o pacote?
– Não está aqui – disse Carol. – Para evitar problemas, entreguei-o a uma amiga que
trabalha comigo. O nome dela é Melody Andrews. Ela mora na Revere Street, 69, em Beacon
Hill. – Carol deu a Jason o número do telefone da amiga. – Ela aguarda seu telefonema, e deve
estar chegando em casa agora. Gostaria de saber o que você pensa do material, e se houver
algum problema, ligue para mim. – Ela ditou-lhe o número do seu telefone.
– Obrigado – disse Jason, anotando tudo. Surpreendeu-se com o grande desapontamento
que sentia por não ter ido vê-la.
– Tome cuidado – disse Carol, desligando.
Jason permaneceu sentado à sua escrivaninha, tentando ainda despertar inteiramente.
Quando se sentiu plenamente desperto, deu-se conta de que não mencionara a Carol a morte de
Helene. Bom, pelo menos isso podia ser uma desculpa para lhe telefonar de volta – refletiu
ele, ao mesmo tempo que discava o número do telefone da amiga dela.
Melody Andrews, ao atender o telefone, falou com sotaque evidentemente da zona sul
de Boston. Disse a Jason que estava com o pacote e que teria prazer em entregá-lo se Jason
fosse buscá-lo. E disse também que estaria acordada ainda por mais ou menos meia hora.
Jason vestiu uma camisa e uma suéter, saiu de casa e foi andando pela Pinckney Street;
passou por West Cedar e prosseguiu até a Revere. O prédio onde Melody morava estava


localizado à esquerda. Jason tocou a campainha do seu apartamento e ela apareceu na porta,
com rolos nos cabelos.
Jason não imaginava que alguém ainda usasse essas coisas. O rosto dela estava cansado
e tenso.
Jason apresentou-se. Melody limitou-se a fazer um sinal afirmativo com a cabeça e
entregou-lhe um pacote em papel pardo e amarrado com barbante. Pesava uns quatro quilos.
Jason agradeceu, e a mulher apenas encolheu os ombros, dizendo: “Não há de quê.”
Jason voltou para casa, tirando a suéter e a camisa com que saíra. Olhou o pacote,
ansioso por abri-lo; na cozinha, apanhou a tesoura e cortou o barbante. Depois, levou o pacote
para o escritório e colocou-o sobre a escrivaninha. Dentro do pacote encontrou dois grossos
livros razão de capa dura; as páginas estavam escritas a mão e continham instruções,
diagramas e dados de experimentação. Um dos livros indicava na capa: Propriedade de Gene,
Inc. O outro, simplesmente: Anotações. Além disso, havia um grande envelope em papel
manilha cheio de correspondência.
As primeiras cartas que Jason leu eram de Gene Inc., exigindo que Hayes honrasse os
acordos contratuais e devolvesse o livro de registro do Somatomedin e a cepa de bactérias E.
coli recombinantes que ele ilicitamente retirara do laboratório dessa empresa. À medida que
ia lendo, Jason pôde perceber que Hayes tinha uma significativa diferença de opinião no
concernente à propriedade dos procedimentos experimentais e da cepa bacteriana, e que
estava empenhado em obter sua patente. Também encontrou uma série de cartas de um
advogado, de nome Samuel Schwartz. Metade dessas cartas referia-se ao pedido de patente da
cepa de E. coli produtora do Somatomedin, e as demais tinham a ver com a formação de uma
empresa. Parecia que Alvin Hayes era dono de 51 por cento das ações, enquanto que seus
filhos compartilhavam os outros 49 por cento juntamente com Samuel Schwartz.
Bom, isto é a correspondência, pensou Jason. Recolocou as cartas no envelope de papel
manilha. A seguir, pegou os livros razão. O que trazia escrito na capa “Gene, Inc.” parecia ser
o livro de registro que fora mencionado na correspondência. À medida que ia folheando o
livro, constatou que ali se detalhava a produção da cepa recombinante de bactérias capaz de
produzir o Somatomedin. Pela leitura, entendeu que Somatomedin eram fatores do crescimento
produzidos por células hepáticas em resposta à presença do hormônio do crescimento.
Colocando de lado o primeiro dos livros pôs-se a ler o segundo. Os experimentos ali
registrados estavam incompletos, mas diziam respeito à produção de um anticorpo monoclonal
contra uma proteína específica. A proteína não tinha nome, mas Jason encontrou um diagrama
da sua seqüência de aminoácidos. A maior parte do material desse livro estava além de sua
compreensão; mas observando como parágrafos e tópicos inteiros tinham sido riscados, e
lendo os rabiscos e notas nas margens, podia ver que o trabalho não ia progredindo bem e que,
na época da última anotação, Hayes evidentemente não havia criado o anticorpo que desejara.
Jason levantou-se da escrivaninha e espreguiçou-se. Sentia-se desapontado. Esperava
que o pacote cedido por Carol lhe proporcionasse um quadro mais compreensível da
descoberta efetuada por Hayes, mas, a não ser pelos documentos da controvérsia entre Hayes
e Gene Inc., sabia agora pouco mais do que antes de abrir o pacote. Tinha realmente os
registros referentes à produção da cepa de bactérias E. coli produtoras de Somatomedin, mas
isso dificilmente poderia ser considerado uma descoberta importante, e o outro livro de
registro de laboratório era todo ele um fracasso.


Exausto, Jason apagou as luzes e foi dormir. O dia tinha sido longo, terrível.


11
Pesadelos em que apareciam variantes distorcidas do terrível cenário no apartamento
de Helene tiraram Jason da cama antes que o sol clareasse o céu para os lados de leste. Pôs-se
a preparar o café, e enquanto esperava ele ser filtrado pela máquina, apanhou o jornal, onde
leu a notícia referente ao duplo assassinato. Não havia nada de novo. Conforme previa, o
jornal dava destaque ao estupro. Jason colocou em sua pasta o livro razão com o título Gene,
Inc. e saiu rumo ao hospital.
Pelo menos não havia tráfego nessa hora em que se dirigia ao GHP e ele pôde escolher
um bom lugar para estacionar. Até mesmo os cirurgiões, que geralmente chegavam em horário
tão incivilizado, ainda não estavam ali.
Ao chegar ao GHP, foi diretamente ao seu consultório. Em conformidade com o que
havia pedido, sua mesa tinha pilhas de prontuários médicos. Tirou o paletó e começou a
examiná-los. Tendo em mente que se tratava de pacientes que haviam morrido no curso de um
mês após terem sido considerados sadios em exames de saúde completos, os mais completos
que o GHP podia oferecer, Jason procurou investigar o que havia de comum nos diferentes
casos. Nada lhe despertou atenção. Comparou os eletrocardiogramas e os níveis de colesterol,
ácidos graxos, imunoglobulinas e hemogramas. Não havia um grupo comum de substâncias,
elementos ou enzimas que variassem em relação ao normal, segundo um padrão previsível. O
único aspecto em comum era o fato de que a maioria dos casos de morte ocorrera dentro de
um mês após os exames de saúde. O mais inquietante, conforme constatou, era que, nos
últimos meses, o número de mortes aumentara enormemente.
Quando lia a vigésima sexta papeleta, subitamente ocorreu-lhe uma correlação. Embora
os pacientes não se caracterizassem por sintomas orgânicos comuns a todos, os prontuários
médicos mostravam que havia neles uma predominância de hábitos sociais de alto risco. Eram
pessoas com excesso de peso, fumantes inveterados, tomavam medicamentos, bebiam
exageradamente e não praticavam exercícios físicos, ou então combinavam algumas e todas
essas práticas malsãs, eram homens e mulheres fadados a contrair enfermidades graves. O
aspecto marcante era que essas pessoas sofriam uma deterioração extremamente rápida. E por
que o súbito aumento dos casos de morte? Esses pacientes não estavam levando uma vida
mais desregrada do que um ano antes. Bem, talvez houvesse uma espécie de equalização
estatística: antes a eles estavam tendo sorte, e agora estavam sendo atingidos pela fatalidade.
Mas isso também não fazia muito sentido, pois o número de mortes parecia demasiado alto.
Jason não era um especialista em estatística, e por isto decidiu solicitar que um matemático
melhor que ele examinasse os números.
Quando percebeu que já não era mais tão cedo e que não iria acordar os pacientes, saiu
do seu consultório e iniciou as visitas aos pacientes internados. Nada havia mudado. De volta
ao consultório e antes de atender o primeiro paciente com consulta marcada para esse dia,
telefonou para o departamento de anatomia patológica e solicitou informações sobre os
animais mortos do laboratório de Hayes; esperou vários minutos até a técnica encontrar os
resultados.
– Está aqui – disse a técnica do laboratório. – Todos morreram de envenenamento por
estricnina.


Jason desligou. Depois telefonou para Margaret Danforth, do necrotério municipal.
Quem atendeu foi uma técnica auxiliar, pois Margaret estava ocupada na realização de uma
autópsia. Jason perguntou se o exame toxicológico feito em Gerald Farr revelara alguma coisa
interessante.
– A toxicologia foi negativa – disse a técnica.
– Mais uma pergunta. Esse exame poderia detectar estricnina?
– Só um momento – disse ela.
Jason pôde ouvir, ao fundo, a mulher falando em voz alta com a médica-legista. Ela
voltou ao telefone.
– A Dra. Danforth disse que sim, desde que estivesse presente.
– Obrigado – disse Jason.
Desligou o telefone, depois levantou-se. Diante da janela, examinou a movimentação
dessa manhã. Pôde ver o intenso movimento de veículos em Riverway. O céu estava claro,
porém encoberto. Começava novembro. Não era um mês bom em Boston. Jason sentiu-se
inquieto, angustiado e desconsolado. Pensou no pacote que recebera de Carol e ficou a
conjeturar se passaria às mãos de Curran. Mas, com que finalidade? A polícia nem mesmo
estava investigando Hayes, a não ser como consumidor de drogas.
Encaminhando-se de volta à sua escrivaninha, pegou a lista telefônica e procurou o
número de Gene, Inc. Notou que a companhia situava-se na Pioneer Street, na parte leste de
Cambridge, perto do campus do MIT. Cedendo a um impulso, sentou-se e discou o número.
Do outro lado atendeu uma recepcionista que falava com sotaque inglês. Jason perguntou pelo
diretor da companhia.
– O senhor quer dizer o Dr. Leonard Dawen, o presidente?
– Sim, certo, o Dr. Dawen – disse Jason. Ouviu o sinal da extensão. Quem atendeu foi
uma secretária.
– Gabinete do Dr. Dawen.
– Eu gostaria de falar com o Dr. Dawen.
– E quem deseja falar com ele?
– Dr. Jason Howard.
– Posso dizer a ele do que é que se trata?
– É sobre um livro de anotações de laboratório que eu tenho. Diga ao Dr. Dawen que
sou do Good Health Plan e que era amigo do falecido Alvin Hayes.
– Só um momento, por favor – disse a secretária, numa voz que soou como uma
gravação.
Jason abriu a gaveta central de sua escrivaninha e remexeu na sua coleção de lápis.
Houve um clique no telefone, a seguir uma voz forte falou do outro lado.
– Aqui é Leonard Dawen!
Jason explicou quem era e depois descreveu o livro de anotações de laboratório.
– Posso lhe perguntar como é que esse livro chegou às suas mãos, senhor?
– Não creio que isso seja importante. O fato é que ele está comigo. – Jason não
desejava envolver Carol nessa história.
– O livro é propriedade nossa – disse o Dr. Dawen. Sua voz era tranqüila, mas tinha um
quê de ordem e ameaça.
– Terei prazer em entregar o livro em troca de algumas informações sobre o Dr. Hayes.


O senhor acha que poderíamos nos encontrar?
– Quando?
– Tão logo seja possível – disse Jason. – Eu poderei ir aí um pouco antes do meio-dia.
– Virá com o livro?
– Sem dúvida, sim.
No restante da manhã, Jason teve dificuldade de se concentrar no atendimento contínuo
de pacientes. Estava satisfeito por Sally não ter marcado pacientes para a hora do meio-dia.
Assim que terminou de realizar o último exame, saiu apressado em direção ao carro.
Ao chegar a Cambridge, Jason passou nas imediações do MIT e por entre os arranhacéus novos da empresa East Cambridge, alguns construídos segundo uma arquitetura moderna
notável, que estabeleciam marcante contraste com os prédios de tijolos, mais tradicionais e
mais antigos, da Nova Inglaterra. Por fim, fazendo uma curva na Pioneer Street, Jason
encontrou Gene, Inc., organização que ocupava um edifício moderno e deslumbrante de granito
preto polido. Diferente dos outros prédios vizinhos, o edifício tinha somente seis andares.
Suas janelas eram fendas estreitas que se alternavam com círculos de vidro fumê bronze
espelhado. Tinha um aspecto sólido e poderoso, como um castelo de filme de ficção científica.
Jason saiu do carro levando a sua pasta e ficou contemplando uns instantes a
impressionante fachada do edifício. Depois de ler tanto sobre ADN recombinante e de ter
visto o bizarro biotério de Hayes, Jason temia estar por entrar numa casa de horrores. A
entrada do edifício ocupava o centro de um círculo de onde saíam afilados raios de granito,
dando a ilusão de um olho gigantesco, do qual a porta negra era a pupila. O corredor de
entrada também era todo de granito negro: as paredes, o piso, até mesmo o teto. No centro da
área de recepção havia uma escultura moderna, dramaticamente iluminada, representando a
dupla hélice da molécula de ADN abrindo-se como um zíper.
Jason aproximou-se de uma atraente coreana, colocada por trás de uma parede de vidro,
sentada diante de um painel de controle um tanto parecido com o da nave Enterprise. Ela
usava um diminuto fone de ouvido, juntamente com um pequeno microfone, conectados atrás
do pescoço. Cumprimentou Jason chamando-o pelo nome e disse-lhe que ele estava sendo
esperado na sala de reuniões no quarto andar. A voz da mulher tinha um som metálico quando
ela falou ao microfone.
Assim que a recepcionista parou de falar, uma das lâminas de granito da parede abriuse, revelando a existência de um elevador. Jason agradeceu à recepcionista, e de repente teve
a impressão de que ela era um robô vivo. Sorrindo, tomou o elevador e procurou o botão dos
andares. A porta fechou-se atrás dele. Não havia painel seletor de andares, e o elevador
começou a subir.
Quando as portas se abriram novamente, Jason viu-se numa ante-sala negra sem portas.
Supôs que o prédio inteiro era controlado desde um posto central, talvez pela recepcionista no
andar térreo. À sua esquerda, um painel corrediço de granito abriu-se. No vão da porta estava
de pé um homem de feições toscas, vestido impecavelmente com um terno preto, de riscas,
camisa branca e gravata vermelha listrada.
– Dr. Howard, eu sou o Dr. Leonard Dawen – falou o homem, fazendo um gesto para
que Jason entrasse na sala. Não teve a iniciativa de um aperto de mão. Sua voz tinha o mesmo
tom de uma ordem, conforme Jason pôde lembrar da conversa ao telefone. Em comparação
com a austeridade tumular do restante do edifício, o salão de reuniões lembrava mais uma


biblioteca de paredes revestidas de lambris de madeira, e parecia realmente acolhedor, pelo
menos até se chegar a ver a parede dos fundos, que era de vidro. Dava para o que parecia ser
um grande laboratório ultramoderno. Havia na sala mais um outro homem, um oriental, que
vestia uma jaqueta branca fechada com zíper. Dawen apresentou-o como sendo o Sr. Hong,
engenheiro da Gene, Inc. Depois de se sentarem os três em torno de uma pequena mesa de
reunião, Dawen disse:
– Suponho que tenha trazido o livro.
Jason abriu sua pasta e entregou o livro razão a Dawen, que o passou às mãos de Hong.
O engenheiro começou a examinar o livro, página por página. Instalou-se um pesado silêncio.
Jason olhou alternadamente para um e para outro. Esperava que as coisas fossem um
pouco mais cordiais. Afinal, fazia-lhes um favor.
Voltou-se e olhou através da parede de vidro. O soalho do salão era um andar abaixo.
Grande parte da área estava cheia de barris de aço inoxidável, lembrando a Jason a visita que
uma vez fizera a uma cervejaria. Imaginou que os recipientes eram incubadores para a cultura
das bactérias recombinantes. Havia uma grande quantidade de outros equipamentos e
tubulações complicadas. Pessoas vestidas com roupas brancas e gorros igualmente brancos
circulavam verificando mostradores, fazendo ajustes.
Hong fechou o livro de laboratório com um movimento de dedos.
– Parece completo – disse ele.
– É uma bela surpresa – falou o Dr. Dawen. Voltando-se para Jason, disse: – Espero
que o senhor compreenda que tudo que está neste livro é confidencial.
– Não se preocupe – disse Jason, forçando um sorriso. – Muita coisa daí eu nem
entendi. O que me interessa é o Dr. Hayes. Logo antes de morrer, ele disse que havia feito uma
descoberta importante. Estou ansioso por saber se o que está escrito nessas páginas seria
considerado como tal.
Dawen e Hong trocaram olhares.
– É mais propriamente uma descoberta para fins comerciais – disse Hong. – Não há
aqui nenhuma tecnologia nova.
– Foi isso que imaginei. Hayes se mostrava tão transtornado que eu não saberia dizer se
estava em seu juízo perfeito. Mas se ele fez uma descoberta importante, eu lamentaria que a
humanidade deixasse de se beneficiar com ela.
As feições toscas de Dawen abrandaram-se pela primeira vez desde que Jason havia
chegado.
Jason continuou falando, voltando sua atenção para o engenheiro:
– Tem alguma idéia sobre o que Hayes poderia estar querendo dizer?
– Não, infelizmente. Hayes era mais propriamente uma pessoa com tendência ao sigilo.
– Dawen ficou de mãos postas apoiadas sobre a mesa e olhou para Jason: – Estávamos com
receio de que o senhor fosse praticar uma extorsão contra nós, a propósito deste material. Que
fosse exigir pagamento para obtermos esse livro de volta – disse ele, tocando na capa do
livro. – O senhor há de compreender, o Dr. Hayes chegou a nos causar certas dificuldades.
– Qual era a função do Dr. Hayes aqui? – perguntou Jason.
– Nós o contratamos para produzir uma cepa de bactérias recombinantes – respondeu
Dawen. – Queríamos produzir um certo fator de crescimento, em quantidades comerciais.
Jason imaginou que se tratava do Somatomedin.


– Concordamos em pagar-lhe honorários fixos pelo projeto, e também deixar que ele
utilizasse os recursos e instalações de Gene, Inc. para efetuar suas próprias pesquisas. Nós
temos alguns equipamentos muito específicos, únicos.
– E vocês têm alguma idéia sobre a natureza das pesquisas que ele realizava? –
perguntou Jason.
Hong manifestou-se.
– Ele passava a maior parte do tempo isolando proteínas do fator de crescimento.
Algumas delas existem em quantidades tão ínfimas que seu isolamento exige um equipamento
altamente sofisticado.
– E o isolamento de um desses fatores de crescimento poderia ser considerado uma
descoberta científica importante? – perguntou Jason.
– Não consigo ver como – respondeu Hong. – Ainda que nunca se tenha conseguido
isolar esses fatores, conhecemos os seus efeitos.
Mais um beco sem saída, pensou Jason, desolado.
– Que eu me lembre, apenas uma coisa poderia ser importante – disse Hong beliscando
a ponta do nariz. – Há uns três meses, Hayes mostrou-se muito excitado ao constatar um certo
efeito colateral. Disse que era algo irônico.
Jason endireitou-se na cadeira. Aí estava essa palavra novamente.
– Vocês têm alguma idéia do que teria causado nele essa excitação? – perguntou.
Hong sacudiu a cabeça negativamente.
– Não – disse –, mas depois disso não o vimos durante algum tempo. Quando tornamos
a vê-lo, ele contou que tinha ido até a costa Oeste. A partir daí, deu início a um complexo
processo de extração em um material que trouxera consigo. Não sei se a coisa funcionou, mas
depois ele inesperadamente mudou para a tecnologia dos anticorpos monoclonais. Parece que
nesse ponto seu entusiasmo arrefeceu.
As palavras “anticorpos monoclonais” fizeram com que Jason se lembrasse do segundo
livro de laboratório, e ele se perguntou se afinal de contas deveria tê-lo trazido consigo.
Talvez o Sr. Hong pudesse decifrá-lo melhor que ele.
– O Dr. Hayes deixou algum outro material de pesquisa aqui? – perguntou Jason.
– Nada significativo – respondeu Leonard Dawen. – E nós verificamos tudo
minuciosamente, pois ele havia saído levando consigo nosso livro de registro de laboratório e
as culturas. Na realidade, estávamos acionando-o judicialmente. Nunca poderíamos prever
que ele fosse reclamar para si a propriedade das cepas de bactérias que estava obrigado a
produzir por contrato.
– E vocês obtiveram de volta as culturas de bactérias? – perguntou Jason.
– Obtivemos.
– Onde as encontraram?
– Digamos que fomos procurar no lugar certo – disse Dawen, evasivamente. – Mas
embora tenhamos a cepa de bactérias, ainda assim gostaríamos de receber de volta o livro de
registros. Em nome da companhia eu gostaria de lhe agradecer. Espero que lhe tenhamos
prestado uma ajuda, ainda que pequena.
– Talvez – disse Jason vagamente. E teve uma idéia de que, um tanto inesperadamente,
acabara de descobir quem havia efetuado buscas no laboratório e no apartamento de Hayes.
Mas por que os cientistas de Gene, Inc. teriam tido a iniciativa de matar os animais? Levantou


a hipótese de os enormes animais terem sido tratados com o Somatomedin de Gene, Inc. –
Admiro o trabalho de vocês – disse ele a Dawen. – Vocês têm instalações notáveis aqui.
– Obrigado. As coisas vão indo bem. Planejamos ter, em breve, cepas recombinantes de
animais domésticos.
– Como porcos e vacas, por exemplo?
– Exato. Geneticamente podemos produzir porcos com menos banha, vacas com mais
leite, frangos com mais proteína, para citar apenas alguns exemplos.
– Fascinante – disse Jason, sem entusiasmo. Quanto tempo levariam para submeter
seres humanos à engenharia genética? Sentiu um calafrio, novamente, vendo os ratos e
camundongos de tamanho descomunal de Hayes, especialmente aqueles dotados de olhos
excedentes.
De volta ao assento de seu carro, Jason olhou o relógio de pulso. Ainda tinha uma hora
antes de iniciar a reunião da equipe médica que iria reavaliar os casos de mortes recentes de
pacientes; por isso, resolveu visitar Samuel Schwartz, advogado de Hayes.
Tendo dado partida no carro, saiu do estacionamento de Gene, Inc. e entrou na
Memorial Avenue. Cruzou o Charles River, parando depois no Philip’s Drug Store, no Charles
Circle. Estacionou em fila dupla, com as luzes de emergência piscando, entrou às pressas na
loja e procurou o endereço de Schwartz. Dez minutos mais tarde, encontrava-se na sala de
espera do advogado, folheando as páginas de um número atrasado da Newsweek.
Samuel Schwartz era um homem enormemente obeso, com uma calva brilhante. Fez um
sinal para que Jason entrasse, gesticulando como se estivesse dirigindo o trânsito. Acomodouse na sua cadeira e ajeitou os óculos de aros dourados. Ficou olhando atentamente Jason, que
se sentara diante da escrivaninha de mogno maciço.
– Então o senhor é amigo do falecido Alvin Hayes.
– Éramos mais colegas do que amigos.
– Como quer que seja – disse Schwartz, com outro gesto de sua mão roliça. – Então, o
que posso fazer pelo senhor?
Jason tornou a contar a história de Hayes sobre uma suposta descoberta. Explicou que
estava tentando compreender em que Hayes vinha trabalhando, e que havia encontrado
correspondência emitida por Samuel Schwartz.
– Ele era um cliente. E daí?
– Não precisa ficar na defensiva.
– Não estou na defensiva. Só estou aborrecido. Trabalhei muito para esse camarada, e
tudo em vão.
– Ele nunca pagou?
– Nunca. Eu caí na conversa dele, trabalhando em troca de ações da nova companhia
que criara.
– Ações?
Samuel Schwartz riu sem demonstrar humor.
– Infelizmente, agora que Hayes está morto, as ações não têm valor. Podiam não ter
nenhum valor também se ele continuasse vivo. Acho que eu devia era mandar examinar a
minha cabeça.
– A empresa de Hayes venderia um serviço ou um produto? – perguntou Jason.
– Um produto. Hayes me contou que estava em vias de desenvolver o mais


revolucionário produto para a saúde de todos os tempos. E eu acreditei nele. Acreditei que um
cara que tinha sido capa da Time tinha que ter algo na cachola.
– Tem alguma idéia de qual seria esse produto? – indagou Jason, tentando atenuar a
excitação na voz.
– Nem remotamente. Hayes não iria me dizer.
– O senhor sabia se esse produto tinha a ver com anticorpos monoclonais? – perguntou
Jason, não querendo desistir.
Schwartz riu novamente.
– Eu não reconheria um anticorpo monoclonal se passasse por um deles na rua.
– Células malignas? – Jason estava apenas arriscando, mas esperava poder ativar a
memória do advogado. – O produto poderia ter relação com o tratamento do câncer?
O homem gordo encolheu os ombros.
– Não sei. Possivelmente.
– Hayes contou a uma pessoa que tal descoberta melhoraria a beleza dela. Isso faz
algum sentido para o senhor?
– Ouça, Dr. Howard. Hayes não me falou nada sobre o produto. Eu estava apenas
organizando a legalização da empresa.
– O senhor também estava requerendo o registro de uma patente.
– A patente nada tinha a ver com a empresa. Ficaria em nome de Hayes.
O beeper de Jason causou um sobressalto nos dois homens. O médico olhou na tela
minúscula. A palavra “urgente” piscou duas vezes, seguida de um número no hospital do GHP.
– Posso usar o seu telefone? – perguntou Jason. Schwartz empurrou o telefone para o
lado de Jason.
– Esteja à vontade, doutor.
O chamado era do andar em que estava internada Madaline Krammer. A paciente
sofrera uma parada cardíaca, a equipe estava aplicando ressuscitação cardiopulmonar. Jason
avisou que logo estaria lá. Agradecendo a Samuel Schwartz, Jason saiu apressadamente do
escritório do advogado e esperou, impaciente, o elevador.
Quando chegou ao quarto de Madaline, deparou com uma cena que lhe era muito
familiar. A paciente não dava sinais de reação. Seu coração recusava-se a reagir a qualquer
estímulo, inclusive ao marca-passo externo. Jason insistiu em que a equipe continuasse com o
apoio à vida, ao mesmo tempo que sua mente considerou a possibilidade de aplicar diferentes
medicamentos e tratamentos. Entretanto, mesmo depois de uma hora de medidas intensivas,
também ele se viu obrigado a desistir, e relutantemente ordenou a suspensão dos
procedimentos.
Permaneceu à beira do leito de Madaline depois que todos os demais haviam saído. Ela
havia sido uma boa amiga, desde velhos tempos, uma das primeiras pacientes que ele havia
tratado na sua clínica particular. Uma das enfermeiras cobrira o corpo da morta com um
lençol. O nariz de Madaline fazia saliência na superfície do lençol, como uma montanha em
miniatura coberta de neve. Delicadamente, Jason afastou o lençol. Ainda que a mulher mal
tivesse entrado na casa dos sessenta anos, Jason não pôde precisar se a sua aparência
correspondia a essa idade. Desde que a paciente entrara no hospital, notava-se que seu rosto
havia perdido aquele vigor saudável e assumido a aparência esquelética dos que vão se
aproximando da morte.


Jason sentiu que precisava de um tempo para si mesmo, e por isso retirou-se para seu
consultório; evitou Claudia e Sally, que estavam atarefadas com inúmeras questões urgentes,
relacionadas com a reunião prestes a se realizar e com o problema de desmarcar e remarcar
tantos pacientes. Jason fechou a porta de sua sala a chave e sentou-se diante da escrivaninha.
O falecimento de Madaline, uma de suas pacientes mais antigas, parecia cortar mais uma
conexão com a vida que Jason levara anteriormente. Ele sentiu uma solidão pungente, e
angústia, embora também sentisse alívio por estar se esmaecendo a lembrança de Danielle.
O telefone tocou, mas o médico ignorou o chamado. Olhou sobre sua mesa, onde havia
uma pilha de prontuários médicos de pacientes falecidos, inclusive o de Hayes. Como que
independentemente de sua vontade, teve seus pensamentos novamente voltados para o caso
Hayes. Sentia-se frustrado com o fato de que o pacote recebido de Carol, que lhe despertara
tanta esperança, viesse afinal acrescentar tão pouca informação. Certamente robustecera um
pouco a idéia de que Hayes fizera uma descoberta que pelo menos ele achava ser
extraordinária. Jason amaldiçoou o hábito de Hayes de guardar segredo.
Inclinando-se para trás na sua cadeira, Jason pôs as mãos atrás da cabeça e ficou
olhando para o teto. Sobre Hayes, não sabia mais o que pensar. Mas aí se lembrou do
comentário do engenheiro oriental, de que Hayes trouxera algo da Costa Oeste, possivelmente
de Seattle. Devia ter sido uma amostra, porque Hayes a submetera a um complicado processo
de extração. Com base nos comentários de Hong, parecia a Jason que Hayes provavelmente
estivera tentando isolar algum tipo de fator de crescimento que estimularia o crescimento, ou a
diferenciação, ou a maturação, ou as três coisas conjuntamente.
Jason inclinou-se bruscamente para a frente, batendo com a mão na mesa. Lembrou-se
de que Carol havia contado que Hayes fizera uma visita a um colega na Universidade de
Washington, e veio-lhe a idéia de que Hayes teria obtido desse colega algum tipo de amostra.
De imediato, Jason decidiu ir a Seattle, contanto que, naturalmente, Carol fosse junto.
Ela poderia ir. Afinal, seria a chave que permitiria encontrar esse amigo. E depois, também,
uns dias de folga seriam muito terapêuticos para ele. Tendo um pouco de tempo livre antes de
começar a reunião da equipe médica, resolveu ir procurar Shirley para conversar com ela.
A secretária de Shirley, de início, insistiu em dizer que sua chefe estava muito ocupada
para poder falar com Jason, mas este a convenceu no sentido de que pelo menos anunciasse a
ela sua presença. Instantes depois ele já era conduzido à sala de Shirley. Ela estava falando ao
telefone. Jason acomodou-se numa poltrona, pegando gradualmente o fio da conversa. Ela
estava falando a um líder sindical, convencendo-o com impressionante habilidade. Distraída,
ela passava os dedos pelos seus abundantes cabelos. Era um maravilhoso gesto de mulher, e
Jason mais uma vez percebeu que, por baixo dessa superfície de profissional, havia nela uma
mulher muito atraente, complicada porém encantadora.
Shirley desligou o telefone e deu um sorriso.
– Hora do recreio, agora – disse ela. – De uns dias para cá, você está sempre trazendo
surpresas, não é mesmo, Jason? Suponho que tenha vindo pedir desculpas por não ter ficado
mais tempo comigo ontem à noite.
Jason riu. A franqueza de Shirley o desarmava.
– Talvez. Mas há uma outra coisa. Estou pensando em tirar uns dias de férias. Perdi
mais uma paciente hoje de manhã, e acho que preciso de uma folga.
Shirley estalou a língua, num gesto de simpatia.


– E isso estava previsto?
– Acho que sim. Pelo menos nestes últimos dias. Mas quando a internei, não tive
nenhuma indicação de que isso fosse iminente.
Shirley suspirou.
– Não sei como é que você suporta esse tipo de coisa.
– Realmente não é fácil – concordou Jason. – Mas o que tem tornando as coisas
especialmente difíceis ultimamente é a freqüência com que vem acontecendo.
O telefone de Shirley tocou, mas ela acionou o botão para a secretária receber o
recado.
– De qualquer modo – disse Jason –, decidi tirar uns dias de folga.
– Acho que é uma boa idéia – disse Shirley. – Eu faria a mesma coisa, se pudesse
concluir as negociações com esses malditos sindicatos. E você planeja ir para onde?
– Não sei ao certo – mentiu Jason. A viagem a Seattle era um lance tão ousado que ele
tinha vergonha de mencioná-la.
– Tenho uns amigos que são donos de um lugar sossegado nas Ilhas Virgens Britânicas.
Eu poderia telefonar para eles – ofereceu Shirley.
– Não, obrigado. Não sou pessoa que goste de sol. E o que foi que aconteceu depois
dessa tragédia com a Brennquivist? Muita repercussão?
– Nem me fale – disse Shirley. – Para dizer a verdade, eu nem quis saber da coisa. Bob
Walthrow é que está tratando do assunto.
– Tive pesadelos a noite toda – teve de admitir Jason.
– Não é para menos – disse Shirley.
– Bom, eu tenho uma reunião – disse Jason, levantando-se.
– Teria tempo para jantar esta noite? – perguntou Shirley. – Talvez possamos dar mais
ânimo um ao outro.
– Claro. A que horas?
– Digamos, por volta das oito.
– Oito, está bem – disse Jason, encaminhando-se para a porta. Quando ele ia saindo,
Shirley ainda lhe disse:
– Realmente sinto muito pela sua paciente.
O comparecimento à reunião da equipe médica do hospital foi maior do que Jason
esperava, dada a exigüidade de tempo da convocação. Quatorze dos dezesseis clínicos gerais
compareceram, e diversos deles trouxeram para a reunião suas respectivas enfermeiras.
Parecia evidente que todos reconheciam estar diante de um problema grave.
Jason começou apresentando a estatística que conseguira obter da listagem do
computador, na qual apareciam todos os casos de óbitos de pacientes falecidos durante os
trinta dias subseqüentes a um exame de saúde completo. Assinalou que o número de mortes
tinha aumentado nos três últimos meses, e disse que estava tentando verificar junto a todos os
clientes do GHP quais deles haviam se submetido a exames de saúde executivos nos últimos
sessenta dias.
– Todos os casos de exames de saúde foram distribuídos por igual entre nós? – indagou
Roger Wanamaker.
Jason confirmou.


Foram muitos os médicos que se manifestaram, deixando claro que temiam a eclosão de
uma epidemia em âmbito nacional. Nenhum deles conseguia entender a conexão com os
exames de saúde, nem compreender por que razão não se conseguia prever os casos fatais. A
chefe atual da cardiologia, Dra. Judith Rolander, procurou assumir grande parte de culpa,
admitindo que, na maioria dos casos por ela revisados, o eletrocardiograma feito durante a
realização dos exames de saúde não detectara a iminência desses problemas, ainda que ela
estivesse prevenida de tal possibilidade.
As discussões então centraram-se nas possibilidades de o eletrocardiograma de esforço
ser o recurso mais apto a detectar eventos cardíacos catastróficos. Sobre essa questão, houve
muitas opiniões; todas foram devidamente discutidas. Conforme recomendação dos presentes
à reunião, foi constituída uma comissão especial encarregada de estudar formas específicas de
modificar as provas de esforço, na tentativa de melhorar a capacidade prognóstica desses
exames.
Jerome Washington então tomou a palavra. Levantando-se com seu corpo pesadão, ele
falou:
– Penso que estamos subestimando a importância de hábitos de vida insalubres das
pessoas. Esse é um fator comum a todos esses pacientes.
Houve algumas referências jocosas ao excesso de peso do próprio Jerome e ao seu
apego ao cigarro.
– Está certo, pessoal – disse ele. – Vocês sabem, os pacientes devem fazer o que
dizemos e não o que fazemos. – Todos riram. – É sério – continuou ele. – Todos nós sabemos
dos perigos de uma alimentação incorreta, do excesso de fumo, do excesso de álcool e da falta
de atividade física. Esses fatores sociais têm um valor prognóstico muito mais consistente do
que alguma anormalidade branda encontrada no eletrocardiograma.
– Jerome tem razão – disse Jason. – Esse perfil de fatores de alto risco foi o único
aspecto negativo que pude encontrar como elemento comum nesses pacientes.
Por votação, decidiu-se formar uma segunda comissão para investigar a contribuição
dos fatores de risco ao atual problema e apresentar recomendações específicas.
Harry Sarnoff, cardiologista consultor no mês em curso, levantou a mão, e Jason o
reconheceu. Quando se levantou, começou a falar sobre a sua observação de que houvera
aumento da morbidade e da mortalidade em seus pacientes. Jason interrompeu-o.
– Desculpe-me, Harry – disse Jason. – Posso imaginar que você esteja preocupado, e
sinceramente lhe digo que tenho tido uma experiência aparentemente semelhante à sua.
Entretanto, esta reunião se ocupa do problema dos exames de saúde executivos de pacientes
de ambulatório. Podemos marcar uma segunda reunião, se a equipe desejar discutir qualquer
possível problema de pacientes internados. É bem possível que haja alguma relação entre
esses casos.
Harry abriu as mãos em desalento e relutantemente voltou a sentar-se.
Jason então insistiu com os membros da equipe no sentido de assegurarem a realização
de autópsia em todo paciente que tivesse óbito inesperado, caso o médico-legista não a
fizesse. E referiu aos colegas presentes à reunião que os resultados do departamento médicolegal obtidos de autópsias de pacientes seus indicavam que essas pessoas estiveram sofrendo
de doença multissistêmica, que incluía a existência de problemas cardiovasculares extensos.
Naturalmente, esse fato apenas atenuava a preocupação de que o problema de saúde dessas


pessoas não tivesse sido detectado nos eletrocardiogramas de repouso e de esforço. Jason
acrescentou que o departamento de anatomia patológica acreditava haver algum componente
de auto-imunidade.
Depois de encerrada a reunião, os médicos ficaram reunidos em pequenos grupos para
discutir o problema. Jason juntou suas folhas da lista de computador e procurou seu colega
Roger Wanamaker. Ele estava conversando animadamente com Jerome.
– Posso interromper? – perguntou Jason. Os dois médicos deram espaço para que Jason
entrasse na conversa. – Vou me ausentar da cidade por alguns dias.
Roger e Jerome trocaram olhares. Roger falou:
– Parece que não é uma boa hora para se ausentar.
– Mas é absolutamente necessário – disse Jason, sem maiores rodeios. – Mas tenho
cinco pacientes internados aqui. Algum de vocês dois poderia me dar cobertura? Já de saída
posso dizer que o estado deles é bastante mau.
– Não se preocupe – disse Roger. – Tenho estado noite e dia por aqui, tentando manter
com vida a minha meia dúzia de doentes. Terei prazer em cuidar dos seus casos.
Resolvido o problema, Jason foi até o seu consultório e telefonou para Carol Donner,
imaginando que esse horário de fim de tarde era bom para encontrá-la em casa. O telefone
tocou durante um longo tempo; Jason estava para desistir quando ela atendeu, com a
respiração ofegante. Disse que estivera no banho.
– Preciso falar com você esta noite – disse Jason.
– Ah – disse Carol, de modo cauteloso. Ela hesitava. – Talvez seja difícil. – Depois ela
acrescentou, com irritação: – Por que não me falou do caso de Helene Brennquivist ontem à
noite? Li no jornal que foi você quem encontrou os cadáveres.
– Desculpe – disse Jason, defensivamente. – Para ser totalmente franco, você me
acordou a noite passada, e a única coisa em que pude pensar foi o pacote.
– Você o recebeu? – perguntou Carol, com uma voz agora mais suave.
– Recebi – disse Jason. – Obrigado.
– E então?
– O material não era tão esclarecedor como eu esperava.
– Isso me surpreende – disse Carol. – Os livros deviam ter sido importantes, senão
Alvin não teria me pedido para guardá-los. Mas isso é secundário. Que coisa horrível aquilo
que aconteceu com Helene. Meu patrão está tão preocupado que não quer me deixar ir a
nenhum lugar sem um dos seguranças da boate. Agora mesmo há um guarda-costas aqui do
lado de fora do prédio.
– É importante que eu converse com você sozinha – disse Jason.
– Não sei se poderei. Esse brutamontes recebeu ordens do meu patrão, não de mim. E
não quero que haja problemas.
– Bem, telefone-me no memento em que sair de casa – disse Jason. – Prometa.
Precisamos conversar.
– Vou sair tarde novamente – adiantou Carol.
– Não importa. O assunto é importante.
– Está bem – concordou Carol antes de desligar. Jason deu mais um telefonema para a
United Airlines, e solicitou informações sobre vôos de Boston para Seattle. Soube que havia
um vôo diário, às quatro da tarde.


Pegando o estetoscópio, Jason saiu do consultório e dirigiu-se ao hospital para fazer
suas visitas aos pacientes internados. Sabia que, para a eventualidade de Roger lhe dar
cobertura durante sua ausência, precisava atualizar, com todo cuidado, suas papeletas.
Nenhum de seus pacientes estava passando muito bem, e Jason ficou acabrunhado ao verificar
que mais um paciente seu havia desenvolvido catarata em grau avançado. Preocupado,
solicitou exame oftalmológico. Desta vez tinha certeza de que não constatara esse problema
por ocasião da hospitalização do doente. Como podia a catarata haver progredido tanto em tão
pouco tempo?
Depois de chegar em casa, pôs sua roupa de jogging; saiu e correu por bem uma hora,
tentando pôr em ordem os pensamentos. Tomou um banho de chuveiro, vestiu-se e, de carro,
dirigiu-se à casa de Shirley, sentindo-se num estado de ânimo melhor.
Shirley superou-se a si mesma com o jantar, e Jason começou a achar que ela se
classificaria na categoria Super-mulher. Ela conseguia trabalhar o dia todo, à frente de uma
empresa de muitos milhões de dólares, e conduzir negociações difíceis com sindicatos e
associações de classe; e depois de tudo, ao chegar em casa, tinha competência para preparar
um fabuloso jantar em que constavam pato assado com massa fresca e alcachofra. E ainda por
cima capaz de pôr um vestido chemisier de seda que seria compatível com uma noite na
ópera. Jason até se sentiu constrangido, porque estava de jeans e camisa de rugby sobre uma
camiseta de gola redonda que vestira assim que saíra do banho.
– Você vestiu o que quis, e eu fiz o mesmo – disse Shirley dando uma risada. Serviu-lhe
um Kir Royale e pediu-lhe que lavasse os legumes para a salada. Verificou o pato e disse que
estava quase pronto. Para Jason, o pato assado no forno exalava um aroma divino.
Comeram na sala de jantar, sentados em extremidades opostas de uma mesa comprida
com seis cadeiras vazias nos dois lados. Toda vez que Jason colocava mais vinho nos copos,
tinha de levantar-se e dar vários passos. Shirley achou que era divertido.
Enquanto comiam, Jason descreveu como transcorrera a reunião da equipe médica e
acrescentou que todos os médicos iriam aprimorar a qualidade de seus testes de esforço. Esta
informação foi útil a Shirley, e ela lembrou a Jason que os exames de saúde executivos
constituíam um fator importante para incrementar a venda dos serviços do GHP aos clientes
empresariais. Ela contou a Jason que a companhia passaria a dar uma nova ênfase à medicina
preventiva para clientes executivos.
Mais tarde, no café, ela disse:
– Michael Curran esteve lá hoje à tarde.
– É mesmo? – perguntou Jason. – Tenho certeza que isso foi desagradável. O que ele
queria?
– Conhecer os antecedentes da Brennquivist mulher. Demos-lhe tudo que tínhamos. Ele
até se entrevistou com a mulher do departamento de pessoal que a tinha contratado.
– Ele mencionou se a polícia tinha alguma suspeita?
– Não – disse Shirley. – Só espero que tudo esteja terminado.
– Eu desejaria ter conseguido falar com Helene novamente. Continuo achando que ela
estava acobertando algo em favor de Hayes.
– Você ainda acha que ele fez alguma descoberta?
– Com toda a certeza. – E Jason passou a descrever os livros de registros de
laboratório e a visita que fez a Gene, Inc. e a Samuel Schwartz. Contou a Shirley que Schwartz


havia encaminhado a constituição de uma empresa para Hayes, destinada a comercializar a
nova descoberta, fosse qual fosse.
– Ele não sabia que produto era?
– Não. Aparentemente Hayes não confiava em ninguém.
– Mas ele ia ter necessidade de capital inicial. Teria de ter confiança em alguém, se
estava planejando fabricar e distribuir.
– Talvez sim – admitiu Jason. – Mas não consigo encontrar ninguém a quem ele tivesse
revelado o assunto, pelo menos até agora. Infelizmente, Helene era com quem eu mais contava
para esclarecer tudo.
– Você ainda continua sua busca?
– Acho que sim – admitiu ele. – Será que isso parece tolice?
– Tolice não – disse Shirley –, só inquietante. Seria uma tragédia se uma descoberta
importante se perdesse, mas eu realmente acho que é hora de deixar em paz esse caso Hayes.
Espero que esteja tirando uns dias de folga para relaxar, não para continuar com esse
empreendimento arriscado e infrutífero.
– Mas por que você pensa assim? – perguntou Jason, surpreso com sua própria
transparência.
– Porque você não desiste facilmente. – Ela se aproximou e colocou a mão sobre o
ombro de Jason. – Por que não vai para o Caribe? Talvez eu possa sair no fim de semana, e
estarei com você…
Jason sentiu uma empolgação que não sentia desde a morte de Danielle. Parecia-lhe
magnífica essa idéia de sol quente e água límpida e fresca, especialmente se Shirley também
estivesse lá. Mas então hesitou. Não sabia se estava em condições de assumir o compromisso
emocional que a situação exigia. E, o que era mais importante, prometera a si mesmo ir a
Seattle.
– Eu quero viajar até a Costa Oeste – disse ele, por fim. – Gostaria de visitar um velho
amigo meu que vive lá.
– Programa bem inocente mesmo. Mas o Caribe me parece melhor.
– Talvez, dentro de pouco tempo. – Ele apertou com ternura o braço direito de Shirley.
– Que tal um conhaque?
Enquanto Shirley se afastava para ir buscar o Courvoisier, Jason olhou com atenção e
crescente interesse a sua figura.
Quando Carol telefonou, às duas e meia da madrugada, Jason estava plenamente
desperto. Estivera tão preocupado com a possibilidade de ela esquecer, que não conseguira
dormir.
– Estou exausta, Jason – foi logo dizendo Carol.
– Desculpe, mas preciso conversar com você pessoalmente – falou ele. – Posso estar aí
dentro de dez minutos.
– Não acho que seja um boa idéia. Como lhe falei hoje à tarde, não estou sozinha. Há
alguém ali do lado de fora vigiando o meu edifício. Por que você tem que conversar comigo
pessoalmente ainda hoje? Talvez possamos acertar um encontro para amanhã.
Jason pensou em perguntar-lhe, por telefone, se queria viajar a Seattle, mas concluiu
que teria melhores possibilidades se fosse convencê-la pessoalmente. Era uma coisa meio


fora do comum pedir a uma mulher que o acompanhasse até Seattle depois de terem tido
apenas dois encontros.
– É só esse guarda-costas?
– Sim, mas que diferença faz? O sujeito é forte como um touro.
– Há uma entrada de acesso pelos fundos do seu edifício. Eu poderia subir pela escada
de incêndio.
– Pela escada de incêndio! Que loucura! Mas afinal o que há de tão importante para
você precisar se encontrar comigo ainda hoje?
– Eu não precisaria ir até aí se pudesse falar por telefone.
– Bom, é que não gosto dessa idéia de trazer homens ao meu apartamento a esta hora da
noite.
Ah, claro!, pensou Jason.
– Olhe – falou alto Jason –, vou lhe dizer só isto. Estive tentando esclarecer o que foi
que Hayes descobriu, e vou até o fim nessa história. Preciso da sua ajuda.
– Isso é quase uma ordem, Dr. Jason Howard.
– Exatamente. Você é a única pessoa que pode me ajudar.
Carol riu.
– Se você coloca a coisa desse jeito, quem pode recusar? Está bem, venha. Mas por sua
conta e risco. Tenho de adverti-lo, não tenho muito controle sobre esse brutamontes que está
ali fora.
– Meu seguro contra invalidez já está pago.
– Eu moro na… – começou a dizer Carol.
– Eu sei onde você mora – interrompeu Jason. – Na verdade eu já tive um pega com
Bruno, se é esse o cara charmoso que está de guarda na sua porta.
– Você já conheceu Bruno? – perguntou Carol, com incredulidade.
– Sujeito amável. Sabe conversar como ninguém.
– Deixe então que eu lhe avise – disse Carol. – Foi Bruno quem me acompanhou até a
porta do meu edifício.
– Felizmente é fácil localizar onde está esse cara. Fique vigiando da janela dos fundos
do seu apartamento. Não quero ficar pegando sereno na sua escada de incêndio.
– Mas isso é mesmo uma loucura – falou Carol.
Jason trocou de roupa; vestiu calça preta e pulôver preto. Estaria muito visível na
escada de incêndio, mesmo não usando roupas de cores claras. Calçou tênis de corrida e
desceu para apanhar o carro. Passou pela Beacon Street, de olho atento para a possível
presença de Bruno. Fez uma curva à esquerda na Gloucester Street e mais outra à esquerda em
Commonwealth. Tendo cruzado Marlborough, diminuiu a marcha. Sabia que não havia
possibilidade de encontrar um estacionamento; por isso, decidiu parar o carro junto ao
hidrante mais próximo. Deixou as portas do carro fechadas mas não chaveadas; em caso de
necessidade, os bombeiros poderiam usar as mangueiras sem serem estorvados pelo carro.
Ao sair do automóvel, Jason perscrutou cuidadosamente o trecho da calçada entre as
ruas Beacon e Marlborough. Luzes intermitentes formavam áreas iluminadas. Havia muitas
áreas escuras, árvores projetavam sombras semelhantes a teias de aranha. Jason ainda
conseguia lembrar nitidamente sua recente tentativa de fuga das mãos de Bruno nessa mesma
rua.


Juntando coragem, começou a andar pela calçada, tenso como o corredor que aguarda o
tiro de largada. Um súbito movimento à sua esquerda fez com que engolisse em seco. Era uma
ratazana do tamanho de um gatinho. Jason sentiu que os cabelos na parte posterior de seu
pescoço se eriçaram. Continuou a andar, contente por não encontrar sinal da presença de
Bruno. O silêncio era tanto que conseguia ouvir sua própria respiração.
Chegou ao edifício de Carol. Antes de olhar com cuidado para a escada de incêndio,
notou acesa a luz conhecida na janela do quarto andar. A escada, infelizmente, tinha um desses
segmentos que têm de ser baixados do primeiro andar. Jason olhou em busca de alguma coisa
em cima da qual pudesse ficar de pé. A única coisa disponível era um latão de lixo, e isto
significava que teria de emborcá-lo e esvaziá-lo. Mesmo sabendo que isso causaria muito
barulho, compreendeu que não tinha outra escolha. E pouco se importou quando o latão fez um
pequeno estrondo contra o pavimento e latas de cerveja vazias se espalharam na rua.
Prendendo a respiração, olhou para cima. Não se acenderam outras luzes. Satisfeito
com isso, subiu no latão de lixo e agarrou-se no segmento mais baixo da escada, que estava
erguido.
– Ei! – gritou alguém. Jason voltou a cabeça e viu um vulto enorme, conhecido,
correndo em sua direção na calçada balançando os braços e respirando forte como uma
locomotiva. Nessa hora, Bruno parecia um zagueiro dos Washington Redskins.
– Que merda! – exclamou Jason. Com toda a força, agarrou-se à extremidade da escada,
um tanto temeroso de que ela pudesse despencar com seu peso. Felizmente não despencou.
Laboriosamente, ele conseguiu se erguer até poder colocar o pé no primeiro degrau e subir ao
primeiro andar.
– Ei, seu anormal filho da puta! – gritou Bruno. – Está querendo criar problema por
aqui?
Jason hesitou. Poderia rechaçar o sujeito pisando-lhe nos dedos das mãos, caso ele
tentasse subir, mas isto o impediria de chegar até o apartamento de Carol. Decidiu tentar a
sorte. Subiu apressadamente os dois lances seguintes da escada de incêndio, chegando então
ao andar de Carol. Ela estava olhando atenta e ergueu a janela de guilhotina no momento em
que o viu. Antes que ela pudesse falar, Jason disse ofegante:
– Esse seu gorila vem subindo. Você acha que ele está armado? – Jason viu-se dentro de
uma cozinha ampla.
– Não sei.
– Ele vai chegar a qualquer momento – disse Jason, baixando a janela de guilhotina e
trancando-a. Tal manobra só poderia retardar em uns dez segundos a entrada de Bruno.
– Talvez eu devesse conversar com ele – sugeriu Carol.
– E ele a ouviria?
– Não sei. Ele é impulsivo e teimoso.
– É o que eu também acho – disse Jason. – Mas ele não me vê com bons olhos. Acho
que vou precisar de algo como um bastão de beisebol.
– Você não pode machucá-lo, Jason.
– Não quero machucá-lo, mas não parece que ele esteja disposto a sentar e conversar
sobre este assunto. Preciso de algo com que possa ameaçá-lo, para mantê-lo afastado de mim.
– Eu tenho um atiçador de fogo.
– Vá buscá-lo. – Jason apagou a luz da cozinha. Colando o nariz na vidraça, pôde ver


Bruno se esforçando para atingir o primeiro lance da escada de incêndio. O rapaz era forte,
mas também muito desajeitado. Carol voltou com o atiçador de fogo. Jason agarrou-o. Com
um pouco de sorte, ele teria a possibilidade de convencer o brutamontes a ouvi-lo.
– Eu sabia que isso ia dar problemas – falou Carol. Jason relanceou o olhar pela
cozinha e notou que o chão era de linóleo de tipo antigo. Olhou para a porta que comunicava a
cozinha com o restante do apartamento. Era uma porta espessa e sólida, com fechadura e
chave. Em alguma época o ambiente tinha sido alguma outra coisa que não uma cozinha.
– Carol, você se importa se eu fizer um pouco de desordem? Quer dizer, terei prazer em
pagar pela limpeza que tiver de ser feita.
– Que está pretendendo fazer?
– Você tem uma lata de óleo vegetal, das grandes?
– Acho que sim.
– Pode buscá-la?
Atônita, Carol abriu a porta da despensa e retirou de dentro uma lata de galão de azeite
italiano importado.
– Perfeito – falou Jason. Depois de fazer outra rápida verificação na janela, empurrou
apressadamente as duas cadeiras e a mesa para fora da cozinha.
Carol, cada vez entendendo menos, observava Jason.
– Está bom; agora saia – ordenou Jason. Carol foi para o corredor.
Jason abriu a lata e começou a derramar o azeite no soa-lho, em movimentos oscilantes
e amplos. Assim que fechou e chaveou a porta, ouviu pancadas na janela da cozinha e, logo a
seguir, vidro sendo estilhaçado.
Colocou a mesa atravessada como uma tranca entre a porta e a parede oposta.
– Venha – disse ele, pegando a mão de Carol. Com a outra mão continuava segurando o
atiçador de fogo. Levou Carol para a porta da frente do apartamento, que tinha segurança
adequada, provida de trinco duplo e uma fechadura de haste metálica. Ouviram um barulho
tremendo na cozinha. Bruno havia caído pela primeira vez.
– Isso foi muito engenhoso – riu-se Carol.
– Quando se tem só 72 quilos, é preciso alguma compensação. – O coração de Jason
ainda batia acelerado. – De qualquer modo, não sei por quanto tempo ele vai estar ocupado lá
na cozinha, por isso temos de ser rápidos. Preciso de sua ajuda. A última chance que tenho de
reconstituir a descoberta feita por Alvin Hayes é ir a Seattle e tentar averiguar o que ele fez lá.
Aparentemente, ele…
Houve outro estrondo, seguido de palavrões, alguns deles naturalmente em italiano.
– Ele está ficando de mau humor – disse Jason, ao mesmo tempo que destravava os
trincos da porta principal.
– Então você quer que eu vá a Seattle com você. É isso?
– Eu sabia que você podia compreender. Hayes trouxe de lá uma amostra, que
processou na Gene, Inc. Tenho de descobrir que amostra era essa. A melhor pista é o homem
que ele contatou na Universidade de Washington.
– O homem cujo nome não consigo lembrar.
– Mas você viu esse homem. Poderia reconhecê-lo?
– Provavelmente.
– Sei que é um tanto audacioso pedir-lhe que venha comigo – disse Jason. – Mas eu


realmente acredito que Hayes fez algum tipo de descoberta. E considerando as suas
realizações profissionais anteriores, tem de ser uma descoberta importante.
– E você realmente pensa que a ida a Seattle poderia solucionar essa questão?
– Não nego que seja uma hipótese audaciosa. Mas é a única provável.
A porta da cozinha começou a estremecer com vigorosas pancadas dos punhos de
Bruno.
– Acho que já abusei de sua hospitalidade – disse Jason. – Bruno não vai machucá-la,
não é mesmo?
– Queira Deus que não. Meu patrão seria capaz de esfolá-lo vivo. É por isso que ele
está tão furioso agora. Acha que estou correndo algum perigo.
– Carol, você pode ir comigo nessa viagem a Seattle? – pediu Jason, ao mesmo tempo
que removia a tranca principal da porta da frente.
– Quando deseja ir? – perguntou Carol, vacilando.
– Hoje à tarde. Não permaneceríamos muito tempo lá. Seria possível você se ausentar
do trabalho avisando em cima da hora?
– Já fiz isso outras vezes. Vou dizer simplesmente que preciso ir à minha cidade natal.
Além disso, depois do assassinato de Helene, meu patrão até poderia sentir-se aliviado ao me
ver fora desta cidade.
– Então quer dizer que você vai? – perguntou Jason, animado.
– Sim, vou. – Carol deu-lhe um sorriso afetuoso. – Por que não?
– Há um vôo para Seattle às quatro da tarde de hoje. Podemos nos encontrar no portão
de embarque. Vou comprar as passagens. O que acha disso?
– Uma loucura – disse Carol. – Mas é divertido.
– Então encontro você lá. – Jason desceu apressadamente as escadas e saiu em busca de
seu carro, receoso de que Bruno pudesse ter invertido o rumo de sua perseguição e tivesse
saído pela janela.


12
Jason acordou cedo e telefonou para Roger, pretendendo ficar a par do estado de seus
pacientes. Hoje não iria ao hospital. Havia uma outra viagem que queria fazer antes de se
encontrar com Carol para o vôo das quatro da tarde para Seattle. Fez as malas, às pressas,
tendo o cuidado de levar roupas próprias para o tempo frio e chuvoso, e telefonou pedindo um
táxi para levá-lo ao aeroporto; chegou ao aeroporto justamente a tempo de guardar sua mala
num guarda-volumes automático e tomar a ponte aérea da Eastern das dez da manhã para o
aeroporto La Guardia, em Nova York. Em La Guardia alugou um carro e seguiu para Leonia,
em Nova Jersey. As possibilidades eram provavelmente menores ali do que em Seattle, mas
Jason tencionava encontrar-se com a ex-esposa de Hayes. Não desejava deixar sem
investigação nem mesmo a menor pista do caso.
Leonia mostrou ser uma cidadezinha surpreendentemente pacata, tendo-se em conta a
sua proximidade com Nova York. A dez minutos de distância da ponte George Washington,
Jason se viu entrando numa rua ampla com estabelecimentos comerciais de um só andar, diante
dos quais se podia estacionar em ângulo. Essa rua era como qualquer outra rua principal das
cidadezinhas do interior, mas levava o pomposo nome de Broad Avenue. Havia um bazar, um
loja de ferragens, uma padaria e até uma lanchonete. Parecia cenário para filme dos anos 50.
Jason entrou na lanchonete, pediu um baunilha maltado e consultou a lista telefônica. Havia
uma Louise Hayes, na Park Avenue. Enquanto bebia o seu refrigerante, Jason ficou a
considerar qual a melhor alternativa, telefonar ou ir diretamente ao endereço. Optou pela
segunda possibilidade.
A Park Avenue cortava a Broad Avenue e subia a encosta que delimitava Leonia na
direção leste. Depois do Pauline Boulevard, a avenida fazia uma curva para norte. Era lá que
se encontrava a casa de Louise Hayes: uma casa modesta, marrom-escura, coberta com telhas
de ardósia, muito precisada de reparos. A grama no jardim da frente estava malcuidada e
crescida.
Jason tocou a campainha. A porta foi aberta por uma mulher sorridente, de meia-idade,
que usava um vestido vermelho desbotado, de usar em casa. Tinha cabelos castanhos
encaracolados; apareceu agarrada na sua saia uma menininha de cinco ou seis anos, com o
dedo polegar na boca até a segunda falange.
– Sra. Hayes? – perguntou Jason. A mulher tinha uma aparência muito diferente da das
outras duas namoradas de Hayes.
– Sim.
– Sou o Dr. Jason Howard, colega do seu falecido marido. – Jason não tinha ensaiado o
que dizer em seguida.
– Sim? – repetiu a Sra. Hayes, reflexamente empurrando a menininha para trás de si.
– Eu gostaria de falar com a senhora, se tiver um pouco de tempo. – Jason enfiou a mão
no bolso e entregou à mulher a carteira de motorista com sua foto e o cartão de identificação
de médico do GHP. – Entrei para a Faculdade de Medicina junto com o seu marido –
acrescentou ele, para facilitar a conversação.
Louise olhou os documentos e devolveu-os.
– O senhor gostaria de entrar?


– Sim, obrigado.
O interior da casa também parecia necessitar de obras de restauração. Os móveis eram
usados, o tapete estava gasto. Brinquedos de criança estavam espalhados pelo chão. Louise
fez apressadamente um espaço livre no sofá e, com um gesto, indicou o lugar para Jason
sentar.
– Posso oferecer alguma coisa? Café, chá?
– Café seria bom – disse ele. A mulher parecia angustiada, e ele achou que a atividade
na cozinha poderia acalmá-la. Ela foi para a cozinha, de onde logo veio o ruído de água
escorrendo. A menininha ficou para trás, olhando com seus grandes olhos castanhos. Quando
ele lhe sorriu, ela fugiu para dentro da cozinha.
Jason olhou o ambiente da sala. Era escura e triste, e nas paredes havia algumas
gravuras tiradas de folhetos de propaganda. Louise retornou com a menina a reboque. Deu a
Jason uma xícara de café e colocou o açúcar e o creme sobre a pequena mesa. Jason serviu-se
de açúcar e creme.
Louise sentou-se do outro lado da mesa.
– Desculpe-me se eu não pareci hospitaleira no início – falou ela. – Não é comum eu ter
visitas que venham perguntar por Alvin.
– Compreendo – disse Jason. Ele olhou-a com mais atenção. Sob o exterior descuidado,
ele observava traços de uma mulher bonita. Hayes tinha bom gosto, não havia dúvida. –
Lamento me meter nisso, mas Alvin me falou a seu respeito. Como estava passando por aqui,
pensei em dar uma chegada. – Ele achou que algumas inverdades podiam ajudar.
– Ele falou, então? – disse Louise, com indiferença. Jason decidiu ser cauteloso. Não
estava ali para remexer em sentimentos dolorosos.
– O motivo pelo qual eu quis conversar com a senhora – disse ele – é que o seu marido
me falou que havia realizado uma descoberta científica importante.
Jason passou a explicar as circunstâncias da morte de Alvin Hayes e contou como tinha
tomado, como ponto de honra, a decisão de procurar descobrir se o marido dela realmente
havia feito uma descoberta científica. Explicou que seria trágico se Alvin tivesse descoberto
algo capaz de ajudar a humanidade e essa descoberta viesse a se perder. Louise meneou a
cabeça afirmativamente, mas quando Jason lhe perguntou se tinha alguma idéia do que poderia
ter sido essa descoberta, ela disse que nada sabia.
– A senhora e Alvin não conversavam muito?
– Não. Só sobre as crianças e assuntos de dinheiro.
– Como estão seus filhos? – perguntou Jason, lembrando-se de que Hayes manifestara
preocupação com o menino.
– Os dois estão bem, obrigado.
– Dois?
– Sim – disse Louise. – Esta aqui é Lucy – ela afagou a cabeça da menina –, e John está
no colégio.
– Eu pensei que vocês tinham três filhos.
Jason percebeu que os olhos da mulher ficaram marejados. Depois de um silêncio
constrangido, ela disse:
– Bem… há mais um. Alvin Junior. Ele sofre de retardamento mental grave. Vive numa
escola em Boston.


– Lamento muito.
– Está tudo bem. Naturalmente o senhor devia achar que a esta altura eu já estaria
resignada mas acho que isso jamais acontecerá. Creio que foi esse o motivo de Alvin e eu
termos nos divorciado; eu não pude suportar o problema.
– Onde é mesmo que ele está? – perguntou Jason, sabendo que tocava num ponto
doloroso.
– Na Hartford School.
– Como está passando? – Jason conhecia a Hartford School. Era uma instituição que
passara ao controle do GHP quando este comprara um hospital associado, proprietário de uma
unidade de tratamento para pacientes críticos. Jason também sabia que essa escola agora
estava à venda, por dar muita despesa e sobrecarregar as finanças do GHP.
– Ele está bem, pelo que eu sei – disse Louise. – Acho que não o visito com muita
freqüência. É uma coisa que me dói muito.
– Compreendo – disse Jason, conjeturando se seria este o filho a que Hayes havia feito
menção na noite em que morrera. – Seria possível darmos um telefonema e perguntar como o
menino está passando?
– Acho que sim – disse Louise, não reagindo ao inesperado dessa pergunta. Colocou-se
rigidamente de pé, sua filhinha sempre agarrada a ela, foi ao telefone e efetuou uma chamada
para a escola. Pediu ligação para o pavilhão dos pré-adolescentes e, quando atenderam,
conversou um pouco sobre o estado de saúde de seu filho. Ao desligar o telefone, falou: –
Eles acham que está indo tão bem quanto se podia esperar. O único problema novo é uma
certa artrite, que tem dificultado a fisioterapia.
– Ele tem estado lá por muito tempo?
– Desde que Alvin foi trabalhar para o GHP. Conseguir colocar o menino na Hartford
foi um dos motivos que o levou a aceitar o emprego.
– E o seu outro filho? A senhora diz que ele está bem.
– Não podia estar melhor – disse Louise, com evidente orgulho. – Está na terceira série
e é considerado um dos mais brilhantes da classe.
– Isso é maravilhoso – disse Jason, tentando rememorar a noite em que Hayes morrera.
Alvin dissera que alguém queria matá-lo e ao filho. Que era muito tarde para ele, mas talvez
não fosse para seu filho. O que isso queria dizer afinal? Jason supusera que um dos filhos do
colega tinha tido alguma doença física, mas aparentemente não era esse o caso.
– Mais café? – perguntou Louise.
– Não, obrigado – disse Jason. – Só mais uma pergunta. Na época em que morreu,
Alvin estava empenhado em fundar uma empresa. Seus filhos seriam acionistas. A senhora
soube alguma coisa a respeito disso?
– Não, absolutamente nada.
– Bem… – disse Jason. – Obrigado pelo café. Se houver alguma coisa que eu puder
fazer pela senhora em Boston, como dar uma olhada em Alvin Junior, não tenha dúvida, pode
telefonar. – Jason levantou-se, e a menininha escondeu a cabeça na saia da mãe.
– Espero que Alvin não tenha sofrido – disse ela.
– Não, não sofreu – respondeu Jason, mentindo. Ainda podia lembrar a expressão de
horror no rosto de Alvin.
Estavam já na porta quando Louise de repente falou:


– Ah, há uma coisa que eu não lhe disse. Alguns dias depois que Alvin morreu, alguém
arrombou nossa casa. Felizmente não havia ninguém aqui.
– Levaram alguma coisa? – perguntou Jason, conjeturando se não teria sido gente da
Gene, Inc.
– Não – disse Louise. – Provavelmente viram esta bagunça habitual e deram o fora
correndo. – Ela sorriu. – Mas parece que vasculharam tudo. Até mesmo as maletas de escola
das crianças.
Enquanto se afastava de Leonia, Nova Jersey, e tomava o caminho de volta à ponte
George Washington, Jason pôs-se a pensar no encontro que tivera com Louise Hayes. Devia
estar mais desencorajado do que estava. Afinal de contas, não ficara sabendo nada de
importante que justificasse a viagem. Mas percebia que tinha havido outras razões para
desejar fazer essa viagem. Sentia verdadeira curiosidade em relação à esposa de Hayes.
Tendo-lhe sido arrebatada pela morte, de maneira tão cruel, sua própria esposa, Jason não
podia compreender por que alguém como Hayes romperia voluntariamente um casamento. Mas
Jason nunca vivenciara o trauma de ter um filho retardado mental.
Ele conseguiu lugar no vôo da ponte aérea de 14:00 para voltar a Boston. Tentou ler no
avião, mas não conseguia se concentrar. Começou a se preocupar; talvez Carol não
conseguisse se encontrar com ele no aeroporto de Boston, ou então, o que seria pior,
aparecesse com Bruno.
Infelizmente, o vôo da ponte aérea de 14:00, que devia aterrissar em Boston às 14:40,
ainda não tinha sequer decolado de La Guardia até as 14:30. Quando Jason desembarcou em
Boston, já eram 15:15. Apanhou sua bagagem no guarda-volumes e apressadamente deslocouse do terminal da Eastern para o da United.
Havia uma longa fila diante do balcão de passagens, e Jason não conseguia imaginar o
que faziam os funcionários da companhia aérea para tornar cada atendimento tão demorado. Já
eram 15:40 e nenhum sinal de Carol Donner.
Chegou, por fim, a vez de Jason. Ele apresentou seu cartão do American Express e
pediu duas passagens para Seattle, ida e volta, para o vôo das quatro da tarde, com os retornos
em aberto.
Pelo menos com Jason o funcionário foi eficiente. Em três minutos ele tinha os bilhetes
das passagens e os cartões de embarque, e se dirigiu apressadamente para o Portão 19. O vôo
já estava nas fases finais do embarque. Ao chegar ao Portão 19, Jason, sem fôlego, perguntou
se alguém havia chamado por ele. Quando a moça do balcão disse que não, ele descreveu
rapidamente como era Carol e perguntou se o funcionário do embarque não a tinha visto.
– Ela é muito bonita – acrescentou ele.
– Tenho certeza que sim – sorriu a funcionária. – Infelizmente, não notei a presença
dela. Mas se o senhor está com planos de ir para Seattle, seria melhor embarcar.
Jason olhou o ponteiro dos segundos percorrendo o mostrador do relógio de parede
colocado atrás do balcão de registro de chegada. O funcionário estava ocupado em montar as
fichas de embarque. Um outro funcionário fez a chamada final do embarque para Seattle.
Faltavam dois minutos para as quatro horas.
Com sua bolsa de viagem pendurada ao ombro, Jason olhou novamente para o corredor
que dava para o saguão de acesso. No momento em que estava a ponto de abandonar toda a
esperança, ele a viu. Ela vinha correndo na sua direção. Jason deveria ficar eufórico. O único


problema, porém, era que, alguns passos atrás dela, vinha o impressionante corpanzil de
Bruno. Um pouco mais além no corredor estava postado um policial, vigiando junto ao local
em que os passageiros apanhavam suas bagagens passadas pelo aparelho de raios X. Jason
traçou mentalmente o plano: essa haveria de ser a sua direção de fuga, caso surgisse tal
necessidade.
Carregando sua própria bolsa de viagem pendurada no ombro, Carol estava tendo certa
dificuldade de correr. Bruno não fazia nenhum esforço para ajudá-la. Carol aproximou-se
diretamente de Jason. Jason viu no rosto de Bruno a expressão passar do constrangimento para
a confusão e a raiva.
– Consegui chegar a tempo? – falou ela, ofegante. O funcionário agora estava na porta
da passarela telescópica de acesso ao avião, destravando-a com o pé.
– Que diabos você está fazendo aqui, cara? – falou alto Bruno, olhando para o letreiro
de destino do vôo. Voltou-se acusadoramente para Carol. – Você disse que ia para sua cidade
natal, Carol.
– Venha – disse Carol, agarrando no braço de Jason e empurrando-o em direção ao
embarque.
Jason foi andando de costas com os olhos postos no rosto rechonchudo de Bruno, que
assumira uma ameaçadora cor avermelhada. Grossas veias ressaltavam em suas têmporas.
– Só um momento – exclamou Carol em direção ao funcionário que controlava a porta.
O homem fez um sinal afirmativo com a cabeça e gritou alguma coisa para dentro da
passarela. Jason manteve os olhos em Bruno até o último segundo. Ainda pôde vê-lo
afastando-se em direção a uma cabine telefônica.
– Oi, pessoal, vocês gostam de chegar em cima da hora – disse o funcionário,
destacando uma parte de cada um dos dois cartões de embarque. Jason finalmente voltou o
rosto para a frente, afinal se convencendo de que Bruno decidira não criar um tumulto. Carol
ainda puxava Jason pelo braço enquanto iam percorrendo o corredor da passarela. Ainda
tiveram que esperar enquanto o operador da passarela batia com o punho na parte lateral do
avião para pedir que o comissário de bordo abrisse, de dentro, a porta do avião já fechada e
travada.
– Mais em cima da hora vocês não podiam estar – disse o funcionário, com ar de
reprovação.
Uma vez sentados nas poltronas, Carol pediu desculpas pelo atraso.
– Estou furiosa – disse ela, acomodando sua bolsa de viagem debaixo do assento em
frente. – Sou agradecida pela preocupação que Arthur tem pelo meu bem-estar, mas isso é
ridículo.
– Quem é Arthur?
– É o meu patrão – disse Carol, aborrecida. – Ele disse que se eu me ausentasse agora,
poderia perder o emprego. Acho que vou pedir demissão quando voltarmos.
– Você teria condições de fazer isso? – perguntou Jason, conjeturando apenas em que
poderia consistir o trabalho de Carol, além de dançar. No seu modo de entender, as mulheres
como Carol perdiam o controle de suas vidas.
– Eu já estava mesmo planejando parar com isso, mais dia menos dia – disse Carol.
O avião deu um leve solavanco, como se estivesse sendo empurrado para trás e
afastado do portão de embarque.


– Você sabe que tipo de trabalho eu faço? – perguntou Carol.
– Bem, mais ou menos – disse Jason, vago.
– Você nunca mencionou nada sobre isso – disse Carol. – A maioria das pessoas
comenta.
– Eu achei que isso era assunto seu – disse Jason. Quem era ele para julgar?
– Você é um pouco estranho – disse Carol –, simpático, mas estranho.
– Eu pensava que era bem normal – disse Jason.
– Ah, não seja bobo – falou Carol, brincando.
Havia muito tráfego aéreo, e esperaram por mais de vinte minutos até haver condições
para a decolagem. O avião tomou o rumo oeste.
– Cheguei a pensar que não fôssemos conseguir – falou Jason, por fim, começando a
relaxar.
– Desculpe – disse Carol novamente. – Tentei me livrar de Bruno, mas ele grudou em
mim o tempo todo. Eu não queria que ele soubesse que eu não estava viajando para a minha
terra, Indiana. Mas o que eu podia fazer?
– Não tem importância – disse Jason, embora sentisse preocupação ao pensar que
alguém além de Shirley pudesse saber para onde ele estava viajando. Desejava que a viagem
permanecesse em segredo. Ao mesmo tempo, não conseguia imaginar qual a diferença que isso
fazia.
Tomando notas num caderninho amarelo, Jason começou a fazer perguntas a Carol a
respeito do itinerário de Hayes em cada das suas duas viagens a Seattle. A primeira fora mais
interessante. Ficaram hospedados no Mayfair Hotel e, entre outras coisas, foram a um clube
noturno chamado Totem, semelhante ao Cabaret, de Boston. Ele perguntou a Carol como era
esse clube noturno.
– Era bom – disse Carol –, nada de especial. Mas não tinha a animação do Club
Cabaret. Seattle parece um tanto conservadora.
Jason concordou, indagando-se por que Hayes haveria de gastar seu tempo num lugar
como aquele, quando viajava com Carol.
– Alvin conversou com alguém por lá? – perguntou Jason.
– Sim. Arthur tomou providências para que Alvin pudesse falar com o proprietário.
– Seu patrão providenciou? Alvin conhecia o seu patrão?
– Eles eram amigos. Foi dessa maneira que conheci Alvin.
Jason lembrou-se de ter ouvido falar que Alvin gostava de discotecas e coisas do
gênero. Aparentemente esses rumores eram verdadeiros. Mas a idéia de um biologista
molecular mundialmente famoso ser amigo de um homem que mantinha uma casa noturna com
bailarinas de topless, isso parecia absurdo.
– Você sabe o que Alvin conversou com esse homem?
– Não, não sei – disse Carol. – Eles não conversaram por muito tempo. Eu estava
ocupada em observar as bailarinas. Elas dançavam bastante bem.
– E vocês visitaram a Universidade de Washington, certo?
– Sim, visitamos. Logo no primeiro dia.
– E você acha que você é capaz de encontrar o homem com quem Alvin conversou na
universidade? – perguntou Jason, só para ter certeza.
– Acho que sim. Era um sujeito alto, de boa aparência.


– E depois, o que fizeram?
– Viajamos para as montanhas.
– E isso eram férias?
– Penso que sim.
– Alvin encontrou-se com alguém nas montanhas?
– Ninguém em especial. Mas conversou com muitas pessoas.
Jason reclinou um pouco sua poltrona depois de lhe ter sido servido o coquetel. Ficou
pensando nas coisas que Carol havia contado; considerou que o acontecimento mais decisivo
teria sido a visita à Universidade de Washington. Mas a ida ao clube noturno também era uma
circunstância curiosa e merecia ser investigada.
– Há mais uma coisa – disse Carol. – Na segunda viagem ele levou algum tempo à
procura de gelo-seco.
– Gelo-seco? Mas para quê?
– Eu não fiquei sabendo, e Alvin não me disse. Ele tinha uma caixa térmica e mandou
enchê-la de gelo-seco.
Talvez para transportar a amostra, pensou Jason. Este dado parece promissor.
Quando aterrissaram em Seattle, tiveram o cuidado de acertar seus relógios para o fuso
horário da Costa do Pacífico. Jason olhou pela janela do avião para saber do tempo lá fora.
Confirmando as expectativas, estava chovendo. Dava para ver os pingos de chuva nas poças
d’água escuras na pista do aeródromo. Logo em seguida, até mesmo os vidros das janelas do
avião estavam riscados de pingos de chuva.
Alugaram um carro; e assim que se livraram do tráfego das imediações do aeroporto,
Jason falou:
– Se isto pode ajudar a sua memória, achei que deveríamos ficar no mesmo hotel em
que vocês ficaram da última vez. Quartos separados, naturalmente.
Carol voltou o rosto para olhá-lo, na meia-luz do interior do carro. Jason queria deixar
bem claro que a viagem era estritamente de trabalho.
Dois carros atrás de Jason e Carol, ia um Ford Taurus azul-escuro. Ao volante estava
um homem de meia-idade, vestido com uma suéter de gola redonda, jaqueta de camurça e
calça xadrez. Ele havia recebido um telefonema, apenas umas cinco horas antes, dando-lhe
conta de que devia comparecer à chegada do vôo da United proveniente de Boston. Sua
missão era localizar um médico de 45 anos que estaria chegando acompanhado por uma bela
jovem. Os nomes eram Howard e Donner, e ele devia mantê-los sob vigilância. A operação
foi mais fácil do que ele imaginara. Pôde confirmar a identidade dos dois simplesmente
seguindo-os de perto, no balcão da Avis. Agora bastava-lhe mantê-los à vista. Estava previsto
que ele seria contatado por alguém que viria de Miami. Para isto é que lhe pagavam os seus
usuais cinqüenta dólares por hora mais despesas. Ele ficou conjeturando se se tratava de
algum problema de família.
O hotel era elegante. A julgar pela aparência de Hayes, usualmente descuidada, Jason
não esperaria que o colega fosse dado a gostos tão dispendiosos. Ocuparam quartos
separados, mas Carol insistiu em que abrissem a porta de comunicação entre os quartos.


– Não sejamos puritanos – disse ela. Jason não soube o que responder a esse
comentário.
Como mal havia tocado na comida servida a bordo, Jason sugeriu que jantassem antes
de saírem para o Totem Club. Carol trocou de roupa, e quando entraram no salão de jantar do
restaurante, Jason sentiu prazer em ver como ela evidenciava um aspecto jovem e gracioso. O
maitre até chegou a indagar a idade dela quando Jason pediu uma garrafa de chardonnay da
Califórnia. Esse episódio impressionou Carol, que se queixava de dar a impressão de estar
começando a envelhecer aos 25 anos de idade.
Pelas dez da noite, uma da madrugada pela hora da Costa Leste, estavam prontos para
sair para o Totem Club. Jason já começava a sentir sono, mas Carol sentia-se bem-disposta.
Para evitar problemas, deixaram o carro alugado no estacionamento do hotel e tomaram um
táxi. Carol deu a entender que, com Hayes, tivera alguma dificuldade de encontrar o clube.
O Totem Club situava-se fora da área central da cidade de Seattle, nas vizinhanças de
uma agradável área residencial. Não havia ali nada do ambiente sórdido que se via na zona do
meretrício de Boston. O clube noturno era circundado por uma extensa área de estacionamento
asfaltada onde as vagas nem eram demarcadas, e não havia mendigos andando pela rua.
Assemelhava-se a qualquer outro restaurante ou bar, exceto quanto a diversas réplicas de
postes totêmicos que flanqueavam a entrada. Ao sair do táxi, Jason já podia ouvir o compasso
da música de rock. Apressaram-se para fugir da chuva e chegaram à entrada.
Do lado de dentro, o estabelecimento parecia muito mais conservador do que o
Cabaret. A primeira coisa que Jason notou foi que os freqüentadores eram quase todos casais,
e não homens bebendo em demasia, como era comum ver junto à pista de dança em Boston. A
única semelhança era a configuração do bar, que também tinha o formato de U, com uma
pequena pista para dançarinos no centro.
– Aqui não há espetáculos de topless – murmurou Carol.
Ofereceram-lhes uma mesa no primeiro plano, longe do bar. Havia um outro plano por
trás deles. Uma garçonete colocou diante de cada um deles um cartão e perguntou o que
desejavam beber.
Depois que foram servidos, Jason perguntou a Carol se ela já tinha avistado o
proprietário do clube. De início, ela não conseguiu localizá-lo; mas passados uns quinze
minutos, pegou no braço de Jason e se inclinou por sobre a mesa para falar baixo.
– Lá está ele. – Ela apontou na direção de um homem jovem, provavelmente nos seus
trinta e poucos anos, vestido com um smoking e gravata vermelha e uma faixa na cintura. O
homem tinha pele azeitonada e cabelo preto abundante.
– Você se recorda do nome dele? Ela sacudiu a cabeça negativamente.
Jason saiu da mesa que ocupava e caminhou em direção ao homem, que tinha uma
fisionomia jovial e agradável. Quando se aproximou, ele sorriu para um cavalheiro sentado
junto ao bar e deu-lhe uns tapinhas nas costas.
– Desculpe-me – disse Jason. – Eu sou o Dr. Jason Howard. De Boston. – O
proprietário voltou-se. Tinha um sorriso neutro.
– Sou Sebastion Frahn – disse ele. – Seja bem-vindo ao Totem.
– Poderia falar com o senhor por um momento? O sorriso do homem desapareceu.
– O que deseja?
– Preciso de um ou dois minutos para explicar.


– Estou terrivelmente ocupado. Quem sabe, mais tarde.
Não estando preparado para um fora tão seco, Jason ficou observando Frahn por uns
momentos, enquanto ele circulava entre os freqüentadores. O sorriso do homem logo havia
voltado.
– Teve sorte? – perguntou Carol quando Jason voltou para a mesa e sentou-se.
– Que nada. O sujeito estava a léguas de distância, nem quis conversar comigo.
– As pessoas têm que ser cautelosas nesse negócio. Deixe-me fazer uma tentativa.
Sem esperar por uma resposta de Jason, ela se levantou e se afastou da mesa que
ocupavam. Jason observou com que graça ela caminhava em direção ao proprietário do clube.
Ela tocou no braço dele e falou-lhe, por breves instantes. Jason viu que o homem assentia com
a cabeça depois olhou na sua direção. Assentiu novamente e afastou-se. Carol voltou à mesa.
– Ele estará aqui em um minuto.
– O que você disse?
– Ele se lembrava de mim – disse Carol simplesmente. Jason ficou se perguntando o
que significava aquilo.
– Ele se lembrava de Hayes?
– Ah, sim – disse Carol. – Não há problema. Dentro de dez minutos Sebastion Frahn
deu uma volta em torno do salão e parou junto à mesa deles.
– Desculpe-me por ter sido tão seco. Eu não sabia que vocês eram amigos.
– Tudo bem – disse Jason. Não sabia certamente o que o homem tinha em mente, mas
ele parecia cordial.
– O que posso fazer por vocês?
– Carol diz que você se lembra do Dr. Hayes. Sebastion voltou-se para Carol.
– Era o homem com quem você estava, na última vez em que estiveram aqui? – indagou
ele.
Carol confirmou com a cabeça.
– Naturalmente que me lembro. Ele era amigo de Arthur Koehler.
– Acha que seria capaz de lembrar o que vocês conversaram? Isso poderia ser
importante.
– Jason trabalhava com Alvin – acrescentou Carol.
– Não tenho absolutamente nenhuma dificuldade de contar-lhe o que conversamos.
Alvin queria pescar salmão.
– Pescar! – exclamou Jason.
– É. Ele disse que queria pegar uns salmões bem grandes, mas que o local de pesca não
deveria ficar muito longe. Eu então lhe disse que fosse a Cedar Falls.
– Foi só isso? – perguntou Jason, sentindo-se invadido pelo desânimo.
– Conversamos sobre o time do Seattle Supersonics durante uns minutos.
– Muito obrigado – disse Jason. – Obrigado pela sua atenção.
– Não há de quê – disse Sebastion, com um sorriso. – Bom, eu vou andando. – Ele
levantou-se, apertou as mãos de ambos e disse-lhes que voltassem sempre. E afastou-se.
– Não posso acreditar – disse Jason. – Toda vez que tenho uma pista, ela se transforma
numa pilhéria. Pescar!
A pedido de Carol, permaneceram no clube ainda por mais meia hora, para apreciar o
show; quando voltavam para o hotel, Jason sentia-se completamente exausto. Pela hora da


Costa Leste, eram já quatro da madrugada de quinta-feira. Jason deitou-se logo, sentindo-se
aliviado ao abrigar-se entre os lençóis. Sentia-se desapontado com os resultados da visita ao
Totem Club, mas ainda lhe restava a Universidade de Washington. Já estava para adormecer
quando ouviu uma leve batida na porta de comunicação. Era Carol. Ela disse que estava
morrendo de fome e não conseguia dormir. Podiam pedir que trouxessem comida ao
apartamento. Sentindo-se na obrigação de ser uma boa companhia, Jason concordou. Pediram
meio champanhe e um prato de salmão defumado.
Carol sentou-se na beira da cama de Jason; usava um robe de veludo cotelê. Pôs-se a
comer salmão e biscoitos, enquanto contava sobre sua infância, vivida no interior de
Bloomington, Indiana. Jason nunca tinha ouvido Carol falar tanto. Ela havia morado numa
propriedade rural e, de manhã, antes de ir para a escola, tinha de ordenhar as vacas. Jason até
podia imaginá-la realizando esse serviço. Ela exalava todo esse frescor sugestivo de tal tipo
de vida. Mas ele tinha dificuldade de conciliar mentalmente a vida que ela levava
anteriormente com o seu tipo de vida atual. Teve vontade de saber como acontecera o desvio
para a trilha errada, mas sentiu receio de perguntar. Além disso, a exaustão tomava-o por
inteiro; por mais que tentasse, não conseguia manter os olhos abertos. Acabou adormecendo e
Carol, depois de cobri-lo com um cobertor, voltou para o seu próprio quarto.


13
Jason acordou com um sobressalto. Olhou o relógio de pulso, que marcava cinco da
manhã. Isto equivalia a oito da manhã em Boston, hora em que habitualmente saía de casa para
ir ao hospital. Abriu as cortinas e viu lá fora o dia claro como cristal. Ao longe, um ferryboat
fazia a travessia do canal de Puget em direção a Seattle, deixando uma esteira faiscante na
superfície da água.
Depois de tomar um banho, Jason bateu à porta de comunicação dos quartos. Não houve
resposta. Bateu novamente. Por fim, abriu a porta, apenas uma fresta, deixando um feixe de luz
brilhante do sol entrar no quarto escuro e frio. Carol ainda dormia a sono solto, abraçada ao
travesseiro. Jason olhou-a por uns momentos. Ela era de uma aparência angelicalmente
adorável. Silenciosamente, ele fechou a porta, de modo a não despertá-la.
Voltou para a cama, e pelo telefone interno pediu café da manhã no quarto: suco de
laranja, café e croissants, para dois. A seguir, telefonou para o GHP e entrou em contato com
Wanamaker.
– Tudo bem por aí?
– Nem tudo – teve de admitir Roger. – Marge Todd teve uma embolia importante esta
noite. Entrou em coma e morreu. Parada respiratória.
– Oh, meu Deus – exclamou Jason.
– Desculpe dar-lhe essa má notícia – disse Roger. – Procure aproveitar sua folga.
– Eu voltarei a telefonar dentro de um dia mais ou menos – disse Jason.
Outra morte. Com exceção de uma jovem que tivera hepatite e recebera alta em boas
condições, os outros pacientes de Jason, segundo lhe parecia, não conseguiriam sair do
hospital, senão mortos. Considerou se deveria viajar de volta a Boston imediatamente. Mas
Roger estava com a razão. Não havia nada que pudesse fazer, e poderia também continuar
investigando o caso Hayes, embora não se sentisse muito otimista quanto a isto.
Duas horas mais tarde, Carol bateu à porta e entrou, com os cabelos ainda molhados do
banho de chuveiro.
– Meu cordial bom-dia – falou ela, em tom alegre. Jason pediu café quente.
– Acho que tivemos sorte – disse ele, apontando para a brilhante claridade da manhã lá
fora.
– Não tenha tanta certeza assim. Aqui o tempo é capaz de mudar muito depressa.
Enquanto Carol tomava o café da manhã, Jason servia-se de mais uma xícara de café.
– Espero que eu não tenha cansado os seus ouvidos ontem à noite – disse Carol.
– Que nada. Desculpe eu ter adormecido.
– Que tal me falar de você, doutor? – disse Carol, passando geléia num croissant. –
Não me falou muito de você. – Ela não mencionou que Hayes lhe havia contado muitas coisas
sobre ele.
– Não há muito que contar.
Carol levantou as sobrancelhas. Ao ver o sorriso dele, ela riu:
– Por um momento até pensei que você estava sério. Jason contou a Carol sobre a
infância que vivera em Los Angeles, seus estudos em Berkeley e na Faculdade de Medicina de
Harvard, a residência médica no Massachusetts General. Sem querer, viu-se descrevendo


Danielle e a terrível noite de novembro em que ela fora morta. Ninguém, nem mesmo Patrick,
o psiquiatra, conseguira fazer Jason falar desse jeito desde a morte de Danielle. Jason passou
mesmo a falar de sua atual depressão por causa do aumento de mortalidade de seus pacientes
e também da notícia que Roger dera nessa manhã, a respeito da morte de Marge Todd.
– Sinto-me lisonjeada por me haver contado isso – disse Carol, com sinceridade. Ela
não esperava por essa franqueza e confiança. – Você passou por muito sofrimento.
– A vida pode ter dessas coisas – disse Jason, com um suspiro. – Não sei por que fui
aborrecer você com tudo isso.
– Não aborreceu não – disse Carol. – Acho que você conseguiu uma adaptação
extraordinária. Deve ter sido difícil mas também muito positivo, você mudar de trabalho e de
ambiente de vida.
– Você acha? – perguntou Jason. Ele não se lembrava de ter dito isto. E não esperava
ser assim tão pessoal com Carol, mas, agora que conseguira falar, sentia-se melhor.
Desfrutando o tempo juntos, já eram dez e meia da manhã quando saíram dos seus
respectivos quartos, trajando roupas próprias para o dia. Jason pediu que o porteiro mandasse
trazer o carro deles até a entrada da frente, e tomaram o elevador para descer ao saguão do
hotel. Confirmando as previsões de Carol, o céu escurecera; caía uma chuva forte quando
saíam do hotel.
Com auxílio de um mapa da Avis e da memória de Carol, saíram em direção à
Faculdade de Medicina da Universidade de Washington. Carol indicou onde ficava o edifício
de pesquisas que Hayes visitara. Ao chegarem à portaria principal, logo foram barrados por
um segurança uniformizado. Eles não possuíam cartões de identificação da Universidade de
Washington.
– Eu sou médico, trabalho em Boston – disse Jason, tirando a carteira para mostrar sua
identidade.
– Escute, não me importa de onde o senhor é. Sem cartão de identificação, não entra. É
muito simples. Se quiser entrar, terá que ir à Administração Central.
Percebendo que era inútil discutir, dirigiram-se à Administração Central. No caminho,
Jason perguntou de que maneira Hayes tinha lidado com o problema da segurança.
– Ele telefonou antes para o amigo dele – disse Carol. – O homem veio encontrar-se
conosco no estacionamento.
A funcionária que os atendeu na Administração Central foi amável e obsequiosa e até
mostrou a Carol um livro anuário com as fotos dos docentes da faculdade para que ela tentasse
identificar o amigo de Hayes. Mas Carol não conseguiu identificá-lo. Porém, munidos agora
de crachás fornecidos pela segurança, voltaram ao edifício de pesquisas.
Carol levou Jason ao quinto andar. O corredor estava cheio de equipamentos de
reposição e as paredes precisavam de pintura nova. Havia um penetrante cheiro de produtos
químicos, parecido com o de formaldeído.
– Aqui é o laboratório – disse Carol, parando junto ao vão de uma porta aberta. Os
nomes assinalados à esquerda da porta: Duncan Sechler, MD, PhD; e Rhett Shannon, MD,
PhD. Conforme Jason poderia imaginar, era o departamento de genética molecular.
– Qual é o nome? – perguntou Jason.
– Não sei – disse Carol, aproximando-se de um técnico jovem e perguntando-lhe se um
ou outro dos dois médicos estava.


– Todos dois estão. No biotério. – Ele apontou por cima dos seus ombros, e depois
virou-se na direção de Carol quando ela passou por ele, de modo a poder vê-la por detrás.
Jason ficou surpreso com a sem-cerimônia do rapaz.
A porta que dava para o biotério tinha um grande painel de vidro. Dentro estavam dois
homens de avental branco, ocupados em tirar sangue de um macaco.
– É aquele alto, de cabelo grisalho – disse Carol, apontando. Jason chegou mais perto
da vidraça. O homem que Carol indicara era elegante, tinha um aspecto atlético e
aproximadamente a idade de Jason. O cabelo tinha uma cor prateada uniforme que lhe dava
uma aparência especialmente distinta. O outro homem, ao contrário, era quase calvo. O que
lhe restava de cabelo estava penteado para o alto da cabeça, na vã tentativa de encobrir a
calva.
– Será que ele se lembra de você?
– Talvez. Só cheguei a vê-lo por uns momentos, porque logo em seguida fui ao
departamento de psicologia.
Esperaram até que os dois médicos terminaram a tarefa e saíram do biotério. O homem
alto e de cabelos grisalhos vinha trazendo o tubo com o sangue.
– Por favor – disse Jason. – Poderia ocupar uns minutos do seu tempo?
O homem olhou para o crachá de Jason.
– O senhor é representante de laboratório?
– Felizmente não. – Jason sorriu. – Sou o Dr. Jason Howard, e esta é a Srta. Carol
Donner.
– Em que posso ajudá-los?
– Depois nós falamos, Duncan – disse o homem calvo, interrompendo.
– Tudo bem – disse Duncan. – Vou processar o sangue imediatamente. – Depois,
voltando-se para Jason: – Desculpe.
– Absolutamente! Eu precisava falar-lhe sobre um velho conhecido nosso.
– Ah, sim?
– Alvin Hayes. Lembra-se de que ele veio visitá-lo aqui?
– Naturalmente – disse Duncan, voltando-se para Carol. – E não era você que estava
com ele?
Carol fez um sinal afirmativo com a cabeça.
– Você tem boa memória.
– Fiquei chocado ao saber da morte dele. Que perda!
– Carol disse que Hayes tinha vindo aqui lhe pedir algo importante – disse Jason. –
Poderia me dizer de que se tratava?
Pareceu que Duncan se sentiu perturbado, porque olhou nervosamente em torno de si,
para ver se não havia técnicos por perto.
– Não estou certo de querer falar sobre esse assunto.
– Lamento ouvir isso. Eram negócios, ou era um assunto pessoal?
– Talvez seja melhor vir ao meu gabinete.
Jason teve dificuldade de conter sua excitação. Parecia que finalmente havia topado
com algo significativo.
Depois de entrarem no gabinete, Duncan fechou a porta. Havia duas cadeiras com
encosto metálico. Removendo de cima delas umas pilhas de revistas científicas, fez um sinal


para que Jason e Carol sentassem.
– Respondendo à sua pergunta – começou ele –, Hayes veio me procurar por motivos
pessoais, não de negócios.
– Viajamos mais de cinco mil quilômetros só para falar com você – disse Jason. Não
estava disposto a desistir com tanta facilidade, mas de fato a situação não parecia animadora.
– Se vocês tivessem telefonado, eu poderia tê-los poupado dessa viagem. Parte da
amistosidade de Duncan desaparecera de sua voz.
– Talvez eu deva lhe dizer por que estamos tão interessados – disse Jason. Ele narrou o
mistério da possível descoberta realizada por Hayes; falou também de suas inúteis tentativas
de descobrir o que poderia ter sido.
– Você pensa que Hayes me procurou para me pedir que o auxiliasse nas pesquisas
dele? – perguntou Duncan.
– Exatamente.
Duncan deu uma risada curta e desagradável. Olhou Jason com o canto dos olhos.
– Você não é do departamento de narcóticos, ou será que é?
Jason sentiu-se confuso.
– Está bem, vou lhe dizer o que Hayes queria. Ele queria comprar maconha. Disse que
tinha pavor de carregar erva consigo na viagem de avião para cá, e por isso não trouxera nem
um “baseado”. Para lhe fazer um favor, coloquei-o em contato com um sujeito no campus
daqui.
Jason sentiu-se aturdido. Sua excitação diminuiu, como ar vazando de um balão,
deixando-o murcho.
– Desculpe ter tomado o seu tempo.
– Não há de quê.
Carol e Jason saíram do edifício de pesquisas, depois de entregarem seus crachás de
visitantes ao guarda de segurança. Carol sorria de modo dissimulado.
– Não é tão engraçado assim, você sabe disso – disse Jason assim que entraram no
carro.
– Está errado – disse Carol. – Você é que não conseguiu ver a coisa direito.
– Talvez fosse bom a gente voltar para casa – disse ele, num tom taciturno.
– Ah, não! Você me arrastou até aqui, agora não vamos embora sem que conheça as
montanhas. É pouco tempo de viagem de carro.
– Deixe-me pensar – disse-lhe Jason, desalentado.
Carol venceu. Voltaram ao hotel e apanharam seus pertences; antes que Jason se
apercebesse, estavam já numa freeway saindo da cidade. Ela insistiu em dirigir. Logo os
subúrbios cederam lugar à floresta verde e úmida, e os montes ondulados se transformaram em
montanhas. A chuva parou, e Jason pôde ver, a distância, os picos cobertos de neve. O cenário
era tão lindo que Jason se esqueceu de seu desapontamento.
– Aqui é ainda mais lindo – disse Carol, quando deixavam a freeway, dirigindo-se a
Cedar Falls. Ela agora se lembrava da estrada e sentiu-se contente por poder mostrar a
paisagem. Tomando uma estrada secundária, foi dirigindo o carro ao longo do Cedar River.
A natureza ali mais parecia cenário de um conto de fadas, com florestas densas,
penhascos imensos, montanhas distantes, rios impetuosos. Como já se aproximava o


crepúsculo, Carol desviou-se da estrada e entrou num apertado caminho pavimentado com
pedras, estacionando diante de uma pitoresca pousada nas montanhas, construída como uma
enorme cabana de troncos, de cinco andares. De uma enorme chaminé de pedras brutas saía
fumaça em preguiçosas espirais. Por sobre o portal de entrada havia um letreiro: salmon inn.
– Foi aqui que você e Alvin ficaram? – perguntou Jason, olhando pelo pára-brisa.
Havia uma extensa varanda com móveis rústicos de pinho.
– Aqui mesmo. – Carol virou-se para apanhar sua bolsa de viagem no assento de trás.
Desembarcaram. O ar estava frio, e havia um cheiro penetrante de fumaça de lenha.
Jason ouviu ao longe o ruído da água corrente.
– O rio está do outro lado da pousada – disse Carol, subindo os degraus da entrada. –
Logo um pouco acima há uma cachoeira maravilhosa. Você vai vê-la amanhã.
Jason seguia Carol, e se indagou o que afinal estava fazendo. A viagem fora um
equívoco; ele devia era voltar a Boston para cuidar de seus pacientes tão gravemente
enfermos.
E, no entanto, ali estava ele, nas Cascade Mountains, com uma garota que não podia
deixar de admirar.
O interior da pousada era, em todos os detalhes, tão encantador como a parte externa. O
salão central era grande e se distribuía em dois andares, onde sobressaía uma lareira
gigantesca. Era mobiliado com móveis estofados, cabeças de animais, e no chão havia tapetes
de peles de ursos. Havia vários hóspedes sentados diante da lareira, lendo, e uma família
jogava mexe-mexe. Alguns fregueses viraram-se para ver Jason e Carol quando estes se
aproximaram do balcão de recepção.
– Vocês fizeram reserva? – perguntou o homem que atendia atrás do balcão.
Jason achou que o homem devia estar pilheriando. A pousada era imensa, localizada em
região bastante erma e remota, mal entrava o mês de novembro, e não era um fim de semana.
Não dava para supor que a demanda fosse grande.
– Não fizemos reserva – disse Carol. – Algum problema?
– Deixe ver – disse o homem, inclinado sobre o livro de registro de hóspedes.
– Quantos quartos há no hotel? – perguntou Jason, ainda incrédulo.
– Quarenta e dois quartos e seis suítes – disse o recepcionista, sem levantar os olhos.
– Está havendo alguma convenção por aqui? O homem riu.
– Está sempre cheio nesta época do ano. É a corrida do salmão.
Jason tinha ouvido falar no salmão do Pacífico e no misterioso retorno desse peixe aos
locais de água doce onde ocorrera a desova e a procriação. Mas pensava que esse fenômeno
ocorria na primavera.
– Vocês estão com sorte – disse o recepcionista. – Temos um quarto, mas poderão ter de
liberá-lo amanhã à noite. Quantas noites planejam ficar?
Carol olhou para Jason. Jason sentiu-se invadido por uma grande angústia – só um
quarto! Não sabia o que dizer. Começou a gaguejar.
– Três – disse Carol.
– Muito bem. E como vão pagar? Fez-se uma pausa.
– Cartão de crédito – disse Jason, procurando sua carteira no bolso. Não conseguia
acreditar no que estava acontecendo.
Enquanto acompanhavam o camareiro no corredor do segundo andar, Jason ia


conjeturando como se havia metido nessa situação. Por mais que admirasse a boa aparência de
Carol, não se sentia preparado para se envolver com uma bailarina de strip-tease que era
capaz de sabe Deus que coisas.
– Aqui vocês têm uma vista maravilhosa – disse o camareiro. Jason entrou no aposento.
Mas seus olhos imediatamente passaram a examinar as camas, não as janelas. Sentiu alívio ao
ver que eram separadas.
Depois que o rapaz saiu, Jason afinal aproximou-se da janela para admirar a paisagem
fascinante. O Cedar River, que naquele ponto se alargava formando algo como um pequeno
lago, era margeado por altas coníferas envoltas na luminosidade púrpura-escura da luz do
entardecer. Logo mais abaixo havia um relvado, que em declive se prolongava até as margens
do rio. Avançando para dentro do rio havia um labirinto de molhes, utilizados para a
amarração de vinte a trinta botes a remo. Sobre estaleiros, fora da água havia canoas. Quatro
grandes botes de borracha com motores de popa estavam amarrados na extremidade de um
molhe. Jason concluiu que a correnteza do rio era forte, apesar da sua aparência plácida, pois
todos os quatro botes de borracha estavam com popas voltadas para jusante e suas amarras
retesadas.
– Bom, o que acha? – disse Carol batendo palmas. – Não é aconchegante?
Nas paredes do quarto havia papel de parede com motivos florais. O soalho era de
largas tábuas de pinho, com tapetes rústicos. As camas tinham cobertores de uma padronagem
que semelhava colcha de retalhos.
– É maravilhoso – disse Jason. Ele olhou dentro do banheiro, procurando ver se havia
roupões de banho. – Você parece guia de turismo. E o que faremos a seguir?
– Sou a favor de um jantar, imediatamente. Estou morrendo de fome. E acho que o
restaurante serve jantar só até as sete. Aqui as pessoas acordam cedo.
O restaurante tinha uma parede curva, envidraçada, com vista para o rio. No centro da
parede havia portas duplas que davam para uma espaçosa varanda. Jason conjeturou que no
verão usavam a varanda para jantar. Havia escadarias que davam da varanda para o gramado.
Nos molhes as luzes se acenderam, iluminando a água.
Mais ou menos metade das mesas do salão do restaurante se achavam ocupadas por
hóspedes. A maioria das pessoas já estava no final da refeição. Jason teve a sensação de que
todos pararam de falar no momento em que ele e Carol apareceram.
– Por que será que me parece estarmos em exposição? – murmurou Jason.
– Porque você está angustiado ao pensar que vai dormir no mesmo quarto com uma
jovem mulher que mal conhece – sussurrou Carol. – Acho que se sente na defensiva e com um
pouco de culpa e insegurança pelo que se espera de você.
Jason sentiu cair-lhe o queixo. Tentou olhar dentro dos olhos quentes de Carol para
compreender o que neles se passava. E sentiu que ficava ruborizado. Como, afinal de contas,
podia ser tão perspicaz uma garota que ganhava a vida dançando meio nua? Jason sempre se
orgulhava de sua capacidade de avaliar pessoas; era esse, em resumo, o seu ofício. Como
médico, tinha de ter uma percepção da dinâmica interior de seus pacientes. E, no entanto, por
que sentia que em relação a Carol havia algo que não se encaixava?
Olhando para o rosto ruborizado de Jason, Carol riu:
– Por que você simplesmente não relaxa e aproveita? Não precisa se apavorar, doutor,
certamente não vou mordê-lo.


– Está bem – disse Jason. – Vou ficar sossegado.
Para o jantar havia salmão, que era oferecido em variedades muito tentadoras. Depois
de muito escolherem pediram salmão assado ao forno em massa folhada. Para completar,
pediram vinho chardonnay do estado de Washington, que Jason achou surpreendentemente
bom. A certa altura ele se surpreendeu rindo alto. Fazia muito tempo não se sentia tão livre.
Foi então que ambos se aperceberam de que eram os únicos hóspedes ainda no salão de
jantar.
Mais tarde, já noite, deitado na cama, olhando para o teto às escuras, sentiu-se
novamente confuso. Tinha sido mesmo uma comédia os dois tentando cobrir os corpos com
toalhas, tirando a sorte numa moeda para decidir quem usava primeiro o banheiro, e saindo da
cama para apagar a luz. Jason não se lembrava de alguma vez na vida ter se sentido tão
consciente do próprio corpo. Rolava na cama sem poder dormir. No escuro dava para
adivinhar os contornos do corpo de Carol. Ela estava deitada de lado. Jason podia ouvir-lhe o
débil sussurro da respiração ritmada, contra o som de fundo da cachoeira distante. A moça
evidentemente adormecera. Jason invejou nela essa franca aceitação de si mesma e o sono
tranqüilo. O que o deixava confuso, porém, não eram as incoerências de personalidade de
Carol, e sim, mais propriamente, o fato de que ele estava gostando da situação. E era Carol
quem fazia isso acontecer.


14
O Tempo continuava sendo-lhe favorável. Ao abrirem, pela manhã, as cortinas do
quarto, o rio resplandecia com o brilho do sol em um milhão de pontos cintilantes. Assim que
terminaram de tomar o café da manhã, Carol anunciou a sua decisão: iam sair para um passeio
a pé.
Providos de lanches fornecidos pelo hotel, caminharam pela beira do Cedar River
acima, por uma trilha bem demarcada, viva com a presença de pássaros e bichos da floresta.
Mas ou menos meio quilômetro acima da pousada encontraram a cachoeira que Carol
mencionara. A queda-d’água possuía uma série de degraus, formados por lajes de pedras,
cada um deles com cerca de metro e meio de altura. Encontraram diversos outros turistas
sobre uma plataforma de madeira ali construída, e que observavam em silêncio respeitoso a
água fluindo pela cascata. Logo abaixo do ponto onde estavam, um peixe magnífico,
ostentando as cores do arco-íris, de uns oitenta centímetros de comprimento, irrompeu da
superfície revolta da água e, desafiando a gravidade, saltou por sobre a laje do primeiro
degrau. Dentro de segundos, já dava outro salto, ultrapassando por larga margem a altura da
segunda laje.
– Meu Deus! – exclamou Jason. Ele se lembrou de haver lido que os salmões são
capazes de vencer as corredeiras e correntezas dos rios, mas não tinha idéia de que pudessem
transpor cachoeiras tão altas. Jason e Carol permaneciam como que hipnotizados ao verem
diversos salmões saltando e vencendo as quedas-d’água. Era mesmo um espetáculo
deslumbrante ver o vigor físico dos peixes. A necessidade de procriar, determinada
geneticamente, constituía uma força poderosa.
– É inacreditável – falou ele, ao ver um salmão especialmente grande que iniciava a
corrida contra a correnteza num ponto mais estreito.
– Alvin também ficou fascinado – disse Carol.
Jason bem podia imaginar que sim, especialmente porque Hayes se interessava pelos
hormônios do desenvolvimento e do crescimento.
– Venha – falou Carol, pegando a mão de Jason. – Há mais coisas para ver.
Continuaram caminhando pela trilha, margem do rio acima, por mais meio quilômetro,
passando por dentro de uma densa floresta. Quando a trilha foi dar na margem do rio
novamente, o Cedar apresentava ali um amplo remanso, onde a água tinha a placidez de um
pequeno lago, como aquele que se localizava diante do Salmon Inn. Tinha meio quilômetro de
largura e um quilômetro de comprimento. Na superfície da água, pescadores, aqui e ali,
tentavam a sorte.
Uma cabana muito semelhante a uma miniatura do Salmon Inn fora construída sobre uma
plataforma de grossos troncos de pinheiros. Em frente à cabana, à beira da água, havia um
pequeno molhe com meia dúzia de botes a remo. Carol conduziu Jason pelo estreito caminho
de lajes de pedra que dava acesso à porta da frente da cabana.
O local era uma concessão de pesca, administrada pelo hotel Salmon Inn. Havia, à
direita, um longo balcão com frente envidraçada. Tomava conta do estabelecimento um homem
barbudo de camisa vermelha de lã xadrez, suspensórios vermelhos, calças desbotadas e botas
de borracha. Jason teve a impressão de que o homem devia ter já seus quase setenta anos, e


sua imagem lembrava muito a de um Papai Noel. Por trás do homem idoso, ao longo da
parede, havia um enorme estoque de varas de pescar. Carol apresentou Jason ao velho, cujo
nome era Stooky Griffiths, dizendo que Alvin gostara de conversar com Stooky enquanto
pescava.
– Oi – disse de repente Carol. – Que tal você tentar a sorte pescando algum salmão?
– Eu não – disse Jason. Caçar e pescar nunca lhe despertaram interesse.
– Acho que vou tentar. Venha, faça-me companhia.
– Vá você – insistiu Jason. – Eu me divirto por aqui mesmo.
– Está bem. – Ela voltou-se para Stooky e providenciou um caniço com anzol e iscas;
depois novamente tentou convencer Jason a acompanhá-la, mas ele se negou:
– Foi aqui que você e Alvin vieram pescar? – perguntou ele, olhando pela janela em
direção ao rio.
– Não – disse Carol, juntando seus apetrechos de pesca. – Alvin era como você. Não
me acompanhou. Mas eu peguei um peixão. Bem perto do molhe.
– Alvin não pescava mesmo? – perguntou Jason, surpreso.
– Não – disse Carol. – Ele só ficava observando os peixes.
– Mas me parece que Alvin tinha dito a Sebastion Frahn que queria pescar.
– Que posso dizer? Depois que chegamos, Alvin se contentou em andar por aqui e
observar. Sabe como é, o cientista.
Jason balançou a cabeça, confuso.
– Estarei no molhe – disse Carol, alegre..– Se você mudar de idéia, vá até lá. É
divertido!
Jason viu a moça descer pelo caminho de lajes de pedra, ao mesmo tempo que se
perguntava por que razão Alvin haveria de fazer indagações tão complexas sobre pescaria e
depois nunca se dispor nem mesmo a jogar um anzol. Era estranho.
Dois homens entraram na cabana e com Stooky conseguiram caniços, anzóis e iscas, e
também um bote. Jason ficou do lado de fora, na varanda. Havia ali várias cadeiras de
balanço. Stooky pendurara no beirai do telhado um comedouro para pássaros, e dezenas de
passarinhos voavam em torno. Jason permaneceu olhando por certo tempo, depois saiu a
caminhar em direção ao lugar onde Carol estava. A água era de uma limpidez cristalina; dava
para ver as pedras e as folhas no fundo. De repente, um enorme salmão disparou como uma
flecha, saindo da água mais profunda, cor de esmeralda escura, e indo para dentro do molhe,
em busca de uma área rasa e sombreada, uns vinte metros mais além.
Olhando com atenção a trajetória do peixe, Jason notou uma agitação na superfície da
água. Levado pela curiosidade, caminhou ao longo da margem do rio. Ao chegar perto, viu um
outro salmão grande, deitado de lado, em água rasa de meio metro, mal conseguindo mover a
cauda. Com uma vara, Jason tentou empurrá-lo para águas mais profundas, mas de nada
adiantou. O peixe, evidentemente, estava prestes a morrer. Poucos metros adiante, avistou
outro salmão deitado imóvel, em água rasa, e, ainda mais perto da margem, um peixe morto
sendo comido por um pássaro grande.
Jason voltou andando pelo caminho de lajes de pedra. Stooky havia saído da cabana e
estava sentado numa das cadeiras de balanço, com o cachimbo entre os dentes. Inclinando-se
sobre a balaustrada da varanda, Jason perguntou sobre os peixes morrendo, imaginando se não
haveria algum problema de poluição mais acima do rio.


– Não – disse Stooky. O homem soltou várias baforadas de fumaça de seu cachimbo
muito usado. – Aqui não tem poluição. Esses peixes acabaram de desovar, e agora é a hora de
morrerem.
– Ah, sim – disse Jason, subitamente lembrado de haver lido sobre o ciclo vital do
salmão. Esse peixe vai além do seu limite físico para conseguir retornar ao local em que foi
procriado, mas depois que põe seus ovos e os fertiliza, morre. Ninguém sabia exatamente por
quê. Havia teorias concernentes a problemas de passar da água salgada para a água doce, mas
ninguém sabia ao certo. Era um dos mistérios da natureza.
Jason olhou em direção a Carol, lá embaixo. Ela estava ocupada em tentar arremessar a
linha para longe do píer. Voltando-se para Stooky, Jason perguntou:
– O senhor por acaso se lembra de ter conversado com um médico chamado Alvin
Hayes?
– Não.
– Ele era mais ou menos da minha altura – continuou Jason. – Usava cabelo comprido.
Pele clara.
– Eu vejo tanta gente…
– Naturalmente que sim – disse Jason. – Mas esse homem de quem estou falando estava
com aquela moça. – Ele apontou em direção a Carol. Jason achava que Stooky não devia ver
muitas garotas como Carol Donner.
– Aquela ali no píer?
– Exato. Era ela quem estava com ele.
Da boca de Stooky saía fumaça em curtas baforadas. Suas pálpebras estavam quase
fechadas.
– Esse camarada de quem você está falando, ele não vinha de Boston?
Jason fez um sinal afirmativo.
– Eu me lembro do sujeito – disse Stooky. – Mas ele não tinha jeito de doutor.
– Ele fazia pesquisas.
– Talvez isso explique. Ele era mesmo esquisito. E me pagou cem dólares para eu lhe
conseguir 25 cabeças de salmão.
– Só as cabeças?
– Sim. E me deu o número do telefone dele em Boston. Disse para eu fazer ligação a
cobrar quando conseguisse as tais cabeças.
– Então ele voltou aqui para buscá-las? – perguntou Jason, lembrando-se de que Hayes
e Carol tinham feito duas viagens.
– Sim. Pediu que eu as limpasse bem e embalasse em gelo.
– Por que isso levou tanto tempo? – perguntou Jason. – Com tanto peixe disponível,
devia dar para conseguir 25 cabeças de salmão numa única tarde.
– É que ele só queria determinados salmões – disse Stooky. – Eles tinham que ter
acabado de desovar; e salmão na desova não morde a isca. É preciso apanhá-lo com rede.
Aquelas pessoas que estão pescando lá adiante estão pegando trutas.
– Esses salmões são alguma espécie particular?
– Não. Ele só fazia questão que tivessem acabado de desovar.
– E ele disse por que queria essas cabeças?
– Não, nem eu perguntei – disse Stooky. – Ele estava pagando e eu achei que isso era


assunto dele.
– Quer dizer, só as cabeças dos peixes, nada mais.
– Só as cabeças dos peixes.
Frustrado e confuso, Jason saiu da varanda. Parecia absurda a idéia de que Hayes
viajara cinco mil quilômetros em busca de cabeças de peixe e maconha.
Carol avistou Jason perto do píer e fez sinal para que ele fosse lhe fazer companhia.
– Você precisa experimentar, Jason – falou ela. – Quase peguei um salmão.
– Salmões não mordem a isca por aqui – disse Jason.
– Deve ter sido uma truta.
Carol pareceu desapontada.
Jason contemplou o semblante dela, tão gracioso, com as maçãs do rosto salientes. Se a
premissa inicial estava correta, as cabeças de salmão tinham de ter correlação com as
tentativas de Hayes de produzir um anticorpo monoclonal. Mas de que modo isso poderia ser
benéfico para a beleza de Carol, conforme Hayes havia dito a ela? Não fazia sentido.
– Acho que não importa se é truta ou salmão – disse Carol, voltando sua atenção
novamente para a sua pescaria.
– Estou me divertindo.
Um gavião voando em círculo mergulhou em direção à área de água rasa e carregou em
suas garras um dos salmões moribundos, mas o peixe era grande demais; a ave soltou-o e
ruidosamente bateu asas ganhando altura. Jason ainda pôde ver o salmão parar de se debater
na água e morrer.
– Peguei um! – gritou Carol, vendo seu caniço se arquear.
A agitação da pescaria desanuviou a mente de Jason. Ele ajudou Carol a trazer para
terra uma truta de bom tamanho – um lindo peixe com olhos pretos brilhantes. Jason sentiu
pena do bicho. Depois de conseguir tirar o anzol da mandíbula do peixe, disse a Carol que o
jogasse de volta à água. Ela o largou na água, e o peixe se foi como um relâmpago.
Para tomarem o lanche, caminharam ao longo da margem do rio, que ali era mais largo,
e chegaram a um promontório rochoso. Enquanto comiam, podiam ver não somente toda a
extensão da superfície do rio, mas também os picos cobertos de neve das Cascades. Era uma
paisagem deslumbrante.
Já começava a entardecer quando iniciaram a caminhada de volta ao Salmon Inn.
Quando passavam perto da cabana, viram outro salmão grande a debater-se em agonia. O
peixe estava deitado de lado, deixando visível o abdome branco reluzente.
– Que tristeza – disse Carol, pegando com força no braço de Jason. – Por que eles têm
que morrer?
Jason não tinha nenhuma resposta. O velho clichê de que a natureza é sábia passou-lhe
pela mente, mas ele nada falou. Durante alguns tempos ficaram a contemplar o salmão, até
pouco antes um animal magnífico; já agora se aproximavam dele alguns peixes menores,
apressados em comer-lhe as carnes ainda vivas.
– Ui – exclamou Carol, dando um puxão no braço de Jason. Continuaram a andar. Para
mudar de assunto, Carol começou a falar de uma outra diversão que o hotel tinha a oferecer:
descer as corredeiras em jangada. Mas Jason não ouvia. A horrível imagem dos pequenos
predadores a comer o corpo do peixe maior e moribundo desencadeara o surgimento de uma
idéia na sua mente. De súbito, como uma revelação, teve a sensação de haver atinado com o


que Hayes havia descoberto. Não era irônico – era terrificante.
A cor sumiu do rosto de Jason, ele parou de caminhar.
– O que é que há? – perguntou Carol.
Jason engoliu em seco. Seus olhos fitavam fixamente, sem piscar.
– Jason, o que é?
– Temos que voltar para Boston – disse ele apressadamente. Pôs-se a andar novamente,
em passos rápidos, praticamente arrastando Carol consigo.
– Do que você está falando? – protestou ela. Ele não respondeu.
– Jason! Que é que está acontecendo? – Ela puxou-o pelo braço para que parasse.
– Desculpe – falou ele, como que despertando de um transe. – De repente me veio a
idéia de qual poderia ter sido a descoberta de Alvin. Temos que voltar.
– Você quer dizer, voltar hoje à noite?
– Agora mesmo, vamos embora.
– Ei, espere um minuto. Não haverá vôos para Boston hoje à noite. Lá são três horas
mais tarde. Podemos ficar e partir amanhã cedo, se é o que deseja.
Jason não respondeu.
– Pelo menos podemos jantar – acrescentou Carol, irritada.
Jason deixou que ela o acalmasse. Afinal de contas, quem sabe?, eu posso estar errado,
pensou ele. Carol queria discutir a questão, mas Jason lhe disse que ela não compreenderia.
– Você e este seu jeito condescendente.
– Desculpe. Eu lhe contarei quando tiver certeza. Depois de já haver tomado banho e
mudado de roupa,
Jason deu-se conta de que Carol tinha razão. Se tivesse ido de carro até Seattle,
chegaria ao aeroporto por volta de meia-noite, pela hora de Boston. E não haveria nenhum vôo
até de manhã.
Ao entrarem no salão do restaurante, foram conduzidos até uma mesa localizada
diretamente diante das portas que davam para a varanda. Jason ofereceu a Carol um lugar de
frente para as portas, dizendo-lhe que ela merecia a vista. Ao começarem a examinar o
cardápio, ele lhe pediu desculpas por ter agido com tanta precipitação e reconheceu que ela
tinha toda a razão em não querer partir imediatamente.
– Estou sensibilizada por você admitir isso – disse carol.
Para variar, pediram trutas em vez de salmão, e em lugar do vinho produzido no estado
de Washington, pediram um chardonnay Napa Valley. Lá fora, o entardecer se transformava
em noite, e se acenderam as luzes junto ao atraca-douro dos barcos.
Jason teve dificuldade de se concentrar no jantar. Começava a compreender que,
estando correta a sua teoria, Hayes tinha sido assassinado, e Helene, vítima de violência
perpetrada não aleatoriamente. E se Hayes dissera a verdade e alguém estava se utilizando de
sua descoberta acidental e terrificante, o resultado poderia ser muito pior do que qualquer
epidemia.
Enquanto a mente de Jason fervilhava agitada, Carol tentava conduzir uma conversação,
logo percebendo no entanto que ele estava distante; por sobre a mesa, pegou no braço dele.
– Você não está comendo – falou ela.
Jason olhou com uma expressão ausente para a mão da moça no seu braço, depois para
o prato e, afinal, para ela.


– Estou preocupado, desculpe.
– Não tem importância. Se você não está com fome, talvez devêssemos ir embora e
tentar conseguir um vôo para Boston pela manhã.
– Podemos esperar até você terminar de comer – disse Jason.
Carol pôs o seu guardanapo sobre a mesa.
– Já comi mais do que o suficiente, obrigada. Jason olhou em volta, à procura do
garçom. Seus olhos percorreram o salão, e então pararam. Fixaram-se num homem que
acabara de entrar no recinto e parara junto ao maitre. O homem esquadrinhava com o olhar o
ambiente todo, observando mesa por mesa. Vestia um terno azul-escuro e camisa branca com
gola aberta. Mesmo a distância, Jason pôde perceber que o homem usava um pesado cordão
de ouro no pescoço. Dava para ver no cordão de ouro os reflexos das luzes do salão.
Jason observou-o atentamente. Pareceu-lhe que o conhecia, mas não saberia dizer de
onde. Era hispânico, tinha cabelos pretos e pele morena escura. Tinha a aparência de um
próspero homem de negócios. De súbito, Jason lembrou. Esse rosto, ele o vira naquela noite
fatídica da morte de Hayes. Era esse o homem do lado de fora do restaurante e também do
lado de fora da sala de urgências do Massachusetts General Hospital.
Foi bem nesse momento que o homem deu com os olhos em Jason, e este sentiu de
repente um frio percorrer-lhe a espinha. Era evidente que o homem reconhecera Jason, porque
imediatamente encaminhou-se em direção à sua mesa, a mão direita descontraidamente enfiada
no bolso do paletó. Como acabara de se lembrar do assassinato de Helene Brennquivist, Jason
sentiu-se em pânico. A intuição lhe dizia o que estava para acontecer, mas ele não conseguia
se mover. Tudo que conseguiu fazer foi olhar para Carol. Quis gritar e mandar que ela saísse
correndo, mas não conseguiu. Sentiu-se paralisado. Pelo canto do olho, viu o homem contornar
a mesa vizinha.
– Jason! – exclamou Carol, inclinando a cabeça para o lado.
O homem estava a apenas alguns passos de distância. Jason viu quando ele tirou a mão
do bolso, e viu o brilho metálico quando a mão ainda tentou encobrir a arma. A visão da arma
finalmente impeliu Jason à ação. Numa brusca explosão de atividade, arrancou a toalha da
mesa, atirando ao chão os pratos, copos e talheres. Com um grito, Carol levantou-se.
Jason atacou o homem jogando-lhe sobre a cabeça a toalha da mesa, e empurrou-o para
trás atirando-o para cima de uma mesa próxima, onde o sujeito se estatelou em meio aos cacos
dos copos e pratos. As pessoas na mesa atingida começaram a gritar e tentaram fugir, mas
diversas delas se embaraçaram nas cadeiras caídas no chão.
Em meio à confusão, Jason agarrou Carol pela mão e puxou-a através das portas até a
varanda. Tendo conseguido romper com a paralisia provocada pelo medo, Jason era agora um
ímpeto só. Ele sabia quem era esse homem de negócios com aspecto hispânico: o assassino
que Hayes afirmara estar no seu encalço. Sabia que os próximos alvos do pistoleiro eram
Carol e ele próprio, Jason.
Puxou Carol, obrigando-a a descer os degraus da varanda, com a intenção de contornar
o hotel e chegar ao estacionamento. Mas aí percebeu que nunca iriam conseguir chegar lá. Sua
possibilidade de escapar seria maior se corressem na direção de um dos botes amarrados ao
píer.
– Jason! – gritou Carol quando ele mudou de direção e arrastou-a pelo declive do
gramado. – Qual é o problema?


Através deles, Jason ouviu as portas do restaurante se abrindo com estrondo, e concluiu
que o homem vinha em sua perseguição.
Ao chegarem ao píer, Carol tentou parar.
– Venha, que diabo! – gritou Jason entre dentes. Olhando para trás, em direção ao hotel,
viu um vulto correndo para a balaustrada da varanda e depois escada abaixo.
Carol tentou soltar-se da mão de Jason, mas este segurou-lhe o pulso com mais força e
impeliu-a para diante. Avançando aos tropeções, chegaram correndo à extremidade do píer,
passando pelos botes a remos. Jason gritou para que Carol o ajudasse a soltar as amarras de
três dos botes de borracha e afastá-los para longe. Em instantes desatracaram os botes, que
foram sendo levados pela correnteza do rio no instante em que o perseguidor chegava ao píer.
Jason ajudou Carol a entrar no quarto bote e embarcou em seguida, impelindo-o com o pé para
longe do atracadouro. Assim saíram levados pela correnteza da água rio abaixo, inicialmente
devagar, mas depois ganhando mais velocidade. Jason forçou Carol a deitar-se no fundo do
barco, cobrindo-a com o próprio corpo.
Um estampido de intensidade inocente seguiu-se de um impacto surdo em algum ponto
do bote. Quase simultaneamente, ouviu-se o ruído de ar escapando. Jason gemeu. O sujeito
tentava alvejá-los com uma pistola aparelhada com silenciador. Ouviu-se outro estampido,
acompanhado de um zunido de bala ricocheteando no motor de popa, e um outro tiro provocou
um som abafado ao atingir a superfície da água.
Para seu grande alívio, Jason descobriu que o bote era compartimentado. Embora uma
bala esvaziasse uma seção, ele não afundaria. Houve mais alguns tiros e outros impactos de
balas perto do bote, depois Jason ouviu um estrondo de madeira contra o atracadouro.
Levantou a cabeça, cuidadosamente, e olhou para trás. O homem empurrava uma das canoas
de cima do estaleiro para dentro da água.
Novamente Jason sentiu-se tomado pelo medo – o homem podia remar com velocidade
bem maior do que aquela simples deriva do bote de borracha em que estavam. A única chance
de escaparem era dar partida no motor de popa de modelo antigo, provido de corda, a qual
tinha de ser puxada. Jason mudou a alavanca para a posição “partida” e deu um puxão na
corda. O motor nem mesmo girou. O pistoleiro já havia embarcado na canoa e vinha na
direção deles. Jason puxou a corda novamente: nada. Carol levantou a cabeça e falou,
nervosa:
– Ele está chegando mais perto.
Nos quinze segundos que se seguiram, Jason puxou freneticamente, inúmeras vezes, a
corda de partida do motor. Já dava para ver a silhueta da canoa se aproximando
silenciosamente sobre a água. Jason tornou a verificar se a alavanca estava na posição de
“partida”, depois tentou novamente, sem conseguir nada. Seus olhos examinaram o tanque de
gasolina, e ele rogou aos céus que pelo menos estivesse cheio. Pareceu que a tampa de cor
azul do tanque estava frouxa; apertou-a. Bem do lado da tampa havia um botão, que supôs
destinar-se a aumentar a pressão do tanque. Pressionou-o uma dúzia de vezes, notando que
realmente a pressão se tornava cada vez maior, dificultando progressivamente o acionamento
do botão. Olhando de novo por cima do bote, viu a canoa quase a ponto de abordá-los.
Agarrando novamente a corda de partida do motor, Jason puxou-a com toda a força. O
motor rugiu a toda potência. Jason moveu a alavanca empurrando-a para “ré”, pois até então o
bote estava sendo levado de popa na correnteza do rio. Acionou o acelerador para a frente e


jogou-se no fundo do bote, segurando Carol por debaixo de si mesmo. Conforme esperava,
houve alguns disparos de pistola, dois deles atingindo o bote de borracha. Quando teve
coragem de olhar novamente, viu que aumentava a distância da canoa. Na escuridão, mal
conseguia divisá-la.
– Fique deitada – ordenou ele a Carol, enquanto verificava a extensão dos danos. Uma
seção do lado direito da proa estava murcha, e o mesmo acontecia com um parte da borda
esquerda. Quanto ao mais, o bote estava intacto.
Voltando ao motor de popa, Jason diminuiu o acelerador, passou o motor para “avante”,
angulou a cana de leme de modo que a popa ficasse voltada para jusante, e aproou o bote para
o meio do rio. Seu único receio era bater contra alguma pedra.
– Agora está tudo bem. – falou ele para Carol. – Já se pode sentar.
Carol ergueu-se cautelosamente do fundo do bote e tentou agarrar-se em algo.
– Não dá mesmo para acreditar. – Ela tentou falar mais alto que o ruído do motor. –
Mas que diabos vamos fazer?
– Vamos rio abaixo, até vislumbrarmos luzes. Deve haver muito lugares aonde
possamos chegar.
Com o bote impelido com segurança pelo motor, Jason conjeturou se seria prudente
parar num outro píer. Afinal de contas, o perseguidor poderia ter tomado o carro e seguido por
uma estrada ao longo do rio. Talvez haja uma luz no lado contrário, pensou ele.
Pelas silhuetas das árvores na margem do rio remansoso, Jason pôde avaliar a
velocidade com que se deslocavam. Parecia que não era pouca. Ele teve também a impressão
de que o rio, daí por diante, ia gradativamente se estreitando, especialmente quando
experimentou a sensação de que a velocidade do bote aumentava. Depois de meia hora, ainda
não se viam luzes. Apenas uma floresta escura, e, acima, um céu sem lua recamado de estrelas.
– Não consigo ver nada – gritou Carol.
– Está tudo bem – tranqüilizou-a Jason.
Depois de terem navegado por mais uns quinze minutos, notaram que as árvores das
margens como que fechavam de repente o rio, indicando que ali devia terminar a sua parte
larga. Quando Jason viu que as árvores estavam mais próximas, compreendeu que avaliara
mal a velocidade com que se deslocavam, na verdade muito maior do que pensava.
Inclinando-se para trás, cortou o acelerador. O pequeno motor de popa silenciou com um
suspiro. Assim que o ruído do motor de popa cessou, Jason passou a ouvir um outro ruído,
este deveras sinistro. Era o rugido surdo de uma cachoeira.
– Deus do céu! – Exclamou ele para si mesmo, lembrando-se das cachoeiras do rio,
acima do Salmon Inn. Empurrou o pequeno motor de popa para o lado e aproou o bote.
Colocou o acelerador no máximo. Para sua surpresa e desalento, o bote diminuiu de
velocidade, prosseguindo na trajetória rio abaixo. Jason tentou, então, aproar o barco em
direção à margem. Lentamente, o bote moveu-se de lado. Mas aí o inferno se abriu a seus pés.
O rio se estreitou numa garganta rochosa, para dentro da qual Jason e Carol foram
bruscamente sugados.
A borda do bote de borracha era provida de uma corda curta, fixada, a intervalos, por
ilhoses. Jason agarrou-se à corda em ambos os lados, abarcando o bote com seus braços
estendidos. Gritou para que Carol fizesse o mesmo. Ela não conseguiu ouvir, tamanho era o
fragor das águas; mas quando notou o que Jason estava fazendo, tentou fazer o mesmo.


Infelizmente, não alcançava com os braços simultaneamente as bordas dos dois lados do bote.
Segurou-se em um dos lados e enganchou uma perna debaixo de um dos assentos de madeira.
Num instante, entraram numa verdadeira turbulência, e o bote foi atirado para cima como uma
rolha de cortiça. Um verdadeiro lençol d’água inundou o barco e encharcou-os, cegando-os
por uns instantes. Jason sufocava. A escuridão e a água em seus olhos praticamente lhe
impediram a visão. Ele sentiu o corpo de Carol chocar-se contra o seu, e com a perna
procurou firmar a moça no fundo do bote. Nesse momento o bote chocou-se com um pedra e
começou a rodopiar. Em meio a essa violenta agitação, Jason procurou não perder de vista a
cachoeira, sabendo que a qualquer momento podiam precipitar-se para a morte.
Completamente aterrorizados, Jason e Carol agarraram-se às cordas. Foram atirados de
um lado para o outro e da proa para a popa, em giros estonteantes, completamente à mercê da
água. Pareceu a Jason que a qualquer instante iam emborcar. Havia muita água dentro do
barco, um água fria de enregelar.
Depois de um tempo que pareceu uma eternidade insuportável, a água acalmou. O bote
ainda girava e ia sendo levado à deriva rio abaixo, mas sem os solavancos bruscos e
violentos. Jason olhou em torno. Conseguiu avistar, de ambos os lados, abruptos paredões de
pedra. E soube que o inferno ainda não terminara.
Com um tremendo impulso para cima, os solavancos violentos recomeçaram. Jason
sentiu que seus dedos começavam a doer, era o efeito combinado da demorada contração
muscular e do frio. Agarrou-se com todas as forças às cordas, tentando, com as pernas,
segurar Carol com firmeza. A dor nas mãos tornou-se tão intensa que por instantes ele teve a
sensação de que ia largar as cordas.
Mas aí, tão subitamente como tinha começado, o pesadelo cessou. Ainda rodopiando, o
bote deslizou por águas relativamente calmas. O barulho ensurdecedor da cachoeira diminuía.
As margens do rio alargavam-se, deixando ver claramente um céu estrelado. Dentro do bote
havia uns quinze centímetros de água gelada, mas Jason percebeu que o motor de popa
continuava a roncar como se nada tivesse acontecido.
Com as mãos tremendo, Jason endireitou o bote e parou com o rodopio nauseante. Seus
dedos tocaram num botão logo abaixo da borda. Experimentou apertá-lo; a água do bote
escoou-se lentamente.
Jason prestou atenção às silhuetas das árvores nas margens. Mais adiante, o rio fazia
uma curva fechada para a esquerda; ao contornarem esse ponto, finalmente avistaram luzes.
Jason aproou para a margem.
Ao se aproximarem, Jason viu diversos prédios bem iluminados, molhes e uma série de
botes de borracha semelhantes ao que ocupavam. Ainda receava que o assassino pudesse ter
seguido de carro pela estrada ao longo do rio, para interceptá-los, mas viu que tinham de
desembarcar. Encostou o bote junto ao segundo píer e desligou o motor.
– Você realmente sabe entreter uma garota – falou Carol, batendo queixo.
– Estou contente por ainda conservar seu senso de humor – disse Jason.
– Mas não conte com ele por muito tempo. Eu só queria saber, pelo amor de Deus, o
que é que está acontecendo.
Jason levantou-se rigidamente, segurando-se no píer. Ajudou Carol a sair do bote,
depois saiu ele próprio, amarrando o cabo num cunho. De um dos prédios vinha um som de
música country.


– Deve ser um bar – disse Jason. Ele pegou a mão dela. – Temos de nos aquecer, antes
que peguemos uma pneumonia. – Jason seguiu na frente, pelo caminho de saibro, mas, em vez
de entrar, dirigiu-se ao pátio de estacionamento e começou a olhar os carros estacionados.
– Espera aí – disse Carol, com irritação. – O que está querendo fazer agora?
– Estou à procura de chaves – disse Jason. – Precisamos de um carro.
– Não dá para acreditar – disse Carol, erguendo as mãos para o céu. – Pensei que
íamos nos aquecer. O que você vai fazer eu não sei, mas eu vou entrar nesse restaurante. – E
sem esperar resposta, encaminhou-se para a entrada.
Jason cortou-lhe a frente e segurou-a pelo braço.
– Meu receio é que ele volte, o homem que estava atirando em nós.
– Então chamemos a polícia – disse Carol. Ela desvencilhou-se da mão de Jason e
entrou no restaurante.
O hispânico não estava no restaurante. Assim, seguindo a sugestão de Carol, chamaram
a polícia, e quem atendeu foi o xerife da localidade. O proprietário do restaurante recusou-se
a acreditar que Jason e Carol tivessem descido a Cachoeira do Diabo na escuridão da noite.
– Ninguém jamais conseguiu fazer isso! – disse ele. Encontrou camisas do chef enormes
e calças xadrez branco e preto do cozinheiro, que lhes cedeu para que trocassem de roupa, e
entregou-lhes um saco de plástico para guardarem suas roupas molhadas. Também insistiu
para que tomassem um grogue quente, o que finalmente acabou com os tremores de frio.
– Jason, você precisa me dizer o que é que anda acontecendo – insistiu Carol, enquanto
esperavam pelo xerife. Estavam sentados a uma mesa, perto de uma vitrola automática
Wurlitzer que tocava músicas dos anos 50.
– Não sei ao certo – disse Jason. – Mas o homem que atirou contra nós era o mesmo
que estava do lado de fora do restaurante em que Alvin morreu. O que eu acho é que Alvin foi
vítima de sua própria descoberta; se ele não tivesse morrido naquela noite, esse mesmo
homem teria acabado por matá-lo, de qualquer maneira. Assim, Alvin dizia a verdade quando
falou que alguém queria matá-lo.
– Isto não parece real – disse Carol, tentando ajeitar o cabelo, que estava secando em
anéis emaranhados.
– Eu sei. As conspirações geralmente não parecem ser reais.
– O que me diz da descoberta de Hayes?
– Não sei ao certo, mas se minha teoria está correta, trata-se de algo por demais
assustador para se pensar. É por isso que eu quero voltar para Boston.
Justamente nesse momento a porta se abriu, e o xerife, Marvin Arnold, entrou. Era um
homem de estatura enorme; usava um uniforme caqui amarrotado, que ostentava fivelas e
cinturões numa quantidade que Jason até então não tinha visto. Mais importante para Jason era
o Magnum 357 no coldre de Marvin.
Era o tipo de arma que Jason queria ter tido no Salmon Inn.
O xerife Marvin já tinha sido informado do tumulto havido no Salmon Inn e fora para lá
com a finalidade de averiguar o que acontecera. Mas o que não ficara sabendo era que lá
havia um homem portando uma arma, e nem ninguém tinha ouvido disparos. Quando Jason
contou o que tinha acontecido, sua impressão era de que Marvin o olhava com grande dose de
descrença. Mas Marvin ficou surpreso e impressionado quando tomou conhecimento de que
Jason e Carol tinham descido a Cachoeira do Diabo sozinhos, na escuridão da noite.


– Muita gente não vai acreditar nisso – falou ele, admirado, balançando a cabeça
enorme.
Marvin levou Jason e Carol no seu carro de volta ao Salmon Inn. Ali Jason ficou
sabendo que haviam dado queixa contra ele, responsabilizando-o pelos danos no salão do
restaurante. Ninguém ali presente tinha visto qualquer arma. E o que era mais surpreendente,
ninguém se lembrava da chegada do homem moreno de terno azul-escuro. Mas, no final, a
gerência do hotel decidiu dar o caso por encerrado, dizendo que iam se entender com a
companhia de seguros quanto ao ressarcimento dos prejuízos. Com isto decidido, Marvin
pegou seu chapéu, preparando-se para sair.
– O que me diz da proteção? – perguntou Jason.
– Proteção contra o quê? – indagou Marvin. – Não acha que é meio embaraçoso para o
senhor que não haja ninguém capaz de confirmar a história que contou? Escute, parece que
vocês já causaram problemas suficientes por esta noite. Acho que o melhor seria vocês
subirem para seu quarto e dormir para esquecer tudo isso.
– Precisamos de proteção – disse Jason. Ele tentou usar de autoridade. – O que faremos
se o pistoleiro voltar?
– Escute, amigo, eu não posso ficar sentado aqui a noite toda segurando na sua mão.
Estou sozinho neste turno da noite e tenho a joça deste condado inteiro para tomar conta.
Tranque-se no quarto e procure dormir.
Com uma inclinação de cabeça na direção do gerente, Marvin encaminhou-se
pesadamente para a porta da frente.
O gerente, por sua vez, deu um sorriso condescendente a Jason e entrou no seu
escritório.
– É um absurdo – disse Jason, num misto de medo e irritação. – Não consigo acreditar
que ninguém tenha notado o hispânico. – Entrou na cabine do telefone público e procurou
localizar agências de detetives particulares. Encontrou diversas em Seattle, mas, quando
discou, só atendiam secretárias eletrônicas. Deixou seu nome e número do telefone do hotel,
mas não tinha muita esperança de encontrar alguém nessa noite.
Saindo da cabine telefônica, Jason disse a Carol que iriam embora imediatamente. Ela
seguiu-o escada acima.
– São nove e meia da noite – protestou ela, entrando no quarto, atrás de Jason.
– Não me importa. Vamos embora o mais depressa que pudermos. Junte suas coisas.
– Não acha que eu devia opinar sobre esse assunto?
– Não. Foi sua a decisão de ficar esta noite, e foi sua a decisão de chamar a polícia
local, que tanto ajuda. Agora é a minha vez de decidir. Vamos embora.
Por uns instantes, Carol permaneceu plantada no meio do quarto, olhando Jason juntar
suas coisas; depois, concluiu que ele provavelmente estava com a razão. Dez minutos mais
tarde, vestidos com suas próprias roupas, carregaram as bagagens até a recepção e acertaram
a conta.
– Tenho de lhe cobrar a noite de hoje – informou o homem que os atendeu no balcão.
Jason não se preocupou em argumentar. Em vez de perder tempo com isso, pediu que o
funcionário trouxesse seu carro junto da entrada principal. Deu-lhe cinco dólares de gorjeta, e
o funcionário ficou satisfeito por ajudá-lo.
Jason esperava que, uma vez instalado dentro do carro, pudesse sentir-se menos


angustiado e menos vulnerável. Mas não foi isso que aconteceu. Assim que deixaram o pátio
de estacionamento do hotel e entraram na estrada, imersa na escuridão entre as montanhas, ele
se deu conta de como agora estavam isolados. Quinze minutos mais tarde, pelo espelho
retrovisor, viu surgir as luzes altas de um carro. No começo, procurou ignorá-las, mais depois
ficou evidente que o carro se aproximava gradualmente, apesar de Jason acelerar o seu carro
cada vez mais. O terror que Jason havia sentido anteriormente agora voltava. Ele começou a
suar nas palmas das mãos.
– Alguém vem vindo atrás de nós – disse Jason.
Carol virou-se no assento dianteiro e olhou pelo vidro traseiro. O carro deles estava
numa curva e as luzes tinham desaparecido. Mas, na reta seguinte, reapareceram. E estavam
mais perto. Carol voltou-se para diante.
– Eu lhe disse que devíamos ter ficado.
– E como ajuda, você falar isso! – disse Jason, com sarcasmo.
Ele pisou o acelerador quase até o fundo. Já estavam indo a bem mais de noventa na
estrada sinuosa. Jason segurou com mais firmeza o volante, e voltou a olhar pelo retrovisor. O
carro estava perto, com seus faróis como olhos de um monstro. Jason procurou considerar o
que poderia fazer, mas não conseguiu pensar em outra coisa senão tentar distanciar-se do carro
que os seguia. Entraram em mais uma curva. Jason girou o volante com energia. Viu Carol
abrir a boca e conter-se para não gritar. Pôde sentir que o carro começava a derrapar. Freou, e
aí derrapou primeiro para um lado, depois para o outro. Carol agarrou-se ao painel para
firmar-se. Jason apalpou o cinto de segurança e sentiu que estava firme.
Lutando com o carro, Jason conseguiu mantê-lo na estrada. Atrás deles o carro
perseguidor aproximava-se com bastante rapidez. Agora estava imediatamente atrás, com suas
luzes altas inundando o carro de Jason de uma claridade pavorosa, espectral. Em pânico,
Jason pisou o acelerador até o fundo, tirando o carro da derrapagem. Foi como mais um salto
a frente, agora numa pequena descida. Mas o carro de trás acompanhava-o com a mesma
velocidade, seguindo no seu encalço como um cão de caça disposto a tudo.
Então, para surpresa de Jason e Carol, seu carro foi inundado de luzes vermelhas
piscantes. Levou uns momentos para que se dessem conta de que a luz vermelha vinha do teto
do carro que os perseguia. Quando Jason reconheceu o que era, desacelerou, olhando pelo
retrovisor. O carro de trás desacelerou na mesma proporção. Adiante, num retorno, Jason saiu
para o acostamento e parou. O suor molhava-lhe a testa em pequenas gotas. Os braços lhe
tremiam de tanto segurar, crispados, o volante. Atrás deles, o outro carro também parou, com
suas luzes piscando e iluminando as árvores ao redor. Pelo espelho retrovisor, Jason viu a
porta abrir-se, e Marvin Arnold desembarcou. Viu também que o xerife saltara a correia que
prendia seu Magnun 357.
– Puxa, mas que idiota eu sou! – falou ele, iluminando com sua lanterna a cara
embaraçada de Jason. – É o meu caro amigo.
Furioso, Jason exclamou:
– Por que cargas-d’água não ligou as suas luzes logo no começo?
– Então estava querendo fazer de mim um piloto de corridas? – falou Marvin, contendo
o riso. – Não sabia que estava perseguindo o meu maluco de estimação.
Depois de verificar os documentos e de aplicar multa por direção perigosa, o xerife
deixou Jason e Carol prosseguirem. Jason estava irritado demais pra falar, e foram em


silêncio até chegarem à freeway. Então ele declarou:
– Acho que devíamos ir para Portland. Não sei o que pode estar à nossa espera no
aeroporto de Seattle.
– Por mim, tudo bem – disse Carol, cansada demais para discutir.
Pararam para dormir umas horas em um hotel de beira de estrada, perto de Portland; à
primeira luz da manhã, foram para o aeroporto. Embarcaram num vôo para Chicago. E de
Chicago tomaram outro avião para Boston, onde aterrissaram pouco depois das 5:30 da tarde
de sábado.
No táxi, quando chegaram diante do apartamento de Carol, Jason de repente se pôs a
rir:
– Eu nem saberia como lhe pedir desculpas pela confusão em que fiz você se meter.
Carol apanhou a sua bolsa de viagem:
– Bom, pelo menos não foi monótono esse seu programa. Escute, Jason, eu não pretendo
ser sarcástica, ou insistente, mas, por favor, diga-me o que é que anda acontecendo.
– Assim que eu tiver certeza, direi – falou Jason. – Prometo. Realmente. Agora, faça-me
um favor. Não saia de casa hoje à noite. Espero que ninguém saiba que voltamos, mas poderá
haver o diabo se e quando por acaso descobrirem.
– Não tenho planos de sair para lugar nenhum, doutor – suspirou Carol. – Para mim,
chega.


15
Jason nem mesmo parou no seu apartamento. Assim que Carol desapareceu no interior
do prédio onde morava, ele disse ao motorista do táxi que o deixasse junto ao seu carro, e daí
foi diretamente ao GHP. Entrou imediatamente no edifício dos ambulatórios. Eram sete horas
da noite e o grande salão de espera se encontrava vazio. Jason encaminhou-se diretamente
para seu consultório, tirou o paletó e sentou-se diante do seu terminal de computador. O GHP
havia gastado uma fortuna nesse sistema de computação, do qual muito se orgulhava. Cada
terminal tinha acesso ao programa principal, onde os dados de todos os pacientes eram
armazenados.
Embora as papeletas de cada paciente individualmente fossem ainda a melhor fonte de
informações, a maior parte do material podia ser obtida do computador. E o mais vantajoso
era que o sofisticado equipamento tinha condições de apresentar todos os dados básicos dos
pacientes do GHP e mostrá-los graficamente na tela, analisados praticamente da maneira que
se desejasse.
Jason quis conhecer primeiro as atuais curvas de sobrevida. O gráfico mostrado pelo
computador tinha o formato de um perfil de montanha, uma ascendente íngreme começando
alta, depois se arredondando, e por fim uma descendente nítida. O gráfico também comparava
o índice de sobrevida dos usuários do GHP por idade. Como era de prever, os clientes
pertencentes ao extremo de idade mais avançada no gráfico apresentavam o mais baixo índice
de sobrevida. No decurso dos últimos cinco anos, embora a média de idade da população do
GHP tivesse aumentado gradualmente, as curvas de sobrevida permaneciam mais ou menos as
mesmas.
A seguir, Jason solicitou do computador a execução de gráficos mês a mês para o
último semestre. Tal como ele receava, viu que os índices de mortalidade para pacientes entre
55 e 65 anos apresentavam uma elevação, especialmente no período referente aos últimos três
meses.
Um ruído súbito fez com que ele se levantasse sobressaltado da cadeira, na qual voltou
a sentar-se ao constatar que era apenas alguém do serviço de limpeza.
Com alívio, retornou ao computador. Teve vontade de separar os dados sobre os
pacientes que se haviam submetido aos exames médicos executivos, mas não sabia como
efetuar essa operação. Foi obrigado a se contentar com os índices gerais de mortalidade.
Esses gráficos comparavam as percentagens de mortes associadas à idade. Dessa vez a curva
saiu de outra forma. Começava baixa, mas depois, à medida que a idade aumentava, subia. Foi
então que Jason ordenou que o computador imprimisse uma série desses gráficos sobre os
meses precedentes, um a um. Os resultados foram surpreendentes, em especial sobre os dois
últimos meses. As curvas de casos de morte subiam nitidamente, começando na idade dos
cinqüenta anos.
Jason permaneceu diante do terminal do computador por mais meia hora, tentando fazer
com que o aparelho separasse os exames médicos executivos. O que esperava poder ver, se
conseguisse, era um rápido aumento dos índices de mortalidade para pessoas com mais de
cinqüenta anos de idade que apresentavam fatores de alto risco, tais como fumo, consumo
exagerado de álcool, alimentação inadequada e falta de atividade física. Mas esses dados não


estavam disponíveis. Não tinha sido programada a sua obtenção em conjunto. Jason teria de
tomar o nome de cada paciente individualmente, mas para isso não tinha tempo. Além do mais,
as curvas dos índices gerais de mortalidade já eram suficientes para corroborar suas
suspeitas. Agora ele sabia que tinha razão. E havia mais um modo de provar isso. Com enorme
angústia, saiu do seu consultório e voltou ao carro.
Afastou-se da Riverway e tomou a direção de Roslindale.
Quanto mais se aproximava, mais nervoso se sentia. Não tinha nenhuma noção do que
iria encontrar, mas suspeitava de que não seria algo agradável. Seu destino era a Hartford
School, a instituição para crianças retardadas mantida pelo GHP. Se Alvin Hayes estava certo
quanto às suas próprias condições de saúde, então devia ter razão também quanto às de seu
filho retardado mental.
A Hartford School situava-se junto ao Arnold Arboretum, um lugar encantador com
graciosas colinas cobertas de bosques, campos e pequenos lagos. Jason entrou no pátio de
estacionamento, que estava praticamente deserto, e estacionou o carro a uns vinte metros da
entrada. O harmonioso edifício em estilo colonial tinha uma aparência enganosamente serena,
pois ocultava as tragédias pessoais e familiares que abrigava em seu interior. Retardamento
mental grave era um assunto difícil até mesmo para os profissionais da área. Jason lembravase nitidamente de haver examinado algumas das crianças da escola, por ocasião de anteriores
visitas. Muitas dessas crianças, do ponto de vista físico, tinham uma aparência perfeita, o que
tornava ainda muito mais perturbadora a presença de Q.I. baixo.
A porta da frente estava fechada a chave, e por isso Jason tocou a campainha e esperou.
Veio abri-la um guarda de segurança obeso e que usava um uniforme azul enxovalhado.
– Em que posso ajudá-lo? – falou ele, deixando claro que não tinha nenhuma vontade de
ajudar.
– Eu sou médico – disse Jason. E tentou desviar-se do guarda, mas este deu um passo
para trás, para barrar-lhe o caminho.
– Desculpe, visitas proibidas depois das 18:00, doutor.
– Mas eu não sou bem uma visita – disse Jason. Tirou a carteira e mostrou a identidade
fornecida pelo GHP.
O guarda nem sequer olhou a identidade.
– Depois das 18:00 não há visitas – repetiu ele, acrescentando: – Sem exceções.
– Mas eu… – começou a falar Jason. Mas parou no meio da frase. Pela expressão do
segurança, concluiu que era inútil qualquer discussão.
– Venha pela manhã, senhor – disse o guarda, batendo a porta.
Jason afastou-se, descendo os degraus da frente, e olhou para a fachada do prédio de
cinco andares. Era de tijolos aparentes, com janelas em molduras de granito. Mas Jason estava
decidido a não desistir. Supondo que o guarda estava vigiando, voltou ao carro e saiu
dirigindo pela alameda. Uns cem metros adiante, parou junto ao meio-fio. Saiu do carro e,
com alguma dificuldade, passando por entre as árvores, retornou ao prédio da escola.
Contornou o prédio, mantendo-se nas sombras. Havia escadas de incêndio em todos os
lados, menos na parte da frente. E todas conduziam ao telhado. Infelizmente, tal como no
edifício de Carol, nenhuma escada chegava até o nível do chão, e Jason não conseguiu
encontrar nada sobre que se apoiar para chegar ao primeiro degrau.
No lado direito do prédio, localizou um lance de escada que descia até uma porta


fechada. Tateando no escuro, descobriu que a porta possuía um postigo central com vidraça.
Afastou-se e procurou pelo chão até encontrar um pedra do tamanho de uma laranja.
Segurando a respiração, voltou à porta e quebrou o vidro. No silêncio da noite, o
barulho de vidro estilhaçado no chão parecia forte o bastante para acordar até os mortos.
Jason refugiou-se nas sombras de árvores próximas, observando o prédio. Como ninguém
apareceu, depois de quinze minutos, arriscou-se a sair das sombras e voltou à porta.
Cautelosamente, enfiou a mão na abertura do postigo e soltou a tranca. Não soou nenhum
alarme.
Na meia hora que se seguiu, Jason tateou no escuro, andando dentro de um grande salão,
que achou ser um depósito. Encontrou uma escada de mão e pensou em levá-la para fora, com
a finalidade de alcançar um escada de incêndio, mas abandonou essa idéia e continuou
apalpando cegamente no escuro em busca de luz. Suas mãos, por fim, tocaram num interruptor.
Acionou-o.
Viu que se encontrava numa sala de manutenção, cheia de cortadores de grama, pás e
outras ferramentas. Perto do interruptor de luz havia uma porta. Devagar, Jason abriu-a. A
porta dava para uma sala de caldeiras, muito maior e mal iluminada.
Movimentando-se com rapidez, Jason atravessou a segunda sala e subiu por uma escada
de aço muito íngreme, fixada à parede. Abriu a porta que havia no topo da escada e logo
percebeu que estava no hall de entrada. Lembrando-se de suas visitas anteriores, sabia que a
escada que levava às enfermarias situava-se à sua direita. À esquerda havia um escritório,
onde uma mulher de meia-idade, com um uniforme branco apertado sobre o corpo volumoso,
estava a ler, diante de uma escrivaninha. Olhando em direção à entrada principal, Jason pôde
ver os pés do guarda esticados sobre uma cadeira. O rosto dele estava fora do seu ângulo de
visão.
No maior silêncio possível, Jason deslizou pela porta do porão e cuidadosamente
recolocou-a na posição anterior. Por uns momentos, esteve bem visível para a mulher sentada
no escritório, mas ela não levantou os olhos do livro. Obrigando-se a movimentos lentos, ele
atravessou silenciosamente o hall e enveredou pela escadaria. Teve um suspiro de alívio ao se
ver fora do ângulo de visão do guarda e da mulher. Subindo os degraus dois a dois, na ponta
dos pés, dirigiu-se ao terceiro andar, onde se localizava a enfermaria dos meninos de doze a
quatorze anos.
A escadaria era de mármore, e, ainda que ele procurasse não fazer ruído, seus passos
ecoavam no silêncio daquele espaço cavernoso. Acima, havia uma clarabóia, que naquele
momento se assemelhava a um ônix preto incrustado no teto.
No terceiro andar, Jason abriu cautelosamente a porta que dava para a escadaria.
Lembrou-se de que, à direita, na extremidade de um corredor comprido, havia um posto de
enfermagem envidraçado, e notou que, embora o corredor estivesse às escuras, o posto de
enfermagem ainda estava com todas as luzes acesas. Um atendente estava ocupado em ler,
como a mulher no andar térreo.
Olhando em diagonal para o outro lado do hall, Jason estudou como era a porta que
dava para a enfermaria. Notou que ela possuía uma grande janela central provida de tela
metálica. Depois de se certificar de que o atendente continuava a ler, atravessou o hall na
ponta dos pés e entrou na sala mergulhada na escuridão. Imediatamente percebeu o cheiro de
mofo, o bafio que imperava no ambiente. Esperou uns momentos, para ter certeza de que o


atendente não fora perturbado, depois começou a procurar o interruptor de luz. A situação era
do jeito que imaginara, teria de acender a luz, ainda que isso resultasse em ser apanhado.
A sala desoladora subitamente foi inundada com uma dura luz fluorescente branca. A
enfermaria tinha uns quinze metros de comprimento, e de cada lado, junto às paredes, estavam
alinhadas camas de ferro baixas, entre as quais sobrava espaço para um estreito corredor.
Havia janelas, mas eram altas, perto do teto. No extremo da sala havia banheiros, ladrilhados,
com uma mangueira enrolada, para limpeza, e uma porta fechada com ferrolho, que dava para
a escada de incêndio. Jason caminhou pelo corredor entre as camas, olhando as placas dos
nomes afixados às cabeceiras das camas. Harrison, Lyons, Gessner… As crianças,
perturbadas com a luz acesa, começaram a sentar-se nas suas camas, olhando com seus olhos
vazios, ausentes, incapazes de ver o intruso que as molestava.
Jason parou, abalado por um sentimento terrível de repulsa que se transformou em
terror. Era pior do que imaginara. Lentamente, seus olhos passaram de um para outro daqueles
rostos miseráveis de criaturas indesejadas. Em vez de parecerem as crianças que realmente
eram, todas pareciam velhos em miniatura, velhos de mais de cem anos, com seus olhos
sumidos nas órbitas, a pele seca e enrugada, o cabelo branco e ralo, o couro cabeludo coberto
de áreas descarnadas. Jason localizou o nome Hayes. Como os demais, ele aparentava um
envelhecimento prematuro. Havia perdido a maior parte das sobrancelhas, e suas pálpebras
inferiores estavam muito caídas. Em lugar das pupilas, havia o reflexo baço de vidro
despolido, revelando que seus olhos estavam tomados por uma catarata avançada. A criança
era cega, mal conseguindo perceber a luz.
Algumas das crianças começaram a sair de suas camas, equilibrando-se a muito custo
nas pernas atrofiadas. E então, para horror de Jason, começavam a vir na sua direção. Uma
delas começou a dizer, com uma voz sumida, a expressão “por favor”, repetindo-a sem parar,
num tom de voz agudo, roufenho. Logo as demais crianças se juntaram num coro terrível,
espectral.
Jason recuou, com medo de ser atacado. O filho de Hayes saiu da sua cama e começou a
tatear na direção de Jason, com seus braços descarnados e miúdos, sem coordenação, fazendo
movimentos perdidos no ar.
O bando de crianças obrigou Jason a recuar até a porta da enfermaria e começou a
puxá-lo pela roupa. Assustado e nauseado, Jason abriu a porta com um empurrão e refugiou-se
no corredor. Depois que fechou a porta, as crianças ficaram a comprimir seus rostos de
múmias contra o vidro, ainda repetindo baixinho “por favor”.
– Ei, você! – Jason ouviu atrás de si uma voz áspera. Virando-se, viu o atendente, de pé,
do lado de fora do posto de enfermagem, com o livro na mão, atarantado.
– O que está acontecendo? – gritou o homem.
Jason saiu correndo pelo corredor em direção à escadaria; mal havia descido alguns
degraus, uma outra voz interpelou, do andar inferior:
– Kevin? O que está havendo aí?
Jason olhou por cima do corrimão e viu o guarda, embaixo, no primeiro andar.
– Droga! Logo no meu serviço! – exclamou o guarda, que começou a correr
desajeitadamente escada acima, com o cassetete na mão.
Jason mudou de direção e rumou para o terceiro andar. O atendente ainda se encontrava
no vão da porta do posto de enfermagem, aparentemente perplexo demais para se mexer,


quando Jason atravessou correndo o hall e voltou para a enfermaria. Algumas das crianças
vagavam sem rumo pelo recinto; outras tinham voltado a cair na cama. Jason se pôs a chamálas com acenos, freneticamente, juntando-as, e abriu a porta; quando o guarda e o atendente
apareceram, foram imediatamente cercados pelo bando de meninos.
Tentaram abrir caminho no meio daquela confusão, mas as crianças se agarravam neles,
gritando, em coro plangente e fantasmagórico “por favor.”
Jason conseguiu chegar à porta da saída de emergência na outra extremidade da
enfermaria. Baixou a alavanca, que, por motivos de segurança, estava colocada a l,80m do
chão. Na primeira tentativa, a porta não se abriu. Era evidente que desde muitos anos não
usavam essa porta. Jason viu que era a tinta usada em várias pinturas que emperrava a porta.
Dando com o ombro contra a porta, esta finalmente se soltou e abriu. Saindo para a escuridão
da noite, Jason empurrou diversas das crianças de volta para dentro da enfermaria antes de
fechar a pesada porta.
Sem perder tempo, desceu pela escada de incêndio. Agora não havia mais motivos para
se preocupar em não fazer barulho. Estava no segundo andar quando acima dele se abriu a
porta. De novo ouviu os guinchos das crianças. E aí sentiu a vibração de pesadas botas na
escada de incêndio.
Puxou um pino e uma escada de mão desceu de imediato, dando um baque ao atingir o
asfalto do pátio do estacionamento. Antes mesmo que ela tocasse no chão, Jason já descia por
ela. A pequena demora possibilitou que o guarda que o perseguia diminuísse a distância entre
eles.
Mas, ao chegar no gramado, o preparo físico de corredor deu vantagem a Jason, que
logo conseguiu distanciar-se do guarda corpulento; quando chegou ao carro, teve tempo
suficiente para dar partida no motor, engrenar a marcha e sair em disparada. Pelo retrovisor
ainda pôde ver o guarda chegar à beira da alameda e elevar o punho, sob a luz de um lâmpada
de rua.
Jason mal conseguia controlar o asco e a revolta que sentia com o que tinha visto.
Dirigiu-se diretamente à central de polícia de Boston e deixou propositalmente o carro numa
área em que era proibido estacionar, diante do prédio.
– Eu quero falar com o detetive Curran – disse Jason ao funcionário da portaria, e
depois se identificou.
O policial olhou calmamente seu relógio de pulso, depois telefonou para o
departamento de homicídios. Falou durante uns momentos, a seguir cobriu o telefone com a
mão:
– Não serve outro?
– Não. Eu preciso falar com Curran. E agora, por favor.
O policial falou ao telefone por mais algum tempo e então desligou.
– O detetive Curran não está disponível, senhor.
– Eu acho que ele virá falar comigo. Mesmo que esteja de folga.
– Não é esse o problema – disse o policial. – O detetive Curran está em um duplo
homicídio em Revere. Ele deve telefonar dentro de uma hora, mais ou menos. Se o senhor
quiser, pode esperar, ou deixar o número de seu telefone. O senhor é que decide.
Jason pensou alguns instantes. Estivera acordado a maior parte da noite anterior, seus


nervos estavam abalados, e muito lhe agradou a idéia de tomar um banho, trocar de roupa e
comer alguma coisa. Além disso, quando se encontrasse com Curran, iria ter com que se
ocupar durante algum tempo. Deixou o número do telefone de casa, pedindo que Curran
ligasse tão logo fosse possível.
O vôo da United procedente de Seattle tinha atrasado consideravelmente; e quando o
avião pousou em Logan, Juan Díaz estava de mau humor. Desde aquela vez em que, em Nova
York, atirara no homem errado, nunca mais se saíra tão mal em uma incumbência. Aquele
fiasco ainda fora desculpável mas este de agora não. Estivera a poucos segundos de fulminar
simultaneamente o médico e a puta do cabaré e então Jason, um amador, conseguira ser mais
esperto e mais rápido. Juan não tinha desculpas a apresentar, e foi isso que disse ao contato.
Sabia que tinha que se reabilitar dessa, ou fazer alguma coisa, e evidentemente esperava
encontrar ocasião para isso. Assim que saiu do avião, dirigiu-se a um telefone. No segundo
toque já foi atendido.
Jason fez, de carro, o curto trajeto entre a central de polícia e Louisburg Square,
tentando apagar da memória a horrível imagem das crianças prematuramente envelhecidas da
escola. Nem mesmo queria pensar em Hayes e na descoberta do cientista antes que estivesse
em segurança na presença de Curran. Ao chegar ao prédio onde morava, deu a volta no
quarteirão várias vezes, para ter certeza de que ninguém o observava. Finalmente, convencido
de que o guarda da escola não tinha visto sua carteira de identidade, não tendo portanto idéia
de quem ele era, Jason estacionou o carro, levou a bagagem para o seu apartamento e acendeu
as luzes. Para alívio seu, tudo no apartamento estava do jeito que havia deixado. Olhou pela
vidraça; pareceu-lhe que a praça estava calma como sempre.
Estava para começar o banho de chuveiro quando se lembrou de outras pessoas com
quem devia falar, além do detetive. Ligou para Shirley. Ela atendeu, finalmente, no oitavo
toque. Jason ouviu, ao fundo, vozes animadas.
– Jason! – exclamou ela. – Quando voltou das férias?
– Estou acabando de chegar.
– O que é que há? – perguntou ela, percebendo o cansaço e a preocupação na voz dele.
– Grandes problemas. Acho que decifrei não só a descoberta de Hayes, mas também de
que modo ela estava sendo mal utilizada. E isso envolve o GHP de um modo muito pior do
que você poderia imaginar.
– Conte-me.
– Por telefone, não.
– Então venha até aqui. Tenho visitas, mas posso me livrar delas.
– Eu estou esperando um chamado do Curran, do departamento de homicídios.
– Ah, sim… você já entrou em contato com ele?
– Ele saiu para atender um caso, mas deve telefonar em breve.
– Então, que tal eu ir ao seu apartamento? Você agora me deixou realmente aterrorizada.
– Seja bem-vinda – disse Jason, com um riso curto, amargo. – Estarei esperando. Você
provavelmente deve estar presente quando eu conversar com Curran.
– Estou indo.
– Ah, mais uma coisa. Você lembra quem é o atual diretor médico na Hartford School?


– O Dr. Peterson, creio – disse Shirley. – Posso saber com certeza amanhã.
– O Dr. Peterson não tinha um envolvimento próximo com os estudos clínicos de
Hayes? – perguntou Jason, de repente lembrando-se de que Peterson fora o médico que havia
feito o exame médico em Hayes.
– Acho que sim. Isso é importante?
– Não tenho certeza – disse Jason. – Mas se você está vindo para cá, ande depressa.
Curran deve telefonar a qualquer momento.
Jason desligou novamente o telefone. Estava de novo para entrar no banho de chuveiro
quando se deu conta de que Carol, esta noite, podia correr perigo. Pegou novamente o telefone
e discou o número dela.
– Quero que permaneça dentro de casa, em qualquer hipótese – disse ele assim que ela
atendeu. – Não estou brincando. Não atenda à porta. Não saia.
– O que é desta vez?
– A trama contra Hayes é pior do que tudo que eu poderia imaginar.
– Parece que você está nervoso, Jason.
Apesar de tudo, Jason sorriu. Em certos momentos, Carol podia até se parecer com um
psiquiatra.
– Não estou nervoso. Estou assustado de verdade. Mas vou conseguir falar com a
polícia dentro de pouco tempo.
– E poderá me dizer o que está acontecendo?
– Prometo que sim. – Jason desligou, afinal entrando no banheiro e abrindo o chuveiro.


16
A campainha soou, e Jason correu escada abaixo para atender. Era Shirley, que lhe
sorria do outro lado do painel de vidro da porta de entrada. Jason deu um passo atrás para
deixá-la entrar, admirando nela as roupas impecáveis, como sempre. Nessa noite ela usava
uma minissaia de couro preta e uma jaqueta de camurça vermelha, longa.
– Curran telefonou? – perguntou ela quando subiam a escada.
– Ainda não – disse Jason, fechando a chave e com trinco a porta do apartamento.
– Agora me conte tudo – disse Shirley, tirando a jaqueta. Por baixo ela usava um blusão
de cashmere macio. Sentou-se na beirada do sofá de Jason, com as mãos entrelaçadas no colo,
e esperou.
– É coisa de que você não vai gostar – falou Jason, mantendo-se perto dela.
– Eu procurei me preparar para isso. Pode falar.
– Primeiro, deixe que eu lhe faça um breve histórico. Se você não está familiarizada
com as atuais pesquisas sobre o envelhecimento, então o que eu vou lhe contar talvez não faça
muito sentido.
– Nos últimos anos, cientistas como Hayes têm dedicado muito tempo a procurar
retardar o processo de envelhecimento. A maior parte do trabalho desses cientistas
concentrou-se em células de culturas de células embora uma parte desse trabalho tenha sido
feita também com ratos e camundongos. Os pesquisadores, em sua maioria, chegaram à
conclusão de que o envelhecimento é um processo natural, de origem genética e regulado por
fatores neuroendócrinos, imunológicos e humorais.
– Você já me deixou confusa – teve de admitir Shirley, levantando as mãos em atitude
de desânimo.
– Que tal um drinque, então? – sugeriu Jason, levantando-se.
– O que você vai beber?
– Uma cerveja. Mas tenho vinho, e também bebidas fortes, você escolhe.
– Uma cerveja viria bem.
Jason foi à cozinha, abriu o refrigerador e tirou duas Coors geladas.
– Vocês médicos são todos iguais – queixou-se Shirley, tomando um gole. – Dão um
jeito de complicar tudo.
– Porque é complicado mesmo – disse Jason, voltando a sentar-se. – A genética
molecular diz respeito à base fundamental da vida. As pesquisas nessa área são assustadoras,
e não apenas porque cientistas poderiam reproduzir acidentalmente um vírus ou bactéria novos
e mortíferos, mas também porque, no caso de serem bem-sucedidos, estaríamos jogando com a
própria vida. A tragédia de Hayes não foi que ele tivesse falhado, mas que tivesse êxito.
– O que foi que ele descobriu?
– Um momento – disse Jason, tomando um demorado gole de cerveja e limpando os
lábios com o dorso da mão. – Vou lhe contar essa história de um outro modo. Todos nós
atingimos a puberdade mais ou menos com a mesma idade, e se não sobrevém uma doença ou
um acidente, envelhecemos e morremos mais ou menos no mesmo período de tempo vital.
Shirley fez um sinal afirmativo.
– Pois bem – disse Jason, inclinando-se em direção a Shirley –, isso acontece porque


nossos corpos são geneticamente programados para seguir um cronograma interno. À medida
que nos desenvolvemos, diferentes genes são ativados, enquanto outros são desativados. Isso
era o que fascinava Hayes. Ele vinha estudando as formas como os sinais humorais emitidos
pelo cérebro controlam o crescimento e a maturação sexual. Isolando, umas após outras, essas
proteínas humorais, descobriu o que elas faziam aos tecidos periféricos. Ele esperava
descobrir o motivo que levava as células a iniciar ou interromper o processo de divisão.
– Até aí eu compreendo – disse Shirley. – Esse foi um dos motivos pelos quais
contratamos Hayes. Nós esperávamos que ele fizesse uma descoberta no tratamento do câncer.
– Agora me permita uma pequena digressão – falou Jason. – Havia um outro
pesquisador, de nome Denckla, que fazia experimentos sobre formas de retardar o processo de
envelhecimento. Ele retirou as hipófises de ratos, e depois de repor os hormônios necessários,
verificou que esses animais tinham uma duração de vida mais longa.
Jason parou e olhou, expectante, para Shirley.
– É para eu dizer alguma coisa? – perguntou ela.
– O experimento de Denckla não sugere nada a você?
– Por que não diz logo!
– Denckla deduziu que a hipófise não apenas secreta os hormônios do crescimento e da
puberdade, como também o hormônio do envelhecimento. Denckla chamou-o de hormônio da
morte.
Shirley teve um riso nervoso.
– Isso parece animador.
– Bem, eu acredito que Hayes, ao pesquisar os fatores do crescimento, tomou
conhecimento da hipótese de Denckla sobre o hormônio da morte – continuou Jason. – Era a
isso que ele se referia quando mencionou que era uma descoberta irônica. Ao procurar os
estimuladores do crescimento, encontrou um hormônio que causa rápido envelhecimento e
morte.
– O que aconteceria se esse hormônio fosse dado a uma pessoa? – perguntou Shirley.
– Se fosse dado isoladamente, talvez não causasse muita coisa. A pessoa poderia sentir
alguns sintomas de envelhecimento, mas o hormônio provavelmente seria metabolizado, e seus
efeitos seriam limitados. Mas Hayes não estava estudando isoladamente esse hormônio.
Compreendeu que, assim como era desencadeada a secreção do hormônio sexual e do
crescimento, certamente também existiria um fator de liberação do hormônio da morte.
Imediatamente sentiu-se atraído pelo estudo do ciclo vital do salmão, que morre horas depois
de desovar. Acredito que Hayes tenha coletado cabeças de salmão, e do cérebro deles isolado
o fator de liberação do hormônio da morte. Acho que foi esse o trabalho free-lance que ele
realizou em Gene Inc. Depois de conseguir isolar o fator de liberação, deve ter feito com que
Helene reproduzisse essa substância em maior quantidade, mediante técnicas de recombinação
do ADN, no seu laboratório no GHP.
– E por que ele quereria isso?
– Acho que ele esperava poder desenvolver um anticorpo monoclonal que impedisse a
secreção do hormônio da morte e detivesse o processo de envelhecimento. – De súbito, Jason
apercebeu-se do que Hayes queria dizer quando mencionara que sua descoberta seria um
auxílio à beleza, como um cosmético. A descoberta preservaria a boa aparência jovem, como
a de Carol.


– O que aconteceria se o fator de liberação fosse dado a uma pessoa?
– Ativaria o gene da morte, liberando o hormônio do envelhecimento, da mesma forma
como ocorre no salmão, com resultados muito semelhantes. A pessoa envelheceria e morreria
em três ou quatro semanas. E ninguém saberia por quê. E isso leva à pior constatação de
todas. Acho que alguém obteve esse hormônio criado artificialmente, e que vinha sendo
produzido em nosso laboratório, e começou a dá-lo aos nossos pacientes. Quem quer que seja
esse alguém, só pode ser um louco. Isso é o que eu acho que aconteceu. Hayes deve ter
descoberto – provavelmente quando visitou o filho –, e então lhe ministraram esse fator de
envelhecimento. Se ele não tivesse morrido naquela noite, acho que teria sido morto de algum
outro modo. – Jason encolheu os ombros.
– Como foi que você descobriu? – murmurou Shirley.
– Segui as diversas fases dos experimentos de Hayes. Quando Helene foi assassinada,
achei que Hayes tinha dito a verdade ao falar de sua descoberta e dizer que alguém queria
matá-lo.
– Mas Helene foi estuprada por um desconhecido que invadiu a sua casa.
– Sem dúvida. Mas isso foi apenas para desorientar a polícia quanto ao motivo do seu
assassinato. Eu sempre julguei que ela sabia mais do que revelara sobre o trabalho de Hayes.
Quando soube que ela estava tendo um caso com ele, então tive certeza.
– Mas quem haveria de querer matar nossos pacientes? – perguntou Shirley, em
desespero.
– Um sociopata. O mesmo tipo de louco que põe cianeto no Tylenol. Ainda há pouco, na
clínica do hospital, obtive do computador registros das curvas de sobrevida e de mortalidade.
Os resultados foram incríveis. Houve um aumento significativo no índice de mortalidade no
GHP para os pacientes com mais de cinqüenta anos portadores de doenças crônicas ou
pertencentes ao grupo de alto risco pelo tipo de vida que levam. – Bruscamente Jason parou
de falar. – Que diabo!
– O que é que há? – perguntou Shirley, olhando ansiosa, como se o perigo estivesse
muito próximo.
– Esqueci uma coisa. Verifiquei as curvas mês a mês, mas não médico a médico.
– Você acredita que algum médico está por trás disso? – perguntou Shirley, incrédula.
– Deve estar. Um médico ou talvez uma enfermeira. O fator de liberação seria uma
proteína polipeptídica. Teria de ser injetado. Se fosse administrado por via oral, os sucos
gástricos o degradariam.
– Meu Deus! – Shirley deixou cair a cabeça entre as mãos. – E eu que pensava já
termos problemas em demasia.
– Ela respirou fundo e levantou os olhos. – Não há alguma possibilidade de você estar
enganado, Jason? Talvez o computador tenha cometido um erro. Sabe lá, o processamento de
dados entra em pane tão freqüentemente…
Jason pôs a mão no ombro de Shirley. Ele sabia que estava para ruir todo aquele
império dela, laboriosamente conquistado.
– Não estou enganado – falou ele com suavidade. – Esta noite, fiz também uma outra
coisa. Fui ver o filho de Hayes na Hartford School.
– E…?
– Um horror. Todos os meninos daquela enfermaria devem ter recebido o fator de


liberação. Aparentemente, a substância atua de modo mais lento nos indivíduos pré-escolares,
por isso os meninos ainda estão vivos. Deve haver alguma espécie de competição hormonal
com o hormônio do crescimento. Mas todos aqueles meninos parecem ter cem anos de idade.
Shirley sacudiu os ombros.
– Foi por isso que eu quis saber o nome do atual diretor médico.
– Você acha que Peterson é responsável por isso?
– Ele seria o principal suspeito.
– Talvez devêssemos ir à clínica do hospital e fazer um duplo teste no computador.
Poderíamos mesmo checar as curvas médico a médico.
Antes que Jason pudesse responder, a campainha da porta do prédio rompeu o silêncio
e fez com que ambos se sobressaltassem. Jason levantou-se, com o coração aos saltos.
Shirley colocou sua cerveja sobre a mesa.
– Quem será?
– Não sei. – Jason havia dito a Carol que não saísse do apartamento, e Curran, se
viesse, teria telefonado antes.
– Que devemos fazer? – perguntou Shirley, apressada.
– Vou descer a escada e dar uma olhada.
– Você acha isso uma boa idéia?
– Tem alguma melhor?
Shirley sacudiu a cabeça negativamente.
– Mas não abra a porta.
– Você acha que eu sou o quê, um maluco? Ah, uma coisa que eu ainda não lhe disse:
alguém tentou me matar.
– Não! Onde?
– Num lugar distante, numa pousada a leste de Seattle. Jason abriu a porta do
apartamento.
– Talvez seja melhor você não descer – falou Shirley, apressada.
– Preciso descobrir quem é. – Jason saiu para a área gradeada e olhou para baixo, em
direção à porta de entrada do prédio. Através dos painéis de vidro da porta viu um vulto.
– Tenha cuidado – disse Shirley.
Em silêncio, Jason começou a descer as escadas. Quanto mais perto chegava, maior se
tornava o vulto do indivíduo. O homem estava de cara para os nomes dos moradores e tocava
a campainha raivosamente. Subitamente se virou e apertou a cara contra o vidro. Durante uns
momentos, o rosto de Jason e o rosto do estranho estiveram a meio palmo de distância. Não
havia como se enganar com aquele rosto volumoso e aqueles olhos pequenos e próximos um
do outro. O visitante era Bruno, o halterofilista. Jason voltou-se e disparou escada acima,
enquanto o sujeito esmurrava furiosamente a porta, fazendo-a tremer.
– Quem é?
– Um brutamontes que eu conheço – falou Jason para Shirley, ao mesmo tempo que
fechava a porta do apartamento com chave e tranca. – E é a única pessoa que sabe que eu fui a
Seattle. – Esse aspecto era o que acabava de acudir à sua mente, enchendo-o de terror. Jason
correu para o escritório e pegou o telefone. – Droga! – exclamou ele depois de uns instantes.
Recolocou o fone no gancho e tentou o telefone do quarto. Também ali o aparelho não dava
sinal. – Os telefones estão mudos – disse ele, com desconfiança, para Shirley, que o seguira,


sentindo seu estado de pânico.
– O que vamos fazer?
– Vamos sair. Não vou ficar aprisionado aqui. Jason vasculhou o armário do closet e
encontrou a chave do portão que dava do seu prédio para a estreita passagem que ia terminar
na West Cedar Street. Abriu a janela do quarto, subiu na escada de incêndio e ajudou Shirley a
acompanhá-lo. Seguindo um atrás do outro, desceram até o pequeno jardim, onde as bétulas
sem folhas se destacavam na escuridão, parecendo fantasmas. Depois de chegarem à
passagem, correram até o portão, e então Jason procurou freneticamente acertar a chave na
fechadura. Quando saíram na rua estreita, esta estava silenciosa e vazia, e a escuridão, a
intervalos, cedia lugar às suaves luzes de neon de Beacon Hill.
– Vamos! – falou Jason, e começou a caminhar por West Cedar Street até Charles Street.
– Meu carro está em Louisburg Square – disse Shirley, ofegante, tentando acompanhar
os passos apressados de Jason.
– O meu também. Mas é claro que não podemos voltar. Tenho que tentar apanhar o carro
de um amigo meu.
Na Charles Street havia alguns transeuntes diante do 7-Eleven. Jason pensou em ir ao
drugstore e dali chamar a polícia, mas agora que estava fora do seu apartamento sentia-se
menos aprisionado. Além do mais, queria checar novamente os dados do computador no GHP
antes de falar com Curran. Passaram pela Chestnut Street, ladeada pelos seus antigos edifícios
do governo. Havia algumas pessoas passeando com seus cães, o que fez com que Jason se
sentisse mais seguro. Logo antes da Brimmer Street ele entrou numa garagem-estacionamento,
deu ao vigia uma nota de dez dólares e pediu o carro pertencente a um amigo. Felizmente o
vigia reconheceu Jason e trouxe do interior da garagem um BMW azul.
– Acho que seria uma boa idéia irmos à minha casa – disse Shirley, acomodando-se no
assento dianteiro do carro. – De lá nós podemos telefonar para Curran e dizer-lhe onde você
está.
– Primeiro quero voltar à clínica.
Não havendo quase tráfego algum, chegaram ao hospital em menos de dez minutos.
– Vou demorar só um minuto – disse Jason, estacionando o carro junto à entrada. – Quer
entrar ou prefere esperar aqui?
– Não seja tolo – disse Shirley, abrindo a porta do carro no seu lado. – Quero ver
pessoalmente esses gráficos.
Mostraram seus cartões de identificação ao guarda de segurança e tomaram o elevador,
embora tivessem que subir apenas um andar.
O serviço de limpeza havia deixado as instalações nas suas condições de antes –
revistas nas estantes, cestas de papéis vazias, e o soalho brilhando com cera nova. Jason foi
diretamente à sua sala de trabalho, sentou à escrivaninha e conectou seu terminal de
computador.
– Vou telefonar para Curran – disse Shirley, e saiu em direção à sala das secretárias.
Jason fez um gesto indicando que tinha ouvido o que Shirley dissera. Já estava atento
aos dados do computador. Primeiro verificou os números de identificação dos diversos
médicos da clínica. Estava interessado especialmente no de Peterson. Quando estava de posse
de todos os números, instruiu o computador para que separasse por médicos a população de
pacientes do GHP, e depois começou a extrair as curvas de mortalidade de cada grupo em


relação ao período dos dois últimos meses, justamente aqueles que tinham apresentado as
maiores alterações quando se obtinham as listas de todos os pacientes. Jason esperava
encontrar nos pacientes de Peterson um índice de mortalidade maior ou menor, pois achava
que um psicopata faria experimentos significativamente para mais ou para menos com seus
próprios pacientes.
Shirley voltou à sala de Jason e observou-o introduzindo dados.
– Seu amigo Curran ainda não voltou – disse ela. – Ele telefonou para a central de
polícia e avisou que talvez demorasse ainda algumas horas.
Jason sacudiu a cabeça afirmativamente. Ele estava mais interessado, agora, nas curvas
que iam sendo delineadas nos gráficos. Levou uns quinze minutos para obter todos os gráficos.
Separou as folhas do formulário contínuo e empilhou-as.
– Parecem todas iguais – disse Shirley, inclinando-se sobre o ombro de Jason.
– Tem razão – admitiu Jason. – Até mesmo a de Peterson. Isto não exclui o seu
envolvimento, mas também não nos ajuda muito.
Jason continuou a olhar fixamente o computador, tentando pensar em algum outro dado
que pudesse ser útil. Deu-lhe um branco.
– Bem, são estas as idéias brilhantes por ora. A polícia terá que se encarregar a partir
desse ponto.
– Então vamos embora – disse Shirley. – Você parece exausto.
– Estou mesmo – teve de admitir Jason. Levantar-se da cadeira era realmente um
esforço.
– São estes os gráficos que você obteve antes? – Shirley indagou, apontando para a
pilha de folhas junto ao terminal.
Jason assentiu com a cabeça.
– Que tal trazê-los junto com você? Gostaria que me desse explicações sobre eles.
Jason meteu as folhas de papel num envelope grande.
– Eu dei ao pessoal do Curran o número do telefone da minha casa – disse Shirley. –
Acho que é o melhor lugar para esperar. Você teve oportunidade de comer alguma coisa?
– Comi um pouco daquela comida horrível do avião, mas é como se isso tivesse sido há
vários dias.
– Eu tenho lá em casa um pouco de frango que sobrou.
– Deve estar ótimo.
Quando chegaram ao carro, Jason perguntou a Shirley se ela não se importava de ir
dirigindo, de maneira que ele pudesse relaxar e pensar um pouco.
– Naturalmente que posso dirigir – disse ela, tomando as chaves dele.
Jason embarcou pelo lado do carona, jogando o envelope sobre o assento de trás.
Apertou o cinto de segurança, reclinou-se no assento e fechou os olhos. Deixou que seus
pensamentos vagassem soltos, tentando imaginar as diferentes maneiras pelas quais o fator de
liberação poderia ter sido administrado aos pacientes da clínica. Como a substância não podia
ser dada por via oral, Jason especulou de que modo o criminoso poderia tê-la injetado nos
pacientes que se submeteram a exames de saúde executivos. Era rotina extrair sangue dos
pacientes para numerosos exames laboratoriais, mas os tubos a vácuo não ofereciam nenhuma
possibilidade de se injetar neles uma substância. Para os pacientes internados, a coisa era
diferente – estavam sempre recebendo injeções e soro intravenoso.


Ele não conseguia chegar a nenhuma conclusão plausível. Quando Shirley parou diante
da sua casa, Jason sentia-se cambaleante e quase caiu ao sair do carro. O curto repouso teve o
efeito de acentuar-lhe o cansaço. Apanhou no banco de trás o envelope.
– Sinta-se como em sua casa – disse Shirley, levando-o para o living.
– Primeiro quero saber se Curran telefonou.
– Vou cuidar da comida, é só um instante. Por que não prepara um drinque para você
enquanto isso?
Cansado demais para discutir, Jason foi ao barzinho e serviu-se de uma dose de
Dewar’s e gelo, depois voltou ao sofá. Enquanto esperava por Shirley, ficou a considerar
novamente as diversas maneiras pelas quais alguém poderia ter administrado o fator de
liberação. Não havia muitas possibilidades. Se a substância não era injetada, então teria de
ser administrada por meio de supositórios, ou então mediante alguma outra forma de contato
direto com uma membrana mucosa. A maioria dos pacientes que se submetiam a um exame de
saúde completo fazia também um enema de bário; Jason se indagou se não seria essa a
resposta.
Ele começava a sorver o seu uísque quando Shirley chegou trazendo o frango assado e
salada.
– Posso fazer um drinque para você? – perguntou Jason.
Shirley depôs a bandeja sobre a mesinha ao lado do sofá.
– Por que não? – E acrescentou: – Não precisa se mexer, deixe que eu faço.
Jason observava Shirley acrescentar uma gota de vermute à vodca, e foi nesse instante
que ele pensou nas gotas oculares. Todos os pacientes que passavam pelos exames de saúde
executivos eram submetidos a exames oftalmológicos completos, inclusive gotas oculares para
dilatação das pupilas. Se alguém quisesse introduzir o fator de liberação do gene da morte, a
membrana mucosa do olho poderia absorvê-lo perfeitamente. E o que era ainda mais
favorável: como o fator de liberação podia ser introduzido secretamente na medicação ocular
regular, um médico ou um técnico, sem saber, podiam administrar as gotas fatais.
Jason começou a sentir a cabeça latejar intensamente. Ao encontrar uma explicação
plausível do que podia ter sido a chave de tudo, via que se tornava subitamente real a
possibilidade de um psicopata executar um assassinato em massa. Shirley voltou do bar
agitando o seu drinque. Naquele momento, Jason decidiu poupá-la da sua mais recente
revelação.
– Algum recado de Curran? – perguntou ele.
– Ainda não – falou Shirley, olhando-o de modo esquisito. Por uns momentos ele se
perguntou se ela seria capaz de ler-lhe a mente.
– Eu tenho uma pergunta – disse ela, hesitando. – Esse suposto fator de liberação da
morte não faz parte de um processo natural?
– Sim – disse Jason. – É por isso que os exames anatomopatológicos não puderam
esclarecer muita coisa. Todas as vítimas, inclusive Hayes, morreram das chamadas causas
naturais. O fator de liberação simplesmente desencadeia a ativação do gene na puberdade, e o
ativa a plena força.
– Você quer dizer que começamos a envelhecer na puberdade? – perguntou Shirley, num
tom desolado.
– Esta é a teoria atual – disse Jason. – Mas evidentemente isso é gradual, adquirindo


velocidade somente em fases mais avançadas da vida, quando declinam os níveis do hormônio
do crescimento e dos hormônios sexuais. O fator de liberação aparentemente ativa o gene do
hormônio da morte, plena e definitivamente, e, num adulto sem altos níveis de hormônio do
crescimento para contrabalançá-lo, causa envelhecimento rápido, à semelhança do que ocorre
com o salmão. Minha opinião é que esse período é de três semanas. Parece que o sistema
cardiovascular é o fator limitante. É o que aparentemente sucumbe primeiro e causa a morte.
Mas também poderia ser um outro sistema de órgãos.
– Mas o envelhecimento é um processo natural – repetiu ela.
– O envelhecimento faz parte da vida – concordou Jason. – Do ponto de vista da
evolução, é tão importante quanto o crescimento. Sim, é um processo natural. – Jason teve um
riso vazio. – Hayes decerto tinha razão quando classificou essa sua descoberta como irônica.
Com todo o trabalho sendo feito para retardar o envelhecimento, sua descoberta sobre o
crescimento resultou numa forma de acelerá-lo.
– Se o envelhecimento e a morte têm um valor evolutivo – insistiu Shirley –, talvez
tenham também um valor social.
Jason olhou para Shirley, sentindo-se tomado de um crescente sentimento de alarme. Ele
só queria não estar tão cansado. Seu cérebro emitia sinais de perigo, mas ele se sentia
demasiadamente exausto para decodificá-los. Tomando o seu silêncio como concordância,
Shirley continuou:
– Deixe que eu exponha a coisa de outra maneira. A medicina em geral se vê diante do
desafio de proporcionar assistência de boa qualidade a custos reduzidos. Mas, por causa do
aumento da duração da vida, os hospitais ficam lotados com uma população idosa que é
mantida viva a um preço altíssimo exaurindo não somente seus recursos econômicos mas
também as energias do corpo médico. Por exemplo, o GHP teve um desempenho muito bom no
seu início, porque a maioria dos mutuários do sistema eram jovens e sadios. Agora, vinte anos
depois, todos eles estão mais idosos e exigem muito mais assistência médica. Se o
envelhecimento fosse acelerado em certas circunstâncias, isso poderia ser o melhor para
ambas as partes, pacientes e hospitais.
O ponto importante – enfatizou Shirley – é que os idosos e os doentes deveriam
envelhecer e morrer rapidamente, para evitar sofrimento e também a utilização excessiva de
uma assistência médica dispendiosa.
À medida que o seu cérebro entorpecido pelo cansaço começava a entender o
raciocínio de Shirley, Jason sentia que ia sendo dominado e paralisado pelo horror. Embora
quisesse gritar e dizer que aquilo que ela expunha era o assassinato legalizado, o que lhe
aconteceu foi se ver sentado, e com o ânimo embotado, na beirada do sofá, como um
passarinho paralisado de medo diante de uma cobra venenosa.
– Jason, você tem alguma noção dos enormes custos para se manter vivas as pessoas
durante os últimos meses de suas vidas, em um hospital? – falou Shirley, de novo tomando o
silêncio dele, equivocadamente, como concordância. – Você tem noção disso? Se a medicina
não gastasse tanto com o ato de morrer, poderia fazer muito mais para ajudar a viver. Se o
GHP não estivesse abarrotado de pacientes de meia-idade fadados a adoecer por causa do
tipo de vida malsã que levam, imagine o que poderíamos fazer pelos jovens. E os pacientes
que não cuidam de sua própria saúde, como os fumantes inveterados e os que bebem
intensivamente, ou as pessoas que usam drogas, não estarão todos eles acelerando


voluntariamente a morte? Seria tão errado apressar a morte dessa gente, de modo que não
sobrecarregassem o restante da sociedade?
Jason, afinal, abriu a boca para protestar, mas não conseguia encontrar as palavras para
refutar. Só o que pôde fazer foi sacudir a cabeça num gesto de desacordo.
– Não posso acreditar que você aceite o fato de que a medicina não tem mais condições
de sobreviver sob o peso esmagador dos problemas de saúde crônicos das pessoas
fisicamente debilitadas, aqueles mesmos pacientes que passaram trinta ou quarenta anos
maltratando o corpo que Deus lhes deu. Mas essa decisão não compete a mim, nem a você –
exclamou Jason, afinal.
– Mesmo quando o processo de envelhecimento é simplesmente acelerado por uma
substância natural?
– Isso é assassinato! – Jason levantou-se cambaleando. Shirley também se levantou,
colocando-se rapidamente junto à porta que dava para a sala de jantar.
– Entre, Sr. Díaz – falou ela, abrindo a porta. – Eu fiz o que pude.
Jason sentiu a boca ficar seca ao voltar o rosto e dar de frente com o homem que tinha
visto no Salmon Inn. O rosto bem proporcionado e moreno de Juan adquiria vivacidade,
prelibando a ação. O hispânico tinha na mão uma pequena pistola automática de fabricação
alemã, aparelhada com um silenciador do tamanho de um charuto.
Jason recuou aos trancos, até dar com as costas contra a parede. Seus olhos foram da
arma para o rosto extraordinariamente bem proporcionado do assassino e daí para Shirley,
que o olhava com a mesma calma com que o olharia numa reunião de diretoria.
– Desta vez não há toalha de mesa – disse Díaz, com um sorriso de desdém que punha à
mostra seus dentes brancos e perfeitos de astro de cinema. Ele avançou na direção de Jason,
colocando o silenciador da pistola a um palmo da sua cabeça. – Passe bem – falou ele, com
um amistoso aceno de cabeça.


17
– Sr. Díaz – falou Shirley.
– Sim – respondeu Juan, sem desviar os olhos de Jason.
– Não atire, a não ser que ele o obrigue a isso. Será melhor lidar com ele do jeito como
lidamos com o Sr. Hayes. Amanhã eu lhe trago o material do hospital.
Jason soltou a respiração. Ele nem mesmo se apercebera de que estava com a
respiração suspensa.
O sorriso desapareceu do rosto de Juan. Suas narinas se dilataram; ele estava
desapontado e com raiva.
– Acho que seria muito mais seguro se eu o matasse agora mesmo, Srta. Montgomery.
– Não importa o que você pensa, e sou eu quem paga a você. Agora vamos levá-lo para
o porão. E nada de cenas de brutalidade. Eu sei o que estou fazendo.
Juan movimentou a pistola de maneira que o metal frio tocou a têmpora de Jason. O
médico sabia que o hispânico estava só esperando conseguir o mais leve pretexto para atirar;
por isso, permaneceu absolutamente imóvel, petrificado pelo medo.
– Venha! – chamou Shirley do haII de entrada.
– Ande! – falou Juan, afastando a arma da cabeça de Jason.
Jason caminhou rígido, com os braços colados ao corpo. Juan seguiu atrás, em certos
momentos tocando as costas de Jason com a pistola.
Shirley abriu uma porta localizada sob a escada, do lado oposto da entrada principal da
casa. Jason pôde ver um lance de escadas que descia para o subsolo.
Quando se aproximou, tentou olhar Shirley nos olhos, mas ela voltou o rosto. Ele cruzou
o vão da porta e começou a descer os degraus, com Juan imediatamente atrás.
– Os médicos me surpreendem – disse Shirley, acendendo a luz do porão e fechando a
porta atrás de si. – Pensam que a medicina é só uma questão de ajudar os doentes. A verdade é
que, se não se fizer alguma coisa com os portadores de doenças crônicas, não haverá dinheiro
nem recursos humanos para ajudar aqueles que realmente podem se recuperar.
Olhando para o rosto calmo e bonito de Shirley e para suas roupas perfeitas, Jason não
conseguia acreditar que era a mesma mulher que ele sempre havia admirado.
Ela se interrompeu para conduzir Juan por um longo e estreito corredor que ia terminar
numa pesada porta de carvalho. Passando apertada no estreito espaço junto a Juan e Jason,
com a chave ela abriu a porta e acendeu a luz, iluminando uma grande sala quadrada. Jason foi
empurrado para dentro da sala; viu que havia uma porta à esquerda, uma bancada junto à
parede, e uma outra porta de madeira maciça à direita. Então a luz foi apagada, a porta bateu
com estrondo, e Jason se viu cercado de total escuridão.
Por alguns instantes permaneceu de pé e imóvel, imobilizado pelo choque e pela falta
de visão. Podia ouvir pequenos sons; água correndo por encanamentos, o sistema de
aquecimento funcionando, e passos acima de sua cabeça. A escuridão permanecia absoluta.
Ele não poderia nem mesmo dizer se seus olhos estavam abertos ou fechados.
Quando, afinal, conseguiu se movimentar, encaminhou-se de volta à porta pela qual
entrara. Agarrou a maçaneta da porta e tentou girá-la. Puxou a porta. Não havia dúvida, ela era
firme. Passando as mãos em torno do marco, tateou em busca de dobradiças. Mas abandonou


essa tentativa ao se lembrar de que a porta se abria para o corredor.
Saiu de perto da porta e moveu-se para o lado, dando passos curtos e deslizando
cautelosamente as mãos pela parede. Chegou ao canto e então girou noventa graus. Continuou
andando com passos curtos até conseguir tatear o vão da porta aberta. Entrando com cuidado
no outro compartimento, tentou localizar, com o tato, algum interruptor de luz na parede. Do
lado esquerdo, mais ou menos na altura do peito, encontrou um. Acionou-o. Nada aconteceu.
Avançou para dentro da sala secundária e começou a apalpar as paredes, tentando
averiguar as dimensões. Seus dedos tocaram num objeto metálico localizado na parede e que
tinha uma parte dianteira de vidro. Apalpando mais para baixo, na altura da cintura, pôde
identificar uma pia. Mais para a direita havia um vaso sanitário. O recinto não devia medir
mais que um metro e meio por dois.
Retornando à sala principal, Jason continuou sua lenta caminhada. Encontrou uma
segunda sala pequena, com a porta fechada, e que se situava além do banheiro. Quando abriu a
porta, pelo olfato percebeu que era um closet forrado de cedro. Encontrou, dentro, diversos
sacos de roupas, cheios de roupas.
De volta à sala principal, Jason chegou num outro canto e girou novamente. Depois de
uma dúzia de passos curtos, chocou-se de leve contra a bancada, junto à parede, que
sobressaía mais ou menos um metro para dentro da sala. Jason apalpou os contornos da
bancada, depois o que havia embaixo, encontrando divisões com prateleiras. Pelo que
calculou, a bancada devia ter três ou quatro metros de comprimento. Passando a bancada,
reencontrou a parede, na qual notou uma prateleira com algo que, ao tato, pareciam latas de
tinta. Mais além da prateleira ficava o outro canto da sala.
No meio da quarta parede, Jason encontrou outra pesada porta, esta hermeticamente
fechada e trancada. Apalpando, pôde notar que havia uma fechadura, mas faltava a chave. Não
havia dobradiças. Continuando a andar, Jason chegou ao quarto canto. Em poucos instantes
encontrou-se de novo na entrada.
Abaixou-se, ficando de joelhos, e passou a tatear o chão. Era de concreto. Levantandose novamente, Jason tentou pensar em algo mais que pudesse fazer. Não teve nenhuma idéia
que lhe parecesse boa. De súbito, foi invadido por um avassalador sentimento de medo
mortal, como se estivesse sendo afogado. Nunca havia sofrido de claustrofobia, mas essa
sensação o dominou com uma intensidade esmagadora.
– Socorro! – gritou ele, mas só chegou a seus ouvidos o eco da própria voz. Jason
perdeu o controle, apalpou desesperadamente a porta de entrada e esmurrou-a. – Aqui, abram!
– E continuou esmurrando a porta até sentir as mãos doendo. Parou abruptamente, com um
estremecimento por todo o corpo, e apertou contra o peito as mãos machucadas. Inclinou-se
para a frente, encostou a testa na porta. E então lhe vieram as lágrimas.
Jason não se lembrava de haver chorado desde os tempos de criança. Nem mesmo
depois da morte de Danielle. E todos aqueles anos em que tivera de negar essa emoção
pareceram voltar agora, quando estava humilhantemente agachado no porão da casa de
Shirley. Perdeu completamente o controle de si e lentamente desabou no chão, onde se
enrodilhou em frente à porta, como um cachorro acorrentado, sufocando-se com o choro.
Mas essa crueza da reação emocional surpreendeu ao próprio Jason. E depois de
soluçar uns dez minutos, ele começou a readquirir sua compostura. Sentiu-se envergonhado de
si mesmo. Sempre tinha acreditado que possuía autocontrole. Por fim, sentou-se e ficou com as


costas contra a porta. Na escuridão, enxugou as lágrimas que escorriam pelo rosto molhado.
Em vez de se entregar ao desespero total, começou a pensar a respeito da sala em que
estava. Procurou avaliar as dimensões e esquematizar a localização das coisas que havia
encontrado no seu trajeto exploratório. Começou a imaginar se não haveria outros
interruptores de luz. Levantou-se e voltou, devagarinho, à segunda porta fechada a chave,
situada à direita. Ao chegar ali, apalpou ao longo das paredes, de ambos os lados da porta,
mas não encontrou nenhum interruptor de luz.
Andando às apalpadelas pela sala, retornou ao banheiro. Tentou o interruptor ali
existente mais algumas vezes. Começou então tatear em busca do soquete elétrico, imaginando
que poderia trocar a lâmpada, desde que conseguisse localizar as luzes no teto da sala
principal. Mas não havia instalação palpável, nem na prateleira do banheiro nem no teto.
Desanimado, Jason retornou à sala principal.
– Ahhh! – gritou Jason, quando deu de frente com uma coluna dura, batendo com o nariz
contra a superfície metálica de quinze centímetros de diâmetro. Por uns instantes
desequilibrou-se e sentiu que o nariz começava a inchar. Apalpou-o e percebeu que havia uma
saliência óssea no lado direito: tinha fraturado o nariz. Novamente seus olhos se encheram de
lágrimas, só que desta vez eram uma reação reflexa, não exprimiam tristeza. Quando se
recuperou o suficiente para prosseguir andando, percebeu que havia se desorientado. Voltando
a caminhar com passos curtos, movimentou-se até encontrar uma parede. Só então conseguiu
encontrar a bancada.
Inclinando-se, começou abrir as portas das divisões sob a bancada, explorando
meticulosamente cada uma delas com as mãos. Cada compartimento media aproximadamente
um metro e vinte de largura e era provido de uma única prateleira removível. Ele encontrou
mais latas de algo que lhe pareceu ser tinta, mas nenhuma ferramenta. Levantou-se e inclinouse por cima da bancada, tentando apalpar o que se achava na parede acima. Havia algumas
prateleiras estreitas, à direita, com pequenos jarros e caixas. Movimentando-se para a parte
central, ele apalpou a parede novamente, esperando encontrar um suporte de ferramentas ou
coisa parecida, com chaves de fenda, martelos e formões. Em vez disso, suas mãos acharam
um bujão de vidro fixado a uma caixa metálica. Canos entravam na caixa metálica. Jason
entendeu que ali era o medidor de eletricidade.
Deslocando-se para a extremidade esquerda da bancada, apalpou novamente a parede.
Havia ali mais prateleiras contendo jarros de plástico e de cerâmica para flores, mas nada de
ferramentas.
Desapontado, Jason pôs-se a considerar o que mais poderia fazer. Pensou em encontrar
alguma coisa sobre a qual pudesse ficar de pé, de modo que tivesse condições de explorar as
paredes perto do teto, onde talvez houvesse uma janela vedada. No meio desses pensamentos,
acudiu-lhe à mente a descoberta do medidor de eletricidade. Subiu na bancada e, pelo tato,
conseguiu localizar não só o medidor como também o trajeto dos fios, que iam dar numa
segunda caixa metálica retangular. Apalpando a superfície, imediatamente achou um anel
metálico articulado. Dando-lhe um leve puxão, abriu a caixa.
Dentro dela estava o painel de distribuição da fiação elétrica da casa. Devagar,
explorou o interior com o dedo, esperando não tocar num fio desencapado. Mas seus dedos
conseguiram tatear uma fileira de disjuntores e fusíveis.
Nos cinco minutos que se seguiram, ficou a pensar num jeito de fazer uso de sua


descoberta. Desceu então da bancada, abriu a porta do armário sob a bancada e removeu todo
o seu conteúdo, guardando as latas nos dois armários do lado. Depois retirou a única
prateleira, que, felizmente, não estava pregada, e entrou no compartimento. Encontrou ali
espaço suficiente.
Saiu do armário, voltou a subir na bancada e desligou, um a um, todos os disjuntores.
Depois fechou o painel, meteu-se dentro do armário, debaixo da bancada, fechou atrás de si a
porta do armário e rezou. Se já tivessem ido dormir, a falta de luz não os incomodaria.
Passado algum tempo, que para ele pareceu equivaler a uns cinco minutos, Jason ouviu
uma porta se abrir. A seguir, ouviu vozes, e, por uma fresta na porta do armário onde estava
escondido, viu um tênue feixe de luz tremeluzindo. Depois ouviu o ruído de uma chave na
porta de entrada, a qual se abriu de repente. Com o olho na fresta da porta do armário, ele
pôde ver nitidamente dois vultos. Um segurava uma lanterna de pilhas que lentamente
esquadrinhou com a luz a sala toda.
– Ele está escondido – disse Juan.
– Não precisa me dizer isso – falou Shirley, com irritação.
– Onde é a sua caixa de fusíveis? – perguntou Juan. A luz da lanterna deu buscas na
parede acima da bancada.
– Você fique aqui – disse Juan. E dirigiu-se para o interior da sala, vindo colocar-se
entre Jason e a luz da lanterna que Shirley devia estar segurando. Jason suspeitou que Juan
estava com as mãos ocupadas em segurar a pistola.
Então inclinou-se contra o fundo do armário e levantou os pés. Assim que ouviu os
disjuntores sendo religados, chutou as portas do armário com toda a força e impulso de suas
pernas de corredor. As portas golpearam Juan Díaz inteiramente de surpresa, atingindo-o nas
virilhas. O hispânico arqueou-se ofegante de dor e cambaleou para trás, contra o closet de
cedro.
Jason não perdeu tempo. Esgueirou-se para fora do armário e atravessou a sala
correndo, agarrando a porta antes que Shirley tivesse a possibilidade de fechá-la. Bateu-a com
toda a força, avançando, na corrida, contra Shirley e atirando a mulher no chão. Shirley soltou
um grito ao bater com a cabeça no concreto do chão. A lanterna soltou-se de sua mão.
Num ímpeto só, Jason saiu correndo pelo corredor em direção à escada, dando graças
aos céus por estar essa área da casa novamente com as luzes acesas. Agarrou-se ao corrimão e
usou-o para impulsionar melhor o corpo escada acima. Foi então que ouviu um disparo
abafado. Simultaneamente, sentiu uma dor na coxa, e a perna direita afrouxou atrás de si.
Procurando manter-se de pé, conseguiu, aos pulos, subir o restantes da escada. Já estava quase
na saleta de entrada da casa; não podia desistir.
Com a perna direita arrastando, lutou para chegar à porta da frente. Embaixo, ouviu
alguém começando a subir a escada.
O trinco de dentro da porta abriu-se e Jason saiu cambaleando para a noite inclemente
de novembro. Sabia que tinha sido atingido por uma bala. Podia sentir o sangue que saía do
ferimento e escorria pela perna até dentro do sapato.
Mal pôde chegar até o meio da rua; Juan agarrou-o e atirou-o contra as pedras do
calçamento, mantendo-o sob a mira da pistola. Jason caiu sobre as mãos e os joelhos. Antes
que pudesse levantar-se, Juan chutou-o, forçando-o a cair de costas. Mais uma vez, a pistola
estava apontada para a cabeça de Jason.


Subitamente, os dois homens foram inundados por uma claridade intensa. Mantendo a
arma apontada para Jason, Juan procurou proteger os olhos do ofuscamento de dois faróis de
luz alta. Um segundo mais tarde, ouviu-se o ruído de portas de carro se abrindo, seguido do
som sinistro de armas de grosso calibre sendo engatilhadas. Juan recuou alguns passos, como
um animal encurralado.
– Calma aí, Díaz – falou uma voz, desconhecida para Jason. Era uma voz rouca e tinha
o sotaque da zona sul de Boston. – Não faça nenhuma bobagem. Não queremos problema com
você ou com Miami. Queremos apenas que vá para o seu carro, numa boa, com calma, e se
mande. Combinado? Juan balançou a cabeça afirmativamente. Com a mão esquerda ainda
tentava inutilmente proteger seus olhos da luz.
– Pois agora ande – ordenou a voz.
Depois de dar dois ou três passos vacilantes para trás, Juan virou-se e apressou-se em
direção ao seu carro. Ligou o motor, engrenou a primeira e saiu rugindo pela alameda.
Jason rolou de borco, barriga para baixo. Assim que Juan desapareceu, Carol Donner
saiu do círculo de luz e se pôs de joelhos diante de Jason.
– Meu Deus, você está ferido! – Havia uma grande mancha de sangue na coxa de Jason.
– Acho que sim – falou Jason vagamente. Tanta coisa tinha acontecido tão rapidamente.
– Mas não dói demais – acrescentou ele.
Um outro vulto emergiu do clarão dos faróis; Bruno apareceu segurando uma escopeta
Winchester semi-automática.
– Oh, não! – exclamou Jason, tentando sentar-se.
– Não se preocupe – disse Carol. – Ele agora sabe que você é um amigo.
Nesse momento, Shirley apareceu junto à escada da sua casa. Tinha as roupas em
desalinho e os cabelos desgrenhados como os de um roqueiro punk. Num segundo, ela avaliou
o que se passava. Recuou para dentro e bateu com a porta. Ouviu-se o ruído de fechaduras
sendo trancadas.
– Temos que levá-lo a um hospital – disse Carol, apontando para o médico.
Apareceu um segundo halterofilista. Agindo com cautela, levantaram Jason.
– Não dá para acreditar – falou ele.
Viu-se carregado para a parte de trás do clarão dos faróis. Verificou que o veículo era
uma limusine Lincoln branca com uma antena de TV em forma de V na parte de trás. Os dois
atletas ajeitaram-no cuidadosamente no banco traseiro, onde aguardava um homem de óculos
escuros, cabelos esmeradamente penteados para trás, um cigarro ainda apagado na boca. Era
Arthur Koehler, o patrão de Carol. Carol entrou após Jason e apresentou-o a Arthur. Os dois
homens musculosos instalaram-se nos assentos dianteiros, um deles ligando o motor da
limusine.
– Também estou contente por encontrar vocês dois – disse Jason. – Mas, pelo amor de
Deus, o que foi que os trouxe aqui? – Jason encolheu-se quando o carro deu um solavanco ao
sair da alameda.
– Foi a sua voz – explicou Carol. – Na última vez que você telefonou, percebi que
estava em dificuldades novamente.
– Mas como soube que eu estava aqui em Brookline?
– Bruno o seguiu – disse Carol. – Depois que você telefonou, liguei para este meu
estimado patrão aqui. – Carol deu um tapinha na perna de Arthur. Ele protestou


amistosamente:
– Ora, pare com isso. – Fora esta a voz que havia aterrorizado Juan Díaz.
– Eu perguntei a Arthur se ele podia dar proteção a você, e ele disse que sim, com uma
condição: que eu continuasse dançando pelo menos mais dois meses ou até que ele
encontrasse uma substituta.
– Pois é, mas ela me fez diminuir o prazo para um mês – queixou-se Arthur.
– Estou agradecido – disse Jason. – Você vai mesmo parar de dançar, Carol?
– Essa aí é uma pirralha tinhosa – falou Arthur.
– Estou surpreso – disse Jason. – Não pensei que garotas como você pudessem parar
quando bem entendessem.
– O que está querendo dizer? – perguntou Carol, indignada.
– Eu sei o que é, querida, deixe-me explicar – disse Arthur, rindo, e inclinou-se para a
frente, devolvendo a Carol o tapinha na perna. – Ele pensa que você é uma piranha das brabas.
– Arthur caiu num acesso de riso que terminou por lhe provocar tosse. Carol teve de dar-lhe
várias palmadas nas costas até que o espasmo fosse controlado. – Eu costumava ter acessos
bem piores sempre que acendia este troço – disse Arthur, exibindo o seu cigarro. Então ele
olhou para Jason na meia-luz do carro. – Você pensa que eu a teria deixado ir a Seattle se ela
fosse uma prostituta? Tenha juízo, homem.
– Desculpe – disse Jason. – Eu só pensei…
– Você pensou que, por dançar na boate, eu era uma piranha! – disse Carol, um tanto
menos indignada. – Bom, suponho que não seja algo inteiramente desapropriado. Várias delas
são mesmo. Mas a maioria não. Para mim, foi uma grande oportunidade. Meu nome de família
não é Donner. É Kikonen. Somos finlandeses e sempre temos tido uma atitude mais sadia do
que os norte-americanos em relação à nudez.
– E ela é filha da irmã de minha esposa – disse Arthur. – Por isso eu lhe dei emprego.
– Vocês são parentes? – perguntou Jason, surpreso.
– Não gostamos de admitir isso – disse Arthur, começando a rir novamente.
– Ora, deixe disso – falou Carol. Mas Arthur continuou, dizendo:
– Nós detestamos a idéia de que alguém da nossa gente possa ir para Harvard. Isto
arranha a nossa reputação.
– Você vai para Harvard? – perguntou Jason, virando-se para Carol.
– Para fazer o meu doutorado. A dança pagará os meus estudos.
– É claro, eu devia saber que Alvin não iria nunca viver com uma simples bailarina de
topless – disse Jason. – De qualquer modo, agradeço a vocês dois. Só Deus sabe o que teria
acontecido se vocês não tivessem chegado. Sei que a polícia vai tomar conta de Shirley
Montgomery, mas eu preferiria que não tivessem deixado Juan ir embora.
– Não se preocupe – disse Arthur, fazendo um gesto com o cigarro. – Carol me contou o
que aconteceu em Seattle. Ele não vai aparecer por muito tempo. Mas não quero problemas
com o meu pessoal em Miami. Vamos tratar do caso Juan através dos canais competentes, mas
também posso lhe dar informações capazes de pôr a polícia de Miami no encalço desse
camarada. Eles terão contra ele provas suficientes para tirá-lo de circulação. Pode crer em
mim.
Jason olhou para Carol.
– Não sei como posso lhe retribuir.


– Eu tenho algumas idéias – falou ela, num tom brincalhão.
Arthur teve outro acesso de riso. Quando ele, por fim, conseguiu controlar-se, Bruno
baixou o vidro do compartimento dianteiro.
– Você aí, cara – chamou ele, com um sorriso disfarçado. – Para onde quer ser levado?
Emergência do GHP?
– Pelo amor de Deus, não – disse Jason. – Por ora estou um pouco desanimado com
essa história de planos de assistência médica. Levem-me ao Mass General.


EPÍLOGO
Jason nunca tinha tido problemas de saúde, como se diz, mas agora estava adorando têlos. Após uma cirurgia por causa do ferimento na perna, ficou hospitalizado por três dias. A
dor havia diminuído significativamente; a equipe de enfermagem do Mass General era de uma
atenção e competência extraordinárias. Algumas das enfermeiras ainda se lembravam de Jason
como médico residente.
Mas o melhor da hospitalização era que Carol passava a maior parte de cada dia ao seu
lado; lendo para ele em voz alta, deliciando-o com histórias engraçadas, ou simplesmente
sentada, em silêncio, fazendo companhia.
– Quando você estiver melhor – disse ela, no segundo dia, enquanto arrumava as flores
que tinham sido enviadas por Claudia e Sally –, acho que deveremos voltar a Salmon Inn.
– Mas, afinal de contas, para quê? – indagou Jason. Depois do que haviam passado, ele
não podia imaginar-se com vontade de revisitar aquele lugar.
– Eu gostaria de experimentar de novo a Cachoeira do Diabo – disse Carol, animada. –
Mas, desta vez, à luz do dia.
– Você está brincando!
– De verdade. Aposto como aquilo lá é um barato quando há sol.
Uma tosse discreta fez com que ambos voltassem a cabeça para a porta. O detetive
Curran, com seu corpanzil desajeitado, parecia estar visivelmente fora de lugar no hospital.
Com as mãos enormes segurava um chapéu impermeável de cor cáqui, tão amarfanhado que
parecia ter sido amassado por um caminhão.
– Espero não estar incomodando o senhor, Dr. Howard – falou ele, com uma polidez
incaracterística.
Jason teve a impressão de que Curran estava tão intimidado pelo hospital quanto ele
próprio se sentira pela central de polícia.
– De maneira nenhuma – disse Jason, esforçando-se para sentar-se no leito. – Entre.
Sente-se.
Carol puxou uma cadeira de perto da parede e colocou-a junto ao leito. Curran desabou
o corpo enorme na cadeira, sempre segurando o chapéu.
– Como vai a perna?
– Bem – disse Jason. – O ferimento foi mais nos músculos. Não vai ser um problema,
de modo nenhum.
– É bom saber.
– Um bombom? – perguntou Carol, estendendo-lhe uma caixa de chocolates que as
secretárias do GHP haviam mandado.
Curran examinou-os cuidadosamente, escolheu um de cereja coberto de chocolate,
abriu-o e colocou-o inteiro na boca. Ao engolir, falou:
– Achei que o senhor gostaria de saber como está indo o caso.
– Naturalmente, claro – disse Jason. Carol deu a volta no leito, foi para o outro lado e
sentou-se na beirada do colchão.
– Antes de mais nada, eles pegaram Juan em Miami. A ficha policial dele é coisa de
mais de um quilômetro. Você sabe. Ele é um desses presentes de Castro para a América.


Vamos tentar fazer com que extraditem esse camarada para Massachusetts, por causa dos
assassinatos de Brennquivist e Lund, mas vai ser difícil. Parece que quatro ou cinco outros
estados, inclusive a Flórida, estão procurando esse pilantra, por crimes parecidos.
– Não posso dizer que lamento muito por ele – disse Jason.
– Esse cara é um psicopata – concordou Curran.
– E o GHP? – perguntou Jason. – O senhor conseguiu provar que o fator de liberação do
gene da morte foi introduzido nas gotas oculares utilizadas pelo setor de oftalmologia?
– Sobre isso estamos trabalhando em estreita colaboração com a Promotoria Pública –
disse Curran. – Isso ainda vai dar o que falar.
– Em que medida o senhor acha que a coisa vai vir a público?
– Por agora, não sabemos com certeza. Alguma coisa vai aparecer. A Hartford School
está fechada, e os pais daquelas crianças não são cegos. Além disso, conforme a Promotoria
Pública está mostrando, há muitas famílias locais entrando com processos judiciais de
milhões de dólares contra o GHP. Shirley e a equipe dela estão com os dias contados.
– Shirley… – disse Jason, pensativo. – Sabe, houve um tempo, antes de Carol, em que
eu quase me envolvi com essa mulher.
Carol, rindo, mostrou um punho fechado na direção de Jason.
– Acho que lhe devo um pedido de desculpas, doutor – falou Curran. – No começo,
achei que o senhor não passava de um chato. Mas agora sou obrigado a reconhecer que
desbaratou a conspiração mais perigosa de que já ouvi falar.
– Foi principalmente sorte – disse Jason. – Se eu não tivesse estado com Hayes naquela
noite em que ele morreu, nós, médicos, teríamos pensado que estávamos às voltas com uma
nova epidemia.
– Esse camarada, o Hayes, deve ter sido muito inteligente – disse Curran.
– Um gênio – disse Carol.
– Vocês sabem o que mais me deixa maluco no caso? – falou Curran. – Até o fim, Hayes
pensava estar trabalhando numa descoberta para ajudar a humanidade. Provavelmente sonhava
em ser um herói, como Salk. Prêmio Nobel, essas coisas todas. Salvar o mundo. Não sou
cientista, mas me parece que toda essa área de pesquisa de Hayes é assustadora demais.
Sabem o que estou querendo dizer?
– Sei exatamente o que quer dizer – disse Jason. – A ciência médica sempre supôs que
suas pesquisas haveriam de salvar vidas e diminuir o sofrimento. Mas agora ela tem um
potencial terrível. As coisas podem ir tanto numa direção como noutra.
– Pelo que eu entendo – disse Curran –, Hayes descobriu uma substância que faz as
pessoas envelhecerem e morrerem em algumas poucas semanas, e ele nem estava procurando
esse efeito. Isso me faz pensar que vocês, os intelectuais cientistas, estão fora de controle.
Estou enganado?
– Está certo – disse Jason. – Talvez estejamos ficando espertos demais para nosso bem.
É como comer do fruto proibido de novo.
– Sim, e vamos ser chutados do paraíso, aí é que está – acrescentou Curran. – Por falar
nisso, o governo não tem como ficar de olho em sujeitos como Hayes?
– O governo não tem um controle muito bom desse tipo de coisa – explicou Jason. –
Muitos conflitos de interesses. Além do mais, os médicos, e os leigos igualmente, tendem a
acreditar que toda pesquisa da medicina é inerentemente boa.


– Maravilha! – rosnou Curran. – É como um carro disparado a 160 quilômetros por
hora na estrada e sem motorista.
– Essa é a melhor analogia que eu já ouvi – disse Jason.
– Pois é isso. – O detetive encolheu seus enormes ombros. – Pelo menos com o GHP
nós podemos lidar. Em breve serão apresentadas acusações formais. Naturalmente, a turma
toda está em liberdade mediante fiança. A coisa está sendo toda investigada, e os cabeças do
GHP estão agora apunhalando uns aos outros pelas costas e tentando se confessar culpados
para escapar de acusações mais graves. Parece que o nosso amigo Hayes inicialmente
abordou um certo sujeito de nome Ingelbrook.
– Ingelnook. É um dos vice-presidentes do GHP – disse Jason. – Parece-me que ele
trata das finanças.
– Deve ser – disse Curran. – Aparentemente Hayes tentava obter capital inicial para
fundar uma empresa.
– Eu sei – disse Jason.
O detetive lançou um olhar duro para o médico.
– O senhor sabia, então? E como foi que ficou sabendo disso, Dr. Howard?
– Isso não tem importância. Continue.
– Seja como for – falou Curran –, Hayes deve ter contado a Ingelnook que estava para
desenvolver algum tipo de elixir da juventude.
– Esse tal elixir teria sido um anticorpo contra o fator de liberação do hormônio da
morte – disse Jason.
– Espere um momento. – Talvez o senhor é que devesse estar me contando essa história,
e não eu ao senhor.
– Desculpe – disse Jason. – Finalmente isso tudo faz sentido para mim. Por favor,
continue.
– Ingelnook deve ter gostado mais do hormônio da morte do que do elixir da juventude
– continuou Curran. – Durante algum tempo, ele tentou dar tratos à bola para baixar os custos
no GHP e mantê-los competitivos. Até agora, a conspiração envolve apenas seis pessoas, mas
pode haver mais. Elas foram responsáveis pela eliminação de uma série de pacientes que
supostamente usariam os serviços médicos numa cota superior à que mereciam. Beleza, não?
– Então mataram esses pacientes – disse Carol, horrorizada.
– Bom, tudo era feito de modo a fazer crer que o processo de envelhecimento e morte
era natural – disse Curran.
– Um pretexto para matar. Afinal, todos vamos morrer mesmo – comentou Jason com
amargura. E sentiu-se atormentado ao lembrar as fisionomias de alguns de seus pacientes
recentemente falecidos.
– De qualquer modo, é o fim do GHP – disse Curran. – Sem contar as acusações por
crime, as queixas de erro médico e má prática médica já se avolumam. O GHP não tem mais
saída. Por isso, acho que o senhor deve estar à procura de emprego.
– Mais ou menos. – Então, olhando para Carol, Jason acrescentou: – Carol está
terminando os estudos em psicologia clínica. Pensamos em abrir um consultório juntos. Acho
que o que eu quero é voltar à clínica particular. Nada de empresas por algum tempo.
– Acho boa essa idéia – falou Curran. – Aí eu poderia mandar consertar minha cabeça e
meu coração no mesmo lugar.


– O senhor pode ser o nosso primeiro paciente.

FIM



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