Abduzidos ROBIN COOK
Título original: ABDUCTION Tradução: Celina Cavalcante Falck Editora Record, 2001 ISBN 85-01-06055-0 Digitalizado, revisado e formatado por SusanaCap www.portaldetonando.com.br/forumnovo/
Para Cameron,
bem
-
vinda à vida,
"P
ingo d
e Gente
"
***
1
1
Uma vibração esquisita despertou Perry Bergman de um sono
inquie
to, e instantaneamente um estranho pressentimento o invadiu. O
desa
gradável murmúrio o fez recordar unhas raspando um quadro
-
negro.
Estremecendo, ele jogou para o lado o cobe
rtor. Quando se ergueu, viu
que a vibração continuava. Os pés descalços sobre o convés de metal lhe
davam a impressão de se tratar de uma broca de dentista. Logo abai
xo era
capaz de detectar o zunido normal dos geradores do navio e o ronco dos
ventiladore
s de ar
-
condicionado.
—
Mas que diabo?...
—
disse em voz alta, mesmo não vendo
ninguém ao alcance de sua voz para poder lhe dar alguma explicação.
Tinha vindo de helicóptero até o navio, o
Benthic Explorer,
na noite
anterior, depois de um longo vôo de Los A
ngeles até Nova York e de lá
até Ponta Delgada, na ilha açoreana de San Miguel. Devido à mudança de
fusos horários e após ouvir uma longa exposição dos problemas técnicos
que a equipe técnica de sua empresa vinha enfrentando, estava
compreensivelmente exau
sto. Não gos
tou de ser despertado depois de
apenas quatro horas de sono, ainda mais por uma vibração tão intensa.
Arrancando do gancho o receptor do intercomunicador do navio,
pressionou irritado os botões, digitando o número da ponte de comando.
Enquanto
aguardava que a ligação se completasse, espiou pela vigia de
sua cabine VIP, pondo
-
se na ponta dos pés. Com um metro e setenta de
altura, Perry não se considerava baixo, mas simplesmente um cara que
não era alto. Lá fora o sol mal havia se erguido acima d
o horizonte. O
navio projetava uma longa sombra sobre o Atlântico. Perry estava
olhando para o oeste, além de um mar enevoado e calmo, cuja superfí
cie
lembrava uma vasta extensão de chumbo fundido. A água ondula
va
-
se
sinuosamente com ondas baixas e bem s
eparadas umas das outras. A
serenidade da cena contrastava com os acontecimentos que se davam
abaixo da superfície. O
Benthic Explorer
estava sendo mantido numa
posição fixa por um sistema de posicionamento dinâmico comandado por
computador, que movimentav
a os hélices propulsores bem como os
impelidores de proa e de ré acima de uma parte da vulcânica e
sismicamente ativa Cadeia Meso
-
Atlântica, uma cadeia de montanhas
pon
tiagudas de mais de 20 mil quilômetros de extensão, que divide o
oceano. Com a extrusão
constante de enormes quantidades de lava, as
explo
sões submarinas de vapor e freqüentes miniterremotos, a cordilheira
submersa era a antítese da tranqüilidade estivai da superfície do oceano.
—
Ponte
—
Perry ouviu uma voz entediada dizer.
—
Onde está o c
apitão Jameson?
—
indagou Perry, irritado.
—
Na cama dele, pelo que sei
—
disse a voz, tranqüilamente.
—
Mas que porra de vibração é essa?
—
insistiu Perry.
—
Sei lá, mas não está vindo do grupo gerador do navio, se é o que
quer saber. Senão eu teria ouvid
o da sala de máquinas. É provável que
seja apenas a sonda de perfuração. Quer que eu ligue para a cabine de
perfuração?
Perry não respondeu; só bateu o telefone na cara do outro. Não po
-
dia acreditar que o sujeito lá da ponte não estivesse pensando em inve
s
-
tigar a vibração ele mesmo. Será que não estava ligando a mínima para o
trabalho? Perry ficou fulo da vida com aquela falta de profissionalismo na
operação do navio, mas resolveu tratar disso depois. Em vez disso tentou
se concentrar em vestir sua
calça
jeans
e blusa grossa de gola alta.Não
precisava que ninguém lhe dissesse isso para saber que a vibração podia
estar vindo da sonda de perfuração. Estava na cara. Afinal, tinha sido
devido a dificuldades na perfuração que ele havia vindo de Los Angeles.
Per
ry sabia que havia apostado o futuro da Benthic Marine naquele
projeto: perfurar uma câmara magmática no interior de uma monta
nha
submarina a oeste dos Açores. Era um projeto independente, e por isso a
empresa estava gastando em vez de receber, de forma q
ue a san
gria de
dinheiro estava sendo pavorosa. A motivação de Perry para essa
empreitada estava na crença de que o feito iria chamar a atenção da
opinião pública, concentrar o interesse na exploração submarina e
catapultar a Benthic Marine para a diantei
ra da pesquisa oceanográfica.
Infelizmente, parecia que o empreendimento não estava saindo como
havia sido planejado.
Depois de se vestir, Perry deu uma espiada no espelho acima da pia
no banheiro apertado. Alguns anos antes ele não teria se incomodado em
fazer isso. Mas as coisas haviam mudado. Agora, que estava com mais de
quarenta, achava que a aparência desleixada que costumava funcionar a
seu favor estava fazendo com que ele parecesse velho, ou, na melhor das
hipóteses, cansado. Os cabelos estavam fica
ndo ralos, e ele precisava de
óculos para leitura, mas ainda exibia um sorriso triunfante. Perry tinha
orgulho de seus dentes brancos e perfeitamente ali
nhados, principalmente
porque enfatizavam o bronzeado que ele fazia tudo para não perder.
Satisfeito c
om seu reflexo, tratou de ir saindo da cabine e correr pelo
corredor. Quando passou pelas portas do capitão e do imediato sentiu
-
se
tentado a esmurrá
-
las para desabafar sua irritação. Sabia que as
superfícies de metal iriam reverberar como timbales, des
pe
rtando
brutalmente os ocupantes adormecidos de seu pesado sono. Como
fundador, presidente e maior acionista da Benthic Marine, ele esperava
que as pessoas ficassem mais alerta quando ele estivesse a bor
do. Será que
era o único que estava preocupado o sufi
ciente para inves
tigar aquela
vibração?Quando chegou ao convés superior, Perry tentou localizar a
fonte do zunido estranho, que agora se mesclava ao som da sonda em
funci
onamento. O
Benthic Explorer
era uma embarcação de quatrocentos e
cinqüenta pés com
uma sonda de perfuração de vinte andares a meia nau,
sobre um poço central. Além da sonda de perfuração, o navio ga
bava
-
se
de ter um complexo de mergulho saturado, um submersível para águas
profundas e vários trenós de câmera móveis controlados remota
men
te,
cada um com uma impressionante série de câmeras fixas de monitoração e
câmeras de televisão para gravação. Combinando
-
se
esse
equipamento
com um amplo laboratório, o
Benthic Explorer
dava a sua empresa
-
mãe, a
Benthic Marine, a capacidade de realizar um
a extensa gama de estudos e
operações oceanográficos.
Perry viu a porta da cabine de perfuração aberta. Um homem
gigantesco apareceu. Bocejou e espreguiçou
-
se antes de erguer as alças do
macacão para recolocá
-
las sobre os ombros e pôr na cabeça o capacete
amarelo onde se lia
S
UPERVISOR DE
T
URNO
em letras de fôrma acima do
visor. Ainda meio entorpecido de sono, ele se encaminhou para a mesa
rotativa. Obviamente não estava com pressa alguma, apesar da vibração
que percorria o navio.
Apressando o passo, Perry
alcançou o homem exatamente no mo
-
mento em que dois outros operários se juntaram a ele.
—
Já faz vinte minutos que está acontecendo isso, chefe
—
disse um
dos homens de área berrando acima do barulho da sonda. Todos os três
ignoraram Perry.
O capataz que s
upervisionava o turno resmungou ao calçar um par
de pesadas luvas e atravessou todo lampeiro a estreita grade de metal
sobre o poço central. O sangue
-
frio dele impressionou Perry. A passare
la
parecia frágil e tinha apenas um corrimão baixo para evitar que
al
guém
caísse 15 metros e batesse contra a superfície do oceano lá embaixo.
Atingindo a mesa rotativa, o supervisor curvou
-
se e colocou ambas as
mãos enluvadas em torno do eixo em rotação. Não tentou agarrá
-
lo com
força, mas deixou
-
o girar entre as mãos.
Inclinou a cabeça para o lado
enquanto tentava interpretar o tremor transmitido tubo acima. Levou
apenas um momento fazendo isso.
—
Parem a sonda!
—
berrou o gigante.
Um dos peões correu de volta ao painel de controle externo. Den
tro
de instantes a mesa
rotativa parou, estalando, e a vibração cessou. O
supervisor voltou e subiu ao convés.
—
Mas que merda! A broca arrebentou de novo!
—
reclamou ele,
com uma expressão de ódio.
—
Isso já está parecendo até brincadeira de
mau gosto.
—
O engraçado foi que nós
só perfuramos um metro, mais ou
menos, nos últimos quatro ou cinco dias
—
disse o outro peão.
—
Cale essa boca!
—
disse o gigante.
—
Vê se vai até ali e me iça a
coluna de perfuração até a cabeça do poço!
O segundo assistente de sonda foi ajudar o primeiro
. Quase imedia
-
tamente ouviu
-
se novo som de máquinas potentes enquanto os guinchos
eram engatados para cumprir a ordem do capataz. O navio estremeceu.
—
Como tem certeza de que a broca se quebrou?
—
berrou Perry,
tentando se fazer ouvir apesar do barulho.
O capataz baixou o olhar para ele.
—
Experiência
—
berrou, depois virou
-
se e afastou
-
se a passos lar
-
gos na direção da popa.
Perry foi obrigado a correr para alcançá
-
lo. Cada passada do
supervisor era o dobro de uma das suas. Perry tentou fazer nova per
gu
nta,
mas o homem não ouviu ou ignorou
-
o. Eles chegaram à escada meia
-
laranja e o supervisor começou a subir, três degraus de cada vez. Dois
conveses acima, ele entrou num corredor e depois parou diante da porta
de um compartimento. O nome que se lia na por
ta era MARK
DAVIDSON, COMANDANTE DE OPERAÇÕES. O capataz bateu à porta
com toda a força. A princípio, a única resposta foi um acesso de tosse, mas
depois uma voz lhe disse para entrar.
Perry espremeu
-
se no pequeno compartimento atrás do capataz.
—
Más notíc
ias, chefe
—
anunciou o capataz.
—
Acho que a broca estourou
de novo.
—
Mas que horas são, cara?
—
indagou Mark. Passou os dedos
através dos cabelos arrepiados. Estava sentado na beira da cama, de cueca
e camiseta. O rosto estava inchado, e a voz, grossa d
e sono. Sem esperar
resposta, estendeu o braço para pegar um maço de cigarros. O ar no
quarto estava fedendo a fumaça entranhada.
—
São mais ou menos zero
-
seiscentos
—
informou o capataz.
—
Meu Deus
—
exclamou Mark. Os olhos dele depois focaliza
ram
Perry.
Mostraram surpresa. Ele piscou.
—
Perry? O que está fazen
do
acordado?
—
Não tinha como dormir com essa vibração
—
disse Perry.
—
Que vibração?
—
indagou Mark. Olhou outra vez para o
supervisor de turno, que fitava Perry.
—
Você é o Perry Bergman?
—
pergu
ntou o capataz.
—
Pelo menos era, da última vez que verifiquei
—
brincou Perry.
Sentiu uma certa satisfação ao perceber o constrangimento do capataz.
—
Foi mal
—
disse o capataz.
—
Deixa pra lá
—
disse Perry, magnânimo.
—
A coluna de perfuração estava chac
oalhando?
—
perguntou Mark.
O capataz confirmou.
—
Exatamente como das últimas quatro vezes, e talvez um pouco
pior.
—
Nós só temos mais uma broca de carbureto de tungstênio com
diamante
—
lamentou Mark.
—
Não precisa me lembrar disso
—
disse o capataz.
—
Qual a profundidade?
—
indagou Mark.
—
Não mudou muito desde ontem
—
respondeu o capataz.
—
Já
descemos quatrocentos metros de tubulação. Como o fundo fica a mais ou
menos trezentos metros e não há sedimento, só penetramos na ro
cha cerca
de cem metros, un
s centímetros a mais ou a menos.
—
Era isso que eu
estava lhe explicando ontem à noite
—
disse Mark a Perry.
—
Estávamos
indo muito bem até quatro dias atrás. Desde então não saímos do lugar,
talvez tenhamos descido de sessenta centí
metros a um metro, apes
ar de
termos acabado com quatro brocas.
—
Então acha que encontrou uma camada de rocha dura?
—
in
-
dagou Perry, achando que tinha que dizer alguma coisa.
Mark riu sarcasticamente.
—
Dura não é bem a palavra. Estamos usando brocas diamantadas
com as ranhuras
mais retas possíveis! O pior é que ainda vamos enfrentar
mais trezentos metros da mesma coisa, seja lá o que for, até chegarmos à
câmara magmática, pelo menos de acordo com nosso radar de penetra
ção
no solo. Pelo andar dessa carruagem, vamos ficar aqui d
ez anos.
—
O laboratório analisou a rocha que tiraram da última broca
quebrada?
—
perguntou o capataz.
—
Sim, analisou
—
confirmou Mark.
—
É um tipo de rocha que
jamais haviam visto antes. Pelo menos de acordo com o Tad Messenger.
Compõe
-
se de um tipo de o
livina cristalina que ele acha que talvez possua
uma matriz microscópica de diamante. Acho que podíamos tentar ob
ter
uma amostra maior. Um dos maiores problemas de se tentar perfu
rar no
mar aberto é que não temos um retorno dos fluidos de perfuração. É c
omo
perfurar no escuro.
—
Será que não dava para mandarmos um extrator de amostras lá
para baixo?
—
Grande coisa conseguiríamos, se não conseguimos nem meter
uma broca diamantada nessa pedra
—
comentou Mark.
—
E que tal acoplá
-
lo à broca diamantada? Se con
seguíssemos obter
uma boa amostra dessa coisa que estamos tentando perfurar, talvez pu
-
déssemos traçar um plano razoável para contornarmos
esse
obstáculo. Já
investimos dinheiro demais nessa operação, não dá para desistir sem uma
boa briga.
Mark olhou para
o capataz, que deu de ombros. Depois voltou a
olhar para Perry.
—
Você é quem manda.
—
Pelo menos por enquanto
—
disse Perry. Não estava brincan
do.
Imaginava por quanto tempo iria conseguir ser o mandachuva se o projeto
abortasse.
—
Tudo bem
—
disse Mark.
Colocou o cigarro na beirada de um
cinzeiro já transbordante.
—
Icem a broca até a cabeça do poço.
—
Os rapazes já estão fazendo isso
—
informou o supervisor.
—
Peguem a última broca do estoque
—
orientou Mark. Pegou o
intercomunicador de bordo.
—
Vou man
dar o Larry Nelson preparar o
sistema de mergulho saturado e lançar o submersível no mar. Vamos
substituir a broca e ver se conseguimos uma amostra melhor do que
estamos perfurando.
—
Sim, senhor
—
disse o capataz. Virou
-
se e saiu, enquanto Mark
erguia o r
eceptor até o ouvido para ligar para o comandante das opera
-
ções de mergulho.
Perry fez menção de sair também, mas Mark ergueu a mão, pedin
-
do
-
lhe que ficasse. Depois de terminar a chamada para Larry Nelson,
Mark olhou para Perry.
—
Há um assunto no qual n
ão toquei ontem à noite na palestra
—
disse ele.
—
Mas acho que devia ficar sabendo.
Perry engoliu em seco. Sua boca havia ficado seca. Não estava gos
-
tando do tom de voz do Mark. Parecia que estava para dar péssimas
notícias.
—
Talvez não seja nada
—
pros
seguiu Mark
—
, mas quando usa
mos
o radar de penetração no solo para estudar essa camada de rocha que
estamos tentando perfurar como mencionei antes, encontramos uma coisa
inesperada. Os dados estão aqui na minha escrivaninha. Quer ver?
—
Vá falando
—
diss
e Perry.
—
Mostre
-
me os dados depois.
—
O radar deu a entender que o conteúdo da câmara magmática
talvez não seja o que pensamos a partir dos estudos sísmicos originais.
Talvez não seja líquido.
—
Está brincando!?
—
Essas novas informações
aumentaram os rec
eios de Perry. Tinha sido por acaso, no verão anterior,
que o
Benthic Explorer
havia encontrado a montanha submarina que
estavam perfu
rando no momento. O impressionante na descoberta é que,
como par
te da Cadeia Meso
-
Atlântica, a área já havia sido exaust
ivamente
estudada pelo Geosat, o satélite de medição de densidade da Marinha
norte
-
americana, usado para gerar mapas do fundo do oceano. Mas de
algu
ma forma aquela montanha submarina em particular não havia sido
detectada pelo Geosat.
Embora a equipe do
B
enthic Explorer
andasse ansiosa para voltar
para casa, haviam parado tempo suficiente para passar várias vezes aci
ma
da misteriosa montanha. Com o sofisticado radar do navio, fizeram um
estudo superficial da estrutura interna do
guyot.
Para surpresa de to
dos,
os resultados foram tão inesperados quanto a presença da mon
tanha. Ela
parecia ser um vulcão inativo de crosta particularmente fina, cujo núcleo
líquido estava a apenas 120 metros do fundo do oceano. Ainda mais
espantoso era o fato de que a substânci
a no interior da câ
mara magmática
possuía características de propagação do som idênti
cas às da
descontinuidade de Mohorovicic, ou Moho, a misteriosa fronteira entre a
crosta terrestre e o manto. Como ninguém jamais ha
via sido capaz de
obter magma do Moh
o, embora os americanos e rus
sos houvessem
tentado durante a Guerra Fria, Perry resolvera voltar lá e perfurar a
montanha na esperança de que a Benthic Marine fosse a pri
meira
organização a obter uma amostra do material derretido. Racioci
nou que a
análi
se do material poderia esclarecer a estrutura e talvez até mesmo a
origem da terra. Mas agora o comandante de operações do
Benthic Explorer
estava lhe dizendo que os dados sísmicos originais tal
vez estivessem
errados!
—
A câmara magmática pode estar vazia
—
disse Mark.
—
Vazia?
—
gaguejou Perry.
—
Bom, não exatamente vazia
—
corrigiu
-
se Mark.
—
Cheia de
algum tipo de gás comprimido, ou talvez vapor. Sei que extrapolar dados
a essa profundidade é levar a tecnologia de radar de penetração no solo
além de seu
s limites. Aliás, muitas pessoas diriam que os resulta
dos dos
quais falo são apenas especulação, meramente deduzidos, por assim dizer.
Mas o fato de que os dados de radar não combinam com a sísmica me
preocupa do mesmo jeito. Eu detestaria fazer
esse
esfo
rço todo e só
encontrar uma lufada de vapor superaquecido. Ninguém vai gostar disso,
muito menos seus investidores.
Perry mordiscou a parte de dentro da bochecha enquanto refletia
sobre a preocupação de Mark. Começou a desejar que jamais tivesse
ouvido fal
ar no Monte Olimpo, que era o nome que a tripulação havia
dado à montanha submarina de cume achatado que estavam tentando
perfurar.
—
Já mencionou isso à Dra. Newell?
—
perguntou Perry. A Dra.
Suzanne Newell era a oceanógrafa sênior do
Benthic Explorer.
—
Ela já viu
esses dados de radar dos quais está me falando?
—
Ninguém os viu ainda
—
disse Mark.
—
Eu só notei a sombra na
tela do meu computador ontem, quando estava me preparando para sua
chegada. Estava pensando em levar os dados para sua palestra on
tem
à
noite, mas resolvi esperar para falar com você em particular. Caso não
tenha observado, há um problema de moral lá com alguns compo
nentes
da equipe. Várias pessoas já estão começando a achar que perfu
rar
esse
guyot é
mais ou menos o mesmo que atacar m
oinhos de vento. As pessoas
estão começando a falar em pedir demissão e voltar para casa, para as
famílias delas, antes do fim do verão. Não queria botar mais lenha na
fogueira.
Perry sentiu os joelhos bambos. Puxou a cadeira de Mark e sentou
-
se pesadament
e. Esfregou os olhos. Estava cansado, faminto e desani
mado.
Sentia vontade de se esganar por apostar assim o futuro da empresa todo
em dados t
ão pouco confiáveis, mas a descoberta havia parecido
extremamente fortuita. Ele se sentira compelido a agir.
—
Ei
, não estou a fim de bancar o estraga
-
prazeres
—
disse Mark.
—
Vamos fazer o que você sugeriu. Vamos tentar entender melhor o tipo de
rocha que estamos perfurando. Nada de desânimos antes da hora.
—
É
meio difícil não ficar desanimado
—
disse Perry
—
, consid
e
rando
-
se a nota
preta que a Benthic Marine está desembolsando para manter o navio aqui.
Talvez fosse melhor evitarmos prejuízo maior.
—
Por que não vai comer alguma coisa?
—
sugeriu Mark.
—
Não
adianta tomar decisões precipitadas assim, de barriga vazia.
Aliás, se me
esperar tomar uma ducha, eu o acompanho. Dane
-
se! Logo, logo va
mos
ter mais algumas informações sobre esse troço que estamos tentan
do
atravessar. Talvez tenhamos uma idéia mais clara do que fazer.
—
Quanto tempo vão levar para trocar a broc
a?
—
indagou Perry.
—
O submersível pode ser lançado em uma hora
—
informou
Mark.
—
Eles vão levar a broca e as ferramentas para a cabeça do poço. Os
mergulhadores levam mais tempo para descer porque precisam ser
pressurizados antes de baixarmos o sino. Is
so vai levar umas duas horas
mais, se eles apresentarem dores devido à compressão. Trocar a broca é
mole. A operação toda deve levar de três a quatro horas, talvez menos.
Perry se ergueu com certo esfor
ço.
—
Ligue para a minha cabine quando estiver pronto
para ir co
-
mer.
—
Dirigiu
-
se à porta.
—
Ei, espere aí um segundo
—
disse Mark, subitamente entusias
-
mado.
—
Tive uma idéia que talvez levante o seu astral. Por que não desce
no submersível? Parece que o
guyot
lá embaixo é lindo, pelo me
nos, a
Suzanne semp
re diz isso. Até o piloto do submersível, Donald Fuller, ex
-
oficial do corpo da armada, que em geral é um sujeito assim
compenetrado, objetivo, diz que a paisagem é magnífica.
—
O que pode haver de tão maravilhoso em uma montanha
submersa de cume achatado?
—
indagou Perry.
—
Eu não desci lá
—
admitiu Mark.
—
Mas parece que a geologia da
área é que é bonita. Sabe,
esse
negócio dela fazer parte da Cadeia Meso
-
Atlântica, e coisa e tal. Mas fale com a Newell ou o Fuller! Vou lhe dizer,
eles vão ficar nas nuvens
quando eu lhes pedir que desçam lá. Com as
luzes de halogênio do submersível e a limpidez da água do mar, dizem
que a visibilidade é entre sessenta a noventa metros.Perry concordou. Não
era má idéia dar um mergulho, pois isso, sem dúvida, o faria parar de
pensar um pouco na situação atual e sentir que estava fazendo algo. Além
disso, só havia estado no submersível uma vez, ao largo da ilha de Santa
Catalina, quando a Benthic Marine rece
bera a embarcação, e tinha sido
uma experiência memorável. Pelo me
nos
ele teria uma chance de ver
aquela montanha que estava lhe causando tanto aborrecimento.
—
A quem devo anunciar que farei parte da tripulação?
—
inda
gou
Perry.
—
Deixe isso comigo
—
disse Mark. Pôs
-
se de pé e tirou a camise
-
ta.
—
É só eu avisar ao Larry
Nelson.
2
2
Richard Adams vestiu ceroulas de malha folgadas e compridas, tira
-
das do armário do navio, e fechou a porta com um pontapé. Depois de
vestir a roupa de baixo, colocou, com toda a cerimônia, seu gorro preto de
tricô do turno de vigia. Assim param
entado, saiu do compartimento e
esmurrou as portas de Louis Mazzola e de Michael Donaghue. Am
bos
responderam com uma torrente de imprecações. Os xingamentos já
haviam perdido o poder de ofensa, uma vez que constituíam uma
percentagem predominante do vocab
ulário desses tripulantes. Richard,
Louis e Michael, mergulhadores profissionais, eram do tipo que gosta de
encher a cara, viver perigosamente, arriscar periodicamente a vida
fazendo solda submarina quando necessário, explodindo coisas como
recifes, por ex
emplo, ou trocando brocas durante operações de perfura
ção
submarina. Eram trabalhadores braçais submarinos, e se orgulha
vam
disso.
Os três haviam se submetido a treinamento juntos, na Marinha
norte
-
americana, haviam se tornado amigos do peito, bem como m
em
bros
bem
-
sucedidos da força de demolição submarina da Marinha. Todos
aviam aspirado a se tornarem Navy Seals
*
, mas isso não estava escrito nas
*
As equipes SEAL (Sea, Air, Land, ou seja, Mar, Ar e Terra) remontam ao primeiro grupo
de voluntários selecionado a partir dos Batalhões de Const
rução Naval (SeaBees) na
primavera de 1943. Esses voluntários se organizavam em dois grupos especiais
chamados Unidades de Demo
lição de Combate Naval (Navy Combat Demolition Units
—
NCDUs). Deviam fazer o reco
nhecimento e a limpeza da praia para as tropa
s que iriam
desembarcar durante operações anfíbias, destacando
-
se durante a Segunda Guerra
Mundial, tanto no Atlântico quanto no Pacífico. Em 1947, a Marinha organizou suas
primeiras unidades ofensivas de ataques submarinos. Durante a guerra da Coréia, ess
as
Equipes de Demolição Submarina (UDTs) participaram do desembar
que em Inchon, bem
como em outras missões como os ataques de demolição a pontes e túneis acessíveis da
água. Na década de 1960, cada ramo das forças armadas formou sua própria força de
comba
te a rebeldes. A Marinha empregou o pessoal de UDT para compor unidades
separa
das denominadas equipes SEAL. Essas equipes foram desenvolvidas com o
objetivo de realiza
rem operações clandestinas contra guerrilheiros e de guerra não
convencional na água.
(
N. da T.
)
estrelas. A predileção deles por cerveja e pancadarias excedia de lon
ge a
de seus colegas. O fato de todos h
averem tido pais alcoólatras, bru
tos,
violentos, preconceituosos, proletários e que gostavam de espancar as
mulheres explicava o comportamento deles, mas não o justificava. Longe
de ficarem constrangidos pelo exemplo paterno, os três viam suas
infâncias b
arra
-
pesada como uma progressão natural até a autêntica
masculinidade. Nenhum deles jamais parou para pensar num certo di
tado
antigo: filho de peixe, peixinho é.
A masculinidade era uma virtude crítica para todos os três. Eram
impiedosos ao punirem qualqu
er homem que considerassem menos
macho do que eles e que tivesse a audácia de entrar num bar onde esti
-
vessem bebendo. Costumavam meter o malho em advogados "malan
dros"
e em caras do Exército metidos a besta. Também condenavam qualquer
pessoa que consider
assem imbecil, um "cdf" ou homossexual. A
homossexualidade era o que mais os incomodava, e, por eles, a polí
tica do
"eu não pergunto, você não revela" era ridícula, uma verdadeira afronta
pessoal.
Embora a Marinha tendesse a ser clemente com os mergulhado
res e
tolerasse comportamento que não seria admitido em outros colegas,
Richard Adams e seus amigos exageraram na dose. Numa tarde quente de
agosto, refugiaram
-
se no seu minúsculo bar de mergulhadores pre
dileto
em Point Loma, em San Diego. O dia havia sid
o arrasador, os
mergulhos,
árduos. Depois de numerosas rodadas de uísque com cer
veja e um
número igual de discussões sobre a temporada de beisebol que estava
rolando, ficaram chocados e consternados ao verem um ca
sal de caras do
Exército entrar, todo lam
peiro. De acordo com os mer
gulhadores, na corte
marcial, os dois foram "dar um amasso" em um dos reservados dos fundos.
O fato de um dos soldados ser oficial só tornou a sensação de ultra
je
mais intensa nos mergulhadores. Eles nem pensaram em se pergunta
r o
que um casal de oficiais do Exército estaria fazendo em San Diego, uma
cidade sabidamente repleta de gente da Marinha e dos Fuzileiros. Richard,
o eterno cabeça do trio, foi o primeiro a se aproximar do reser
vado.
Perguntou
—
em tom sarcástico
—
se po
dia participar da orgia. Os
homens do Exército, sem entender direito qual era a do Richard
—
que era
expulsá
-
los dali
—
, riram, negaram que estivessem fazendo or
gias de
qualquer tipo, e ofereceram pagar para ele e os amigos uma ro
dada de
bebidas, para ac
almar os ânimos. O resultado foi uma pancadaria
unilateral que mandou os dois oficiais do Exército para o hospital naval
Balboa. Também mandou Richard e os amigos direto para o xadrez, e de
lá para fora da Marinha. Acontece que os homens do Exército eram d
o
JAG, o Corpo Jurídico e Legal Geral do Exército.
—
Vamos, seus babacas!
—
berrou Richard, quando viu que os
outros ainda não haviam aparecido. Olhou de relance o relógio de mer
-
gulho. Sabia que o Nelson ia ficar uma fera. As ordens dele pelo
intercomunic
ador haviam sido para irem para o centro de comando de
mergulho imediatamente.
O primeiro a surgir foi o Louis Mazzola. Era quase uma cabeça mais
baixo do que Richard, que tinha um metro e oitenta de altura. Richard
considerava Louis um cara tipo bola de b
oliche. Tinha feições carnu
-
das, a
parte inferior do rosto eternamente mais escura onde a barba havia sido
cortada, e cabelos curtos e negros que caíam escorridos pela cabeça
redonda. Parecia não ter pescoço; o trapézio saía em ângulo do crânio sem
nenhuma
reentrância.
—
Para que a pressa?
—
queixou
-
se Louis.
—
Vamos mergulhar!
—
explicou Richard.
—
Mais alguma novidade?
—
reclamou Louis.
A porta de Michael se abriu. Ele ficava num ponto entre a silhueta
esquelética de Richard e a troncuda de Louis. Como os
amigos, ti
nha
músculos atléticos e obviamente estava em boa forma. Também era
igualmente desmazelado, vestido com as mesmas ceroulas folga
das.
Porém, ao contrário dos outros, estava com um boné de beise
bol do Red
Sox com a viseira virada para o lado. Mi
chael vinha de Chelsea,
Massachusetts, e portanto era um ávido torcedor do Sox e do Bruins.
Michael abriu a boca para reclamar por ter sido acordado, mas
Richard o ignorou e seguiu para o convés principal. Louis fez o mesmo.
Michael deu de ombros e foi atr
ás dos outros. Quando desceram a meia
-
laranja principal, Louis gritou para Richard:
—
ô Richard, você trouxe o baralho?
—
Claro
—
retrucou Richard, virando a cabeça.
—
E você, trouxe o
talão de cheques?
—
Vá para o inferno
—
disse Louis.
—
Nos últimos quat
ro mer
-
gulhos, você nem chegou perto de me vencer.
—
Era estratégia, cara
—
revelou Richard.
—
Andei armando uma
pra você.
—
Danem
-
se as cartas
—
disse Michael.
—
Trouxe as revistas de
sacanagem, Mazzola?
—
Acha que vou mergulhar sem elas?
—
retrucou Louis
.
—
Nem
pelo cacete! Preferiria esquecer as nadadeiras!
—
Espero que tenha olhado para ver se trouxe as revistas com ga
-
tinhas, e não as de garotões
—
provocou Michael.
Louis parou de chofre. Michael esbarrou nele.
—
Que porra foi essa que você disse?
—
ro
snou Mazzola.
—
Só estava querendo saber se você trouxe as revistas certas
—
disse
Michael com um sorrisinho sarcástico.
—
Talvez eu queira pedi
-
las em
-
prestado, e não quero ter a péssima surpresa de ter que encarar um monte
de paus.
Louis rapidamente agar
rou com toda a vontade a blusa de Michael.
Michael reagiu agarrando o braço de Louis com a mão esquerda e cer
-
rando o punho para dar
-
lhe um murro. Antes que a coisa ficasse mais feia,
Richard interveio.
—
Ei, dêem um tempo aí, seus babacas!
—
berrou Richar
d, me
-
tendo
-
se entre os dois amigos. Com um murro para cima, jogou o bra
ço de
Louis para o lado. Ouviu
-
se um som de alguma coisa se rasgando, e a mão
de Luis voltou com um pedaço arrancado da camiseta de Michael entre os
dedos. Como um touro enfurecido, L
ouis tentou empurrar Richard para
alcançar Michael. Quando viu que não conseguia, tentou agarrar a blusa
de Michael por cima do ombro de Richard. Michael, soltando uma sonora
gargalhada, esquivou
-
se.
—
Mazzola, seu babaca!
—
gritou Richard.
—
Ele só está t
entan
do te
botar pilha. Esfria essa cabeça, pelo amor de Deus!
—
Filho da puta!
—
disse Louis entre os dentes. Jogou o pedaço de
tecido rasgado que havia arrancado da camiseta de Michael na cara do
zombeteiro. Michael tornou a rir.
—
Já chega!
—
disse Ric
hard, com asco, enquanto continuava a
percorrer o corredor. Michael abaixou
-
se e pegou o retalho da blusa.
Quando fingiu estar colando o tecido de volta no peito, Louis não agüen
-
tou e teve que rir. Depois correram para alcançar Richard.
Quando os mergulha
dores chegaram ao convés principal, viram que
o guincho estava erguendo o tubo.
—
A broca deve ter se quebrado outra vez
—
disse Michael. Tanto
Richard quanto Louis concordaram, sem nada dizer.
—
Já sabemos o que
vamos fazer.
Entraram na cabine de perfuraç
ão e se acomodaram em três cadeiras
dobráveis perto da porta. Era ali que ficava o posto de trabalho de Larry
Nelson, o homem que coordenava todas as operações de mergulho. Atrás
dele, do lado direito da cabine, estendendo
-
se até o outro lado, ficava
ocons
ole de mergulho. Ali se viam todos os mostradores, medidores e
con
troles para operar o sistema de mergulho. Do lado esquerdo do painel
se encontravam os controles e monitores dos trenós das câmeras. Também
do lado esquerdo havia uma janela que dava para o
poço central do na
vio.
Era por
esse
poço central que o sino de mergulho descia.
O sistema de mergulho do
Benthic
Ex
plorer era
um sistema saturado,
e isso significava que os mergulhadores deviam absorver o máximo
possível de gás inerte durante qualquer me
rgulho. Ou seja, o tempo de
descompressão necessário para que eles se livrassem do gás inerte seria o
mesmo, por mais tempo que permanecessem na câmara hiperbárica. O
sistema se compunha de três câmaras de descompressão de convés ci
-
líndrico, cada uma com
três metros e sessenta centímetros de largura e
seis de comprimento. As câmaras eram interligadas, como se fossem
enormes lingüiças, com portinholas de pressão dupla entre elas, e den
tro
delas se achavam quatro camas, várias mesas dobráveis, um banhei
ro,
uma pia e um chuveiro.
Cada câmara também dispunha de uma porta de entrada lateral e
uma escotilha de pressão no alto, onde o sino de mergulho ou a cápsula
de transferência de pessoal (CTP) podia se acoplar. A compressão e a
descompressão dos mergulhadore
s aconteciam na câmara. Depois de
atingida uma pressão equivalente à profundidade na qual eles iriam tra
-
balhar, eles entravam na CTP, que era então destacada e baixada para
dentro da água. Quando a CTP atingisse a profundidade apropriada, os
mergulhadores
abriam a escotilha através da qual haviam entrado no sino
e nadavam para a estação de trabalho designada. Enquanto estives
sem
submersos, eram atados por um cabo com mangueiras que lhes forneciam
oxigênio, água quente para aquecer
-
lhes os trajes de neopre
ne, fios
sensores e cabos de comunicação. Como os mergulhadores do
Benthic
Explorer
usavam máscaras que lhes cobriam o rosto inteiro, a comunicação
era possível, embora difícil, devido à distorção da voz na mistura de hélio
e oxigênio que respiravam. Os fi
os sensores transpor
tavam informações
sobre a freqüência cardíaca de cada mergulhador,freqüência respiratória e
pressão do oxigênio do ar respirado. Todos
es
ses
três níveis eram
monitorados continuamente em tempo real.
Larry ergueu os olhos da escrivanin
ha onde se encontrava, e con
-
templou sua segunda equipe de mergulhadores com desdém. Não po
dia
acreditar na aparência invariavelmente desmazelada, atrevida e
antiprofissional deles. Observou o boné de beisebol berrante e a cami
seta
rasgada de Michael, ma
s nada disse. Como na Marinha, ele tolera
va nos
mergulhadores comportamentos que não tolerava nos outros
componentes da equipe. Três outros mergulhadores igualmente rebel
des e
irritantes se encontravam ainda em uma das câmaras, descomprimindo
-
se
do últim
o mergulho até a cabeça do poço. Quando se mergulha a uma
profundidade de quase trezentos metros, o tempo de descompressão se
mede em dias, não em horas.
—
Desculpem por ter acordado vocês, seus palhaços, do seu sono de
beleza
—
disse Larry.
—
Como demorar
am para chegar aqui, hein?
—
Tive que passar o fio dental nos dentes
—
disse Richard.
—
E eu tive que fazer as unhas
—
disse Louis. Balançou a mão de
um jeito brusco, com o pulso bem mole.
Michael revirou os olhos, fingindo estar horrorizado.
—
Ei, olha aí
, pode parar!
—
grunhiu Louis, olhando Michael.
Apontou um de seus dedos gordos para o rosto do amigo. Michael o
afastou com um tapa.
—
Tá legal, agora me escutem, animais!
—
berrou Larry.
—
Ten
tem
se controlar. Esse vai ser um mergulho de 298 metros de p
rofundi
dade
para inspecionar e trocar a broca de perfuração.
—
Ah, que novidade, hein, chefe!
—
disse Richard numa vozinha
fina e estridente.
—
Já é a quinta vez que enviam mergulhadores para isso,
e a terceira nossa. Vamos meter logo a mão na massa.
—
Fe
che a matraca e escute
—
ordenou Larry.
—
Agora tem um fato
novo. Vocês vão inserir um extrator de amostras atrás da broca para que
possamos ver se conseguimos uma amostra decente dessa coisa que
estamos tentando perfurar.
—
Parece maneiro
—
disse Richard.
—
Vamos acelerar o tempo de compressão
—
informou Larry.
—
Tem um chefão aqui no navio que está com pressa de obter resultados.
Vamos ver se conseguimos mandar vocês para essa profundidade em
duas ou três horas. Mas, vejam bem, precisam me avisar sem demor
a se
sentirem alguma dor nas articulações. Não quero ninguém aqui que
rendo
bancar o machão. Entendido?
Todos os três confirmaram.
—
Vamos comer assim que a comida chegar da cozinha
—
conti
-
nuou Larry.
—
Mas quero vocês nas camas para a compressão, e isso
significa nada de palhaçadas nem brigas.
—
Vamos jogar baralho
—
explicou Louis.
—
Se jogarem, joguem das camas
—
disse Larry.
—
E vou repetir:
nada de brigas. Se houver alguma, tiramos o baralho de vocês. Estou
sendo claro?
Larry olhou cada um, e todos ev
itaram
-
lhe o olhar. Ningu
ém con
-
testou os termos do acordo.
—
Vou interpretar
esse
raro silêncio como concordância
—
disse
Larry.
—
Bom, Adams, você vai ser o mergulhador vermelho. Donaghue é
o verde. Mazzola é o mergulhador do sino.
Richard e Michael dera
m vivas e depois se inclinaram um para o
outro e se cumprimentaram batendo com as palmas das mãos uma na
outra. Louis expirou, contrariado, entre os lábios apertados. O traba
lho do
mergulhador do sino, durante o mergulho, era ficar dentro do CTP para
mane
jar os cabos e mangueiras dos mergulhadores vermelho e verde e
vigiar os mostradores dos instrumentos; não entraria na água, a não ser
que houvesse uma emergência. Embora sua posição fosse mais segura, era
desdenhada pelos mergulhadores. As indicações de q
uem era
mergulhador verde e vermelho eram usadas para evitar confusões nas
comunicações com a superfície que poderiam ocorrer caso se atribuís
sem
apelidos ou sobrenomes. No
Benthic Explorer,
o mergulhador ver
melho era
considerado o líder no local da oper
ação.
Larry pegou uma prancheta que
antes estava sobre a mesa. Entre
gou
-
a a Richard.
—
Aqui está a listagem de verificação prévia, mergulhador verme
-
lho. Agora tratem de ir se mandando para a Câmara 1. Quero começar a
compressão em quinze minutos.
Richard
pegou a prancheta e foi na frente quando saíram da
cabine
.
Logo que saiu, Louis começou uma lengalenga sem fim, reclaman
do por
ter sido escolhido para ser o mergulhador do sino, queixando
-
se de que
havia ficado no sino no mergulho anterior também.
—
Acho
que o chefe considera você o melhor de nós três para fazer
isso
—
disse Richard, enquanto piscava para Donaghue. Ele sabia que
estava zombando do Louis. Mas não conseguiu resistir. Sentia
-
se alivia
do
por não ter sido escolhido, porque era sua vez.
Quando
o grupo passou pela Câmara 3, que estava ocupada, cada
um deles olhou pela escotilha minúscula e mostrou o polegar erguido em
sinal de positivo para os três ocupantes, que tinham pela frente ain
da
vários dias de descompressão. Os mergulhadores podiam bri
gar entre si
às vezes, mas também demonstravam grande coleguismo. Res
peitavam
-
se
mutuamente por causa dos riscos inerentes à sua ocupa
ção. O isolamento
e o perigo envolvidos em um mergulho saturado eram ironicamente
semelhantes, em certos aspectos, ao de
se estar em um satélite que
estivesse em órbita da Terra. Caso ocorresse algum proble
ma, podiam
ficar gravemente encrencados, e era difícil trazerem
-
nos de volta para
cima.
Na Câmara 1, Richard entrou primeiro pela porta estreita e redon
da
na lateral do
cilindro. Para isso precisou agarrar uma barra horizon
tal de
metal, erguer as pernas e meter primeiro os pés na câmara, esgueirando
-
se
pela abertura.
O interior era bem despojado, estando os leitos numa das extremi
-
dades e os aparelhos de respiração de e
mergência pendentes das pare
des.
Todos os equipamentos de mergulho, inclusive os trajes de neoprene,
cintos com lastro, luvas e coifas, bem como o restante da parafernália,se
encontravam amontoados entre os leitos. As máscaras de mergulho
estavam no sino
com todas as mangueiras e linhas de comunicação. No
outro extremo da câmara ficavam o chuveiro aberto, o vaso sanitário e a
pia. Mergulho saturado era um evento tipicamente comunitário. Não
havia privacidade de espécie alguma.
Louis e Michael entraram logo
depois de Richard. Louis subiu di
-
retamente para o sino de mergulho, enquanto Michael começou a ins
-
pecionar o material que estava no chão. Richard dizia os nomes das várias
peças do equipamento em voz alta, e Louis e Michael gritavam se elas
estavam pres
entes ou não, e Richard assinalava a parte conferida na lis
ta.
O que estivesse faltando ia sendo imediatamente fornecido através da
escotilha aberta, por um dos assistentes que aguardavam, do lado de fora.
Quando as quatro páginas da lista de verificação
terminaram de ser
conferidas, Richard fez sinal de positivo para o supervisor de mergulho
através da câmera fixa no teto da câmara de compressão.
—
Muito bem, mergulhador vermelho
—
disse o supervisor pelo
intercomunicador
—
, fechar e travar a escotilha de
admissão e prepa
rar
-
se
para começar a pressurização.
Richard obedeceu. Quase imediatamente, ouviu
-
se o chiado do gás
comprimido, e a agulha no mostrador analógico do manômetro come
çou
a subir. Os mergulhadores olharam felizes para seus leitos. Richard t
irou o
baralho gasto do bolso da calça de malha.
3
3
Perry saiu do interior do navio e pisou na grade que formava o
tombadilho a ré. Trajava um abrigo de malha grená sobre uma blusa de
mangas compridas
—
sugestão do Mark. Ele disse a Perry que havia se
vest
ido assim da última vez em que esteve no submersível. Como o es
-
paço era restrito, quanto mais confortáveis fossem as roupas, melhor, e
colocar uma peça por cima da outra era bom, porque podia fazer frio. A
temperatura externa da água era de apenas cerca d
e quatro graus centí
-
grados, e não era aconselhável gastar a preciosa energia das baterias com
calefação.
A princípio Perry achou desagradável andar sobre a grade metálica,
porque podia enxergar a superfície do oceano a uns quinze metros de
distância, lá e
mbaixo. A água tinha uma aparência gelada e verde
-
acinzentada. Perry tremeu apesar da temperatura agradável, e se pergun
-
tou, afinal, se devia mesmo acompanhar o mergulho do submarino.
Aquele pressentimento esquisito que sentira ao despertar retornou, ar
-
r
epiando
-
lhe os pêlos da nuca. Embora ele não fosse propriamente
claustrofóbico, jamais se sentia bem ao se ver confinado num espaço
exíguo como o interior do submersível. Aliás, um dos momentos mais
apavorantes da infância dos quais Perry se lembrava era a
quele no qual
ficara preso debaixo das cobertas pelo irmão mais velho. O irmão pu
-
lou
em cima dele, em vez de afastar as cobertas, e, durante um tempo que
pareceu durar uma eternidade, não o deixou sair. Volta e meia Perry
ainda tinha pesadelos nos quais s
e via de novo naquela prisão de pano
com a sensação desesperadora de que estava para sufocar.
Perry parou e ficou olhando fixamente o pequeno submarino, que
estava apoiado em picadeiros bem na popa do navio. Sobre ele, inclina
do,
via
-
se um imenso guindast
e capaz de deslocar a embarca
ção, levan
do
-
a
para além da amurada, acima da superfície da água, e baixá
-
la até lá. Em
torno do submarino, operários enxameavam como abelhas ao redor de
uma colméia. Perry sabia que estavam participando da verifi
cação que
se
mpre se processava antes que o submarino submergisse.
Perry, aliviado, constatou que a embarcação parecia bem maior do
que antes, quando estava na água, fato que aplacou sua claustrofobia
recentemente despertada. O submersível não era tão minúsculo quanto
muitos por aí. Tinha quinze metros de comprimento e vau de três metros
e sessenta centímetros, e uma forma de bulbo, como uma salsicha in
chada
de aço HY
-
140, com superestrutura em fibra de vidro. Havia quatro vigias
feitas de seções cônicas de plexiglas d
e vinte centímetros e trinta
milímetros de espessura: duas na proa e uma de cada lado. Os braços
manipuladores hidráulicos, dobrados para cima sob a proa, o faziam
parecer um enorme crustáceo. O casco era escarlate com dizeres em
branco nas laterais da emb
arcação. O nome dela era
Oceanus,
nome do
deus grego do alto
-
mar.
—
Bonitinho, esse danado, não?
—
disse alguém. Perry virou
-
se.
Mark havia se aproximado às suas costas.
—
Talvez seja melhor eu ficar, afinal
—
disse Perry, tentando dar à
voz uma entonação
natural.
—
E por quê?
—
indagou Mark.
—
Não quero atrapalhar
—
disse Perry.
—
Vim aqui para ajudar,
não para ser uma pedra no sapato de ninguém. Tenho certeza de que o
piloto preferiria não ter um cara no pé dele, de carona, como se fosse um
turista.
—
Mas
que bobagem!
—
disse Mark, sem hesitar.
—
Tanto o
Donald quanto a Suzanne adoraram saber que você vai junto. Falei com
eles há menos de vinte minutos, e eles me disseram isso. Aliás, aquele ali
no andaime é o Donald, que está supervisionando a conexão ao g
uin
daste
de lançamento. Acho que ainda não foram apresentados.
Perry olhou na direção indicada com o dedo por Mark. Donald
Fuller era um negro com cabeça raspada, um bigode bem fino e bem
aparado e uma musculatura de dar inveja. Estava com um macacão azul
-
marinho impecavelmente passado a ferro, com dragonas, do qual pen
dia
uma plaqueta lustrosa com seu nome. Até mesmo de onde estava Perry
era capaz de perceber o porte militar do homem, principalmente quando
ouvia sua voz profunda de barítono e o jeito ent
recortado e compenetrado
com que dava ordens. Durante aquela operação, não havia dúvidas
quanto a quem era o comandante.
—
Vamos
—
apressou
-
o Mark, antes que Perry tivesse tempo de
reagir.
—
Vou apresentar você a ele.
Relutante, Perry deixou que o outro o
conduzisse até o
submersível
.
Era dolorosamente óbvio que ele não conseguiria saltar fora daque
le
passeio no
Oceanus
sem ficar com a imagem um tantinho arranhada. Seria
obrigado a admitir seus temores, e isso não iria cair nada bem. Além do
mais, tinha go
stado de andar no submarino da primeira vez em que
submergira nele, mesmo que tivesse sido a apenas uns trezentos metros
de profundidade, bem diante da enseada de Santa Catalina, bem longe do
meio do Oceano Atlântico.
Depois de Donald se certificar de que
a conexão do submersível com
o cabo de içamento estava segura, saltou de cima do andaime e começou a
andar em torno da embarcação. Embora a equipe de mergu
lho que iria
monitorar a operação da superfície estivesse responsável pela verificação
externa prévi
a ao mergulho, Donald queria verificar visual
mente ele
mesmo todos os orifícios que atravessavam o casco de pres
são. Mark e
Perry o alcançaram na proa. Mark apresentou Perry como presidente da
Benthic Marine.Donald respondeu batendo os calcanhares um no
outro e
saudando
-
o à maneira militar. Antes que pudesse aperceber
-
se do que
fazia, Perry retribuiu a continência. Só que não sabia fazer conti
nência
como se deve; jamais havia cumprimentado ninguém desse jeito na vida.
Sentiu
-
se ridículo diante da vergonh
a que devia estar passando.
—
É uma honra conhecê
-
lo, senhor
—
disse Donald. Estava mui
to
ereto com os lábios apertados e as narinas dilatadas. Perry achou
-
o
parecido com um guerreiro prestes a combater.
—
Prazer em conhecê
-
lo
—
cumprimentou
-
o Perry. Gest
iculou,
indicando o
Oceanus.
—
Não quero interromper seu trabalho.
—
Não há problema, senhor
—
retrucou Donald, na mesma hora.
—
Também não é obrigado a me levar
—
disse Perry.
—
Não que
ro
atrapalhar a operação. Aliás...
—
Não vai atrapalhar nada, senhor
—
disse Donald.
—
Sei que vão estar trabalhando
—
persistiu Perry.
—
Não gosta
ria
de desviar a atenção de vocês do serviço que irão executar.
—
Quando estou pilotando o
Oceanus,
ninguém desvia minha
atenção do meu serviço, senhor!
—
Ótimo
—
disse Perry.
—
Mas não vou me ofender se achar que eu
devo ficar. Quero dizer, vou entender.
—
Estou ansioso para lhe mostrar o que
esse
submersível pode fa
zer,
senhor.
—
Bom, então, muito obrigado
—
disse Perry, reconhecendo que
seria inútil tentar saltar fora sem per
der a pose.
—
O prazer é meu, senhor
—
retrucou Donald.
—
Não precisa me chamar de senhor
—
pediu Perry.
—
Sim, senhor!
—
replicou Donald. Então a boca relaxou e deu um
ligeiro sorriso, quando ele percebeu o que havia dito.
—
Quero dizer, Sr.
Bergman.
—
Ch
ame
-
me de Perry.
—
Sim, senhor
—
disse Donald. Depois se
permitiu dar um se
gundo sorriso quando viu que havia dado outro fora
em menos de dois segundos.
—
É difícil para mim mudar meu jeito de ser.
—
Já vi
—
disse Perry.
—
Acho que não seria um erro meu im
agi
nar
que obteve experiência nesse tipo de serviço nas forças armadas.
—
Positivo
—
disse Donald.
—
Vinte e cinco anos servindo na frota
de submarinos.
—
Era oficial?
—
perguntou Perry.
—
Exato. Aposentei
-
me comandante.
Os olhos de Perry desviaram
-
se par
a o submarino. Agora que ele já
havia se conformado com o fato de que iria mesmo com eles, queria se
tranqüilizar.
—
Como vem sendo o desempenho do
Oceanus?
—
Impecável
—
respondeu Donald.
—
Então é uma boa embarcação?
—
perguntou Perry. Deu
tapinhas
no ca
sco de pressão de aço frio.
—
A melhor
—
afirmou Donald.
—
Melhor do que qualquer ou
tra
que já pilotei, e olha que já pilotei muitas.
—
Isso não é só patriotismo, não?
—
indagou Perry.
—
De jeito nenhum
—
respondeu Donald.
—
Antes de mais nada,
ela conseg
ue descer a uma profundidade maior do que qualquer outra
embarcação tripulada que já pilotei. Como certamente deve saber, a
profundidade de operação certificada dela é de seis mil e noventa e seis
metros, sendo que a profundidade de esmagamento é só aos de
z mil
seiscentos e setenta metros. Mas até mesmo isso engana. Com a mar
gem
de segurança com a qual trabalhamos, provavelmente poderíamos descer
ao fundo da Fossa das Marianas tranqüilamente.
Perry engoliu em seco. Ao ouvir a expressão
profundidade de esma
ga
-
mento,
experimentara outra vez o tremor que sentira alguns minutos antes.
—
Por que não passa em revista rapidamente alguns detalhes dos
equipamentos do
Oceanus,
para refrescar a memória do Perry?
—
suge
riu
Mark.
—
Claro
—
disse Donald.
—
Aguardem só um
momento.
—
Pon
do
as mãos em concha ao redor dos lábios, berrou para um dos homens que
estavam terminando a verificação pré
-
imersão:
—
Verificaram as câmeras de filmagem internas?
—
Positivo!
—
respondeu o subalterno. Donald voltou a atenção
para Perry ou
tra vez.
—
A embarcação pesa sessenta e oito toneladas e tem espaço para
dois pilotos, dois observadores e seis outros passageiros. Temos
travamento elétrico para os mergulhadores e podemos nos acoplar às
câmaras de vida caso seja preciso. Temos sistema de
sustentação da vida
para um máximo de duzentas e dezesseis horas. A energia vem de bate
-
rias de prata
-
zinco. A propulsão vem de um hélice varivec, porém a
maneabilidade também melhora com empuxadores verticais e horizon
tais
dirigidos por meio de alavanca
s geminadas com esferas de acionamento
digital na parte superior. A embarcação conta ainda com sonar de
varredura lateral, radar de penetração no solo, magnetômetro de prótons
e termistores. O equipamento de gravação inclui câmeras de vídeo de
procura de a
lvo com intensificação por silício. As comunica
ções se
processam por meio de rádio FM de superfície e telefone sub
marino UQC.
A navegação é inercial.
Donald fez uma pausa enquanto seus olhos vagueavam pelo inte
rior
do submers
ível.
—
Acho que já falei do
básico. Alguma pergunta?
—
Por enquanto, não
—
disse Perry, mais do que depressa. Tinha
medo de que Donald lhe fizesse alguma pergunta. A única coisa que Perry
gravou de todo aquele monólogo foi a profundidade de esmaga
mento de
dez mil e seiscentos e pou
cos metros.
—
Prontos para lançar o
Oceanus!
—
anunciou uma voz entrecortada
pela estática, através do alto
-
falante.
Donald conduziu Perry e Mark para longe do submarino. O cabo do
guindaste esticou
-
se. Com um rangido, o submersível se ergueu do
tombadilho
. Para evitar que a embarcação oscilasse, havia múltiploscabos
de lançamento atados a pontos
-
chave situados ao longo do casco dela. Um
rangido agudo anunciou a movimentação do turco quando ele levou o
submarino além da popa do navio e começou a baixá
-
lo at
é a água.
—
Ah, aí vem a nossa boa doutora
—
comentou Mark.
Perry virou
-
se rapidamente para olhar atrás de si. Uma silhueta sur
-
giu através da porta principal que dava para o interior do navio. Perry
olhou de novo, rapidamente. Só tinha visto Suzanne Newel
l uma vez
antes, quando ela apresentou os primeiros estudos sísmicos sobre o Monte
Olimpo Submarino. Mas isso foi em Los Angeles, onde não fal
tava gente
bonita. Ali no meio do oceano, no utilitário
Benthic Explorer,
contendo
quase cem homens desgrenhados,
ela se destacava como um lírio em meio
a um canteiro infestado de ervas daninhas. Com seus vinte e tantos anos,
era vibrante e tinha uma aparência atlética. O macacão que vestia,
semelhante ao de Donald, revelava exuberantes formas fe
mininas que
eram a e
xata antítese das másculas formas do piloto. Trazia na cabeça um
boné de beisebol azul
-
escuro, com um galão trançado dourado sobre a
pala e as palavras
B
ENTHIC
E
XPLORER
bordadas na parte frontal. Na parte
de trás do boné, justamente acima da tira de regula
gem, saía um rabo
-
de
-
cavalo composto por grossos e lustrosos cabelos cas
tanhos.
Suzanne viu o grupo e acenou, depois seguiu na direção deles.
Quando se aproximou, Perry começou a abrir a boca lentamente, uma
reação que Mark não deixou de notar.
—
Nada má,
né?
—
comentou.
—
É muito atraente
—
admitiu Perry.
—
Sim, bom, espere alguns dias
—
disse Mark.
—
Ela fica melhor
com o tempo. Está em muito boa forma para uma oceanógrafa geofísica,
não é?
—
Não conheci muitos oceanógrafos geofísicos
—
disse Perry. De
r
epente, começou a achar que o mergulho não ia ser tão desagradável,
afinal de contas.
—
Uma pena que não seja doutora em medicina
—
disse
Mark, baixinho.
—
Até que ia gostar se ela me fizesse um exame para ver
se tenho hérnia inguinal.
—
Se me permitir, con
tinuarei a preparar o
Oceanus
para submer
-
gir
—
disse Donald.
—
Claro
—
disse Mark.
—
A broca nova e o extrator de amostras
vão subir já, já, e eu vou mandar colocá
-
los diretamente na bandeja.
—
Sim, senhor!
—
disse Donald, com uma continência. Voltou para
a beirada do tombadilho à ré, e olhou para o submarino que descia.
—
Ele é meio rígido
—
disse Mark
—
, mas é um funcionário bom
pra cacete.
Perry não o ouviu. Não conseguia tirar os olhos de Suzanne. Ela
caminhava de maneira inconfundivelmente rápida; tin
ha um sorriso
amigável e acolhedor. Com a mão esquerda, trazia dois livros grossos
apertados contra o peito.
—
Sr. Perry Bergman!
—
exclamou Suzanne, estendendo a mão
direita.
—
Adorei saber que viria aqui ao navio, e fiquei encantada quan
do
me disseram q
ue ia submergir conosco. Como vai? Deve estar se
recuperando desse vôo longo.
—
Estou muito bem, obrigado
—
disse Perry, enquanto apertava a
mão da oceanógrafa. Depois inconscientemente ergueu a mão para ver se
o cabelo estava bem ajeitado sobre o ponto on
de a cabeça estava ficando
calva. Observou que os dentes de Suzanne eram tão brancos quanto os
seus.
—
Depois de nosso encontro em Los Angeles não tive oportuni
dade
de lhe dizer como fiquei feliz por ter decidido mandar o
Benthic Explorer
de volta ao mont
e submarino Olimpo.
—
Legal
—
disse ele, obrigando
-
se a sorrir. Estava enfeitiçado pe
los
olhos de Suzanne. Não sabia dizer se eram azuis ou verdes.
—
Só desejaria
que a perfuração estivesse indo melhor.
—
Também lamento
—
disse Suzanne.
—
Mas preciso admi
tir que,
do meu ponto de vista egoísta e pessoal, estou satisfeita. O monte
submarino
é um ambiente fascinante, como vai ver, e os problemas de
per
furação vão me levar a descer até ele. Então, não vai escutar queixas de
mim.
—
Estou feliz por estar conten
tando alguém
—
disse Perry.
—
O que
há de tão fascinante nesse monte submarino em particular?
—
É a geologia dele
—
disse Suzanne.
—
Sabe o que são diques
basálticos?
—
Não sei bem se realmente sei
—
admitiu Perry.
—
Quero dizer,
além de saber que são feit
os de basalto, claro.
—
Riu, meio sem graça, e
decidiu que os olhos dela eram de um azul
-
claro com reflexos verdes do
oceano que os cercava. Também percebeu que gostava da maquila
gem
leve dela. Parecia estar usando apenas um pouquinho de nada de batom.
Os
cosméticos eram um assunto que despertava discussões en
tre Perry e a
esposa. Ela trabalhava como maquiladora de um estúdio de cinema, e
também gostava de usar bastante maquilagem, o que contra
riava Perry.
Agora as filhas de onze e treze anos deles estav
am seguindo o exemplo da
mãe. A questão havia se tornado uma contenda bastante acirrada que
Perry tinha poucas chances de vencer.
O sorriso de Suzanne aumentou.
—
Os diques basálticos se compõem de basalto, mesmo. Formam
-
se
quando o basalto fundido sai pel
as fissuras da crosta terrestre. O que os
torna tão intrigantes é que são geométricos a ponto de parecerem
artificiais. Espere só até vê
-
los.
—
Desculpem pela interrupção
—
disse Donald.
—
O
Oceanus
já está
pronto para submergir, e devemos descer a bordo.
Até mesmo com mar
calmo é perigoso deixá
-
lo ancorado durante muito tempo próxi
mo ao
costado do navio.
—
Sim, senhor, capitão!
—
disse Suzanne, prontamente. Fez uma
continência perfeita, porém com um sorriso zombeteiro, que não lhe saía
dos lábios. Donald
não achou graça. Sabia que ela o estava provocando.
Suzanne fez sinal para que Perry a precedesse na meia
-
laranja que
levava a um misto de plataforma de mergulho e cais de lan
çamento.
Perry
come
çou a descer, porém hesitou quando um outro estremeci
mento
inv
oluntário lhe percorreu a espinha. Apesar do esforço que
estava
fazendo para se tranqüilizar acerca da segurança do submersível e apesar
de estar na expectativa de aproveitar a agradável companhia de Suzanne,
o pressentimento que ele tivera antes voltou co
mo uma cor
rente de ar frio
através de uma cripta subterrânea, que era o que ele pensava que se
assemelhava ao interior do
Oceanus.
Uma voz bem den
tro dele lhe dizia
que ele estava ansioso por se ver trancafiado dentro de uma embarcação já
submersa no mei
o do Oceano Atlântico.
—
Esperem aí só um segundo!
—
exclamou Perry.
—
Quanto tem
po
vai durar essa operação?
—
Pode ser que dure só umas duas horas
—
disse Donald
—
ou
pode durar quanto tempo quiser. Costumamos ficar debaixo d'água
durante o tempo em que
os mergulhadores ficarem.
—
Por que está perguntando?
—
indagou Suzanne.
—
Porque...
—
Perry procurou uma explicação.
—
Porque preciso
ligar para o escritório.
—
No domingo?
—
estranhou Suzanne.
—
Quem estaria no es
-
critório no domingo?
Perry sentiu que es
tava ficando vermelho de novo. Entre os vôos
noturnos de Nova York aos Açores, havia confundido os dias. Riu, meio
sem graça, e bateu com a mão do lado da cabeça.
—
Esqueci que hoje era domingo. Devo estar começando a sofrer do
mal de Alzheimer.
—
Vamos pa
rtir!
—
anunciou Donald, antes de descer até a plata
-
forma de submersão, lá embaixo.
Perry o seguiu, dando um passo de cada vez, sentindo
-
se um ridí
-
culo covarde. Depois, apesar de fazer o melhor que podia, arrastou
-
se
para atravessar a prancha que balança
va. Era chocante constatar quanta
movimentação havia no que parecia um mar calmo.
A prancha levava direto para o alto do casco do
Oceanus.
O convés
do submersível já estava inundado, uma vez que ele estava quase em
flutuação neutra. Com uma certa dificulda
de, Perry passou pela escoti
lha.
Enquanto descia para o interior do submarino, foi obrigado a se espremer
bem contra os degraus gelados da escada de aço.
O interior da embarcação era tão apertado quanto Mark havia pre
-
venido. Perry começou a duvidar da de
scrição segundo a qual havia lugar
para dez pessoas. Elas iriam ter de ficar todas enfileiradas como sardi
nhas.
Contribuindo para o atulhamento do ambiente, as paredes da frente do
submarino eram repletas de instrumentos, mostradores de cristal líquido e
interruptores. Não havia sequer um centímetro qua
drado que não tivesse
um mostrador ou um botão. As quatro vigias pareciam minúsculas em
meio à profusão de equipamentos eletrônicos. O único aspecto positivo
era que o ar parecia puro. Ao fundo, Perry conse
guiu distinguir o zunido
de um ventilador.
Donald levou Perry até uma poltrona baixa diretamente atrás da sua,
a bombordo. Diante do assento do piloto, ficavam diversos monitores de
tubo de raios catódicos cujos computadores eram capazes de reproduzir
virt
ualmente o fundo dos oceanos para ajudar na navega
ção. Donald
estava usando o rádio FM para falar com Larry Nelson na cabine de
controle de
submersão
, enquanto continuava a verificação anterior ao
mergulho do equipamento e dos sistemas elétricos.
Perry ou
viu a escotilha acima de si se fechar com um baque seguido
por um nítido estalido de trava. Alguns momentos depois Suzanne desceu
da torreta do submarino com muito mais agilidade que Perry. Conseguiu
até trazer consigo os dois livros grossos, que logo foi
entregando a Perry.
—
Trouxe
esses
livros para você
—
disse ela.
—
O grosso é sobre a
vida oceânica, e o outro é sobre geologia marinha. Pensei que talvez
gostasse de dar uma espiada neles para identificar algumas das coisas que
vamos ver. Não queremos que
fique entediado.
—
Foi atencioso de sua parte
—
comentou Perry. Mas Suzanne mal
podia imaginar que ele estava nervoso demais para ficar entediado. Sen
-
tia
-
se como antes de decolar num avião: sempre havia a chance de os
próximos minutos serem os últimos da
sua vida.Suzanne se sentou no
assento de piloto de boreste. Logo começou a acionar os interruptores e a
dizer os resultados para Donald. Era óbvio que os dois formavam uma
equipe. Uma vez que Suzanne começou a participar da verificação pré
-
imersão, ruídos
assustadores de tubulações começaram a reverberar
através do espaço confinado. Era um som pe
culiar que Perry associou aos
filmes de submarino da Segunda Guerra Mundial.
Perry estremeceu outra vez. Fechou os olhos um instante e tentou
não pensar no seu tr
auma de infância, no seu desespero, preso sob as
cobertas pelo irmão. Mas essa tática não funcionou. Olhou pela escoti
lha à
esquerda, e se esforçou por entender por que estava achando que tinha
tomado a pior decisão de sua vida, fazendo aquela curta imers
ão de rotina.
Sabia que não havia fundamento racional para essa sensação, uma vez que
reconhecia que estava com profissionais para os quais aquela imersão era
corriqueira. Sabia que o submersível era confiável e que havia
recentemente mandado revisá
-
lo.
De
repente, Perry teve um sobressalto. Um rosto mascarado havia
literalmente se materializado diante de seus olhos. Um ganido lamen
t
ável
e involuntário lhe escapou dos lábios antes que Perry pudesse en
tender
que estava olhando para um dos operários que pre
parava o submarino,
que tinha mergulhado, com o traje autônomo apropriado. Um momento
depois, viu mais mergulhadores. Como num lento balé submarino os
mergulhadores rapidamente soltaram os cabos de manu
seio. Ouviu
-
se
uma batida do lado externo do casco. O
Oceanus
estava solto agora.
—
Sinal de liberação recebido
—
disse Donald ao microfone do rádio.
Falava com o supervisor da equipe de lançamento que estava lá no
tombadilho a ré.
—
Solicitando permissão para ligar os motores e se
afastar do costado.
—
Perm
issão concedida
—
respondeu uma voz desencarnada. Perry
sentiu um novo movimento linear acrescentar
-
se ao balanço,
guinada e
arfada passivas do submarino. Pressionou o nariz contra a
vigia e viu o
Benthic Explorer
sair de seu campo de visão. Com o rosto ai
nda
comprimido contra o plexiglá
s, olhou para as profundezas do oceano
onde estava para descer. A luz solar lhe pregava ilusões de óptica, ao
sofrer refração na superfície ondulante da água, abaixo dele, fazen
do
-
o
imaginar se estaria fitando as fauces da
eternidade.
Com outro estremecimento, Perry percebeu que estava tão vulne
-
rável quanto uma criancinha. Uma combinação de vaidade e estupidez o
havia arrastado para aquele ambiente estranho, no qual ele perdera o
controle de seu destino. Embora não fosse re
ligioso, viu
-
se rezando para
que aquele pequeno passeio submarino fosse curto, agradável e seguro.
4
4
—
Nenhum contato
—
disse Suzanne, respondendo à pergunta de
Donald, que queria saber se o ecobatímetro mostrava algum
obstáculo inesperado abaixo do
Ocean
us.
Apesar de eles estarem
flutuando no mar aberto, parte da verificação pré
-
imersão tinha sido para
assegurar
-
se de que nenhuma outra embarcação submarina havia
furtivamente pene
trado embaixo deles.
Donald pegou o microfone do rádio VHF e estabeleceu con
tato com
Larry Nelson na cabine de mergulho.
—
Estamos nos afastando do costado do navio. O oxigênio está
ligado, os filtros estão ligados, a escotilha fechada, o telefone submari
no
está ligado, os terras estão normais, o ecobatímetro está limpo. Soli
cit
o
permissão para submergir.
—
Acionou o radiofarol?
—
indagou Larry, pelo rádio.
—
Positivo
—
respondeu Donald.
—
Permissão para imergir concedida
—
disse Larry, acompanha
do
por um pouco de estática.
—
A profundidade até a cabeça de poço é de
trezentos e
cinco metros. Boa imersão.
—
Entendido, e obrigado!
—
disse Donald.
Donald já estava para recolocar o microfone no suporte, quando
Larry acrescentou:
—
A câmara de vida está atingindo a profundidade, de
forma que o sino vai estar descendo daqui a pouquinho.
Acho que os
mergulha
dores estarão no local do serviço em meia hora.
—
Vamos estar esperando por eles
—
continuou Donald.
—
Des
-
ligo.
—
Pendurou o microfone no suporte. Depois, falou aos seus com
-
panheiros de jornada submarina:
—
Imergir! Imergir! Encher
os tanques
de lastro principais!
Suzanne inclinou
-
se para a frente e acionou um interruptor.
—
Enchendo os tanques de lastro
—
repetiu, para que não hou
vesse
dúvidas de que havia entendido. Donald fez uma anotação no papel que
havia na sua prancheta.
Ouvi
u
-
se um som semelhante ao de uma ducha num
compartimento vizinho quando a água gelada do Atlântico penetrou nos
tanques de lastro do
Oceanus.
Dentro de alguns instantes, a embarcação
começou a perder a flutuabilidade rapidamente, e depois de perdê
-
la
total
mente, submergiu, silenciosa.
Durante os minutos seguintes, tanto Donald quanto Suzanne
ficaram totalmente ocupados, certificando
-
se de que todos os sistemas
ainda esta
vam funcionando normalmente. A conversa entre eles se
limitou ao jarg
ão operacional. Ag
ilmente, depois, passaram em revista a
maior parte da lista de verificação pré
-
imersão pela segunda vez,
enquanto a descida do
submersível
se acelerava até a velocidade máxima
de trinta metros por minuto.
Perry procurou se distrair olhando pela vigia. A co
r da água passou
rapidamente de seu azul
-
esverdeado inicial para o índigo. Em cinco
minutos só conseguia enxergar um brilho azulado quando olhava para
cima. Para baixo, tudo estava de um roxo
-
escuro, que se fundia com a
escuridão. Estabelecendo um contrast
e abrupto com essas águas negras, o
interior do
Oceanus
estava banhado pela luminosidade fria vinda dos
inúmeros monitores e dispositivos de leitura de dados.
—
Acho que estamos com um certo excesso de peso na proa
—
observou Suzanne depois de verificar to
dos os equipamentos eletrôni
cos
com Donald.
—
Concordo
—
disse Donald.
—
Pode corrigir, para
compensar o Sr. Bergman!
Suzanne acionou novo botão. Ouviu
-
se um zumbido. Perry se
inclinou para a frente, entre os dois pilotos.
—
Como assim,
me compensar?.
—
A
voz dele soou esquisita até para
ele mesmo. Engoliu saliva para aliviar a garganta seca.
—
Temos um sistema de lastro variável
—
explicou Suzanne.
—
Está
cheio de óleo, e estou bombeando uma parte dele para a ré a fim de
compensar seu peso, que está à fren
te do centro de gravidade.
—
Ah!
—
foi tudo que Perry conseguiu responder. Recostou
-
se no
espaldar do assento. Sua formação como engenheiro lhe permitia com
-
preender o princípio físico. Também ficou aliviado por saber que não
estavam se referindo a sua tim
idez, algo que seu constrangimento lhe
havia irracionalmente sugerido.
Suzanne desligou a bomba de lastro variável quando o equilíbrio do
submarino a satisfez. Depois se virou para falar com Perry. Estava ansiosa
para tornar a descida até o monte submarino
o mais agradável possível.
Depois que voltassem ao navio, ela esperava convencê
-
lo a realizar
mergulhos puramente exploratórios ao
guyot.
Naquele momen
to, a única
oportunidade que tinha de descer era para trocar a broca. Não tivera a
sorte de persuadir M
ark Davidson do valor de mergulhos puramente
destinados à pesquisa.
Além da ansiedade de Suzanne, havia o boato generalizado de que a
perfuração não teria sucesso devido a problemas técnicos. O monte sub
-
marino Olimpo seria abandonado antes que ela pudesse
vê
-
lo mais de
perto. Isso era a última coisa que ela queria, e não só por causa de seus
interesses profissionais. Logo antes de participar do projeto no qual se
encontravam envolvidos no momento, ela tivera o que esperava ser o
rom
pimento definitivo de u
ma relação doentia e volátil com um ator
iniciante. No momento, voltar para Los Angeles era a última coisa que
queria. O surgimento súbito de Perry Bergman no local da perfuração
tinha sido uma feliz coincidência. Ela poderia falar diretamente com o
chefão
.
—
Está confortável?
—
perguntou a ele.
—
Nunca estive tão confortável em toda a vida
—
asseverou Perry.
Suzanne sorriu, apesar do óbvio sarcasmo da resposta de Perry.
A
situação não parecia nada boa. O presidente da Benthic Marine ainda
estava tenso, com
o mostrava o jeito como agarrava os braços da poltro
na,
como se estivesse para saltar dela. Os livros que ela havia feito o esforço
de trazer jaziam no piso gradeado do submarino, ainda fechados.
Durante um momento, Suzanne observou o presidente rígido cu
jos
olhos fitavam tudo, menos os seus. O que não conseguia entender era se o
nervosismo de Perry se devia à apreensão de estar no submersível ou era
apenas o reflexo de sua personalidade básica. Até mesmo na pri
meira vez
em que vira o homem, seis meses an
tes, o havia considerado um sujeito
ligeiramente excêntrico, vaidoso e nervoso. Obviamente não era o seu tipo,
além de ser baixo o bastante para que ela o fitasse direta
mente nos olhos,
de tênis. Mesmo não tendo quase nada em comum com ele, especialmente
por ser ele uma combinação de engenheiro e empresário e ela, uma
cientista, tinha certeza de que ele compreenderia seus argumentos. Afinal,
já havia reagido positivamente à sua solicita
ção de levar o
Benthic Explorer
de volta até o monte Olimpo, mesmo que
fosse apenas para perfurar a
suposta câmara magmática.
O monte Olimpo havia sido a principal preocupação de Suzanne
durante quase um ano, uma vez que ela havia topado com a existência
dele ao ligar o sonar de varredura lateral do
Benthic Explorer
por sim
ples
tédio, quando o navio seguia em direção ao porto. Inicialmente sua
curiosidade envolveu apenas sua incapacidade de explicar por que um
vulcão assim maciço e aparentemente extinto não teria sido detec
tado pelo
Geosat. Mas agora, depois de quatro imers
ões no submersí
vel, estava
igualmente fascinada pelas formações geológicas sobre seu cume achatado,
principalmente porque só tivera a oportunidade de explorar os arredores
da cabeça de poço. Mas aí o fato mais intrigante surgiu, quando ela
resolveu verifi
car a idade da rocha trazida com a broca quebrada.Para
Suzanne, os resultados foram surpreendentes, e muito mais intrigantes do
que a dureza aparente da rocha. Pela posição do monte, perto da Cadeia
Meso
-
Atlântica, ela esperava que a idade da rocha esti
ve
sse na faixa dos
setecentos mil anos. Em vez disso, ela parecia ter quatro bilhões de anos
de idade!
Sabendo que as mais antigas rochas encontradas na superfície da
Terra ou no fundo do oceano eram significativamente bem menos an
tigas
que essa, Suzanne ha
via pensado que o instrumento de datação estava
fora de calibração, ou ela havia cometido algum erro no procedi
mento.
Sem querer se arriscar a passar por incompetente, resolveu não divulgar
os resultados.
Com um infinito cuidado, passou horas recalibrando
o equipa
mento,
depois verificando vezes sem conta novas amostras. Para in
credulidade
sua, os resultados ficaram todos dentro da faixa de tr
ês ou quatro milhões
de anos um do outro. Ainda acreditando que o instrumento devia estar
com algum defeito, Suzan
ne pediu a Tad Messenger, o chefe dos técnicos
de laboratório, para recalibrá
-
lo. Quando tornou a submeter a amostra ao
ensaio, o resultado ficou a alguns milhões de anos do anterior. Ainda em
dúvida, Suzanne se conformou em esperar até voltar a Los Angele
s, para
usar o equipa
mento do laboratório da universidade. Enquanto isso, os
resultados ficaram trancafiados em seu armário no navio. Ela estava
tentando isentar
-
se de ânimo, mas o interesse que sentia pelo monte
Olimpo aumentava cada vez mais.
—
Tem café
quente naquela térmica ali atrás, se quiser um pouco
—
disse Suzanne.
—
Teria prazer em ir buscar um copo para você.
—
Acho que gostaria muito mais se você ficasse aqui perto dos
controles
—
asseverou Perry.
—
Donald, que tal ligar as luzes lá de fora um
instante?
—
sugeriu
Suzanne.
—
Estamos acabando de passar pelos cento e cinqüenta metros de
profundidade
—
disse Donald.
—
Aqui não há nada para se ver.
—
É a
primeira imersão do Sr. Bergman
—
insistiu Suzanne.
—
Devíamos lhe
mostrar o plâncton.
—
Pode me c
hamar de Perry
—
pediu o presidente da empresa.
—
Não há motivo para ser tão formal aqui embaixo, apinhados assim, fei
to
sardinhas em lata, não é?
Suzanne recebeu com um sorriso essa permissão concedida por
Perry para que o tratasse informalmente. Só sent
iu pena por ele
visivelmente não estar aproveitando a imersão.
—
Donald, será que podia me fazer o favor pessoal de acender as
luzes, sim?
—
pediu Suzanne.
Donald obedeceu sem fazer nenhum outro comentário. Estenden
do
o braço para a frente, ligou as lumin
árias halógenas externas de bom
bordo.
Perry virou a cabeça e lançou uma olhadela para fora.
—
Parece até neve
—
comentou.
—
São trilhões de organismos planctônicos
—
explicou Suzanne.
—
Como estamos numa zona epipelágica, provavelmente é em sua maioria
fi
toplâncton, ou plâncton vegetal, que pode realizar fotossíntese. Junto
com as algas azul
-
esverdeadas, são esses seres que formam a base de toda
a cadeia alimentar oceânica.
—
É bom saber disso
—
respondeu ele. Donald desligou as luzes.
—
Não adianta gastar
nossa preciosa bateria para obter
esse
tipo de
reação
—
cochichou no ouvido de Suzanne.
Na escuridão que se fez depois disso, Perry presenciou explosões
brilhantes de um tênue verde néon e centelhas amareladas. Perguntou a
Suzanne o que era aquilo.
—
É a
bioluminescência
—
explicou Suzanne.
—
Vem do plâncton?
—
indagou Perry.
—
Talvez
—
disse Suzanne.
—
Se for do plâncton, provavelmente
são os dinoflagelados. É claro que também poderiam ser minúsculos
crustáceos ou até peixes. Coloquei um marcador amarelo
no livro sobre
biologia marinha para marcar a parte que fala da bioluminescência.Perry
fez um gesto de concordância, porém não fez menção de con
sultar o livro.
Boa tentativa,
pensou Suzanne, murcha. O otimismo dela diante da
tarefa de garantir divertiment
o a Perry havia se atenuado considera
-
velmente.
—
Oceanus,
aqui é o
Benthic Explorer
—
disse a voz de Larry no alto
-
falante do intercomunicador.
—
Sugiro um curso de duzentos e setenta
graus a cinqüenta ampères durante dois minutos.
—
Entendido
—
disse Don
ald. Rapidamente providenciou a cor
-
reção do curso com as alavancas de controle e mudou a saída de potên
cia
para o hélice de modo a obter os cinqüenta ampères sugeridos. Depois fez
anotações no seu relatório, na prancheta.
—
Larry determinou nossa posição
rastreando nossos
pingers
e
correlacionando
-
os com os hidrofones instalados no fundo do mar
—
explicou Suzanne.
—
Se avançarmos enquanto descemos, vamos atin
gir o
fundo diretamente sobre a cabeça do poço. É como se deslizásse
mos até o
alvo.
—
O que vamo
s fazer até os mergulhadores chegarem?
—
pergun
-
tou Perry.
—
Ficar sentados aqui, enrolando?
—
De jeito nenhum
—
disse Suzanne. Deu outro sorriso forçado e
uma risadinha forçada.
—
Vamos descarregar a broca da bandeja e as
ferramentas que trouxemos. Depois
vamos recuar. A essa altura vamos ter
uns vinte a trinta minutos para explorar o local. É essa parte que imagino
que você vai realmente apreciar.
—
Mal posso esperar
—
disse Perry, com o tipo de sarcasmo que
Suzanne estava começando a temer.
—
Mas não que
ro que façam nada
fora do normal por minha causa. Quero dizer, não tentem me impres
-
sionar. Eu já estou bastante impressionado.
De repente, o monótono ruído do sonar mudou. O submarino estava
se aproximando do fundo, e o sonar de curto alcance diantei
ro r
ecebeu
um sinal bastante firme. A minúscula tela verde mostrou a cabeça do poço
e o tubo que descia lá da superfície. Donald alijou
vários dos pesos de
descida e o mergulho deslizante da embarcação ficou mais vagaroso.
Depois o capitão começou a regular cu
idadosa
mente o sistema de lastro
variável para atingir uma flutuabilidade neutra.
Enquanto Donald se ocupava de bombear o óleo, Suzanne, tateando
atrás de si, ligou um pequeno aparelho de reprodução de discos a laser.
Aquilo fazia parte do seu plano princ
ipal. De repente a
Sagração da pri
-
mavera,
de Igor Stravinsky, fez o interior do submarino vibrar. Ouvin
do a
música, conforme já fora combinado, Donald inclinou
-
se e ligou as luzes
externas.
Os olhos de Perry se arregalaram quando deu uma olhada pela vi
g
ia.
Quase não havia mais neve planctônica, de forma que a transpa
rência da
água gélida era maior do que ele tinha imaginado. Conseguia enxergar
tudo num raio de várias dezenas de metros, e o que via o dei
xou perplexo.
Esperava uma planície sem acidentes,
semelhante ao fun
do de mar que
vira quando da imersão ao largo de Santa Catalina. No máximo pensou
que poderia ver alguns pepinos do mar. Em vez disso, viu
-
se
contemplando uma meseta nebulosa que não se parecia com nada que ele
já houvesse imaginado: ime
nsas silhuetas cinza
-
escuro, em for
ma de
colunas, com a parte superior achatada, pontilhavam a paisagem,
salientando
-
se irregularmente como os cilindros paralisados de um motor
descomunal. Aquelas formas fantasmagóricas estendiam
-
se até onde
alcançava a v
isão de Perry. Alguns peixes de cauda longa e olhos gran
des
preguiçosamente penetravam nelas ou nadavam em torno, ariscos. Sobre
algumas das rochas, gorgônias e cnidárias ondulavam sinuosas, ao sabor
da corrente.
—
Santo Deus!
—
exclamou Perry. Estava fas
cinado, principalmen
te
com aquela música dramática como fundo.
—
Um tanto excepcional, não?
—
comentou Suzanne. Sentiu
-
se mais
animada. Aquela reação de Perry ao cenário era a primeira auspiciosa que
conseguia obter.
—
Parece com um santuário antigo
—
exc
lamou Perry.
—
Como na
Atlântida
—
insinuou Suzanne. Estava disposta a dourar a pílula tanto
quanto pudesse, diante do que estava em jogo.
—
Caramba, é mesmo!
—
exclamou Perry.
—
Como a Atlântida!
Rapaz! Já imaginou se trouxéssemos turistas aqui e lhes diss
éssemos que é
mesmo a Atlântida? Mas que tremenda mina de ouro isso não ia ser...
Suzanne pigarreou. Trazer turistas ali para seu precioso monte sub
-
marino era a última coisa que ela queria que acontecesse, mas apreciou o
entusiasmo de Perry. Pelo menos el
e parecia ter se deixado impressionar.
—
A velocidade da corrente é de menos de um oitavo de nó
—
informou Donald.
—
Chegando à cabeça do poço. Preparar para des
-
carregar a broca.
Suzanne voltou
-
se bruscamente para desempenhar seu papel de co
-
piloto. Elevo
u a potência dos servomotores que movimentavam os bra
ços
do manipulador. Enquanto isso Donald, com grande habilidade, fazia o
Oceanus
pousar no leito rochoso. Enquanto Suzanne se prepara
va para
erguer a broca e as ferramentas da bandeja do submersível, D
onald usava
o telefone submarino.
—
Chegamos ao fundo
—
informou.
—
Descarregando.
—
Entendido
—
respondeu Larry, pelo alto
-
falante.
—
Achei que já
haviam chegado quando escutei a música da Suzanne. Será que
esse
bendito CD é o único que ela tem?
—
É o mel
hor para acompanhar o cenário aqui debaixo
—
inter
feriu
Suzanne.
—
Se fizermos mais algumas imersões vou te emprestar uns CDs de
música New Age
—
respondeu Larry.
—
Não agüento essas músicas
clássicas.
—
São diques basálticos, aquelas coisas que eu estou
vendo?
—
perguntou Perry.
—
É o que imagino
—
disse Suzanne.
—
Já ouviu falar da Calça
da
dos Gigantes?
—
Não creio
—
respondeu Perry.
—
É uma formação feita de rochas
naturais na costa norte da Ir
landa
—
disse Suzanne.
—
Parece um pouco
com o que está ven
do aqui.
—
Qual o tamanho do cume desse monte?
—
perguntou Perry.
—
Estimo que seja equivalente a quatro campos de futebol ameri
-
cano
—
disse Suzanne.
—
Mas, infelizmente, não passa de uma estima
tiva.
O problema é que não temos tempo para ficar aqui no fu
ndo e fazer uma
pesquisa detalhada.
—
Bom, acho que vamos ter que planejar isso
—
disse Perry.
Bingo!,
disse Suzanne a si mesma. Precisou resistir à tentação de berrar
perguntando se o Larry e o Mark haviam escutado o coment
ário de
Perry pelo telefone subm
arino.
—
O cume inteiro da montanha é igual a esse pedaço aqui?
—
perguntou Perry.
—
Não, não é todo igual
—
disse Suzanne.
—
No trecho limita
do
que pudemos explorar, há algumas áreas de formações de lava sub
marina
mais típicas. Na última imersão, porém,
vislumbramos o que pode ser
uma falha transversal, mas fomos chamados de volta antes que
pudéssemos explorá
-
la. A maior parte do monte permanece inexplorada.
—
Onde estava a falha em relação à cabeça do poço?
—
indagou
Perry.
—
A oeste daqui
—
informou Su
zanne.
—
Bem na direção para a
qual está olhando agora. Está enxergando uma fileira particularmente alta
de colunas?
—
Acho que sim
—
disse Perry. Encostou o rosto no plexiglas para
tentar olhar um pouco atrás do submarino. Havia uma fila de colunas bem
no
limite de seu campo de visão.
—
Seria significativo encontrar uma
falha transversal?
—
perguntou.
—
Seria assombroso
—
informou Suzanne.
—
Elas ocorrem em todo
o sistema da Cadeia Meso
-
Atlântica, mas encontrar uma assim, a essa
distância da cadeia, passan
do pelo meio do que presumimos ser um
antigo vulcão, seria bastante peculiar.
—
Vamos dar uma olhada nela
—
sugeriu Perry.
—
Esse lugar aqui é fascinante.
Suzanne deu um sorriso vitorioso. Lançou um olhar rápido a
Donald. Nem ele conseguiu esconder um sorri
so. Estava a favor do pla
no
de Suzanne, mas não levava muita fé nele.
Suzanne levou apenas alguns minutos para descarregar tudo que
Mark havia colocado na bandeja do submersível. Depois que o mate
rial já
se achava alinhado perto da cabeça do poço, ela do
brou os braços do
manipulador, fazendo
-
os retornar à posição de retração.
—
Serviço terminado
—
declarou. Desligou os servom
o
tores.
—
Oceanus
para a superfície
—
disse Donald no microfone do
intercomunicador.
—
Já descarregamos. Qual a posição dos mergulha
-
dores?
—
A compressão está próxima do fundo
—
informou a voz de Larry
pelo alto
-
falante.
—
O sino vai começar a descer em breve. O tempo
estimado de chegada ao fundo é de cerca de trinta minutos, talvez cin
co a
mais, talvez a menos.
—
Entendido!
—
respon
deu Donald.
—
Mantenha
-
nos informados.
Vamos para o oeste investigar uma escarpa que vimos na última imersão.
—
Positivo!
—
respondeu Larry.
—
Vamos informar quando o sino
estiver sendo içado da câmara de vida. Também vamos informar quan
do
passarem dos ce
nto e cinqüenta metros, de forma que possam assu
mir a
posição adequada.
—
Entendido!
—
repetiu Donald. Pendurou o microfone. Com as
mãos descansando de leve nas alavancas, elevou a potência do siste
ma de
propulsão para cinqüenta ampères. Depois, habilmen
te mano
brou o
submarino, afastando
-
o da cabeça do poço, para evitar o tubo que saía
dela e subia verticalmente até o navio. Alguns momentos de
pois, o
Oceanus
já estava vagarosamente pairando sobre a estranha to
pografia do
cume da mesa submarina.
—
Minha
hipótese é que estamos vendo uma parte primitiva da
crosta do manto terrestre
—
disse Suzanne.
—
Mas não sei explicar como
nem por que a lava esfriou formando essas formas poligonais. É quase
como se fossem gigantescos cristais.
—
Gostei dessa idéia de im
aginar que isso pode ser a Atlântida
—
acrescentou Perry. O rosto dele permanecia colado à vigia.
—
Estamos chegando ao local onde divisamos a falha
—
disse
Donald.
—
Deve ser logo além daquela fileira de colunas que vêm vindo
—
informou Suzanne a Perry.
D
onald reduziu a potência. O submersível reduziu a velocidade
quando passaram pela fileira de colunas.
—
Uau!
—
comentou Perry.
—
Sem dúvida é uma descida bem
abrupta.
—
No fim das contas, não é uma falha transversal
—
falou Suzanne
quando conseguiu ver a f
ormação inteira.
—
Aliás, se fosse uma falha,
teria de ser uma fossa tectônica. O outro lado é tão íngre
me quanto este.
—
Que diabo é uma fossa tectônica?
—
indagou Perry.
—
É um bloco de falha afundado em relação às rochas que o cer
-
cam
—
explicou Suzann
e.
—
Mas isso não acontece no alto de um monte
submarino.
—
Parece
-
me um imenso buraco retangular
—
disse Perry.
—
Qual o
tamanho, segundo sua estimativa? Mais ou menos trinta metros de
comprimento e dez de largura?
—
Diria que é isso mesmo
—
disse Suzanne
.
—
Incrível!
—
comentou Perry.
—
É como se algum gigante tives
se
cortado uma fatia de rocha com uma faca exatamente do jeito como se tira
um naco de uma melancia.
Donald levou o
Oceanus
para cima do buraco, depois todos olha
ram
para baixo.
—
Não consigo
ver o fundo
—
disse Perry.
—
Nem eu
—
disse Suzanne.
—
Nem o nosso sonar
—
disse Donald.
Apontou para o monitor do ecobatímetro. Não estava obtendo sinal de
retorno. Era como se o
Oceanus
estivesse pairando acima de um poço sem
fundo.
—
Minha nossa!
—
diss
e Suzanne. Estava pasma.
Donald deu um tapinha no monitor, mas nem assim obteve leitura.
—
Muito estranho
—
disse Suzanne.
—
Acha que é algum defeito?
—
Não sei dizer
—
relatou Donald. Tentou modificar as regulagens.
—
Espere aí um segundo
—
disse Perry, n
ervoso.
—
Vocês dois
estão de brincadeira comigo?
—
Tente o sonar de varredura lateral
—
sugeriu Suzanne, ignoran
do
Perry por um momento.
—
Está esquisito do mesmo jeito
—
disse Donald.
—
O sinal é
aberrante, a menos que queiramos interpretar que o poço s
ó tem um
metro e oitenta a dois metros e dez de profundidade. É isso que está
aparecendo no monitor do sonar.
—
O buraco claramente é bem mais fundo do que isso
—
obser
vou
Suzanne.
—
-
É óbvio
—
concordou Donald.
—
Ei, pessoal, qual é?
—
disse Perry.
—
Voc
ês estão começando a
me assustar.
Suzanne virou
-
se rapidamente para fitar Perry.
—
Não estamos tentando assustá
-
lo. Só estamos intrigados devi
do à
reação dos instrumentos.
—
Para mim tem um tremendo termoclina logo além da beirada
dessa formação
—
disse D
onald.
—
As ondas do sonar estão se refletin
do
em alguma coisa.
—
Será que dava para traduzir isso?
—
pediu Perry.
—
As ondas sonoras se refletem quando ocorrem gradientes de
temperatura súbitos
—
disse Suzanne.
—
Achamos que
é esse
o caso.
—
Para consegu
ir a leitura da profundidade, teríamos que descer
uns três ou quatro metros para dentro do buraco
—
disse Donald.
—
Vou
fazer isso reduzindo a flutuabilidade, mas primeiro quero mudar a nossa
orientação.
Dando pequenos arrancos, Donald usou o impelidor fron
tal de
boreste para girar o submersível até ele ficar paralelo ao eixo do compri
-
mento do buraco. Depois manipulou o sistema de lastro variável para
tornar negativa a flutuabilidade do submarino. Gradativamente, a em
-
barcação começou a descer.
—
Talvez ess
a não seja uma boa idéia
—
disse Perry. Estava olhan
do
nervoso para trás e para a frente entre o monitor de sonar de varre
dura
lateral e a vigia onde se achava.
O alto
-
falante do UQC soou, com estalidos:
—
Controle de superfície para o
Oceanus.
O sino es
tá saindo da
câmara de vida, enquanto falo. Os mergulhadores vão passar pelos cen
to e
cinqüenta metros em cerca de dez minutos.
—
Entendido, controle de superfície
—
disse Donald ao microfo
-
ne.
—
Estamos a cerca de trinta metros a oeste da cabeça do poço.
Va
mos
verificar um termoclínio aparentemente acentuado em uma formação
rochosa. As comunicações talvez se interrompam momenta
neamente, mas
estaremos na posição para receber os mergulhadores.
—
Positivo
—
respondeu a voz de Larry.
—
Olha só como as pared
es são uniformes
—
comentou Suzanne
enquanto o submarino afundava abaixo da beirada do enorme precipí
-
cio.
—
São perfeitamente lisas. Parece até obsidiana!
—
Vamos voltar para a cabeça do poço
—
sugeriu Perry.
—
Seria esta a chaminé de um vulcão extinto?
—
indagou Donald.
Um ligeiro sorriso apareceu rapidamente em seu rosto contraído.
—
É uma idéia
—
disse Suzanne, rindo.
—
Embora precise obser
var
que jamais ouvi falar de uma chaminé de cratera perfeitamente
retilínea.
—
Tornou a rir.
—
Nossa descida aqui,
assim, me faz lembrar a
Viagem ao centro da Terra,
do Júlio Verne.
—
Em que sentido?
—
perguntou Donald.
—
Já leu
esse
livro?
—
Não leio romances
—
disse Donald.
—
Ah, é, me esqueci
—
desculpou
-
se Suzanne.
—
Bom, nessa his
-
tória os protagonistas entraram n
uma espécie de mundo subterrâneo
primitivo através de um vulcão extinto.
Donald sacudiu a cabeça. Os olhos continuavam colados ao
mostrador
de termistor.
—
Que desperdício de tempo, ler uma bobagem dessas
—
repro
vou
ele.
—
É por isso que não leio romances
. Não dá tempo, por causa dos
periódicos técnicos que nem consigo ler.
Suzanne ia responder, mas mudou de idéia. Jamais havia sido capaz
de arranhar as rígidas opiniões de Donald sobre a ficção em particular e a
arte em geral.
—
Não quero ser inoportuno
—
disse Perry
—
mas eu...
Perry não pôde terminar a frase. De repente a descida do submari
no
acelerou
-
se acentuadamente e Donald gritou:
—
Meu Deus Todo
-
Poderoso!
Perry agarrou
-
se às laterais da cadeira com tanta força que as juntas
dos dedos ficaram esbran
quiçadas. O rápido aumento da velocidade em
direção ao fundo o assustou, mas não tanto quanto aquela interjeição
incomum de Donald. Se o imperturbável Donald Fuller estava assusta
do,
a situação devia ser muito grave.
—
Alijar lastros!
—
berrou Donald. A d
escida imediatamente se
suavizou, em seguida parou. Donald alijou mais peso, e o submarino
começou a subir. Depois ele usou o impulsor de bombordo para man
ter o
submarino paralelo ao eixo do comprimento do poço. A última coisa que
queria era bater naquela
s paredes.
—
Que diabo foi isso?
—
quis saber Perry quando conseguiu reco
-
brar a voz.
—
Perdemos flutuabilidade
—
respondeu Suzanne.
—
De repente ficamos mais pesados, ou a água ficou mais leve
—
disse Donald enquanto examinava os mostradores dos instrumen
tos.
—
O que significa isso?
—
indagou Perry.
—
Como obviamente não
ficamos mais pesados, a água ficou mesmo mais leve
—
informou Donald.
Apontou para o termômetro.
—
Passamos através do gradiente de temperatura que
suspeitávamos existir, e era bem maior do
que calculávamos, na direção
oposta. A tem
peratura externa subiu mais de trinta e sete graus!
—
Vamos dar o fora daqui!
—
gritou Perry.
—
É isso mesmo que estamos começando a fazer
—
disse Donald,
curto e grosso. Arrancou o microfone UQC do suporte e ten
tou estabe
lecer
contato com o
Benthic Explorer.
Ao ver que não tinha sorte, recolocou o
microfone no suporte.
—
As ondas sonoras não chegam até aqui, e nem
conseguem passar.
—
Onde estamos, numa espécie de buraco negro acústico?
—
per
-
guntou Perry, irrita
do.
—
O ecobatímetro está mostrando alguma coisa agora
—
disse
Suzanne.
—
Mas não pode ser! Por ele,
esse
poço aqui tem mais de nove
mil metros de profundidade!
—
Ora, por que estaria funcionando mal?
—
Donald perguntou
-
se.
Deu no instrumento uma batida ai
nda mais forte com os nós dos dedos. O
mostrador digital continuou mostrando nove mil, cento e oitenta e nove
metros.
—
Deixa o ecobatímetro pra lá
—
disse Perry.
—
Não dá para sair
daqui mais rápido?
—
O
Oceanus
estava subindo, porém muito devagar.
—
Jama
is tive problema algum com
esse
ecobatímetro antes
—
disse
Donald.
—
Talvez
esse
poço possa conter alguma espécie de chaminé cheia
de magma
—
disse Suzanne.
—
Obviamente é bem profundo, mesmo que
não saibamos qual a profundidade, e a água está quente. Isso
sugere
contato com lava.
—
Ela se inclinou para a frente para olhar pela vigia.
—
Será que não dava pelo menos para desligar o aparelho de
som?
—
pediu Perry. A música estava atingindo um crescendo que apenas
lhe aumentava o nervosismo.
—
Ora vejam só
—
e
xclamou Suzanne.
—
Olhe só as paredes des
se
trecho! O basalto está orientado transversalmente. Jamais ouvi falar de um
dique transversal. E reparem só! Tem uma coloração esverdeada. Talvez
seja gabro, não basalto.
—
Estou começando a achar que vou ter de
impor minha autori
dade
por aqui
—
disse Perry com uma óbvia exasperação. Já estava cheio de ser
ignorado.
—
Quero voltar à superfície,
agora mesmo!
Suzanne virou
-
se abruptamente para responder, mas só conseguiu
abrir a boca. Antes que pudesse emitir quais
quer palavras, uma podero
sa
vibração de baixa freqüência sacudiu o submersível. Ela foi obrigada a
agarrar a lateral do assento para não cair. O súbito abalo jogou objetos
soltos no piso. Uma caneca de café se espatifou no chão; os cacos saí
ram
rolando p
elo chão junto com canetas caídas. Ao mesmo tempo, foi
possível sentir um ronco baixo que parecia um trovão distante.
O abalo durou quase um minuto. Ninguém falou, embora um
guincho
involuntário tenha escapado dos lábios de Perry, que ficou pálido.
—
Mas q
ue raio de tremor foi
esse
?
—
indagou Donald. Rapida
-
mente, passou em revista os instrumentos.
—
Não tenho certeza
—
disse Suzanne
—
, mas meu palpite é que foi
um terremoto. Ocorrem muitos, em toda a extensão da Cadeia Meso
-
Atlântica.
—
Terremoto!?
—
excla
mou Perry.
—
Talvez este velho vulcão esteja despertando
—
disse Suzanne.
—
Não seria fantástico presenciar isso?
—
Epa
—
disse Donald.
—
Tem alguma coisa errada!
—
Qual é o problema?
—
indagou Suzanne. Como Donald, seus
olhos percorreram rapidamente os mo
stradores, os instrumentos e as telas
diretamente no seu campo de visão. Eram aqueles os instrumentos
importantes para operar o submarino. Nada parecia estar faltando.
—
O ecobatímetro!
—
disse Donald, com uma urgência que não era
comum nele.Os olhos de Su
zanne voltaram
-
se imediatamente para o
mostrador digital situado perto do chão, entre os dois assentos dos pilotos.
Estava diminuindo a uma velocidade alarmante.
—
O que está havendo?
—
indagou ela.
—
Acha que vem subindo
lava aí por essa chaminé?
—
Não!
—
gritou Donald.
—
Somos nós. Estamos afundando, e já
alijei todos os pesos de imersão. Perdemos totalmente a flutuabilidade!
—
Mas veja o manômetro!
—
berrou Suzanne.
—
Não está subin
do.
Como podemos estar afundando?
—
Deve ter se quebrado
—
disse Donald,
frenético.
—
Sem dúvi
da
estamos afundando. Dá só uma olhada por essa porcaria de vigia aí!
Os olhos de Suzanne rapidamente desviaram
-
se para a janela. Era
isso mesmo. Estavam afundando. A superf
ície lisa da rocha estava se
movimentando rapidamente para c
ima.
—
Vou injetar ar nos tanques de lastro
—
gritou Donald.
—
A essa
profundidade não vai dar muito certo, mas não temos escolha.
O som do ar comprimido abafou a
Sagração da primavera
de
Stravinsky, porém apenas durante vinte segundos. A uma pressão da
-
qu
elas, os tanques de ar comprimido rapidamente se esgotaram. A des
-
cida não foi afetada.
—
Faça alguma coisa!
—
berrou Perry quando conseguiu recobrar a
voz.
—
Não dá
—
berrou Donald.
—
O submarino não está obede
cendo
aos controles. Não há mais nada a tent
ar.
5
5
Mark Davidson estava morrendo de vontade de fumar. O vício lhe
parecia irresistível, embora Mark considerasse fácil livrar
-
se dele, uma vez
que fumava apenas uma vez por semana. Ficava com mais vontade
quando estava se distraindo, trabalhando ou ner
voso, e naquele mo
mento
estava mesmo uma pilha. Para ele, as operações de mergulho em grande
profundidade sempre eram de alto risco; sabia, por experiência, que as
coisas podiam ficar pretas de uma hora para a outra.
Ergueu os olhos para o relógio grande
da empresa que estava pen
-
durado na parede da cabine, com seu monstruoso ponteiro dos minu
tos.
Sua presença intimidadora fazia a passagem do tempo difícil de se ignorar.
Agora já fazia doze minutos desde que o último contato fora mantido com
o
Oceanus.
Em
bora Donald houvesse especificamente avisado que talvez
ocorresse uma interrupção nas comunicações, aque
le intervalo parecia
mais longo do que o razoável, principalmente por
que o submarino não
havia respondido à última mensagem de Larry Nelson. Foi quand
o Larry
tentou lhes dizer que
os
mergulhadores esta
vam passando pelos cento e
cinqüenta metros.
Os olhos de Mark voltaram
-
se para o pacote de Marlboro que ele
havia jogado displicentemente sobre o painel da cabine de mergulho. Era
uma agonia n
ão poder peg
ar o maço, tirar um cigarro e acendê
-
lo.
Infelizmente, havia uma proibi
ção recente na empresa quanto a fumar
nas áreas comuns do navio, e o capitão Jameson era um caxias com as
regras e os regulamentos.
Com alguma dificuldade, Mark desviou os olhos dos ciga
rros e es
-
quadrinhou o interior da cabine. Todos os outros presentes pareciam
calmos, o que apenas fez Mark ficar mais tenso. Larry Nelson estava
sentado, perfeitamente parado, na esta
ção de monitoração de operações
de mergulho, junto ao operador de sonar,
Peter Rosenthal. Logo além
deles estavam os dois vigilantes do turno, que se encontravam em fren
te
do console de operação do sistema de mergulho. Embora os olhos deles
estivessem constantemente examinando os manômetros das duas câmaras
de superfície pres
surizadas e o sino de mergulho, todas as ou
tras partes
dos corpos deles estavam imóveis.
Diante dos vigilantes estava o operador do guincho. Ele estava
encarapitado em um banco alto diante da janela que dava para o po
ço
central. A mão dele estava pousada
sobre a alavanca de câmbio do guin
-
cho. Lá fora, o cabo atado à manilha do alto do sino de mergulho esta
va
sendo desenrolado à velocidade máxima permitida. De um tambor
vizinho vinha um segundo cabo passivo que continha a linha de gás
comprimido, a mangue
ira de água quente e os fios de comunicação.
Do outro lado da cabine, estava o capitão Jameson, que distraida
-
mente chupava um palito. Diante dele estavam os controles que forma
-
vam uma extensão da ponte. Embora os impelidores e empuxadores do
sistema de p
osicionamento dinâmico estivessem sendo controlados por
computador para manter o navio estacionário sobre a cabeça do poço, o
capitão Jameson podia desativar o sistema e controlá
-
lo manualmen
te,
caso houvesse necessidade disso durante as operações de merg
ulho.
—
Mas que inferno!
—
exclamou Mark, com veemência. Bateu com
um lápis que inconsciente andara torcendo de encontro ao balcão e se
ergueu.
—
Qual a profundidade em que estão os mergulhadores?
—
Passando pelos duzentos metros, senhor
—
respondeu o oper
a
-
dor do guincho.
—
Tente entrar em contato com o
Oceanus
de novo!
—
berrou Mark para Larry. Começou a andar de um lado para o outro.
Estava com uma sensação ruim na boca do estômago, e ela estava
piorando. Ele começou a se criticar por incentivar Perry Ber
gman a
participar do mergulho. Sabendo do interesse da Dra. Newell pelo monte
sub
marino e do desejo dela de fazer mergulhos puramente exploratórios,
temia que ela tentasse impressionar o presidente para conseguir seu
intento. Isso podia significar que ela
pressionaria Donald a fazer coi
sas
que ele talvez não fizesse normalmente, e Mark sabia muito bem que a
Dra. Newell era a única pessoa do navio que potencialmente era capaz de
influenciar desse jeito o normalmente correto ex
-
oficial da Marinha.
Mark estr
emeceu. Seria uma catástrofe de primeira grandeza o
submersível ficar preso em uma fissura ou em uma falha onde pu
desse ter
descido para examinar uma determinada característica geo
lógica de perto.
Isso quase havia acontecido com o submersível
Alvin,
ao l
argo de Woods
Hole, e aquela quase tragédia tinha ocorrido na Cadeia Meso
-
Atlântica,
não muito distante do ponto onde se en
contravam.
—
Continuamos sem obter resposta
—
disse Larry depois de vá
rias
tentativas frustradas de falar com o
Oceanus
através do
UQC.
—
Algum sinal do submersível no sonar de varredura lateral?
—
indagou Mark ao operador de sonar.
—
Negativo
—
disse Peter.
—
E os hidrofones do fundo do mar não
fizeram contato com a baliza de rastreamento. O termoclínio que
encontraram deve ser mesmo
muito acentuado. É como se tivessem caído
nas profundezas do oceano.
Mark parou de andar para um lado e para outro e olhou para o re
-
l
ógio outra vez.
—
Há quanto tempo foi aquele abalo?
—
indagou.
—
Foi mais do que um abalo
—
disse Larry.
—
Tad Messenger
disse
que alcançou quatro ponto quatro na escala Richter.
—
Não estou
surpreso..., derrubou aquela pilha de tubos no con
vés
—
disse Mark.
—
E
se foi assim aqui em cima, imagino que deve ter sido muito pior lá
embaixo. Há quanto tempo ocorreu?
Larry consult
ou o di
ário.
—
Foi há quase quatro minutos. Não acha que isso teve alguma
coisa a ver com essa nossa falta de comunicação com o
Oceanus,
acha?
Mark hesitou, sem saber o que responder. Não era supersticioso,
mas detestava expressar seus temores, como se art
iculá
-
los fosse torná
-
los
muito mais possíveis. Porém, temia que o terremoto de 4.4 pudesse ter
causado um deslizamento de rochas que houvesse prendido o
Oceanus.
Uma ca
tástrofe assim certamente não estaria descartada, se Donald tivesse
mes
mo descido den
tro de uma depressão estreita por insistência de
Suzanne.
—
Deixe
-
me falar com os mergulhadores
—
disse Mark. Foi até
Larry e pegou o microfone. Enquanto pensava no que iria dizer, lançou
uma olhadela para o monitor onde podia ver de cima para baixo a part
e
superior das cabeças e os corpos de três homens.
—
Mas que merda, cara!
—
resmungou Michael.
—
Você acabou de
chutar meus colhões!
—
A voz dele saiu como uma série de guinchos e
gritos que teriam sido em sua maior parte ininteligíveis para os seres
human
os normais. A distorção era uma função do hélio que ele estava
respirando no lugar do nitrogênio.
À pressão equivalente a 980 pés de água do mar, o nitrogênio fun
-
cionava como anestésico. A substituição do nitrogênio por hélio resol
via o
problema, mas cau
sava mudanças acentuadas na voz. Os mergulhadores
já estavam acostumados a elas. Embora a voz deles soas
se parecida com a
do Pato Donald, de Walt Disney, eram capazes de se entender
perfeitamente.
—
Então tira os seus colhões da minha reta
—
disse Richard
.
—
Estou todo enrolado para colocar essas nadadeiras.
Todos os três mergulhadores estavam apinhados dentro do sino de
m
ergulho, cujo casco duplo era uma esfera de apenas 2,40 metros de
diâmetro. Embolados junto com eles estavam todos os equipamentos de
me
rgulho, muitas centenas de metros de mangueira enrolada e toda a
instrumentação necessária.
—
Saia do caminho, ele diz
—
zombou Michael.
—
O que quer que
eu faça, que dê uma voltinha lá fora?
Um alto
-
falante estalou, dando sinal de que ia receber uma trans
-
missão. Estava montado bem no ápice da esfera ao lado de uma minús
-
cula câmera de vídeo munida de uma lente do tamanho do olho de um
peixe. Embora os mergulhadores soubessem que estavam sendo cons
-
tantemente observados, eram totalmente indiferentes a essa
vigilância.
—
Por favor, um minuto de sua atenção, homens!
—
ordenou Mark.
Em contraste com a voz dos mergulhadores, a dele parecia rela
tivamente
normal.
—
Aqui fala o comandante das operações.
—
Grande merda!
—
resmungou Richard sem tirar os olhos da
na
dadeira que estava lhe causando tanto problema.
—
Não admira que
não consiga colocar essa porcaria. Não é a minha. É a sua, Donaghue.
—
Sem avisar, Richard tascou a nadadeira na cabeça de Michael. Michael se
incomodou com o golpe apenas porque derrubou seu
precioso boné dos
Red Sox. O boné caiu no tronco da escotilha, indo parar sobre a escotilha
vedada.
—
Ei, peraí, ninguém se mova!
—
disse Michael.
—
Mazzola, pega
meu boné pra mim! Não quero que se molhe!
—
Michael já estava todo
vestido para o mergulho,
com o traje de neoprene completo, colete de
controle de flutuação e pesos de lastro. A capacidade de se curvar, como
seria preciso para pegar o boné, estava fora de cogitação.
—
Senhores!
—
a voz de Mark se fez ouvir mais alta e mais
insistente.
—
Vá se fo
der!
—
disse Louis.
—
Posso ser o mergulhador do sino
mas não sou seu escravo.
—
Ei, escutem aqui, seus animais!
—
a voz de Larry berrou do
minúsculo alto
-
falante. O som reverberou pela esfera entulhada a um
nível próximo da dor.
—
O Sr. Davidson quer fala
r com vocês, portan
to, é
melhor calarem a matraca!Richard meteu a nadadeira e o outro pé nas
mãos de Michael, de
pois olhou para a câmera.
—
Tá legal
—
disse ele.
—
Já estamos ouvindo.
—
Esperem aí um pouco
—
disse a voz de Larry.
—
Não percebe
-
mos que o
distorcedor de voz para hélio não estava conectado.
—
Então me dá minhas nadadeiras
—
disse Richard a Michael,
enquanto aguardavam.
—
Quer dizer que essas aqui que eu calcei não são minhas?
—
Ai, ai, ai!
—
disse Richard, na base da gozação.
—
Como vocês
es
tá segurando as suas, imagino que não podem estar nos seus pés, ô
miolo mole!
Michael se agachou desajeitadamente, prendendo as nadadeiras
debaixo do braço, e arrancou as que estavam nos seus pés. Richard as
tomou dele, exprimindo desdém. Aí os dois mergul
hadores deram
encontrões um no outro, desajeitadamente, enquanto lutavam para cal
çar
suas respectivas nadadeiras ao mesmo tempo.
—
Muito bem, homens
—
disse a voz de Larry.
—
Conectamos o
distorcedor de voz, e podemos parar com a palhaçada e escutar! Quem
vai
falar agora é o Sr. Davidson.
Os mergulhadores nem se incomodaram de olhar para cima. Apoia
-
ram
-
se nas paredes do sino e assumiram express
ões entediadas.
—
Não conseguimos entrar em contato com o
Oceanus
pelo UQC,
nem rastreá
-
lo com o sonar
—
disse a
voz de Mark.
—
Estamos neces
-
sitando urgentemente que façam contato visual. Se não o virem ao che
gar
à cabeça do poço, comuniquem a nós, que vamos lhes dar mais instruções.
Entendido?
—
Afirmativo
—
disse Richard.
—
Agora podemos voltar a nos
preparar par
a o mergulho?
—
Afirmativo
—
disse Mark.
Richard e Michael se mexeram, e dando um mínimo de liberdade de
movimento um ao outro, conseguiram calçar as nadadeiras. Michael
até
tentou pegar o boné enquanto Richard vestia o colete de flutuação e o
cinto de las
tro, mas estava além do alcance dele, como temia.
Cinco minutos depois, a voz do operador do guincho lhes disse que
estavam passando pelos 274 metros. Com este anúncio a descida sofreu
uma boa redução de velocidade. Enquanto Richard e Michael tenta
vam
abr
ir caminho, Louis aprontou as mangueiras. Como mergulha
dor do sino,
cabia
-
lhe manusear as linhas.
—
Acendendo as luzes externas
—
anunciou Larry.
Richard e Michael se contorceram o suficiente para espiar pelas duas
minúsculas vigias que ficavam uma diante
da outra. Louis estava ocu
pado
demais para espiar por uma das duas janelas restantes.
—
Estou enxergando o fundo
—
disse Richard.
—
Eu também
—
disse Michael.
Com um único cabo de içamento, o sino de mergulho começou a
girar lentamente, embora sua rotaçã
o fosse limitada pelos cabos de su
-
porte de vida. O sino girava em uma direção várias voltas, depois girava
para outro lado. Quando o sino chegou à marca de trezentos metros e
parou, a rotação foi cessando pouco a pouco, também, mas não antes de
cada mergu
lhador ter tido oportunidade de examinar o terreno num raio
de 360 graus.
Como o sino ficou suspenso cerca de quatro metros acima da face
ro
chosa em uma das partes mais altas do pico do monte submarino, os
mer
gulhadores foram capazes de ver uma
área rela
tivamente ampla
limitada pelo alcance das luzes halógenas externas. A visão deles estava
um tanto restrita apenas a oeste, onde havia sido bloqueada por uma
elevação na rocha. Para Richard e Michael, a elevação pareceu uma série
de colunas interligadas cuj
a crista era ligeiramente mais alta do que a
linha de visão deles. Mas até mes
mo essa formação estava na periferia da
esfera de luz.
—
Está vendo o submarino?
—
perguntou Richard a Michael.
—
Não
—
respondeu Michael.
—
Mas posso ver as brocas e as
ferrame
ntas perto da cabeça do poço. Estão todas empilhadas ali, como
deviam estar.Richard afastou
-
se da vigia e inclinou o rosto para a câmera.
—
Não estamos vendo o
Oceanus
—
disse ele.
—
Mas eles estive
ram
aqui.
—
Isso significa que haverá uma mudança nos pla
nos de mergu
-
lho
—
respondeu a voz de Larry.
—
O Sr. Davidson quer que os mer
-
gulhadores vermelho e verde vão para o oeste. Podem enxergar uma
escarpa nessa direção?
—
Que diabo é uma escarpa?
—
indagou Richard.
—
É um paredão, ou penhasco
—
interrompeu Ma
rk.
—
Ah, é, acho que sim
—
disse Richard. Olhou para fora outra vez,
para a fileira de colunas.
—
O Sr. Davidson quer que passem sobre essa elevação
—
disse
Larry.
—
Qual a altura dela em relação ao sino?
—
Quase a mesma
—
disse Richard.
—
Muito bem, pass
em sobre ela e vejam se conseguem enxergar o
submersível. O Sr. Davidson acha que pode haver uma fenda ali. E
cuidado com a temperatura. Aparentemente há um tremendo gradien
te
nessa área.
—
Entendido
—
disse Richard.
—
Lembrem
-
se
—
acrescentou Larry
—
, es
tão limitados a uma
profundidade de excursão de quarenta e cinco metros. Não subam mais
de três metros acima do sino. Não queremos que ninguém seja acometido
de mal
-
dos
-
mergulhadores e estrague o mergulho. En
tenderam?
—
Entendemos
—
repetiu Richard. As ad
vertências de Larry já eram
praxe nos mergulhos saturados.
—
Mergulhador do sino
—
disse Larry
—
, a mistura respirável deve
ficar em 1,5% de oxigênio e 98,5% de hélio. Entendeu?
—
Entendido
—
disse Louis.
—
Só mais uma coisa
—
acrescentou Larry.
—
Mergulha
dores
vermelho e verde, não quero que nenhum de vocês banque o machão,
portanto não se arrisquem, tenham cuidado.
—
Pode crer!
—
disse Richard.
Mostrou a mão com o polegar vol
tado para cima para a câmera, enquanto
fazia cara de deboche para Michael, dizend
o:
—
Dizer para tomarmos
cuidado aqui embaixo é que nem dizer para o seu filho para tomar
cuidado antes de mandá
-
lo brin
car no meio de uma aut
o
-
estrada.
Michael concordou, mas não ouviu. Essa parte do mergulho era
séria. Estava concentrado conectando o um
bilical e outras parafernálias.
Quando ficou pronto, Louis lhe entregou a máscara inteiriça engastada em
um capacete de fibra de vidro de um laranja vivo. Michael segurou
-
o sob
o braço para aguardar Richard. Apesar de toda a sua experiência, ele
sempre sen
tia pontadas de nervosismo logo antes de entrar na água.
Richard rapidamente preparou também seu equipamento. Depois
pegou duas lanternas submarinas, testou
-
as e entregou uma a Michael.
Quando estava pronto, fez sinal com a cabeça para Michael, e ambos
col
ocaram os capacetes ao mesmo tempo.
A primeira coisa que verificaram depois de Louis abrir o coletor foi
o escoamento do gás. Depois a água quente, um acessório necessário uma
vez que a temperatura externa da água era de apenas 2,22 graus. Era
difícil para
um mergulhador trabalhar com frio. Finalmente testa
ram os
cabos de comunicações e de sensores. Depois que tudo já estava em ordem,
Louis informou à superfície e pediu permissão para os mer
gulhadores
irem para a água.
—
Permissão concedida
—
respondeu a
voz de Larry.
—
Abra a
escotilha!
Com uma certa dificuldade e vários resmungos, Louis espremeu seu
corpanzil pelo tronco do sino abaixo.
—
Meu boné!
—
berrou Michael, embora sua voz estivesse abafa
da
pelo sibilar do gás respirável.
Louis agarrou o boné de
beisebol e entregou
-
o a Michael. Ele pen
-
durou
-
o cuidadosamente em uma das muitas saliências na parede do sino.
Tratava
-
o como seu bem mais precioso. O que não admitia era que o
considerava seu amuleto da sorte.Louis destravou a escotilha de pressão e,
co
m alguma dificuldade, a ergueu. Encostou
-
a na parede. Abaixo, a
luminosa água azul
-
esverdeada subiu ameaçadoramente pelo poço. Todos
os três mergulhadores solta
ram um silencioso suspiro de alívio quando
ela previsivelmente parou logo abaixo da borda da es
cotilha. Todos eles
sabiam que ela pararia, mas também sabiam que, se não parasse, não
haveria para onde fugir.
Richard fez um sinal de positivo com a mão para Michael. Michael
retribuiu o gesto. Richard então cuidadosamente desceu para dentro do
poço. Dep
ois de se ver livre, lançou
-
se para fora pelo fundo do sino.
Para Richard, sair daquele sino entulhado era um alívio que compa
-
rava ao do nascimento. A súbita sensação de liberdade era indescritível. A
única parte dele que podia sentir a baixa temperatura
da água eram as
mãos enluvadas. Ele esquadrinhou a área enquanto regulava a
flutuabilidade. Levou apenas um momento para ver a forma escura que se
deslocava exatamente na periferia da área iluminada. Não era um
submersível
. Era um tubarão, com olhos lumino
sos. O comprimento do
enorme peixe era de mais de duas vezes o diâmetro do sino de mergulho.
—
Temos companhia
—
avisou Richard, calmamente.
—
Manda aí o
meu vergalhão, só por via das dúvidas, e mande o Michael trazer o
dele.
—
De toda a parafernália contr
a tubarões do mercado, Richard
preferia um simples pedaço de vergalhão de um metro de comprimen
to.
Por sua experiência, os tubarões evitavam o vergalhão como o diabo foge
da cruz, se fosse simplesmente apontado em sua direção. Não ti
nha tanta
certeza de
que isso funcionaria se estivessem atacando para se alimentar,
mas nessa situação nada funcionava cem por cento.
Segundos depois, o vergalhão desceu e bateu silenciosamente con
tra
a rocha. As pernas de Michael apareceram em seguida, enquanto ele
procurava
sair pelo poço. Depois que saiu, os dois mergulhadores fize
ram
contato visual. Richard gesticulou na direção do tubarão, que ago
ra vinha
vagueando na direção da luz.
—
Ah, é só um tubarão da Groenlândia
—
disse Richard a Louis,
que procurou transmitir a
mensagem a Michael também. Agora Richard
estava menos preocupado. O tubarão era grande, mas não perigoso. Sabia
que o outro nome do tubarão era tubarão dorminhoco, por causa dos seus
hábitos morosos.
Depois de Michael fazer suas regulagens, Richard aponto
u para a
elevação. Michael concordou, e os dois seguiram para lá. Ambos
seguravam as lanternas na mão esquerda, e os vergalhões na direita.
Sendo nadadores tarimbados, atravessaram a distância em pouco tempo,
sem pressa. A uma pressão de quase trinta atmos
feras o mero trabalho de
respirar o gás viscoso e comprimido já lhes esgotava as energias.
Dentro do sino, Louis manejava freneticamente ambos os conjun
tos
de cabos. Não queria restringir os mergulhadores, nem lhes dar fol
ga
demais, para os cabos não se
embaraçarem. Até os mergulhadores
começarem a trabalhar, o mergulhador do sino se mantinha ocupado. O
serviço exigia concentração e reflexos rápidos. Ao mesmo tempo que
manuseava os cabos e mangueiras, Louis precisava vigiar os manômetros
e o mostrador dig
ital de percentagem de oxigênio. Além disso estava em
comunicação constante com cada mergulhador e com o controle do
mergulho na superfície. Para manter as mãos livres, havia colocado um
fone de ouvido com um minúsculo alto
-
falante em cada ouvido e um
micr
ofone à frente da boca.
Na água, os mergulhadores nadaram até o alto da pirambeira e pa
-
raram. Àquela distância do sino, a luz já era bem pouca. Richard fez gesto
de usar a lanterna, e ambos ligaram cada qual a sua.
Atrás deles, o sino de mergulho cintilav
a estranhamente, como um
satélite pousado em uma paisagem alienígena e rochosa. Uma corrente de
bolhas saía do sino e subia para a superfície distante. Adiante, os
mergulhadores encararam a escuridão desbotando
-
se até um negro retinto,
com um brilho apenas
tênue quando olhavam para cima, na direção da
superfície, a trezentos e poucos metros acima deles. Lá bem no fundo
sabiam que o enorme tubarão estava em algum ponto logo além do limite
de seu campo de visão. Quando projetaram a luz da lan
-
terna para a
fre
nte, formaram fracos cones de luz que penetravam a es
curidão gelada
apenas 12 a 15 metros adiante.
—
Há um precipício além da crista
—
relatou Richard.
—
Essa deve
ser a escarpa.
Louis passou a informação para a estação de mergulho na superfí
cie.
Embora
o controle do mergulho pudesse ouvir os mergulhadores e falar
com eles, Larry preferia usar o mergulhador do sino como inter
mediário.
A combinação da distorção da voz pelo hélio e o ruído do fluxo do gás
respirado pelos mergulhadores tornava extremamente
difí
cil a
compreensão por aqueles que estavam lá em cima na cabine de mergulho,
mesmo com o distorcedor de voz acionado. Era muito mais eficiente usar
o mergulhador do sino, uma vez que estava acostumado às distorções de
voz.
—
Mergulhador vermelho
—
diss
e Louis.
—
O controle quer sa
ber
se está vendo algum sinal do
Oceanus.
—
Negativo
—
disse Richard.
—
E uma fissura, ou um buraco?
—
repassou Louis.
—
Não nesse momento
—
disse Richard
—
, mas estamos a ponto de
descer
esse
paredão de rocha.
Richard e Micha
el nadaram, ultrapassando a beirada e desceram a
face do penhasco.
—
A rocha é lisa feito vidro
—
comentou Richard. Michael con
-
cordou. Havia passado a mão sobre ela rapidamente.
—
Estou lançando os últimos trinta metros de mangueira
—
avi
sou
Louis. Rapid
amente tirou as últimas voltas dos ganchos de armaze
nagem,
já soltando xingamentos em voz baixa. Logo iria ter que enrolar tudo
aquilo de novo. Os mergulhadores raramente se afastavam assim do sino,
e logo quando era sua vez de ser o mergulhador do sino,
eles tinham que
fazer aquilo.
Richard parou de descer. Agarrou Michael para que parasse tam
-
bém. Richard apontou para seu termômetro de pulso. Michael olhou para
o dele, e tornou a olhar, incrédulo.
—
A temperatura da água acabou de
mudar
—
relatou Richard.
—
Subiu quase trinta e sete graus. Corte a água quente!
—
Mergulhador vermelho, está brincando comigo?
—
indagou
Louis.
—
O termômetro do Michael está indicando a mesma coisa
—
disse
Richard.
—
Parece até que entramos em uma banheira de água quente.
Richa
rd estivera dirigindo o facho de luz da lanterna para baixo
enquanto desciam, procurando a base da escarpa. Agora girava
-
a em
torno de si. Bem na periferia da
área iluminada ele conseguia distinguir
uma parede em frente àquela que estavam descendo.
—
Epa!
Parece que estamos em algum tipo de fissura descomunal
—
disse.
—
Mal consigo enxergar o outro lado. Deve ter uns quinze
metros de largura.
Michael deu um tapinha no ombro de Richard e apontou para a
esquerda deles:
—
Tem um fim também
—
disse.
—
Michael t
em razão
—
disse Richard, quando olhou. Então ele
girou e apontou a luz na direção oposta.
—
Acho que parece um
canyon
tipo caixote porque não consigo ver um quarto lado, pelo menos não de
onde estamos.
—
Epa!
—
exclamou Michael.
—
Estamos afundando! Richa
rd olhou
a parede atrás de si. Estavam mesmo afundando
—
mais rápido do que
teria considerado possível. Havia pouca sensação de resistência contra a
água.
Richard e Michael deram algumas pernadas potentes para cima.
Para seu espanto, elas de pouco valeram.
Ainda estavam afundando.
Comum misto de confus
ão e alarme, ambos reagiram por reflexo e
inflaram os coletes de flutuabilidade. Quando viram que não surtiu efeito,
alijaram os cintos de lastro. Ainda com flutuabilidade signifi
cativamente
negativa, livrara
m
-
se dos vergalhões. Finalmente, baten
do as pernas com
persistência foram parando de descer, até pararem de vez.
Richard
apontou para cima, e os dois come
çaram a nadar. Apesar da força que
faziam para respirar, ainda sentiam dificuldade para nadar. O es
tr
anho
episódio do afundamento os havia deixado nervosos, e, para piorar, eles
estavam começando a sentir calor através dos trajes de mergulho.
Os dois estavam no nível do alto do penhasco quando uma repen
-
tina vibração constante subiu das profundezas como u
ma onda de cho
que.
Durante alguns segundos ambos ficaram meio desorientados. Estavam
tendo dificuldade para respirar e nadar ao mesmo tempo. O tremor era
semelhante àquele que haviam sentido no sino de mergulho na descida, só
que muito pior. Perceberam qu
e era um terremoto sub
marino, e ambos
intuitivamente sentiram que estavam perto do epicentro.
Para Louis, o abalo foi ainda mais violento. No momento do im
pacto,
ele estava puxando freneticamente as mangueiras, que haviam
subitamente ficado frouxas. Ele
havia sido for
çado a largar os cabos para
evitar ser empalado em uma das muitas saliências presas às paredes.
Richard recuperou
-
se o suficiente para respirar, embora fosse dolo
-
roso. A onda de pressão devia ter lhe machucado o peito. Como nada
dor
experien
te, sua primeira reação foi verificar como estava o companheiro, e
procurou Michael freneticamente, girando em torno de si. Durante um
segundo apavorante, não conseguiu encontrá
-
lo. Depois olhou para baixo.
Michael parecia estar tentando agarrar
-
se à água
para subir. Richard
estendeu a mão para baixo para ajudá
-
lo. Quan
do fez isso, percebeu que
estavam ambos afundando
—
e rápido.
Sem nenhuma outra maneira de reduzir o peso, Richard começou a
tentar nadar para cima com Michael. No seu desespero, até jogaram
as
lanternas fora, para ficar com as mãos livres. Mas não fizeram nenhum
progresso. Até pareciam estar afundando mais rápido. Depois, caíram
verticalmente, ricocheteando no paredão de rocha enquanto eram
inexoravelmente sugados para o seio do abismo.
Dent
ro do sino, Louis havia recuperado o equilíbrio o suficiente
para agarrar os cabos, ainda frouxos. Rapidamente, puxou uma alça para
dentro, mas, antes que conseguisse pendurá
-
la no suporte, sentiu um
puxão súbito para o lado oposto. A princípio tentou segu
rar os cabos para
que não saíssem, mas foi impossível. Se os segurasse, eles o teriam puxado
para fora do sino.
Louis soltou palavrões enquanto se desviava como um louco das
mangueiras, que agora estavam sendo arrancadas do sino a uma veloci
-
dade incrível.
Era como se Richard e Michael fossem iscas que houves
sem
sido mordidas por um peixe gigantesco.
—
Mergulhador do sino, você está bem?
—
indagou a voz de Larry.
—
Sim, estou!
—
berrou Louis.
—
Mas está acontecendo uma coisa
muito louca! As mangueiras estã
o saindo a duzentos quilômetros por hora!
—
Estamos vendo pelo monitor
—
disse Larry, apavorado.
—
Não
consegue detê
-
las?
—
De que jeito?
—
indagou Louis, às lágrimas. Olhou de relance o
que restava de mangueira. Não havia muita coisa. Ele gelou. Não fa
zi
a
idéia do que o esperava. As últimas voltas saíram do sino, e por um breve
momento os cabos se retesaram. Depois, para extremo terror de Louis, eles
foram arrancados dos invólucros e desapareceram pelo poço, tragados
pelo mar impiedoso.
—
Ai, meu Deus!
—
gritou Louis, enquanto procurava fechar as
válvulas do coletor de gás.
—
O que está acontecendo lá embaixo?
—
inquiriu Larry.
—
Sei lá!
—
berrou Louis. Aí, para piorar seu terror, a vibração e o
ronco começaram outra vez. Freneticamente, ele se agarrou no
que pôde
enquanto o sino de mergulho se sacudia como se fosse um saleiro nas
mãos de um gigante. Ele gritou, e, como que em resposta a suas preces, o
tremor reduziu
-
se a uma leve vibração. Ao mesmo tempo, ele perce
beu
um chiado e um brilho avermelhado que
penetrava pelas vigias.
Largando o apoio da tubulação de alta pressão na qual se agarrara
desesperadamente, Louis torceu
-
se para espiar por uma das vigias. O que
ele viu o fez gelar de novo. Acima da elevação próxima, que os mergulha
-
dores haviam escalado
tão pouco tempo antes, apareceu uma cascata
surreal
de lava vermelha e quente, a brilhar. A beirada dela cuspia,
pipocava e fumegava enquanto transformava a água gelada em vapor.
Quando Louis se recuperou o bastante para falar, jogou a cabe
ça
para trás, p
ara olhar para a câmera.
—
Me tirem daqui!
—
gritou histericamente.
—
Estou bem no meio
de uma porra de um vulcão em erupção!
O interior da cabine havia ficado silencioso. Uma sensação de
choque reinava no recinto. O único ruído vinha dos motores montados
no
con
vés que acionavam os guinchos que estavam içando o sino de
mergulho e as linhas de sustentação da vida. Momentos antes, um
verdadeiro pandemônio havia se estabelecido, quando ficou óbvio que
haviam per
dido dois mergulhadores em algum tipo de catás
trofe
piroclástica. O único consolo era que o terceiro estava bem, e já estava
sendo trazido para bordo.
Mark deu uma tragada longa e nervosa no seu Marlboro. Igno
rando
as novas regras, havia procurado os cigarros por reflexo, aos pri
meiros
sinais de pro
blemas, e agora que toda a extens
ão da tragédia já se havia
desenrolado, ele estava fumando um cigarro atrás do outro de pura
ansiedade. Havia conseguido não só perder um submarino de cem
milhões de dólares, como também dois operadores treinados, além de d
ois
mergulhadores saturados experientes; tinha também perdido o presidente
da Benthic Marine. Se ao menos não tivesse incentivado Perry Bergman a
acompanhar a imersão... Por isso ele era o único res
ponsável.
—
Mas que diabo vamos fazer agora?
—
perguntou
Larry, com
-
pletamente atarantado. Até ele estava fumando, embora dissesse que
havia parado seis meses antes. Como supervisor de mergulho, também se
sentia responsável pelo desfecho desastroso.
Mark suspirou profundamente. Sentia fraqueza. Jamais perdera um
a
só vida no seu turno em toda a sua carreira, e isso incluía operações de
mergulho complexas em locais perigosos como o Golfo Pérsico durante
a
operação Tempestade no Deserto. Agora perdera cinco pessoas. Era
demais até pensar naquilo.
—
O sino está passa
ndo pelos cento e cinqüenta metros
—
anun
ciou
o operador do guincho para quem quisesse ouvir.
—
E a operação de perfuração?
—
Larry perguntou
-
se em voz alta.
Mark deu outra longa tragada no cigarro e quase queimou os
dedos.
Zangado, apagou o toco de cigar
ro, depois acendeu mais um.
—
Preparem
-
se para lançar o trenó da câmera
—
disse Mark.
—
Vamos dar uma olhada no que está havendo lá embaixo.
—
Mazzola foi muito claro
—
disse Larry, em voz trêmula.
—
Enquanto o içávamos, disse que todo o cume do monte, até
onde po
dia
enxergar, era lava derretida pura, borbulhando de trás da elevação. E
estamos registrando tremores quase contínuos. Porra, estamos bem em
cima de um vulcão ativo. Tem certeza de que quer mandar o trenó lá para
aquele verdadeiro inferno?
—
Quer
o ver tudo
—
disse Mark, devagar.
—
E quero registrar tudo.
Tenho certeza de que vai haver uma investigação desgraçada so
bre essa
merda toda. E quero ver a área onde fica o
canyon
ou o buraco onde o
Oceanus
desapareceu. Tenho que ter certeza de que não há
chance...
—
Mark não terminou a frase. Sabia, bem no fundo, que não adiantava;
Donald Fuller havia levado o submarino para uma chaminé de vulcão
logo antes da erupção.
—
Tudo bem
—
concordou Larry.
—
Vou mandar a equipe pre
parar
a câmera. Mas e a perfura
ção? Espero que não esteja pensando em mandar
mais uma equipe de mergulho depois que
esse
vulcão se aquietar.
—
Mas claro que não, porra!
—
disse Mark, revoltado.
—
Já perdi o
interesse em perfurar essa porcaria dessa montanha, principalmente agora
que o P
erry Bergman já não está mais entre nós. Essa era a ob
sessão
imprudente dele, não minha. Se o trenó da câmera confirmar que a
chaminé ou seja lá o que for está cheia de lava quente, e não conseguirmos
encontrar nem vestígio do
Oceanus,
vamos dar o fora da
qui.
—
Para mim
está ótimo!
—
disse Larry. Ficou de pé.
—
Vou pre
parar o trenó e lançá
-
lo
o mais breve possível.
—
Obrigado
—
disse Mark. Inclinou
-
se para a frente e apoiou a
cabeça nas mãos. Jamais havia se sentido pior em toda a sua vida.
6
6
Suzanne foi
a primeira a se recobrar o suficiente do terror causado
por aquela descida abrupta para conseguir falar. Hesitante, disse:
—
Acho que paramos! Graças a Deus!
Durante algum tempo, que pareceu uma eternidade aos três aterro
-
rizados passageiros do submersível
, ele havia caído como uma pedra por
aquele poço misterioso abaixo. Era como se eles tivessem sido sugados
por um enorme ralo no fundo do oceano. Durante a queda, o
Oceanus
havia deixado de responder totalmente aos comandos, fossem lá quais
fossem os contr
oles que Donald tentasse.
Embora inicialmente o mergulho tivesse sido diretamente para bai
-
xo, a embarcação terminou por deslocar
-
se em espiral, e até bater nas
paredes. Uma das primeiras dessas colisões destruiu as lâmpadas
halógenas externas. Uma outra a
rrancou o manipulador de boreste com
um rangido que sugeria que ele havia sido triturado.
Perry foi o único a gritar durante aqueles momentos torturantes.
Mas até mesmo ele ficou mudo depois que todos constataram a inutili
-
dade de qualquer ação para resolv
er o problema. Só pôde olhar, impo
-
tente, o registrador digital de profundidade subir até os milhares de
metros. Os números haviam passado tão rápido que mal se podia dis
-
tingui
-
los. E quando se aproximaram os seis mil metros, ele só
conseguiu
pensar na es
tatística paralisante que havia escutado antes: a
pro
fundidade
de esmagamento
!
—
Aliás, acho que nem estamos nos movendo
—
acrescentou
Suzanne. Ela murmurava.
—
O que pode ter acontecido? Será que estamos
no fundo? Não senti nenhum impacto!
Ninguém moveu
sequer um músculo, como se fazer isso fosse per
-
turbar a súbita porém bem
-
vinda tranqüilidade. Respiravam calmamente
em inspirações curtas, e gotas de suor lhes cobriam as testas. Todos os três
ainda estavam agarrados a seus assentos, temendo que o submari
no
voltasse a mergulhar.
—
Parece que paramos, mas olha só o profundímetro
—
conse
guiu
dizer Donald. A voz dele estava rouca de tão seca que estava sua garganta.
Todos os olhos se voltaram para o mostrador. Estava se movendo de
novo, vagarosamente a princ
ípio, porém aos poucos se acelerando. A
diferença era que estava se movendo ao contrário.
—
Mas não sinto nenhum movimento
—
disse Suzanne. Exalou
profundamente e tentou relaxar os músculos. Os outros a imitaram.
—
Nem eu
—
admitiu Donald.
—
Mas olha só o
profundímetro! Está
pirando!
O mostrador havia voltado a zunir furiosamente como antes.
Suzanne inclinou
-
se para diante devagar, como se pensasse que o
submersível estava equilibrado precariamente, e o movimento pudesse
arremessá
-
lo precipício abaixo. Espi
ou pela vigia, mas só pôde ver sua
própria imagem. Sem as luzes externas, devido às colisões contra a ro
cha,
a janela estava tão opaca quanto um espelho, refletindo as luzes internas.
—
E agora, o que está havendo?
—
perguntou Perry.
—
Estou boiando tanto
quanto você
—
respondeu Suzanne. Sus
-
pirou profundamente. Estava começando a se recobrar.
—
O profundímetro está indicando que estamos subindo
—
disse
Donald. Olhou de relance os outros instrumentos, inclusive os monitores
do sonar de curto alcance. As in
dicações erráticas deles sugeriam que
havia muita interferência na água, afetando especialmente o sonar de
curto alcance. O de varredura lateral estava um pouco melhor, com menos
ruído eletrônico, porém mais difícil de interpretar. A imagem indistinta
most
rava que o submarino estava parado em uma planície vasta e
perfeitamente lisa. Os olhos de Donald voltaram ao profundímetro. Ficou
pasmado: ao contrário do que o sonar sugeria, ele ainda estava subindo, e
mais rápido do que alguns momentos antes. Mais que
depressa, ele
reabriu os tanques de lastro, porém não houve resultado. Depois baixou
as aletas de imersão, e imprimiu mais potên
cia ao sistema de propulsão. O
submarino não obedeceu aos controles. Eles porém, continuaram subindo,
apesar de tudo.
—
Estamos
acelerando
—
avisou Suzanne.
—
Subindo assim va
mos
estar na superfície em apenas dois minutos!
—
Mal posso esperar
—
disse Perry obviamente aliviado.
—
Espero que não saiamos embaixo do
Benthic Explorer
—
disse
Suzanne.
—
Isso seria um tremendo problema.
Os olhos de todos estavam pregados ao profundímetro. O submari
-
no passou pelos trezentos e cinqüenta metros sem mostrar sinal de redu
zir
a velocidade. Os cento e cinqüenta metros passaram batidos. Quando o
submarino passou pelos trinta metros, Donald dis
se, alvoroçado:
—
Segurem
-
se! Vamos tocar em vento de muito mau jeito!
—
Como assim, tocar em vento?
—
berrou Perry. Ele ouviu o de
-
sespero da voz de Donald, e isso lhe causou novo calafrio.
—
Isso significa que vamos saltar para fora da água!
—
berrou
Suz
anne. Então ela repetiu a advertência de Donald.
—
Segurem
-
se!
Enquanto o zunido frenético do profundímetro atingia um cres
-
cendo, Perry, Donald e Suzanne voltaram a agarrar seus assentos e a se
segurarem neles com toda a firmeza. Prendendo a respiração, p
repara
-
ram
-
se para o impacto. O profundímetro atingiu o zero e parou.
Imediatamente após o estalido final do instrumento, ouviu
-
se um
forte ruído de sucção em algum ponto fora da embarcação. Depois
disso,até que reinou o silêncio dentro do submarino. Agora
o único som
era uma combinação do sistema de ventilação e um zunido eletrônico po
-
rém abafado do sistema de propulsão.
Quase um minuto se passou sem a menor sensa
ção de movimento.
Finalmente Perry soltou a respira
ção.
—
Bom
—
disse.
—
E aí, o que acontece
u?
—
Não dá para estarmos no ar
esse
tempo todo
—
admitiu Suzanne.
Todos soltaram as poltronas e olharam pelas respectivas vigias. Ain
da
estava escuro como piche lá fora.
—
Que diabo...?
—
questionou Donald. Voltou a examinar os
instrumentos. Os monitores
de sonar agora estavam emitindo ruídos
eletrônicos desconexos. Ele os desligou. Também reduziu a potência do
sistema de propulsão e o zunido vindo dele cessou. Olhou para Suzanne.
—
Não sei de nada
—
disse Suzanne quando os olhos dele encon
-
traram os dela
.
—
Não faço a mínima idéia do que está ocorrendo.
—
Como é que está escuro lá fora, se estamos na superfície?
—
indagou Perry.
—
Isso não faz o menor sentido
—
disse Donald. Olhou outra vez
para os instrumentos. Inclinando
-
se para a frente, ele voltou a i
mpri
mir
potência ao sistema de propulsão. O zunido reapareceu, mas a
embarcação não se moveu. Continuou completamente imóvel.
—
Alguém me diga o que está acontecendo
—
exigiu Perry. A eu
-
foria que havia sentido momentos antes havia se dissipado. Eles obvi
a
-
mente não estavam na superfície.
—
Não sabemos o que está havendo
—
admitiu Suzanne.
—
Não há resistência ao hélice
—
relatou Donald. Desligou o
sistema de propulsão. O zunido desapareceu pela segunda vez. Ago
ra o
único som era o do sistema de ventilaçã
o.
—
Acho que estamos no ar.
—
Como podemos estar no ar?
—
indagou Suzanne.
—
Está to
-
talmente escuro, e não se sente a ação das ondas.
—
Mas é a única
explicação para o sonar não funcionar e para não haver resistência ao
hélice
—
disse Donald.
—
E veja só:
a temperatura externa subiu para
vinte graus. Sem dúvida estamos no ar.
—
Se esta é a outra vida, não estou preparado ainda
—
disse Perry.
—
Quer dizer que estamos inteiramente fora da água?
—
pergun
tou
Suzanne, ainda sem acreditar muito.
—
Sei que parec
e maluquice
—
admitiu Donald.
—
Mas é a única
forma de explicar tudo, inclusive o fato de que o telefone submarino não
funciona.
—
Donald tentou depois o rádio, e não teve sorte com ele,
também.
—
Se estamos em terra firme
—
disse Suzanne
—
, como é que não
rolamos para o lado? Quero dizer, o casco do submarino
é
cilíndrico. Se
estivéssemos em terra, certamente rolaríamos para o lado.
—
Taí, você está certa!
—
reconheceu Donald.
—
Isso, eu não
consigo explicar.
Suzanne abriu um compartimento de emergência en
tre as duas
poltronas dos pilotos e tirou de lá uma lanterna. Ligando
-
a, direcionou o
facho de luz para a vigia do seu lado. Comprimida contra ela, do lado de
fora, se via uma gosma cor
-
de
-
creme de granulação grossa.
—
Pelo menos sabemos por que não rolamo
s
—
disse Suzanne.
—
Estamos equilibrados por uma camada de lama de globigerina.
—
Pode ir explicando!
—
disse Perry. Havia se inclinado para ver
por si mesmo.
—
A lama de globigerina é o sedimento mais comum do fundo do
mar
—
explicou Suzanne.
—
Compõe
-
se
principalmente de carcaças de
um tipo de plâncton chamado foraminíferos.
—
Como podemos estar pousados em sedimento oceânico e estar no
ar?
—
indagou Perry.
—
Esse é que é o problema
—
concordou Donald.
—
Não pode
mos,
pelo menos de nenhum jeito que eu co
nheça.
—
Também é impossível encontrar
-
se lama de globigerina assim
perto da Cadeia Meso
-
Atlântica
—
disse Suzanne.
—
Esse sedimento se
encontra no meio das planícies abissais. Nada faz sentido.
—
Isso é
absurdo!
—
interveio Donald.
—
E não estou gostando n
ada disso. Seja lá
onde estivermos, estamos encalhados!
—
Poderíamos estar completamente enterrados no lodo?
—
per
-
guntou Perry, hesitante. Se estivesse certo, não queria ouvir a resposta.
—
Não! De jeito nenhum
—
disse Donald.
—
Se fosse
esse
o caso,
have
ria mais resistência ao hélice, não menos.
Durante alguns minutos ningu
ém disse nada.
—
Há alguma chance de que pudéssemos estar dentro do monte
submarino?
—
indagou Perry, finalmente rompendo o silêncio.
Donald e Suzanne se voltaram para olh
á
-
lo.
—
Como p
oderíamos estar dentro de uma montanha?
—
indagou
Donald, irritado.
—
Espera aí, estou só fazendo uma pergunta
—
disse Perry.
—
Mark
me disse esta manhã que tinha alguns dados de radar segundo os quais a
montanha talvez pudesse conter gás, não lava derreti
da.
—
Ele nunca me disse isso
—
retrucou Suzanne.
—
Não contou a ninguém
—
disse Perry.
—
Não sabia se aquilo
estava certo, uma vez que vinha de um estudo superficial da camada dura
que estávamos tentando perfurar. Era uma extrapolação, e ele só a
menciono
u de passagem.
—
Que tipo de gás?
—
indagou Suzanne, enquanto tentava ima
ginar
como um vulcão submerso poderia não conter nenhuma água.
Geofisicamente isso parecia impossível, embora ela soubesse que em terra
alguns vulcões efetivamente implodiam e se tra
nsformavam em caldeiras.
—
Ele não fazia idéia
—
disse Perry.
—
Acho que pensou que o
candidato mais promissor seria vapor contido pela camada extremamente
dura que estava nos dando tanto trabalho.
—
Bem, vapor acho que não é
—
disse Donald.
—
Não a uma
te
mperatura de quase vinte graus.
—
E gás natural?
—
sugeriu Perry.
—
Não consigo imaginar
—
disse
Suzanne.
—
Assim perto da Cadeia Meso
-
Atlântica, é uma área
geologicamente jovem. Não pode haver petróleo nem gás natural por aqui.
—
Então talvez seja ar
—
dis
se Perry.
—
Como entraria aqui?
—
perguntou Suzanne.
—
Explique
-
me você
—
sugeriu Perry.
—
Você é a geofísica
oceanógrafa. Não eu.
—
Se for ar, não há explicação natural de que eu tenha conheci
-
mento
—
disse Suzanne.
—
Simplesmente isso.
Os três ficaram se
entreolhando um instante.
—
Acho que vamos ter de abrir uma fresta da escotilha e olhar
—
disse Suzanne.
—
Abrir a escotilha?
—
questionou Donald.
—
E se o gás não for
respirável ou até for tóxico?
—
Parece
-
me que não temos escolha
—
disse Suzanne.
—
Esta
mos
sem comunicações. Somos um peixe fora d'água. Temos dez dias de vida,
mas, e depois disso, o que acontece?
—
Nem me fale...
—
disse Perry nervoso.
—
Voto a favor de abrir
-
mos a escotilha.
—
Certo!
—
concordou Donald, resignado.
—
Como capitão, eu
tomo
a iniciativa.
—
Levantou
-
se da sua poltrona de piloto e passou por
cima do console central, dando um só grande passo. Perry desviou
-
se para
que Donald pudesse passar.
Donald subiu para a torreta. Fez uma pausa, enquanto Suzanne e
Perry se posicionavam logo
embaixo dele.
—
Por que não destrava, apenas, sem abrir?
—
sugeriu Suzanne.
—
E aí fareja, para ver se sente cheiro de alguma coisa.
—
Boa idéia
—
disse Donald. Aceitou a sugestão de Suzanne, agar
-
rando o volante central e girando
-
o. Os parafusos de vedaç
ão se retraí
ram
para dentro da escotilha.
—
E aí?
—
disse Suzanne alguns momentos depois.
—
Está sen
tindo
algum odor?
—
Só de umidade
—
disse Donald.
—
Acho que vou me
arriscar a investigar melhor.
Donald abriu uma fresta da escotilha um instante e farejo
u melhor.
—
O que acha?
—
perguntou Suzanne.
—
Parece inócuo
—
disse Donald, aliviado. Abriu a escotilha cer
ca
de dois centímetros e inspirou o ar úmido que penetrou pela fresta.
Quando se certificou de que era tão seguro quanto era capaz de detec
tar,
em
purrou a tampa da escotilha toda para cima e meteu a cabeça por ela,
espiando do alto do submarino. O ar tinha a umidade salina de uma praia
na maré baixa.
Donald vagarosamente girou a cabeça totalmente, esforçando
-
se por
enxergar naquela escuridão. Não vi
a absolutamente nada, mas intuiti
-
vamente sabia que era um lugar muito amplo. O que via era uma escu
-
ridão silenciosa e estranha, tão assustadora quanto vasta.
Recuando de novo para dentro do submers
ível, pediu a lanterna.
Suzanne a pegou para ele, e, quan
do a entregou, perguntou o que
ele havia visto.
—
Uma boa porção de nada
—
respondeu Donald.
Enfiando de novo a cabeça pela escotilha, Donald lançou o facho de
luz da lanterna a distância. A lama se estendia em todas as direções tanto
quanto a luz podia pe
netrar. Algumas poças de água isoladas, se
-
melhantes a espelhos, refletiram a luz de volta para ele.
—
Alô!
—
gritou Donald, colocando as mãos em forma de concha
em torno da boca. Aguardou. Um ligeiro eco parecia vir da direção da
proa do
Oceanus.
Donald b
errou outra vez; um distinto eco voltou no que
estimou em cerca de três ou quatro segundos.
Donald voltou ao interior do submersível depois de baixar a tampa
da escotilha. Os outros olharam para ele, com expectativa.
—
Essa é a coisa mais estrambótica que
eu já vi
—
disse ele.
—
Estamos numa espécie de caverna que aparentemente estava cheia de
água há bem pouco tempo.
—
Mas agora está cheia de ar
—
disse Suzanne.
—
Definitivamente é
ar
—
disse Donald.
—
Além disso, não sei o que pensar. Talvez o Sr.
Bergman
esteja certo. Talvez nós, de alguma forma, tivéssemos sido
puxados para dentro do monte submarino.
—
O nome é Perry, pelo amor de Deus
—
disse Perry.
—
Me dê a
lanterna! Vou dar uma olhada.
—
Pegou a lanterna de Donald e desa
-
jeitadamente subiu a escada at
é a torreta do navio. Teve que passar o
cotovelo por trás do último degrau e meter a lanterna no bolso para
erguer a pesada escotilha em forma de cunha.
—
Meu Deus!
—
exclamou Perry, depois de ter imitado as ações de
Donald, inclusive o teste de ecos. Volt
ou para baixo, mas deixou a
escotilha entreaberta. Entregou a lanterna a Suzanne, que também su
biu
para olhar.
Depois que Suzanne voltou, os três se entreolharam e sacudiram as
cabeças. Nenhum deles tinha uma explicação embora cada um esperas
se
que o out
ro tivesse.
—
Suponho que nem precise dizer
—
começou Donald, rompen
do
um silêncio desconfortável
—
que estamos numa situação no míni
mo
difícil. Não dá para esperarmos nenhuma ajuda do
Benthic Explorer.
Com a
série de terremotos, eles presumiram que fomo
s engolfados por uma
catástrofe. Talvez enviem um dos trenós de televisionamento sub
marino,
mas ele não vai nos encontrar aqui, seja lá qual for esse lugar. Em suma,
estamos sozinhos, sem comunicação e com pouca comida e água.
Portanto...
—
Donald parou,
como que pensativo.
—
Então, o que sugere?
—
perguntou Suzanne.
—
Sugiro que saiamos e façamos um reconhecimento da área
—
disse Donald.
—
E se essa caverna, ou seja lá o que for, ficar inundada outra
vez?
—
questionou Perry.
—
Parece
-
me que precisamos arr
iscar
—
disse Donald.
—
Eu, por
mim, vou sozinho. Vocês é que decidem se querem vir comigo ou não.
—
Eu vou
—
disse Suzanne.
—
É melhor do que ficar por aqui sem
fazer nada.
—
Eu é que não vou ficar aqui sozinho
—
anunciou Perry.
—
Está bem
—
disse Donald.
—
Precisamos de mais duas lanter
nas.
Vamos levá
-
las, mas apenas usar uma, para preservar as pilhas.
—
Eu as pego
—
disse Suzanne.
Donald foi o primeiro a sair. Usou os degraus laterais da torreta e do
casco para descer. Os degraus serviam para proporciona
r acesso ao
submers
ível quando estava nos picadeiros no convés de ré do
Benthic
Explorer.
De pé no último degrau, Donald voltou o facho da lanterna para o
chão. Verificando o afundamento do
Oceanus
no lodo, estimou que a lama
teria de quarenta a cinqüenta
centímetros de profundidade.
—
Algum problema?
—
indagou Suzanne. Foi a segunda a sair, e via
que Donald hesitava.
—
Estou tentando calcular a profundidade desse lodo
—
disse ele.
Ainda agarrado a um degrau, baixou o pé direito. Ele desapareceu no lodo.
Qu
ando ele conseguiu achar chão firme, a lama já estava na altura da
parte inferior da rótula dele.
—
Isso não vai ser nada agradável
—
relatou.
—
A lama vai até os
joelhos.
—
Vamos torcer para esse ser o nosso único problema
—
disse
Suzanne.
Alguns minutos
depois, os três estavam de pé na lama. Salvo por
uma tênue luz que saía da escotilha aberta do submersível, a única
luminosidade vinha da lanterna de Donald. Ela projetava um fraco cone
de luz naquela escuridão cerrada. Suzanne e Perry levavam lanternas
ta
mbém, mas, como Donald havia sugerido, elas não haviam sido liga
das.
Não se ouvia nenhum som naquele vasto espaço escuro. Para con
servar as
baterias do submersível, Donald havia desligado quase tudo nele, mesmo
a ventilação. Havia deixado apenas uma luz
acesa para ser
vir de farol que
os ajudasse a encontrar o submarino de novo caso se afastassem muito.
—
Isso aqui intimida a gente
—
disse Suzanne, com um calafrio.
—
Acho que eu escolheria uma palavra mais forte
—
disse Perry.
—
Qual
será nossa tática?
—
E
stá na mesa, para discutirmos
—
disse Donald.
—
Minha
sugestão é que sigamos na direção para a qual o
Oceanus
está virado.
Aquela parede parece ser a mais próxima, pelo menos pelo eco que ob
-
tive.
—
Consultou a bússola.
—
Fica a uma certa distância a oeste
.
—
Parece um plano razoável
—
disse Suzanne.
—
Vamos
—
disse Perry.
O grupo partiu tendo Donald na liderança, seguido de Suzanne.
Perry fechava o cortejo. Era difícil caminhar naquela lama funda, e o
cheiro era ligeiramente fedorento.
Ninguém falava. Todo
s estavam extremamente conscientes de que a
situação era bem precária, principalmente à medida que se afastavam do
submersível. Depois de dez minutos, Perry insistiu para que paras
sem.
Eles não haviam chegado a nenhuma parede, e a coragem dele havia
desap
arecido.
—
Não é fácil caminhar nesse lodo
—
disse Perry, evitando o pro
-
blema verdadeiro.
—
E ele também fede.
—
Qual a distância que acha que percorremos?
—
indagou Suzanne.
Como os outros, já estava sem fôlego, devido ao esforço.
Donald virou
-
se e olhou
para o submersível, que não era mais que
uma mancha luminosa naquela densa escuridão.
—
Não tanta assim
—
disse ele.
—
Talvez cem metros.
—
Eu diria um quilômetro e meio, pela dor nos músculos das
minhas pernas
—
comentou Suzanne.
—
Quanto ainda falta par
a chegarmos a essa suposta parede?
—
perguntou Perry.
Donald tornou a berrar na direção em que iam. O eco voltou em dois
segundos.
—
Acho que uns trezentos metros.
Um súbito movimento e uma série de sons semelhantes a bofetadas
na escuridão imediatamente à
esquerda deles os fizeram dar um
pulo.Donald girou a luz em torno de si e direcionou
-
a para o lugar de
onde vinha o ruído. Um peixe encalhado deu mais alguns saltos
agonizantes na lama molhada.
—
Ai, meu Deus, levei um susto horrível!
—
admitiu Suzanne. E
la
estava com a mão pressionada contra o peito. O coração estava disparado.
—
Você e eu, então
—
confessou Perry.
—
Estamos todos compreensivelmente uma pilha de nervos
—
disse
Donald.
—
Se vocês dois quiserem voltar, eu vou continuar o reconhe
-
cimento soz
inho.
—
Não, vou continuar
—
disse Suzanne.
—
Eu também
—
disse Perry. A idéia de voltar para o submersível
sozinho era pior do que se arrastar por aquela lama até a tal parede.
—
Então vamos
—
disse Donald. Recomeçou a avançar, e os ou
tros
o seguiram.
O
grupo avançou lentamente, em silêncio. Cada passo naquela es
-
curidão desconhecida aumentava seus temores e seu nervosismo. O
submersível atrás deles estava sendo engolido pelas trevas. Depois de
mais dez minutos eles estavam todos tão tensos quanto uma cor
da de
piano a ponto de arrebentar, e foi aí que soou o alarme.
A curta emissão de som explodiu naquela quietude como um tiro de
canhão. A princípio o grupo estacou de chofre, freneticamente ten
tando
descobrir de onde vinha o alarme. Mas com os múltiplos e
cos era
impossível descobrir. No instante seguinte, todos estavam se arrastan
do
de novo na direção do submersível.
Foi uma fuga num pânico total; uma corrida desesperada para a
suposta segurança. Infelizmente, a lama não cooperava. Todos os três
tropeçara
m quase imediatamente, e caíram de cabeça naquele lodo hor
-
rível. Voltando a se equilibrar, tentaram correr outra vez, com o mesmo
resultado.
Sem nenhuma palavra para verificar qual era o consenso, eles se
con
formaram a andar mais devagar. Depois de algun
s minutos, a falta de
deslocamento significativo tornou evidente a futilidade da fuga. Como
n
ão houvera nenhum fluxo de água tornando a encher a caverna, todos os
três estacaram a alguns passos um do outro, os peitos arfando.
Os múltiplos ecos vindos daque
le alarme horrendo desapareceram,
e, depois dele, a quietude sobrenatural voltou a reinar. Uma vez mais ela
imperou sobre aquela escuridão retinta como o cobertor que sufo
cava
Perry nos seus pesadelos.
Suzanne ergueu as mãos. O lodo, que ela sabia ser uma
combina
ção
de carcaças planctônicas e fezes de inúmeros vermes, escorreu
-
lhe pelos
dedos. Ela desejou desesperadamente limpar os olhos, mas não ousou
fazer isso. Donald, que estava um pouco adiante, virou
-
se para olhar
Suzanne e Perry. A lama sujava o vi
dro da lanterna, reduzindo a
luminosidade, de forma que os outros não conseguiam enxergá
-
lo. Só
conseguiam distinguir o branco dos olhos dele.
—
Mas que alarme foi esse, em nome de Deus Todo
-
poderoso?
—
conseguiu dizer Suzanne. Cuspiu alguns dejetos granul
ados. Não que
ria
nem pensar no que seria aquilo.
—
Tive medo que a água estivesse voltando
—
admitiu Perry.
—
Independente do que isso realmente significa
—
disse Donald
—
para nós tem uma importância fundamental.
—
Do que está falando?
—
indagou Perry.
—
Sei o que ele está querendo dizer
—
disse Suzanne.
—
Ele quer
dizer que isso aqui não é uma formação geológica natural.
—
Exato!
—
afirmou Donald.
—
Deve ser um resquício da Guer
ra
Fria. E como eu tinha permissão para acesso a informações ultra
-
secretas
no serviço submarino americano, posso afirmar
-
lhes que não é instalação
nossa. Só pode ser russa!
—
Quer dizer que isso aqui é alguma base secreta?
—
indagou Perry.
Espiou aquele buraco negro, agora mais assombrado do que assustado.
—
É a única coisa que p
osso imaginar
—
disse Donald.
—
Algum
tipo de instalação nuclear submarina.
—
Acho que é possível
—
disse Suzanne.
—
E se for, nosso futuro
pode estar subitamente ficando mais risonho.
—
Talvez sim, talvez não
—
disse Donald.
—
Primeiro, vai de
pender de se
alguém ainda está
trabalhando por aqui, e, se houver al
guém, nossa próxima preocupação
será saber até que ponto eles querem manter esse lugar secreto.
—
Não tinha pensado nisso
—
admitiu Suzanne.
—
Mas a Guerra Fria já terminou
—
disse Perry.
—
Certament
e não
precisamos nos preocupar com questões do tempo desse velho ro
mance
de capa
-
e
-
espada.
—
Há gente entre os militares russos que pensa de outra forma
—
asseverou Donald.
—
Sei disso porque conheci esses tipos.
—
Então o que acha que devemos fazer, a es
sa altura?
—
indagou
Suzanne.
—
Acho que essa pergunta já foi respondida para nós
—
disse
Donald. Ele ergueu a mão livre e apontou sobre os ombros dos outros.
—
Olha ali, na direção em que estávamos indo antes do alarme soar!
Suzanne e Perry giraram nos ca
lcanhares. A cerca de quatrocentos
metros de distância, uma única porta estava vagarosamente se abrindo
para dentro, na escuridão. Uma luz artificial brilhante jorrou do apo
sento
além dela, para o interior da caverna escura, formando uma linha de
reflexão
que veio até os pés deles. O trio estava distante demais para ver
os detalhes do interior, mas eram capazes de dizer que a luz era bem
intensa.
—
Isso responde à minha dúvida quanto à existência de homens
aqui na instalação
—
disse Donald.
—
É óbvio que n
ão estamos
sós.
Agora,
resta saber se gostaram de nos ver por aqui.
—
Acha que devíamos ir até lá?
—
indagou Perry.
—
Não temos muita escolha
—
disse Donald.
—
Vamos ter de ir
mesmo, no final.
—
Por que eles não vêm aqui ao nosso encontro?
—
perguntou
Suza
nne.
—
Boa pergunta
—
disse Donald.
—
Talvez isso tenha alguma
relação com a recepção que estão reservando para nós.
—
Estou ficando
apavorada de novo
—
disse Suzanne.
—
Tudo isso é muito bizarro.
—
Nunca deixei de me sentir apavorado
—
admitiu Perry.
—
Vam
os ao encontro de nossos captores
—
disse Donald.
—
E
tomara que eles não nos considerem espiões, e que conheçam os termos da
Convenção de Genebra.
Endireitando a coluna, Donald seguiu na frente, parecendo não se
importar com a lama que lhe sugava os pés.
Passou pelos dois compa
-
nheiros, que não podiam deixar de admirar sua coragem e seu espírito de
liderança.
Perry e Suzanne hesitaram um momento antes de seguirem o co
-
mandante reformado. Nenhum deles falou enquanto marchavam resig
-
nados atr
ás dele na direç
ão da porta que os chamava. Não sabiam se atrás
dela encontrariam um resgate ou piores provações, mas como Donald
dissera, eles não tinham escolha, mesmo.
7
7
O avanço era lento. A um certo ponto, Perry escorregou e caiu de
novo no lodo. Ficou coberto dele.
—
A primeira coisa que vou fazer é exigir uma ducha
—
disse Perry,
tentando levantar o moral do grupo e cuspindo lama. Não adiantou.
Ninguém achou graça.
Enquanto se aproximavam da porta aberta, esperavam que suas
apreensões se aliviassem. Mas ninguém apa
receu para recebê
-
los no
umbral, e a luz que saía, penetrando na escuridão, era tão brilhante que
eles não conseguiam ver o interior. Era difícil até mesmo olhar para a
abertura sem proteger os olhos.
Quando se aproximaram o suficiente, conseguiram notar q
ue a porta
tinha quase sessenta centímetros de espessura, com um anel de enormes
parafusos embutidos na periferia. Parecia uma porta de cofre. As bordas
daquele portal maciço formavam ângulos na dire
ção do interior do
compartimento. Obviamente era feito d
e forma a suportar a enorme
pressão da água do mar, quando ela invadia a ca
verna.
A cerca de oito metros da parede, Suzanne e Perry pararam. Reluta
-
vam em prosseguir sem uma id
éia melhor do que os esperava. Exami
-
naram a porta, buscando pistas. Pelo que d
eduziram, parecia que as
paredes, o piso e o teto, no interior, eram feitos de a
ço inoxidável, e
brilhavam como espelhos.
Donald havia prosseguido sozinho, e, embora não ultrapassasse a
soleira, inclinou
-
se, espiando o interior do aposento. Usando o braço
como
escudo contra a luz refletida, fez um levantamento do local.
—
E aí?
—
perguntou Suzanne.
—
O que está vendo?
—
É uma sala ampla, quadrada, feita de metal
—
berrou Donald
para trás, virando a cabeça.
—
Há duas esferas enormes e lustrosas lá
dentro, ma
is nada. Também não parece haver mais nenhuma outra porta
além desta. E eu não sei dizer de onde vem a luz.
—
Algum sinal de gente?
—
indagou Perry.
—
Negativo
—
disse Donald.
—
Ei, acho que as esferas são feitas de
vidro. E devem ter mais ou menos um metr
o e meio de diâmetro. Venham
dar uma olhada!
Perry olhou de relance para Suzanne. Deu de ombros.
—
Por que adiar o inevitável?
Suzanne cruzou os braços, agarrando
-
os. Estremeceu.
—
Estava torcendo para que quando chegássemos aqui eu me
sentisse mais tranqü
ila a respeito de tudo isso, mas não me sinto. Isso aqui
não pode ser uma base submarina. Estamos diante de um feito de
engenharia que faria a Grande Pirâmide parecer brinquedo de criança.
—
Então qual a sua opinião a respeito disso?
—
indagou Perry.
Suzan
ne virou
-
se para olhar outra vez o submarino. A luz que vi
nha
da porta aberta o iluminava, apesar da dist
ância. Além dele, era tudo
escuridão.
—
Sinceramente, não faço idéia.
Quando Donald viu que Suzanne e Perry estavam olhando para o
submersível, prosse
guiu e atravessou a soleira da porta, entrando na sala.
Imediatamente levantou as mãos para se equilibrar e evitar uma queda. A
combinação da lama úmida nos seus sapatos com o metal polido tor
nava
o chão escorregadio como gelo.Depois que recobrou o equilí
brio, Donald
tornou a esquadrinhar a sala. Agora que seus olhos haviam se ajustado
parcialmente, era ca
paz de enxergar muito melhor, inclusive centenas de
reflexos de si mesmo em todas as direções. As paredes, o piso e o teto não
tinham emendas. A única p
orta aparente era aquela pela qual haviam
passa
do. Ele procurou especificamente a fonte da luz ofuscante, mas
miste
riosamente não conseguiu encontrar nada. Quando as enormes
esferas de vidro entraram no seu campo de visão, ele voltou atrás, para
tornar a
examiná
-
las. Agora conseguia ver que o vidro não era
inteiramente opaco. Era transparente o suficiente para que se
vislumbrasse o con
teúdo das esferas.
—
Suzanne, Perry!
—
gritou Donald.
—
Tem duas pessoas aqui,
afinal. Mas estão dentro dessas esferas. E
ntrem!
Um momento depois, Suzanne e Perry apareceram
à porta.
—
Cuidado com o piso!
—
avisou Donald.
—
É escorregadio como
gelo.
Deslizando os pés em movimentos curtos como se patinassem sem
patins, Suzanne e Perry vieram vacilantes até perto de Donald, áv
idos por
darem uma olhada melhor nas esferas de vidro.
—
Minha nossa!
—
exclamou Suzanne.
—
Estão flutuando em
alguma espécie de líquido.
—
Reconheceu os dois?
—
indagou Donald.
—
Devia reconhecê
-
los?
—
respondeu Suzanne.
—
Acho que reconheço
—
disse Donal
d.
—
Acho que são dois
mergulhadores nossos.
Suzanne arregalou os olhos para Donald, de puro espanto. Então,
para dar uma olhada melhor, colocou as mãos em concha em torno dos
olhos e encostou
-
se em uma das esferas, a superfície tão opalescente que
refleti
a a iluminação feérica da sala.
—
Acho que está certo
—
disse Suzanne.
—
Parece que estou en
-
xergando o logotipo do
Benthic Explorer
no traje de neoprene e na late
ral
do capacete.Perry imitou Suzanne protegendo os olhos com as mãos e
apertando
-
as contra a
mesma esfera para a qual Suzanne estava olhando.
Donald fez o mesmo de outro ângulo.
—
Está respirando!
—
disse Perry.
—
Deve estar vivo.
—
Tem um negócio parecido com um cordão umbilical vindo de
uma espécie de aparelho conectado ao abdome dele
—
disse S
uzanne.
—
Podem ver para onde vai?
—
Vai para debaixo dele
—
respondeu Donald.
—
Até a base da
esfera.
Suzanne se afastou o suficiente para que conseguisse dobrar o cor
po
e olhar embaixo da esfera. Tinha uma área achatada sobre a qual se
equilibrava. Suza
nne não viu nenhum encaixe, e, se houvesse algum,
devia vir diretamente do piso.
—
Isso aqui é tão assombroso quanto a caverna
—
disse Suzanne,
enquanto voltava à posição normal. Estendendo o braço, tocou a esfera
com a ponta do dedo indicador. O material
parecia vidro, mas ela não
sabia o que era.
Os outros se endireitaram.
—
Como diabo eles vieram parar aqui?
—
indagou Perry.
—
São muito poucas as respostas, para tantas dúvidas
—
disse
Donald.
—
Ainda está achando que isso é alguma instalação militar?
—
p
erguntou Suzanne a Donald.
—
E o que mais poderia ser?
—
quis saber Donald, defendendo
-
se.
—
Se estes mergulhadores das esferas estão vivos, não posso nem
imaginar que tecnologia será essa
—
disse Suzanne.
—
Eles parecem dois
embriões gigantes. E tampouco
tenho uma explicação para a ca
verna. Até
mesmo esta sala é qualquer coisa além.
—
Além de quê?
—
perguntou Donald.
—
A porta!
—
berrou Perry.
Todos os olhos se voltaram para a entrada. A porta maciça estava se
fechando.Freneticamente, os três tentaram cor
rer para ela, para evitar que
os prendesse lá dentro, mas o piso escorregadio impedia que conse
-
guissem alcançá
-
la. Quando chegaram perto dela, a porta já estava
fechada. Encostaram
-
se nela e procuraram abri
-
la todos juntos, mas com o
peso deles e o piso l
iso, o esforço foi vão. Com um estrondo retumbante, a
porta se fechou. Depois ouviram o som mecânico aba
fado dos numerosos
parafusos de travamento que deslizavam» para vedá
-
la.
Sentindo ainda mais pavor, os tr
ês se afastaram da porta.
—
Alguém está contro
lando tudo isso
—
disse Suzanne, muito séria.
Seu olhar preocupado percorreu toda a sala sem emendas.
—
E agora
fomos aprisionados.
—
Só podem ser os russos
—
disse Donald.
—
Já chega de falar em russos!
—
gritou Suzanne.
—
Você ficou na
marinha tempo dema
is. Vê tudo em termos das hostilidades antigas. Isso
aqui não tem nada a ver com os russos.
—
Como sabe?
—
retrucou Donald, berrando.
—
E não ouse de
-
negrir o serviço que prestei ao meu país!
—
Ora, faça
-
me o favor!
—
disse Suzanne.
—
Não estou dene
grindo
seu tempo de marinha. Mas olhe só em volta de você, Donald. Isso aqui
não é coisa de terráqueos. Olhe essa luz, pelo amor de Deus!
—
Suzanne
estendeu a mão.
—
Não há fonte, mas a iluminação é total
mente uniforme.
E não há sombras.
Perry estendeu a mão e
tentou formar sombras, mas era impossível.
Donald observou, porém não tentou ele mesmo.
—
É um fluxo de fótons uniforme que deve estar penetrando pelas
paredes de alguma forma
—
disse Suzanne.
—
E se eu tivesse que arris
car
um palpite, diria que há nele u
m componente significativo de radi
ação
ultravioleta.
—
Como sabe?
—
disse Perry.
—
Não sei
—
admitiu Suzanne.
—
Não com certeza, uma vez que o
olho humano não distingue o ultravioleta, mas para mim existe uma
distorção bem visível no azul dos nossos unifo
rmes e no marrom
avermelhado do seu abrigo.
Perry olhou para baixo, para seus trajes. Para ele, a cor era a mesma
que sempre havia sido.
—
As esferas!
—
berrou Donald.
Todos os olhos se voltaram para as esferas de vidro. A opalescência
delas havia súbita e
dramaticamente se intensificado, de forma a torná
-
las
incandescentes. Um momento depois, ouviu
-
se o ruído de algo se
rachando, e as esferas abriram
-
se, a partir de ambos os ápices, como duas
enormes flores perdendo as pétalas. Com um jorro de fluido, os m
ergu
-
lhadores foram atirados ao chão.
Donald foi o primeiro a superar o choque. Correu o mais rápido que
pôde até Richard. Percebendo que o mergulhador inconsciente es
tava
tentando respirar, Donald arrancou o capacete do homem e jogou
-
o para
um lado. Rich
ard tossiu violentamente.
Perry correu até Michael. Enquanto removia o capacete de Michael,
ouviu Richard tossir. Relembrando o seu treinamento de ressuscitação,
Perry soube o que fazer. Primeiro puxou Michael, afas
tando
-
o dos restos
da esfera arrebentada
, e arrastando o cabo ainda conectado a ele. Depois
de uma rápida verificação para ver se a boca do mergulhador não
apresentava obstruções, tampou as narinas, segurando
-
lhe o nariz entre o
polegar e o indicador, inspirou e, pra
ticando a respiração boca
-
a
-
boca,
exalou, esvaziando os pulmões dentro do mergulhador. Virando a cabeça
para o lado, Perry inspi
rou outra vez. Estava para repetir o ciclo quando
notou que os olhos de Michael estavam abertos.
—
Mas que idéia é essa, rapaz!
—
indagou Michael. Empurrou
para
longe o rosto dele, que estava a alguns centímetros do seu.
—
Estava fazendo boca
-
a
-
boca
—
explicou Perry. Ficou de pé.
—
Pensei que não estivesse respirando.
—
Mas estou!
—
insistiu Michael. Fez uma careta de nojo e enxu
gou
a boca com as costas da
mão.
—
Pode acreditar que estou!O acesso de
tosse de Richard parou subitamente, e ele piscou para livrar
-
se das
lágrimas que ele havia ocasionado. Sua primeira preocupa
ção foi com
Michael. Quando viu que o parceiro estava vivo e bem, olhou de relance a
sa
la em torno de si antes de olhar para os outros.
—
O que está havendo?
—
perguntou.
—
O que aconteceu?
—
Quem responder essa, ganha um milhão
—
replicou Perry.
—
Que raio de lugar
é esse
?
—
perguntou Richard. Os olhos dele
percorreram a sala de novo, rapid
amente. Sua expressão era de perplexi
-
dade.
—
Pergunta igualmente interessante
—
disse Perry.
—
Estavam procurando a gente?
—
perguntou Donald a Richard.
Por um momento, Richard pareceu meramente confuso. Depois a
pergunta de Donald ajudou a resgatar suas
lembran
ças.
—
Ai, meu Deus do céu!
—
gritou.
—
Estamos num mergulho
saturado de mais de trezentos metros. Não passamos pela
descompressão!
—
Richard fez um esforço para pôr
-
se de pé. As pernas
estavam bam
bas, principalmente naquele piso escorregadio.
—
Mi
chael,
precisamos ir para a câmara de descompressão!
—
Calminha aí!
—
disse Donald. Agarrou Richard pelo braço para
acalmá
-
lo e evitar que caísse.
—
Aqui não tem câmara de descompressão
nenhuma. Aliás, você está perfeitamente bem. Obviamente não está com
d
or nas articulações.
A confusão de Richard aumentou. Ele alongou as pernas e os bra
ços
para verificar as articulações. Piscando várias vezes seguidas, olhou a sala
outra vez, e ao fazer isso notou o cabo que o conectava à base da esfera
quebrada.
—
Mas qu
e meleca é essa?
—
disse, irritado. Agarrou aquele ema
-
ranhado todo de mangueiras e fios e imediatamente o soltou. Os lábios se
retorceram, de repugnância.
—
Cacete, isso aqui é mole, parece que estou
pegando nos intestinos de alguém!
—
Deve ser algum tipo
de linha de sustentação de vida
—
disse
Suzanne, falando pela primeira vez desde que os mergulhadores haviam
saído de seus invólucros.
—
Considerando a forma em que se encontram
sem terem passado pela descompressão, diria que tem alguma relação
com ela, t
ambém.
Richard tocou com todo o cuidado o dispositivo conectado a seu
estômago. Era do tamanho e do formato de um cálice de desentupidor de
vaso sanitário. Assim que o tocou, ele saiu. Pegando
-
o, olhou para o lado
que antes estava conectado ao seu corpo. P
ara seu horror, uma sé
rie de
apêndices semelhantes a vermes salientaram
-
se dele, as cabeças sinuosas
empapadas de sangue
—
o seu sangue.
—
Ah!
—
berrou Richard. Deixou cair o dispositivo, que rapida
-
mente entrou na base da esfera achatada como um fio de a
spirador de pó
que desaparece. Em pânico, Richard abriu o zíper frontal do traje de
neoprene até o púbis. Quando olhou para a barriga, gritou outra vez.
Havia seis feridas em forma de furos arredondados, formando um cír
culo
em torno do seu umbigo.
Depois
de olhar para Richard, Michael ficou de pé e fitou hesitante
seu próprio abdome. Consternado, percebeu que também tinha um
dispositivo semelhante conectado ao corpo. Com uma expressão seme
-
lhante à de Richard, tocou
-
o relutante, com o dedo indicador. Para
seu
alívio, a parafernália imediatamente se soltou, e se retraiu. Abrindo o traje
de neoprene, ele também encontrou os mesmos furos em círculo
emanando fluido corporal em torno do umbigo.
—
Mas, será o benedito!
—
exclamou Michael.
—
Parece que en
-
fiaram u
mas tantas facadas na gente com um furador de gelo.
—
Tre
-
meu.
—
Não suporto ver sangue.
Richard fechou outra vez o traje de mergulho e depois tentou dar
alguns passos com as pernas tr
êmulas. Estendeu os braços e se apoiou na
parede.
—
Cara, eu me sinto co
mo se estivesse dopado.
—
Eu me sinto como se tivesse sido atropelado por um tremendo
caminhão
—
disse Michael.
—
E o Mazzola?
—
perguntou Richard.
—
Não fazemos a menor
idéia
—
disse Donald.
—
O que aconte
ceu durante o mergulho de vocês?
Richard coçou a p
arte de trás da cabeça. A princípio, só podia se
lembrar de ter entrado na câmara de compressão, mas aí, com a ajuda de
Michael, ambos começaram a se lembrar por alto da descida do sino e da
entrada na água.
—
Só isso?
—
indagou Donald.
—
Não se lembra de
nada do que
ocorreu depois que saíram do sino?
Richard confirmou. Michael fez o mesmo.
—
E vocês todos, por que é que estão desse jeito aí, parecendo ter
saído de um chiqueiro?
—
perguntou Richard. Não esperou a resposta.
Em vez disso, examinou as paredes
mais de perto.
—
O que é isso, al
guma
espécie de hospital, ou coisa parecida?
—
Não é hospital, não
—
disse Donald.
—
Só podemos dizer como
chegamos aqui, mas nisso não se inclui a explicação sobre essa sujeira toda.
—
Já é um começo
—
disse Richard.
—
Ma
nda!
Donald explicou tudo enquanto os dois mergulhadores se apoia
vam
na parede. Era uma hist
ória difícil de engolir, de forma que semicerraram
os olhos, incrédulos.
—
Ah, qual é, compadre!
—
zombou Richard.
—
Que papo é
esse
?
Alguma brincadeira de mau gos
to?
—
Olhou o trio de um jeito des
-
confiado. Só podia ser armação. Michael concordou com a cabeça.
—
Não
é
nenhuma brincadeira
—
garantiu Donald.
—
Olha só essa sala aqui
—
disse Suzanne.
—
Escutem!
—
disse Donald, tentando ser paciente.
—
Será que
nenhum
de vocês consegue se lembrar como chegou aqui? Não viram
ninguém?
Richard sacudiu a cabeça. Com o pé, empurrou os fragmentos
murchos da esfera. O material agora estava mole, em vez de rígido e
quebradiço.
—
É verdade mesmo que estávamos dentro desse negóci
o aí? Dis
-
seram que parecia vidro. E agora não parece.
—
Pois parecia, há alguns
momentos atrás
—
garantiu
-
lhe Suzanne.
—
O que estamos achando é que isso aqui é alguma base submari
na
russa
—
prosseguiu Donald.
—
Correção!
—
interrompeu Suzanne.
—
Isso é o
que você pensa.
—
Russos?
—
repetiu Richard.
—
Não brinca!
—
Endireitou
-
se
visivelmente. Olhou em torno com um interesse renovado, assim como
Michael. Ambos colocaram as mãos sobre as paredes altamente polidas.
Richard bateu na superfície lustrosa com as
juntas dos dedos.
—
O que é
esse
negócio aqui, afinal? Titânio?
Suzanne começou a responder, porém foi interrompida por um chia
-
do. Todos olharam para os pontos onde antes se achavam as esferas. Nu
-
vens de vapor saíram dos orifícios expostos. Rapidamente u
m odor acre
impregnou a câmara vedada, e os olhos de todos começaram a lacrimejar.
—
Estamos numa câmara de gás!
—
berrou Suzanne antes de ser
acometida por violentos acessos de tosse.
O grupo recuou, aterrorizado, comprimindo
-
se de encontro às pa
-
redes de
metal frio, numa tentativa vã de tentar se afastar do gás. Mas
logo todos estavam tossindo e espremendo os olhos fechados para se
livrar da sensação de ardência.
—
Deitem
-
se no chão!
—
comandou Donald.
Todos, menos Perry, se estenderam no chão, enquanto t
entavam
inutilmente cobrir a boca e o nariz com as mãos. Perry correu, aos tro
-
peções, de volta até a porta da caverna e começou a bater nela, pedindo
aos gritos que a abrissem.
A porta não cedeu um milímetro, mas Perry teve a presença de es
-
pírito de nota
r alguma coisa apesar do seu pânico e de seu sofrimento
físico. Não estava apagando, nem se sentindo nem um pouco zonzo. O gás
parecia não ter o efeito letal que ele mais temia.
Com força de vontade, Perry procurou não tossir e conseguiu abrir
os olhos um
instante, apesar do desconforto. Aquele vapor semelhante a
uma bruma havia inundado a sala. Perry não conseguia ver muito longe,
mas notou que os braços haviam ficado subitamente nus.
Curioso para ver
o que poder
ia
ter ocorrido com as mangas do abri
go, Pe
rry semicerrou os
olhos. Viu que as mangas haviam sido reduzi
das a frangalhos. Pendiam
dos seus ombros esfarrapadas, como se ele houvesse mergulhado os
braços em ácido.
Ciente de que agora sentia frio no corpo inteiro, Perry apalpou o
peito. O abrigo
—
al
iás, seu traje inteiro
—
havia tido o mesmo desti
no
das mangas. O próprio tecido estava progressivamente perdendo sua
integridade estrutural.
Perry tivera pesadelos antes, enquanto passava por períodos de
estresse, nos quais se via nu em público. De repen
te se lembrou deles,
quando sentiu as roupas caírem do seu corpo em tiras. Agarrou os fran
-
galhos e sentiu
-
os se desintegrando em suas mãos.
—
Nossas roupas!
—
berrou Perry para os outros.
—
O gás está
dissolvendo nossas roupas!
A princípio o medo impediu
que os outros respondessem. Perry
berrou outra vez o aviso e avançou cambaleante na neblina, quase tro
-
peçando em Donald.
—
O gás está dissolvendo nossas roupas
—
repetiu.
—
E eu não
estou sentindo nenhum efeito no sistema nervoso.
Donald ergueu
-
se com o a
uxílio dos braços e se sentou. O macacão
dele teve o mesmo destino do traje de Perry. Rapidamente, ele se apal
pou
para ver se estava mesmo ficando pelado. Mas não conseguiu abrir os
olhos, o gás ardia demais. Mesmo sem a confirmação visual, ele se
convenc
eu. Gritou para os outros:
—
O Perry está certo!
Suzanne, como Perry, conseguia abrir os olhos intermitentemente.
Viu que estava mesmo perdendo as roupas. O macacão havia literal
mente
se desmanchado. Também notou que não havia sofrido nenhum efeito
mental
, apesar do desconforto que sentia na garganta e no peito. Aliviada,
ela se pôs de pé.
Richard e Michael se apoiaram nos braços para se sentar. Com a
sensação ainda forte de estarem drogados, não sabiam se o gás estava
lhes
afetando a consciência, mas ambo
s estavam tossindo muito. Para eles, o
efeito respiratório foi mais difícil de superar do que para os outros.
—
O meu traje de mergulho está inteirinho
—
conseguiu dizer
Richard, entre uma tossida e outra. Mas aí ele cometeu o erro de passar a
mão no ombro
. Nesse instante, o neoprene sofreu uma despolimerização
completa. Quando Richard tocou o traje, a borracha caiu trans
formada em
milhares de microesferas.
Entre uma piscadela e outra, Michael vislumbrou o ocorrido com o
traje de Richard. Olhava de quando
em vez para o seu, relutando em toc
á
-
lo ou até mesmo em se mover, mas Richard estendeu o braço e deu
-
lhe
uma palmada forte no ombro. O efeito foi instantâneo. Num minuto o
traje de mergulho parecia normal, no outro já estava escor
rendo pelo
corpo de Micha
el abaixo, transformado em milhares de go
tas de água.
Subitamente, se ouviu um alarme, e uma luz vermelha na pare
de
diante da porta da caverna começou a piscar
—
momentos antes, aquela
mesma parede parecia inteiriça. Através do vapor cáustico, os cinco
c
omeçaram a discernir os contornos de uma porta aberta debaixo da luz.
O alarme parou depois de alguns minutos, mas a luz continuou a
piscar. Então eles ouviram o som de um assobio bem agudo. Começou a
entrar ar comprimido por um pequeno orifício.
Perry ava
nçou vagarosamente na direção da luz intermitente. Quan
-
do chegou à parede, viu que o contorno da porta já estava mais nítido. Ele
apalpou
-
lhe as bordas. Nesse instante, sentiu uma corrente de ar constante
penetrar na outra sala. Experimentou pisar do outr
o lado da soleira para
ver se o piso era horizontal. Depois passou para a outra sala.
Sentiu um alívio quase imediato. A barreira de ar mantinha o gás
acre longe do corredor no qual havia entrado. As paredes, o piso e o teto
eram feitos do mesmo metal poli
do que a sala cheia de gás, mas o nível de
iluminação era significativamente menor. Perry viu que o cor
redor dava
em uma outra câmara, seis metros à frente.Retrocedendo, com a cabeça
protegida do gás pela corrente de ar, chamou os outros.
—
Tem outra sala
aqui
—
gritou.
—
E o ar é puro. Venham!
Os outros quatro trataram de se pôr de pé e se dirigiram para o lado
da luz vermelha que piscava. Suzanne teve que servir de guia para
Donald; ele não conseguia sequer suportar abrir os olhos. Dentro de um
minuto to
do o grupo conseguiu chegar à sala nova.
O gás rapidamente se dissipou. Eles ficaram tão aliviados que nem
se incomodaram pelo fato de suas roupas terem se desintegrado por
completo. Todos os cinco estavam nus em pêlo, mas não podiam se
preocupar com isso
agora. Estavam curiosos para irem ver o que havia na
sala diante deles.
—
Vamos andando
—
disse Donald. Gesticulou para que Perry fosse
na frente, pois já estava mesmo liderando o grupo.
Perry, encostando as costas na parede, fez sinal para que Donald
pass
asse
à frente.
—
Acho que deve ir na frente. Você ainda é o capitão do navio.
Donald concordou e foi. Perry seguiu
-
o, e depois dele veio Suzanne.
Os dois mergulhadores fechavam o cortejo.
—
Parece óbvio o que vai acontecer agora
—
disse Donald.
—
Ainda bem
que sabe
—
disse Perry.
—
Como assim?
—
indagou Suzanne.
—
Estamos sendo preparados para um interrogatório
—
explicou
Donald.
—
É uma técnica bastante conhecida para se acabar com o senso
de identidade de uma pessoa, para que ela não ofereça resistência.
Nos
sas
roupas, sem dúvida, fazem parte da nossa identidade.
—
Não tenho resistência nenhuma a opor
—
disse Perry.
—
Vou
dizer a seja lá quem for tudo que quiserem saber.
—
Quer dizer que sabe que gás era aquele, Donald?
—
perguntou
Suzanne.
—
Negativo
—
r
espondeu Donald.Donald parou no limiar da
segunda porta e espiou dentro da sala. Era consideravelmente menor que
a primeira, embora também estives
se revestida com o mesmo material
metálico misterioso. De onde esta
va, conseguia enxergar uma porta de
saída
envidraçada, bem como o começo de um corredor branco com o que
lhe pareceram quadros nas paredes. Dentro da câmara, ele notou que o
piso se inclinava até o cen
tro, onde havia uma grade, e o teto se inclinava
para cima até um ponto central onde havia outr
a grade.
—
E aí?
—
indagou Suzanne. De onde estava não dava para ela ver
nada disso.
—
Parece tudo normal
—
disse Donald.
—
Tem um corredor apa
-
rentemente normal atrás de uma porta de vidro.
—
Então vamos
—
gritou Richard, impaciente, atrás de Suzanne.
Apo
iando
-
se com ambas as mãos no batente da porta, para se equi
-
librar, Donald colocou primeiro um dos pés no piso inclinado, depois o
outro. Como havia previsto, começou a deslizar no momento em que
soltou a porta. Deslizou cerca de um metro com as mãos a se
agitar para
manter o equilíbrio. Nessa altura, o piso ficava quase horizontal. Ele se
virou e avisou os outros.
Todos tiveram cuidado, menos Michael. Criado em Chelsea,
Massachusetts, onde jogava hóquei desde os cinco anos, não estava
preocupado com o pis
o escorregadio. Mas a inclinação o pegou de
surpresa. Os pés escorregaram no primeiro passo, e ele caiu na dire
ção
dos outros como uma bola de boliche. Num instante o grupo inteiro havia
se transformado em uma pilha de membros nus entre
laçados.
—
Cacete!
—
reclamou Donald. Livrando
-
se, ajudou Suzanne a ficar
de pé. Os outros procuraram se erguer sozinhos. Michael nem li
gou.
Agora de olhos abertos, estava muito mais interessado em apreciar o
corpo de Suzanne. Richard soltou um palavrão e deu um murro no a
lto da
cabeça de Michael. Michael, para defender
-
se, deu um empur
rão em
Richard, o que os derrubou no chão de novo.
—
Chega!
—
berrou Donald.
Tomando cuidado para não cair, se
parou os dois mergulhadores. Richard
e Michael obedeceram, mas con
tinuaram a se
fuzilar mutuamente com os
olhos.
—
Meu Deus!
—
exclamou Suzanne.
—
Olhem!
—
Apontou para a
porta atrás deles, pela qual haviam acabado de passar. Todos ficaram
boquiabertos de espanto. A porta estava se vedando silenciosamente,
como se o metal dela estive
sse se fundindo com o da parede. Dentro de
instantes a abertura já havia sumido sem deixar nenhum vestígio. A
parede havia se fechado.
—
Se não tivesse visto com os meus próprios olhos, jamais acredi
-
taria
—
disse Perry.
—
É sobrenatural, parece efeito esp
ecial de cinema.
—
Não consigo entender que tecnologia será essa
—
comentou
Suzanne.
—
Acho que isso elimina a hipótese de que estamos numa base
russa.
Então um gorgolejar bem grave começou a vir da grade central.
Todos os olhos se voltaram na direção dela
.
—
Ah, não!
—
gritou Suzanne.
—
E agora, qual será a surpresa?
Antes que alguém tivesse tempo de responder, um fluido transpa
-
rente que parecia água subiu borbulhando pela grade central do chão. O
grupo recuou, depois tratou de escalar a inclinação do out
ro lado até a
porta de vidro. O ângulo de inclinação e a superfície escorregadia do piso
os obrigavam a ficar de quatro. O primeiro que chegou à porta começou a
bater no vidro, desesperado, procurando uma forma de abri
-
la. Atrás
deles, a água que entrava h
avia se transformado em um gêiser; o nível de
água estava subindo rapidamente.
Dentro de alguns minutos, já estavam imersos até a cintura. Mo
-
mentos depois, já estavam todos nadando cachorrinho, horrorizando
-
se
cada vez mais, à medida que se aproximavam do
teto. Mesmo que
pudessem nadar indefinidamente, em breve não teriam mais ar para
respirar. Rapidamente foram obrigados a se reunirem, lutando para res
-
pirar o ar restante no ápice do teto. Por serem melhores nadadores,
Richard e Michael se colocaram no ce
ntro, diretamente abaixo da
grade
e,
numa tentativa desesperada de buscar mais ar, meteram os dedos pelos
buracos e tentaram arrancar a grade do seu encaixe.
Seus esforços, porém, foram inúteis. A grade não se moveu sequer
um milímetro, e o nível da água c
ontinuou a subir até a sala ficar cheia até
o teto. Assim que todos submergiram, a água começou a sair, a uma
velocidade extraordinária. Dentro de segundos já havia espaço para res
-
pirarem; em minutos, Donald e Richard, os mais altos dos cinco, sen
tiram
o
s pés tocarem o chão.
Em breve se ouviu um ruído alto e grosseiro de sucção, quando o
res
tante da água desapareceu no ralo, e o grupo ficou todo amontoado e
encharcado na depressão central do piso côncavo. Durante algum tempo,
nenhum deles se moveu. Uma c
ombinação de puro terror, esforço motiva
-
do pelo pânico e o fato de terem engolido sem querer uma quantidade
con
siderável do fluido, os deixou física e emocionalmente exaustos.
Donald finalmente conseguiu se sentar. Sentia
-
se zonzo. Teve a
estranha sensaç
ão de que havia se passado mais tempo do que era ca
paz
de calcular. Ocorreu
-
lhe que talvez tivessem sido drogados por alguma
coisa que havia na água que inundou a sala. Fechou os olhos um
momento, depois esfregou as têmporas. Quando tornou a abrir os olho
s,
olhou para os outros. Todos pareciam estar dormindo. Olhou através da
porta de vidro, depois voltou a olhar para Suzanne, rapida
mente.
—
Meu Deus!
—
murmurou Donald. Não pôde crer no que via.
Suzanne estava careca! Donald passou a mão na cabeça, mas co
mo já a
raspava há anos, resolveu conferir o bigode. Ele havia sumido! Erguen
do
o braço, viu que ele também estava totalmente depilado. Olhou o peito de
relance. Não havia nele um só pêlo.
Donald sacudiu Perry, depois cutucou Suzanne. Quando ambos já
se e
ncontravam alertas o suficiente para entender o que Donald lhes dizia,
este lhes contou o que ocorrera.
—
Ah, não!
—
gritou Perry. Sentou
-
se na mesma hora. Com ambas
as mãos, tocou o couro cabeludo, com todo o cuidado. Não encontrou
cabelos, apenas pele nu
a. Afastou as mãos como se houvesse tocado al
-
guma coisa quente. Estava horrorizado.
Suzanne ficou mais curiosa do que desanimada. Alguma coisa os
havia depilado completamente. Como aquilo havia acontecido
—
e por
quê?
—
O que está havendo?
—
Richard pergu
ntou. As palavras dele
soaram sonolentas. Ele se sentou, depois foi obrigado a se apoiar.
—
Oooooi... Estou me sentindo meio de porre...
—
Eu também estou meio tonto
—
admitiu Perry.
—
Talvez hou
-
vesse alguma coisa nessa água. Sei que andei engolindo uns g
oles dela.
—
Acho que fomos drogados
—
disse Donald.
—
Todos bebemos muita água
—
disse Richard.
—
É difícil não
engolir água num tormento desses. Foi pior que treinamento de fuga em
submarino.
—
Acho que sei o que está havendo
—
disse Suzanne.
—
Pode crer
, eu também sei
—
disse Perry.
—
Estamos sendo tor
-
turados e humilhados.
—
Todas as técnicas de interrogatório
—
disse Donald.
—
Acho que não vai haver interrogatório nenhum
—
disse Suzanne.
—
Aquela luz forte estranha, o gás ardido, depois a
depilação
est
ão
me fazendo deduzir uma outra coisa.
—
O que quer dizer com depilação?
—
perguntou Richard.
—
O que aconteceu com a sua cabeça
—
respondeu Perry. Richard
piscou. Olhou Perry, estarrecido, depois tocou o alto da cabeça.
—
Meu Deus, estou carequinha da sil
va!
—
olhou para Michael que
ainda estava puxando o maior ronco. Depois empurrou
-
o.
—
Acorda aí, ô
bela adormecida careca! Acorda!
Michael abriu os olhos com extrema dificuldade.
—
Acho que estamos sendo descontaminados
—
disse Suzanne.
—
Acho que tudo foi
para isso: livrarem
-
se de microrganismos como
bactérias e vírus. Estamos sendo efetivamente esterilizados.
Ninguém disse nada. Perry concordou ao refletir sobre o que
Suzanne havia dito. Achou aquilo possível.
—
Ainda acho que tudo isso é
para nos preparar
para algum inter
rogatório
—
disse Donald.
—
Esterilizar
-
nos não faz sentido. Não sei se são os russos que estão fazendo
isso ou não, mas alguém quer alguma coisa de nós.
—
Talvez saibamos dentro de muito pouco tempo
—
disse Perry.
Indicou com a cabeça a
porta de vidro, que agora estava entreaberta.
—
Acho que o próximo estágio já está vindo aí.
Donald procurou esforçar
-
se, instável, para ficar em pé.
—
Sem dúvida havia alguma espécie de droga na água
—
disse ele.
Esperou até que passasse mais um acesso de
tonteira, depois dirigiu
-
se à
porta aberta. No ponto onde o piso escorregadio começava a subir até a
porta de vidro, foi obrigado a ficar de quatro. Quando atingiu a por
ta,
ficou de pé e examinou um corredor branco de quinze metros de
comprimento.
—
Eu m
e sinto meio grogue, mas também estranhamente faminta
—
disse Suzanne.
—
Eu estava justamente pensando nisso
—
admitiu Perry.
—
Atenção, tropa
—
disse Donald.
—
Parece que as coisas estão
melhorando. Tem uns alojamentos no final desse corredor! Vamos nos
m
obilizar!
Suzanne e Perry, agachando
-
se, levantaram
-
se, combatendo a mes
-
ma esp
écie de tonteira transitória que Donald havia sentido.
—
Acho que alojamentos significa camas
—
disse Suzanne.
—
E isso
me parece pra lá de bom. Ademais, quero sair logo dessa s
ala, por
que
aquele aguaceiro pode voltar.
—
Concordo plenamente
—
apoiou Perry.
Richard e Michael haviam tornado a adormecer. Suzanne cutucou os
dois, mas nenhum deles se mexeu. Perry ajudou
-
a.
—
Seja lá o que for que puseram nessa água, afetou mais
esses
ca
ras
do que nós
—
comentou Suzanne, enquanto sacudia Richard para obrigá
-
lo a abrir os olhos.
—
Eles se sentiram grogues depois que saíram das
esferas, mesmo antes da imersão nessa água
—
disse Perry. Puxou
Michael, que recla
mou, dizendo que o deixassem
em paz, obrigando
-
o a
se sentar.
—
Vamos, tratem de ir se mexendo!
—
ordenou Donald.
—
Não
quero que essa porta se feche antes de todos saírem daqui.
Apesar de estarem completamente grogues, a advertência a respeito
da porta penetrou o estupor de Richard
e Michael, e eles se levantaram.
Enquanto se moviam, seu estado mental melhorou rapidamente. Quan
do
o grupo se uniu a Donald, os mergulhadores já estavam até conver
sando.
—
Isso não é nada mau
—
disse Richard ao inspecionar o corre
dor
ainda de olhos sem
icerrados. Em vez de metal espelhado, as pare
des e o
teto eram de um laminado branco de alto brilho. Emolduradas, gravuras
tridimensionais cobriam as paredes. O piso estava revestido com um
carpete branco de trama compacta.
—
Esses quadros são demais
—
co
mentou Michael.
—
São realis
tas
pra caramba. Parece que posso enxergar até quarenta quilômetros dentro
deles.
—
São holográficos
—
explicou Suzanne.
—
Mas jamais vi uma
holografia com cores assim tão vividas e naturais. São impressionantes,
principalmente
nesse ambiente assim todo branco.
—
Parecem todos cenários da antiga Grécia
—
disse Perry.
—
Se
jam
lá quais forem nossos algozes, pelo menos são civilizados.
—
Em frente, homens!
—
chamou Donald. Estava impaciente,
aguardando logo sobre a soleira da port
a seguinte.
—
Temos que tomar
algumas decisões táticas.
—
Decisões táticas
—
repetiu Perry, murmurando para Suzanne.
—
Ele nunca deixa de lado essa pose de milico?
—
Quase nunca
—
admitiu Suzanne.
O grupo atravessou todo o corredor e parou, assombrado com
o
aposento diante deles. Depois daquela série de câmaras despojadas e de
aparência industrial, estavam despreparados para aquele quarto
suntuoso.A decoração era futurista, com muitos espelhos e mármores
brancos, mas o ambiente era tranqüilo, fresco, convid
ativo. Uma dúzia de
leitos com dosséis, semelhantes a divas, com cobertores de caxemira
branca enfileirava
-
se rente a cada parede. Cinco dessas camas estavam
com as cobertas convidativamente afastadas em direção ao pé da cama,
tendo sobre cada travesseiro
roupas limpas dobradas. Ao fundo, música
ins
trumental suave completava o clima de repouso.
No centro da sala se encontrava uma enorme mesa baixa tendo ao
seu redor cadeiras tipo espreguiçadeira com almofadas bem fofas. A mesa
estava posta para uma refeiçã
o com bandejas cobertas e jarras de bebi
das
geladas. Os pratos eram brancos, a toalha era branca e os talheres eram
dourados.
—
Se aqui for o céu, não estou preparado
—
disse Perry, quando se
recuperou o suficiente para falar.
—
Acho que o rango não cheir
a assim tão bem no paraíso
—
co
-
mentou Richard.
—
E acabei de perceber que estou mais faminto do que
cansado.
—
Começou a avançar, seguido de perto por Michael.
—
Alto lá!
—
disse Donald.
—
Não sei se devemos comer isso. A
comida talvez contenha barbitúric
os ou coisa pior.
—
Acha mesmo isso?
—
disse Richard, manifestando uma decep
ção
evidente. Hesitou, olhando para trás e para a frente, entre Donald e a
mesa repleta de comida.
—
E aqueles espelhos
—
disse Donald, apontando para as enormes
superfícies espel
hadas que compunham a extremidade da sala.
—
Presu
-
mo que tenham duas faces, o que significa que estamos sendo vigiados.
—
Não estou nem aí, se eles nos tratarem bem assim
—
disse
Michael.
—
Meu voto é a favor de comermos.
Os olhos de Suzanne pousaram nas
vestes dobradas sobre cada
cama. Ela não havia notado as roupas antes, porque eram totalmente
brancas, assim como a maior parte de todo o resto, e se fundiam
perfeitamente com as roupas de cama brancas. Ela se aproximou da cama
mais próxi
ma. Ergueu as ves
timentas e as sacudiu. Havia duas peças
simples: uma
túnica de mangas compridas que se abria na parte da frente
e uma ber
muda. Ambas eram feitas de um cetim semelhante à seda, e
curiosa
mente não tinham costuras.
—
Nossa mãe! Um pijama!
—
comentou Suzanne
.
—
Ora, isso já é
muita gentileza.
—
Sem nem um momento de hesitação, Suzanne vestiu a
bermuda. A túnica tinha proporções avantajadas e vinha até os joelhos,
cobrindo as bermudas, sendo atada por um cordão trançado de ouro. Ao
longo das laterais havia vár
ios bolsos.
O fato de Suzanne ter se vestido despertou nos outros o constrangi
-
mento por estarem nus. Os quatro homens agarraram suas roupas so
bre
as camas e as vestiram.
Michael olhou
-
se nos espelhos do fim da sala.
—
Não gostei muito desse negócio aqui
—
comentou.
—
Mas é
confortável.
Richard riu
-
se dele.
—
Você está parecendo uma bicha.
—
E você está parecendo o quê, também, hein, babaca
—
replicou
Michael, agressivo.
—
Podem parar por aí
—
alertou Donald.
—
Nada de brigas entre
nós. Guarde essa sua agr
essividade para enfrentar esse pessoal que nos
raptou. Aliás, devíamos estabelecer turnos de vigia.
—
Mas de que raio é que está falando?
—
indagou Richard.
—
Isso
aqui não é nenhum exercício militar. Vou comer e depois tirar um bom
ronco. Não estou nem a
fim de bancar o vigia.
—
Estamos todos cansados
—
disse Donald.
—
Mas há uma por
ta
que precisamos vigiar, e sobre a qual não temos nenhum controle.
Todos os olhos se voltaram para a porta no fim da sala diante dos
espelhos. Era branca, como todo o resto d
o aposento, e n
ão tinha ma
çaneta,
nem trinco, nem dobradiças.
—
Precisamos montar guarda
—
disse Donald.
—
Não quero que
esses
russos, ou seja lá quem for, penetrem aqui pé ante pé enquanto
estivermos dormindo e façam o que quiserem conosco.
—
Pelo cuidado
que estão tendo, nos proporcionando
esse
aloja
mento aqui, acho que essa
sua paranóia não se justifica
—
replicou Suzanne.
—
E pensei que
houvéssemos concordado que não há nenhum russo por aqui.
—
Bom, continuem aí batendo boca sobre
esse
assunto
—
disse
Richard. Foi até a mesa e ergueu a cobertura de uma das travessas tér
-
micas. O aroma delicioso encheu a sala.
—
O que é?
—
perguntou Michael. Inclinou
-
se para olhar.
—
Não faço a menor idéia
—
disse Richard. Ergueu a colher. A
comida fumegante era cor
-
de
-
c
reme e tinha uma consistência
pastosa
,
como mingau quente.
—
Parece mingau de maisena, e tem um cheiro
maravilhoso
—
Levou a colher à boca e provou
-
a.
—
Ora, mas quem diria!
Como eles descobriram? Tem gosto do meu prato predi
leto, bife.
Michael provou tam
b
ém.
—
Bife? Você pirou, é? Parece batata
-
doce.
—
Sai fora!
—
reclamou Richard.
—
Você e as suas batatas
-
doces!
—
Sentou
-
se em uma das espreguiçadeiras e serviu
-
se de uma concha
generosa de comida.
—
Você vive pensando em batata
-
doce.
Michael sentou
-
se dia
nte dele e tamb
ém se serviu.
—
Olha, parceiro, me perdoe
—
disse ele, sarcasticamente.
—
Mas
acontece que eu gosto de batata
-
doce.
Suzanne e Perry se aproximaram da mesa, com a curiosidade
espicaçada por aquele diálogo. Estavam com uma fome quase irresistí
vel.
Suzanne foi a próxima a provar a comida.
—
Incrível
—
comentou.
—
Parece manga.
—
Difícil acreditar
—
disse Perry.
—
Porque para mim parece
direitinho
milho verde.
Suzanne provou outra vez.
—
Para mim é manga, sem dúvida. Talvez esse alimento de algu
ma
forma engane nosso cérebro para que interprete o sabor de acordo com
nossas predileções.Até Donald ficou intrigado. Veio até a mesa e provou
um tantinho. Sacudiu a cabeça, incrédulo.
—
Para mim parecem biscoitos frescos amanteigados.
—
Sentou
-
se
em uma
das cadeiras.
—
Estou com uma fome tremenda, como to
dos
vocês.
Todos comeram quantidades variadas daquele alimento curioso.
Acharam difícil resistir a uma nova porção durante alguns segundos.
Também descobriram que a bebida gelada tinha um efeito variável
semelhante. Tinha um gosto diferente para cada pessoa, de acordo com
sua prefer
ência.
Assim que a fome de lobo do grupo foi mitigada, o cansaço e a
sonolência
que sentiam antes voltaram, ainda mais fortes. Lutando para
não fechar os olhos, eles se afastar
am da mesa e se dirigiram cada um a
sua cama. Mal afastaram as cobertas, todos, menos Donald, ferraram num
sono de hibernação. Donald lutou em vão, na esperança de conti
nuar
alerta, para vigiar, mas foi impossível. Dentro de minutos ele tam
bém
estava dor
mitando.
No momento em que se fecharam os olhos de Donald, luzinhas
vermelhas apareceram no dossel de cada cama. Ao mesmo tempo, um
brilho emanou
-
se de cada dossel e envolveu o indiv
íduo adormecido no
respectivo leito em um halo violeta.
8
8
As
minúsculas l
âmpadas vermelhas acima das camas no dormitório
ficaram momentaneamente verdes, e o brilho violeta foi sumindo. Um
momento depois, as luzes verdes se apagaram.
Perry foi o primeiro a despertar. Não foi uma transição gradativa,
mas uma mudança súbita do son
o profundo para a consciência plena.
Durante alguns segundos, ficou olhando fixamente para o dossel acima de
si, tentando se situar em relação àquela estrutura estranha e se orien
tar.
Mas não conseguiu. Não via nada do que esperava ver ao despertar: ou
se
ja, o teto branco da suíte supostamente VIP do
Benthic Explorer.
Perry ficou confuso, mas assim que virou a cabeça, tudo lhe voltou à
mente. Não tinha sido um sonho. O aterrorizante mergulho do
Oceanus
nas profundezas insondáveis do Atlântico tinha sido re
al.
Havia um cabide de roupas, simples e preto, bem ao alcance da
cama. Um conjunto de bermudas e túnica de cetim branco semelhante
àquele que ele vestia estava pendurado no cabide. Perry percebeu que
estava se sentindo despido sob a coberta. Ergueu a beir
ada da manta de
caxemira e olhou para o seu corpo. Não só estava nu, como também
detectou o mesmo anel peculiar de feridas em torno do umbigo que vira
antes em Richard e Michael quando eles emergiram das esferas.Perry
soltou um grito abafado, depois saltou
da cama para exami
nar as feridas
mais detidamente. Esticou a pele do abdome. As feridas não eram
profundas e não doíam, para grande alívio de Perry. O mais importante
era que pareciam cicatrizadas.
Enquanto Perry
remoia
essa descoberta, levou novo choque
. As
pernas e a virilha estavam cabeludas outra vez! Inspecionou o antebraço e
descobriu que o pêlo das axilas também havia crescido. Apalpando o alto
da cabeça, deu um sorriso.
Perry agarrou as roupas no cabide de ébano e vestiu
-
as enquanto
atravessava to
do o quarto.
Seu reflexo no espelho o deixou literalmente enlevado. O couro
cabeludo estava totalmente coberto de cabelos. Tinham apenas uns tr
ês
centímetros de comprimento, mas eram espessos e escuros como quan
do
ele estava no ginásio. Ele se sentiu como
se houvesse descoberto a fonte da
juventude.
Perry ouviu os outros se mexerem. Voltou
-
se a tempo de ver Donald
e Suzanne se vestirem. Richard e Michael estavam sentados nas beira
das
das camas, embasbacados com tudo. As roupas estavam empilhadas no
colo d
eles.
—
Exatamente como pensei
—
disse Donald, a ninguém em par
-
ticular.
—
Eu sabia que
esses
miseráveis iam entrar aqui e fazer gato e
sapato da gente enquanto dormíamos. Era por isso que queria manter
vigilância.
—
Não achei nada mau
—
disse Perry, passe
ando para cá e para
lá.
—
Nossos cabelos e pêlos voltaram! Já pensou? O meu está mais espes
-
so do que era antes de começar a cair.
—
É, eu notei o meu cabelo
—
disse Suzanne, menos entusiasmada.
—
Não é o máximo?
—
disse Perry.
—
Preferia o comprimento de
ontem
—
disse Suzanne.
—
Aliás, de
três dias atrás.
—
Como assim, três dias atrás?
—
indagou Perry.
—
Ontem foi 21 de julho
—
explicou Suzanne.
—
Concorda?
—
Acho
que sim
—
disse Perry. Não tinha certeza, por causa do vôo noturno para
os Açores.
—
Bom, o me
u relógio, que alguém tirou do meu pulso, mas fez a
grande gentileza de deixar aqui, diz que hoje é dia 24.
O relógio de Suzanne tinha sido o único que havia resistido ao gás
da primeira câmara. Sua pulseira de ouro continuava inteirinha.
—
Talvez a pessoa
que o retirou tenha adiantado a data
—
sugeriu
Perry. A idéia de passar três dias dormindo era perturbadora, no mínimo.
—
Pode ser
—
disse Suzanne.
—
Mas duvido. Quero dizer, para ter
tanto cabelo quanto cresceu em nós, teríamos que ter passado mais de tr
ês
dias aqui. Talvez já estivéssemos dormindo há um mês e três dias.
Perry estremeceu.
—
Um mês?
—
disse ele, engolindo em seco.
—
Não consigo ima
-
ginar uma coisa dessas. Além do mais, o comprimento de cabelo que
temos agora deve ter vindo de algum tratame
nto impressionante. O meu
cabelo está igual ao tempo em que eu tinha quatorze anos. Vou lhe di
zer
uma coisa: como empresário, faria qualquer coisa para conhecer
esse
segredo. Já pensou? Que produto!
—
Eles não me fizeram nenhum favor
—
disse Donald.
—
Eu
não
queria ter cabelo.
—
Já notaram as marcas nas barrigas de vocês?
—
perguntou
Suzanne a Perry e a Donald.
Ambos confirmaram, sem nada dizer.
—
Acho que significam que colocaram algum tipo de aparelho de
manutenção da vida em nós
—
disse Suzanne.
—
Talve
z do mesmo tipo
colocado em nossos mergulhadores naquelas esferas.
—
Pensei nisso também
—
disse Perry.
—
Acho que precisaram nos
dar algum tipo de nutrição, se ficamos dormindo tanto tempo assim.
—
Ei, vocês aí, estão se sentindo bem?
—
disse Suzanne num
tom
mais alto para Richard e Michael, que estavam terminando de se vestir.
—
Eu estou
—
disse Richard.
—
Só que queria que tudo isso fosse
um pesadelo.
—
Drogar as pessoas viola a Convenção de Genebra
—
resmun
gou Donald.
—
Somos civis! Sabe lá o que signif
icam esses
ferimentos. Eles podem ter injetado qualquer coisa na gente, vírus da
AIDS, ou soro da verdade.
—
Mas, sabe de uma coisa, estou me sentindo muito bem
—
ad
mitiu
Perry. Flexionou os braços e alongou as pernas. Era como se o corpo,
assim como os c
abelos, houvesse rejuvenescido.
—
Eu também
—
disse Michael. Tocou os artelhos e depois fez
corrida estacionária alguns segundos.
—
Sinto
-
me como se fosse capaz de
nadar vários quilômetros.
—
Meu cabelo voltou, mas minha barba não
—
disse Richard.
—
Durma
-
se com um barulho desses!
Os outros homens acariciaram pensativamente os queixos. Era ver
-
dade. N
ão havia pêlo nenhum nascendo ali.
—
Isso está ficando cada vez mais interessante
—
disse Perry.
—
Acho que está ficando é cada vez mais surreal
—
disse Suzann
e.
Ela olhou de perto o rosto de Perry. Antes ele exibia uma nítida zona mais
escura onde a barba nascia. Agora a pele estava absolutamente clara.
—
Olha aí, pessoal!
—
exclamou Richard. Apontou a porta na
parede entre os espelhos.
—
Parece que abriram a p
orta da nossa gaiola.
Todos os olhos se voltaram para a porta, que se abria silenciosamen
-
te. Além dela, se via outro longo corredor branco com holografias emol
-
duradas. A luz que vinha da outra extremidade dele era brilhante e
natural.
—
Parece luz diurna
—
disse Suzanne.
—
Não pode ser luz diurna
—
disse Donald.
—
A menos que te
-
nham nos transportado de alguma forma.
Perry sentiu um calafrio percorrer
-
lhe a espinha. Intuitivamente
sabia que tudo que havia ocorrido até ali era preâmbulo do que estava
para
acontecer nos próximos minutos. O problema era que ele não fazia a
menor idéia do que seria.
Richard foi até a porta para dar uma olhada melhor. Protegeu os
olhos da claridade que se refletia nas paredes brancas e lustrosas.
—
Está
vendo alguma coisa?
—
per
guntou Suzanne.
—
Quase nada
—
admitiu Richard.
—
O corredor dá para um pátio,
em frente do qual há um muro. Parece que é ao ar livre. Vamos!
—
Espere aí um pouquinho
—
disse Suzanne. Depois olhou para
Donald.
—
O que diz? Devemos ir? Obviamente nossos anf
itriões es
peram
que saiamos.
—
Acho que sim, mas todos juntos
—
disse Donald.
—
Devemos
ficar unidos o quanto pudermos, mas talvez escolher um representante
para falar por nós, caso nos defrontemos com nossos captores.
—
Certo
—
disse Suzanne.
—
Escolho o
Perry.
—
Eu?
—
disse Perry, numa voz esganiçada. Pigarreou.
—
Por que
eu? O Donald ainda é o capitão.
—
É verdade
—
disse Suzanne.
—
Mas você é o presidente da
Benthic Marine. Seja lá quem for que esteja nos mantendo aqui, talvez
aprecie o fato de que voc
ê fala com uma certa autoridade, especialmen
te a
respeito da perfuração.
—
Acha que o motivo pelo qual estamos aqui embaixo é a perfu
-
ração?
—
Foi uma idéia que passou pela cabeça
—
disse Suzanne.
—
Mesmo assim, Donald foi militar
—
protestou Perry.
—
Eu
não
fui. E se isso aqui for mesmo uma base militar russa?
—
Acho que não resta dúvida de que isso não é uma base russa
—
respondeu Suzanne.
—
Não está completamente fora de questão
—
disse Donald.
—
Mas
acho que o Perry é uma boa escolha, mesmo que fosse.
Vai me dar uma
oportunidade melhor de avaliar a situação, principalmente se as coisas
engrossarem para o nosso lado.
—
Richard e Michael!
—
chamou Suzanne.
—
Vocês querem vo
tar
em quem acham que deve nos representar?
—
Acho que o chefe deve ser o escolhid
o
—
disse Michael. Richard
simplesmente concordou meneando a cabeça. Estava im
paciente para
partir.
—
Então está decidido
—
disse Suzanne. Gesticulou para que Perry
os liderasse corredor afora.
—
Muito bem!
—
disse Perry, com mais entusiasmo do que real
-
me
nte sentia. Apertou o cordão dourado em torno da túnica, endirei
tou os
ombros, e avançou para o corredor. Richard lhe endereçou um olhar
desdenhoso quando ele passou, depois o seguiu. Os outros o se
guiram em
fila indiana.
Perry reduziu a velocidade ao se
aproximar do final do corredor.
Ficou ainda mais certo de que a luz que entrava era solar, pois sentiu seu
calor radiante. Calculou que o espa
ço diante deles devia ser um pátio ao
ar livre com mais ou menos dois metros quadrados.
A mais ou menos um metro
e meio de distância do fim do corre
dor,
Perry parou e Richard deu um encontrão nele.
—
Qual foi o problema?
—
indagou Suzanne. Avançou, ultrapas
-
sando Richard.
Perry não respondeu, pois não sabia muito bem por que havia
parado. Vagarosamente, inclinou
-
se
para diante, para que pudesse ver
uma área progressivamente maior da parede em frente. Depois, deu mais
um passo e tentou de novo. Dessa vez, pôde enxergar o alto do muro, que
estimou ter cerca de quatro metros e tanto de altura. Acima dele, viu pés,
torno
zelos, barrigas da perna nuas e a bainha de vestes como as que
trajava.
Perry se endireitou e virou
-
se para os outros.
—
Tem pessoas no alto do muro aí em frente
—
murmurou.
—
Estão
vestidos do mesmo jeito que nós.
—
É mesmo?
—
admirou
-
se Suzanne. Inclinou
-
se para tentar ver
também, mas estava muito afastada da saída.
—
Não posso dizer com certeza
—
disse Perry
—
, mas acho que
estão usando essas mesmas roupinhas de cetim frescas que estamos usan
-
do.
—
Ele e todos os outros haviam pensado que aqueles trajes
diáfanos,
estranhos, parecidos com roupas de baixo eram roupas de prisioneiro.
—
Ora, qual é, meu irmão!
—
exclamou Richard, ainda mais im
-
paciente agora.
—
Isso eu quero ver com meus próprios olhos! Vamos!
—
Por que eles estariam vestidos como gregos antig
os?
—
pergun
tou
Suzanne a Donald.
Donald deu de ombros.
—
Você me pegou. Vamos sair e ver nós mesmos.
Perry assumiu a dianteira. Com a mão sobre os olhos, para se pro
-
teger do brilho de um quadrado de céu azul, ele ergueu os olhos. O que
viu o assombrou a
ponto de fazê
-
lo parar de chofre e abrir a boca, de tão
espantado. Suzanne chocou
-
se contra ele, e o resto do grupo deu um
encontrão nela, todos igualmente pasmados.
Estavam em uma espécie de cercado. Cinco metros acima, via
-
se
uma galeria envidraçada, co
ntornada por uma balaustrada de mármore e
sustentada por colunas caneladas cujos capitéis exibiam criaturas
marinhas entalhadas. Diante do cercado, toda a galeria estava cheia de
pessoas que se comprimiam contra o vidro, olhando para baixo com uma
curiosid
ade silenciosa, intensa e imóvel. Como Perry havia dedu
zido de
seu exame limitado anterior, todos estavam com a mesma túni
ca e
bermuda idêntica, folgada e translúcida.
Perry não formara imagem mental específica de como seriam as pes
-
soas, mas nunca poder
ia ter imaginado o que viu, uma vez que tendia a
achar que os captores teriam aparência mais truculenta. Antes de ele vis
-
lumbrar os trajes de cetim, havia imaginado uniformes e expressões
fisionômicas severas, até abertamente hostis. Em vez disso, viu
-
se
de olhos
pregados no mais belo conjunto de pessoas que jamais vira, cujos rostos
refletiam uma serenidade quase divina. Embora as idades variassem de
crianças pequenas a vigorosos anciãos, a vasta maioria estava na faixa de
vinte e cinco anos. Todos esbanj
avam saúde, com corpos esbeltos, olhos
brilhantes, cabelos lustrosos e dentes tão brancos que fizeram Perry con
-
siderar os seus amarelados em comparação com os deles.
—
Não posso acreditar nisso
—
disse Richard, extasiado quando viu
aquele espetáculo.
—
Qu
em são essas pessoas?
—
indagou Suzanne, a voz transfor
-
mada em sussurro pelo assombro.
—
Jamais vi um grupo de pessoas assim
tão bonitas
—
conseguiu dizer Perry.
—
Sem exceção! Não tem nenhum
de aparência mediana no grupo.
—
Eu me sinto como se fôssemos ra
tos em um imenso experi
-
mento
—
disse Donald, entre dentes.
—
Olha só como eles nos olham
embasbacados! E lembrem
-
se de que as aparências enganam. Tenham em
mente que essas pessoas andaram brincando com a gente só para se
distrair. Essa beleza toda deve se
r alguma espécie de armadilha.
—
Mas são de uma beleza incrível
—
comentou Suzanne, enquanto
se virava devagar para ver tudo
—
, principalmente as crianças, e até os
idosos. Como isso poderia ser uma armadilha? Só posso lhe dizer uma
coisa com certeza, vend
o essas pessoas, podemos descartar a possibili
dade
de estarmos em uma base submarina secreta russa.
—
Bom, americanos eles também não são
—
disse Perry.
—
Não tem
ninguém obeso na multidão inteira.
—
Isso deve ser o paraíso
—
murmurou Michael, deslumbrado
.
—
Acho que se parece mais com um zoológico
—
bufou Donald.
—
A diferença é que os animais somos nós.
—
Tente ver o lado positivo
—
sugeriu Suzanne.
—
Devo dizer que
estou aliviada.
—
Bom, uma coisa é certa
—
comentou Donald.
—
Pelo menos não
estou vendo
nenhuma arma.
—
Você está certo!
—
disse Perry.
—
Isso definitivamente é pro
-
missor.
—
Naturalmente, não precisam de armas, se estamos presos aqui
embaixo e eles, lá em cima
—
acrescentou Donald.
—
Acho que é mesmo
—
disse Perry.
—
O que acha, Suzanne?
—
N
ão consigo pensar
—
disse ela.
—
Essa experiência toda con
-
tinua a ser muito surreal para mim. Estamos vendo uma nesga de céu azul
ali em cima?
—
Certamente se parece com o céu
—
disse Perry.
—
Acha que há
chance de termos sido transportados para leste quan
do o
Oceanus
caiu por
aquela fossa?
—
indagou Suzanne.
—
Que
ro dizer, será que não
estaríamos em uma das ilhas dos Açores?
—
O único jeito de sabermos é se eles resolverem nos contar
—
disse
Donald.
—
Que importa onde estamos
—
disse Michael.
—
Olha só as
mulheres! Que corpões! Será que são de verdade, ou estamos só imagi
-
nando isso?
—
Pensamento interessante
—
disse Suzanne.
—
Na noite passada,
ou seja lá quando foi que a gente comeu, a comida se parecia com o que
gostávamos. Será que isso está ocorrendo
agora com nossa visão? Quero
dizer, é um outro sentido. Talvez estejamos vendo o que queremos ver.
—
Ah, não, para mim isso já é viajar demais na maionese
—
disse
Perry.
—
Eu jamais acreditei muito no sobrenatural.
—
Ei, mas que importa
—
disse Richard.
—
Olha só aquela gata de
cabelos castanhos compridos. Que avião! Ei, olha, ela está olhando para
mim.
Richard deu um amplo sorriso, ergueu a mão e acenou
entusiasticamente
. A moça sorriu e ergueu a mão, comprimindo a palma
contra o vidro.
—
Epa!
—
disse Rich
ard, sentimental.
—
Ela gostou de mim!
—
Richard jogou beijos, o que fez a mulher sorrir ainda mais.
Incentivado pelo sucesso de Richard, Michael começou a azarar uma
mulher com cabelos negros e lustrosos como breu. Ela retribuiu com
-
primindo a palma contr
a o vidro, como a moça que estava paquerando
Richard havia feito. Michael enlouqueceu, pulando para cima e para baixo
e acenando freneticamente com ambas as mãos. A mulher reagiu rindo a
valer, embora não se pudesse ouvir o som da gargalhada por causa do
v
idro.
Suzanne baixou os olhos e chamou a aten
ção de Donald.
—
Não vejo nenhum sinal de hostilidade
—
disse.
—
Eles pare
cem
todos muito pacíficos.
—
Provavelmente é só um despiste
—
contestou
Donald.
—
Uma forma de nos pegar desprevenidos.
Perry, relutante,
afastou os olhos daquela gente bonita para
confabular com Suzanne e Donald. Richard e Michael continuavam a fazer
momices para divertimento das duas mulheres. Ambos estavam tentando
improvisar uma linguagem de sinais.
—
O que vamos fazer?
—
indagou Perry.
—
Pessoalmente, não estou gostando de ficar aqui em exibição
—
disse Donald.
—
Sugiro que voltemos para o dormitório e esperemos para
ver o que acontece. Obviamente a bola está no campo deles. Dei
xemos que
venham até o nosso terreno, por assim dizer.
—
M
as quem são essas pessoas?
—
questionou Suzanne.
—
Isso aqui
é uma coisa incrivelmente bizarra, como um filme de ficção cien
tífica.
Perry estava a ponto de reagir, mas as palavras ficaram presas em
sua garganta. Ele apontou para algum ponto atrás de Suzan
ne e Donald.
Uma das paredes do cercado estava misteriosamente se abrindo. Atrás
dela havia uma escadaria que levava até a galeria.
—
Bom
—
exclamou Suzanne
—
, como disse, Donald, a bola está no
campo deles, e acho que estamos sendo convidados para nos con
he
cermos
cara a cara.
—
O que devemos fazer?
—
indagou Perry, nervoso.
—
Acho que devemos subir
—
disse Donald.
—
Mas vamos deva
gar
e juntos. E, Perry, você fala em nosso nome, como decidimos.
Richard e Michael ainda não tinham visto o silencioso apareci
mento
da escadaria, por causa dos gestos de comunicação que haviam compe
-
titivamente progredido até o puro besteirol. Acima, a multidão reagia com
gargalhadas às palhaçadas deles, o que apenas os incentivava a fa
zerem
mais macacadas ainda. Mas quando vira
m de relance as escadas, correram
para elas. Estavam ambos ávidos por fazerem um contato mais íntimo
com as suas mais novas amigas.
—
Esperem!
—
berrou Donald. Havia se
afastado para o lado para evitar a correria louca dos mergulhadores.
—
Unam
-
se a nós! Va
mos todos juntos, e o Sr. Bergman vai nos representar.
—
Preciso conhecer essa morena
—
disse Richard, ansioso.
—
Vou me encontrar com aquela gracinha com cabelos negros
—
acrescentou Michael, sem fôlego.
Ambos os mergulhadores tentaram contornar Donald, m
as ele es
-
tendeu a mão e agarrou
-
lhes os braços, apertando
-
os visivelmente. Ambos
começaram a protestar, mas mudaram de idéia ao verem a cara de Donald.
As narinas do ex
-
oficial da Marinha estavam dilatadas, e a boca,
comprimida, formando uma linha ameaçad
ora e determinada.
—
Acho que o encontro pode esperar uns minutos
—
conseguiu
dizer Richard.
—
Pode, claro
—
disse Michael.
—
Teremos tempo para isso. Donald
largou os braços dos mergulhadores, depois fez sinal para
que Perry fosse
na frente.
Perry já sent
iu muito mais autoconfiança ao subir as escadas, em
comparação com a que tinha antes, no corredor. Encontrar
-
se com um
grupo misto de belos indivíduos vestidos com uniformes de
lingerie
parecia menos intimidador do que o que sua imaginação havia previsto
a
nteriormente. Mas as circunstâncias inéditas minaram
-
lhe a confiança à
medida que ele subia. Viu
-
se imaginando se Michael não poderia es
tar
certo, se tudo aquilo não seria pura alucinação, e, portanto, uma
armadilha requintada, como Donald havia insinuado
. Mas a natureza
normalmente otimista de Perry não conseguia explicar a necessidade de
uma armadilha, principalmente porque aquelas pessoas, fossem lá quem
fossem, não precisavam de armadilha alguma, pois já estavam com a
situação completamente dominada.
A
gente bonita, como Perry os chamava, em seus confusos devanei
-
os, havia inicialmente corrido para a frente para se aglomerar em torno do
patamar da escadaria como um grupo de adolescentes que espera o
aparecimento de um astro do
rock.
Mas quando Perry e o
s outros
alcanç
aram
o topo, eles recuaram. Até mesmo isso confundiu Perry, pois
eles recuaram como que amedrontados, ou, no mínimo, sentindo um res
-
peito cortês, como as pessoas fazem em torno de um animal amestrado
porém potencialmente feroz.
Perry galgou
o último degrau e parou. A três metros de distância, a
multidão de pessoas bonitas estava disposta em semicírculo. Nenhuma
delas se moveu. Ninguém falou. Ninguém sorriu.
Perry havia presumido que seus captores seriam os primeiros a fa
lar.
Não havia plane
jado tomar a iniciativa, mas acabou decidindo que
brar o
silêncio constrangedor que se seguiu com um tímido "Oi".
O cumprimento dele causou alguns risos na gente bonita, mas nada
além disso. Perry se voltou para dar uma olhada nos colegas, buscando
sugestõ
es. Suzanne encolheu os ombros, indiferente. Donald nada su
geriu.
Ainda parecia estar muito mais desconfiado do que Perry.
Perry voltou
-
se de novo para a multid
ão.
—
Alguém aqui fala inglês?
—
perguntou, desesperado.
—
Um
pouco de inglês, ou talvez espanh
ol?
—
Perry sabia um pouco de es
panhol.
Um casal se adiantou. Ambos pareciam ter mais ou menos vinte e
poucos anos, e, como todos os outros, eram absurdamente belos. Ti
nham
fei
ções arquetipicamente perfeitas, que fizeram Perry se lembrar de
imagens que h
avia visto em camafeus antigos. O homem tinha cabe
los
louros de comprimento médio. Os olhos eram de um intenso azul
-
celeste.
A mulher tinha cabelos de um ruivo bem vivo, como fogo, e um bico
-
de
-
viúva proeminente. Seus olhos verdes cintilavam como es
meral
das.
Ambos tinham uma pele rósea, radiante e impecável. Lá em Los Angeles,
não restaria dúvida: aqueles dois estariam prontinhos para serem
transformados em artistas de cinema.
—
Olá, amigos, como estão passando?
—
disse o homem, num
inglês com sotaque ame
ricano perfeito.
—
Por favor, não se atemori
zem.
Não lhes faremos mal. Meu nome é Arak, e esta é Sufa.
—
O ho
mem
indicou a moça ao seu lado.
—
Eu também gostaria de lhes dizer alô
—
disse Sufa.
—
Como vocês gostariam que os chamássemos?
Perry ficou estupe
fato ao ouvir um inglês assim tão correto vindo de
suas bocas. Era estranhamente tranqüilizador ouvir algo tão familiar, dada
a aparência alienígena de tudo que haviam enfrentado desde que o
Oceanus
afundara.
—
Que povo é
esse
aqui?
—
indagou Perry, afinal
.
—
Somos habitantes de Interterra
—
disse Arak. A retumbante voz
de barítono do rapaz lembrava a de Donald.
—
E que diabo de Interterra é essa?
—
indagou Perry. Sem querer,
deixou transparecer na voz uma certa irritação. Subitamente lhe ocor
reu
que talve
z tudo aquilo fosse alguma piada de mau gosto, em vez do tipo
de armadilha que Donald temia.
—
Por favor!
—
disse Arak, solícito.
—
Sei que estão confusos e
exaustos, e certamente têm direito de estar, depois de tudo que passa
ram.
Sabemos bem como a seqüê
ncia de descontaminação é estressante, de
forma que lhes pedimos que tentem se tranqüilizar. Ainda vão se
emocionar muito daqui para a frente.
—
Vocês são americanos expatriados?
—
indagou Perry.
Tanto Arak quanto Sufa cobriram as bocas com as mãos, num vã
o
esforço para conterem o riso. Toda a gente bonita que estava perto o
suficiente para escutar a pergunta de Perry fez o mesmo.
—
Por favor, desculpem
esse
nosso riso
—
disse Arak.
—
Não
queremos parecer grosseiros. Não, não somos americanos. Acontece que
nós, interterráqueos, possuímos um conhecimento bastante apurado das
línguas de vocês. Eu e Sufa, por exemplo, nos especializamos no inglês, e
todas as suas variações.
Suzanne chegou perto do ouvido de Perry e murmurou:
—
Pergunte a eles outra vez onde fic
a Interterra. Perry obedeceu.
—
Interterra fica sob os oceanos
—
disse Arak.
—
Situa
-
se numa
região que fica entre o que seu povo chama de crosta terrestre e o manto
terrestre. É uma área que seus sismólogos chamam de descontinuidade de
Mohorovicic.
—
Este
mundo aqui é subterrâneo?
—
deixou escapar Suzanne.
Olhou para o que lhe parecia uma nesga de céu inundada de luz solar.
Estava estupefata.
—
Submarino, seria mais correto
—
interferiu Sufa.
—
Mas, por
favor... sabemos que suas perguntas serão muitas. Ser
ão todas respondi
-
das no seu devido tempo. Por enquanto rogamos que tenham resignação.
—
O que é resignação?
—
indagou Richard.
—
Significa paciência
—
disse Sufa. Sorriu graciosamente.
—
Mas precisamos saber como devemos chamar vocês
—
disse Arak.
—
Sou P
erry, presidente da Benthic Marine
—
disse Perry, dando
uma palmadinha no peito. Depois identificou os outros, dizendo seus
nomes completos.
Arak deu um passo adiante e se apresentou diretamente a Suzanne.
Era uns vinte centímetros mais alto do que ela. Ma
nteve o braço direito
estendido com a palma diante dela. Gesticulou com a outra mão,
indicando
-
a
.
—
Talvez me dê a honra de cumprimentá
-
la como os interter
ráqueos
fazem
—
disse.
—
Comprima a palma de sua mão contra a minha.
Suzanne, hesitante, olhou furtiv
amente para Perry e Donald antes
de obedecer. A m
ão dela era bem menor que a de Arak.
—
Bem
-
vinda, Dra. Newell
—
disse Arak, assim que as mãos dos
dois se tocaram.
—
Estamos particularmente honrados com sua visita.
—
Curvou
-
se e afastou a mão.
—
Bom, obrig
ada
—
disse Suzanne. Estava confusa, porém sen
tia
-
se
lisonjeada por ter sido escolhida para um cumprimento individual.
Arak se afastou.
—
Agora, meus honrados hóspedes, vocês serão levados para seus
alojamentos, e tenho certeza de que apreciarão.
—
Ei, esp
ere aí, Arak!
—
gritou Richard. Ficou na ponta dos pés.
—
Tem uma morena maravilhosa
por aqui que está louquinha para me conhecer.
—
E tem uma gata de cabelos negros como as asas de um corvo que
eu preciso conhecer
—
disse Michael.
Os dois mergulhadores es
tavam esquadrinhando a multidão em
busca das mulheres desde que haviam terminado de subir os degraus.
Para decepção deles, não conseguiram encontrar nenhuma das duas.
—
Haverá muito tempo para encontros
—
disse Arak
—
, mas agora
é importante que eu os leve
para os aposentos onde poderão relaxar,
comer, banhar
-
se... Daremos uma festa para comemorar sua chegada mais
tarde, à qual esperamos que todos compareçam. Portanto, sigam
-
me, por
favor.
—
Isso só vai levar uns minutinhos
—
disse Richard. Ele avançou,
com
intenção de contornar Arak e Sufa e se misturar à multidão. Mas
Donald agarrou
-
o com a mesma força com que o agarrara quando esta
-
vam no pátio.
—
Deixa disso, marujo!
—
grunhiu Donald, entre os dentes.
—
Vamos ficar todos juntos! Não se esqueça!
Richard f
uzilou
-
o com o olhar um momento, lutando contra a
vontade de mandar Donald para os quintos dos infernos. Estava tão perto
de abordar aquela mulher lindíssima que era difícil renunciar a isso. A
renúncia jamais havia sido seu ponto forte. Mas quando a inten
sidade do
olhar de Donald o paralisou, ele cedeu.
—
Bom, pensando bem, acho que um rango não vai cair mal, afi
nal
de contas
—
disse, para não dar o braço a torcer.
—
É melhor não sair da linha, meu irmão
—
replicou Donald.
—
Senão eu e você vamos começar
a bater de frente um contra o outro
rapidinho.
—
Só para seu governo
—
retrucou Richard.
—
Não tenho medo de
você.
9
9
Suzanne punha um pé adiante do outro enquanto seguia Arak e
Sufa, mas se sentia desconectada, como se seus pés não estivessem
plantados s
olidamente no chão. Não sentia tontura, mas era quase isso. Já
conhe
cia o termo psiquiátrico
despersonalização,
e imaginava se estaria
sofrendo de alguma variação dela. Tudo que estava passando era
extremamente surreal. Era como se ela estivesse num sonho
, embora seus
sentidos parecessem muito concretamente envolvidos. Era capaz de ver,
cheirar e ouvir exatamente como na vida real. Mas nada fazia sentido.
Como podiam estar debaixo do oceano!?
Como oceanógrafa geofísica, Suzanne estava bem consciente de que
a descontinuidade de Mohorovicic era o nome de uma camada interna
específica da terra que assinalava uma mudança abrupta na velocidade do
som ou das ondas sísmicas. Situava
-
se a aproximadamente 4 a 11km
abaixo do fundo do mar e cerca de 38km abaixo dos co
ntinentes. Tam
bém
sabia que seu epônimo vinha do sismólogo sérvio que a descobri
ra. Mas
apesar de ter um nome, ninguém fazia nenhuma idéia do que a camada
representava. Pelo que ela sabia, nem ela, nem nenhum outro geólogo ou
sismólogo havia jamais consi
derado a possibilidade de que era uma
caverna enorme e cheia de ar. A idéia era absurda demais para ser levada
em consideração com seriedade.
—
Por favor, concedam a nossos humanos
secundários a cortesia que merecem
—
disse Arak em alta voz a seus
companhei
ros interterráqueos ao penetrar na multidão.
—
Abram alas!
—
Fez gesto para que as pessoas abrissem caminho, e elas, mudas,
obedeceram.
—
Por favor!
—
disse Arak, gentilmente, a Suzanne e aos outros
quando indicou um caminho aberto que partia de debaixo do
telhado da
galeria. Avançou e fez sinal para que o seguissem.
—
Assim que par
tirmos
do salão de chegada de estrangeiros, a viagem até suas acomoda
ções será
bem curta.
Como se estivesse assistindo a si mesma em um filme, Suzanne ca
-
minhou entre a multidã
o de interterráqueos. Sentiu que Perry estava
diretamente atrás dela e imaginou que Donald e os mergulhadores de
-
viam estar bem perto também. A situação não era mais amedrontadora. A
gente bonita sorria o tempo inteiro e lançava gestos furtivos, quase
tími
dos, de acolhida. Suzanne se viu incapaz de não retribuir os sorrisos.
Será possível que isso está mesmo acontecendo?,
ficou se perguntando,
enquanto seguia Arak.
Será um sonho? Tudo
era certamente surreal, mas
não restava dúvida de que ela podia sentir o
mármore frio sob os pés nus
e a carícia de uma brisa suave nas faces. Jamais havia sentido tantos
detalhes sensoriais em um sonho, por mais realista que fosse.
Sufa virou
-
se para Suzanne.
—
Vai notar que vocês são verdadeiras celebridades. Os humanos de
se
gunda geração são extremamente estimulantes e reanimadores. É
melhor lhes avisarmos que serão muito procurados.
—
Como assim, "humanos de segunda geração"?
—
indagou
Suzanne.
—
Ai, ai, ai, Sufa
—
repreendeu Arak, de leve.
—
Lembre
-
se do que
resolvemos! Ess
es hóspedes vão ser apresentados mais devagar ao nosso
mundo do que os anteriores.
—
Lembro, sim
—
respondeu Sufa. Depois, dirigindo
-
se a Suzanne,
acrescentou:
—
Vamos debater tudo no seu devido tempo, e todas as suas
perguntas serão respondidas. Eu lhe pr
ometo.O grupo logo emergiu em
uma varanda espaçosa que dava para uma caverna subterrânea
estupendamente colossal, tão imensa que dava a impressão de que
estavam ao ar livre. A iluminação assemelhava
-
se à luz diurna, embora
não houvesse sol. O teto em abóba
da era de um azul
-
claro como a cor do
céu em um dia de verão nebuloso. Algumas nuvens diáfanas flutuavam
preguiçosamente na brisa.
A varanda ficava na lateral de um edifício situado na periferia de
uma cidade. Estendendo
-
se desde a balaustrada descortinava
-
se uma vista
bucólica de colinas ondulantes, vegetação luxuriante e lagos, com al
guns
povoados mais ou menos próximos. Os edifícios eram feitos de basalto
negro, altamente polido e moldado em uma mistura de curvas, domos,
torres e pórticos com colunas cl
ássicas. A distância, via
-
se uma série de
montanhas cônicas erguendo
-
se de amplas bases, e abrindo
-
se em leque
sob a cúpula que as encimava, de maneira a formar colunas de
sustentação de proporções colossais.
—
Poderiam fazer a gentileza de aguardar um ins
tante?
—
disse
Arak. Depois falou baixinho no microfone minúsculo de um instru
mento
que trazia no pulso.
Os cinco "humanos de segunda geração" ficaram extasiados com a
beleza inesperada e as dimensões impressionantes daquele paraíso sub
-
terrâneo. Era algo
além de qualquer coisa que suas imaginações pudessem
conceber. Até os mergulhadores ficaram mudos.
—
Estamos esperando um veículo aerodeslizador
—
explicou Sufa.
—
Estamos em Atlântida?
—
indagou Perry, com a boca meio aberta.
—
Não!
—
disse Sufa, meio of
endida.
—
Isso não é Atlântida. Essa é
a cidade de Saranta. Atlântida fica a leste daqui. Mas não dá para vê
-
la.
Fica atrás daquelas colunas que sustentam as protuberâncias que lá na
superfície vocês chamam de Açores.
—
Então Atlântida existe mesmo?
—
perg
untou Perry.
—
Mas é claro
—
disse Sufa.
—
Pessoalmente, porém, não a con
-
sidero tão agradável quanto Saranta. É uma cidade jovem, de origem
recente, com gente bem atrevida, se quiserem saber. Porém, é preciso que
cada um julgue por si.
—
Ah, aqui está
—
e
xclamou Arak, quando uma nave coberta por
uma cúpula, com aparência de disco voador, silenciosamente se mate
-
rializou ao pé dos degraus. Chegou tão silenciosamente que apenas os que
estavam olhando na direção dela a viram.
—
Desculpem a demora
—
disse Arak
.
—
Devem estar procuran
do
muito as naves no momento, por algum motivo. Mas, por favor, primeiro
vocês.
—
Fez gesto para que descessem os degraus e fossem até uma porta
de entrada aberta que miraculosamente aparecera na la
teral do disco.
O grupo desceu e
entrou na nave, que pairava imóvel a alguns
metros do solo. Tinha cerca de nove metros de diâmetro com uma parte
supe
rior transparente e abobadada que parecia com o tipo de OVNIs
pretensamente vistos e publicados nas primeiras páginas de tablóides
sensac
ionalistas. Dentro dela havia uma banqueta circular com
estofamento branco e uma mesa redonda central. Não se viam controles.
Arak foi o último a embarcar, e, assim que entrou, a porta desapa
-
receu de forma tão silenciosa e misteriosa quanto havia aparecid
o.
—
Ah, é sempre assim
—
queixou
-
se Arak, depois de olhar de re
-
lance todo o interior da aeronave.
—
Justamente quando estamos ten
tando
impressionar vocês, nos mandam uma das antigas. Esta aqui está caindo
aos pedaços.
—
Pare de reclamar
—
disse Sufa.
—
Este veículo está em perfeitas
condições de funcionamento.
Suzanne olhou de soslaio para Donald, que ergueu as sobrancelhas
bem de leve. Suzanne olhou em torno do aerodeslizador. Tinha tantas
perguntas a fazer que n
ão sabia por onde começar.
Arak colocou a
mão com a palma para baixo no centro da mesa
negra e se inclinou para a frente.
—
Palácio dos visitantes
—
disse. Depois se recostou no assento e
sorriu. Um momento depois o cenário lá fora começou a se deslocar.
Suzanne, num ato reflexo, estendeu a mão p
ara agarrar a borda da mesa
para se equilibrar, mas não foi necessário. Não houve sensação de
movimento, nem som algum. Era como se a nave estivesse parada e a
cidade se movesse enquanto eles subiam algumas dezenas de metros
antes de acelerar para se deslo
car horizontalmente.
—
Receberão instruções para chamar e utilizar estes táxis aéreos
muito em breve
—
disse Arak.
—
Terão muito tempo para conhecer o
lugar.
Várias cabeças concordaram. A equipe do
Benthic Explorer
estava
assombrada com tudo que via. Parec
iam estar atravessando o centro de
uma metrópole movimentadíssima, com incontáveis pessoas tratando de
seus negócios e milhares de outros táxis aéreos a passar, céleres, em todas
as direções.
Para Suzanne, este mundo parecia cheio de contradições estranhas
.
A cidade e a tecnologia avançada pareciam
-
lhe muito futuristas, mas as
árvores e a vegetação tinham um aspecto pré
-
histórico e assustador. A
flora lembrava
-
lhe as espécies que haviam florescido durante o período
carbonífero havia trezentos milhões de ano
s.
Em breve os edifícios de vários andares feitos de lustroso basalto
negro foram substituídos por uma área menos densa, aparentemente
residencial, com grama, árvores e piscinas. As multidões desapareceram,
bem como os enxames de táxis aéreos. Agora havia
apenas pessoas iso
-
ladas ou pequenos grupos andando nos parques. Muitos se faziam acom
-
panhar de curiosos animais de estimação que Suzanne achou serem uma
combinação quimérica de cão, gato e macaco.
O cenário começou a andar mais devagar à medida que foram
se
aproximando de um magnífico complexo residencial cercado por mu
ros,
que se assemelhava a um palácio. Era dominado por uma constru
ção
central com cúpula sustentada por colunas dóricas negras e caneladas.
Salpicados pelo local se viam inúmeros edifício
s menores, ovais, feitos do
basalto negro polido já conhecido. Vários caminhos sinuosos esten
diam
-
se
contornando piscinas cristalinas, gramados e canteiros de
samambaias
luxuriantes.O táxi aéreo parou de se deslocar na horizontal e desceu
rapidamente. Um
momento depois a porta se abriu de forma tão
silenciosa e misteri
osa quanto antes.
—
Dra. Newell
—
disse Sufa.
—
Esse aqui
é
o seu chalé. Faça o favor
de desembarcar, se não se importa. Eu a acompanharei para ter certeza de
que está bem instalada.
—
Ela i
ndicou a saída.
Suzanne, atarantada, olhou de relance de Sufa para Donald. Ela não
esperava ser separada do grupo e sabia muito bem que Donald achava
que deviam continuar juntos.
—
E os outros?
—
indagou Suzanne. Tentou interpretar a fisionomia
de Donald,
mas não conseguiu entender o que ele esperava que ela fizesse.
—
Arak tratará de suas acomodações
—
disse Sufa.
—
Cada um
deles ficará no seu próprio bangalô.
—
Esperávamos continuar juntos
—
disse Suzanne.
—
Mas vão
—
disse Arak.
—
Este palácio e o terren
o onde ele se
encontra são apenas para os visitantes. Vocês comerão juntos e, se pre
-
ferirem, podem dormir juntos nos chalés.
Os olhos de Suzanne e Donald se encontraram. Donald encolheu os
ombros. Presumindo que ele assim estava lhe permitindo tomar sua
p
r
ópria decisão, ela saiu da nave. Sufa a seguiu. Um momento depois, o
disco silenciosamente atravessou o gramado e parou num chalé pró
ximo.
—
Venha!
—
chamou Sufa. Havia começado a percorrer o cami
nho
que levava ao chalé, mas havia se virado quando viu q
ue Suzanne não
estava atrás dela.
Suzanne tirou os olhos da nave e correu para alcan
çar a anfitriã.
—
Vai se encontrar com seus amigos para uma refeição em breve
—
disse Sufa.
—
Só quero me certificar de que suas acomodações estão
aceitáveis. Além do mais,
achei que gostaria de dar um mergulho
refrescante
antes de comer. Esse foi meu primeiro desejo quando emergi
da descontaminação.
—
Você passou pelo que nós passamos?
—
indagou
Suzanne.
—
Sim
—
confirmou Sufa.
—
Mas foi há muito tempo, mesmo. Aliás,
há vári
as vidas.
—
Como é que é?
—
indagou Suzanne. Achou que não tinha ouvido
bem. Aquela frase,
várias vidas,
não tinha feito nenhum sen
tido.
—
Venha!
—
disse Sufa.
—
Precisamos acomodá
-
la. As perguntas
podem esperar.
—
Pegou o braço de Suzanne. Juntas elas su
biram al
guns
degraus que partiam do caminho e levavam ao interior do chalé.
Suzanne parou logo depois da porta, extasiada com a decoração. Em
um contraste vivido com o negro exterior, o interior era quase ex
-
clusivamente branco: mármore branco, caxemira b
ranca e múltiplas
superfícies espelhadas. Aquilo fazia Suzanne se lembrar do alojamento
onde ela havia recentemente dormido, mas numa escala muito mais
requintada. Um dos detalhes acrescentados era uma piscina azul
-
anil que
se estendia da parte interna do
quarto até o exterior. A piscina era
alimentada por uma cascata que saía da parede.
—
Os aposentos não lhe agradaram?
—
indagou Sufa, preocupa
da.
Estivera estudando a expressão de Suzanne e confundira seu assom
bro
com insatisfação.
—
Se gostei ou não, nã
o vem ao caso
—
disse Suzanne.
—
Isso aqui é
incrível!
—
Mas queremos que se sinta confortável
—
disse Sufa.
—
E os outros?
—
perguntou Suzanne.
—
Os aposentos deles são
semelhantes a e
sse?.
—
São idênticos
—
disse Sufa.
—
Todos os chalés de visitantes são
iguais. Mas se precisar de mais alguma coisa, por favor, me diga. Tenho
certeza de que poderemos providenciar.
Os olhos de Suzanne se deslocaram para a enorme cama redonda,
que estava sobre uma plataforma de mármore no centro do quarto. Um
enorme dossel s
e encontrava pendurado sobre ela. De toda a volta pen
-
diam apanhados de um tecido imaculadamente branco.
—
Talvez possam
me dizer o que acha que está faltando
—
disse Sufa.
—
Não está faltando nada
—
disse Suzanne.
—
O quarto é de ti
rar o
fôlego.
—
Então g
osta mesmo dele
—
disse Sufa, aliviada.
—
É deslumbrante
—
disse Suzanne. Estendendo a mão, tocou a
parede de mármore. A superfície era polida a ponto de parecer um per
-
feito espelho, e era cálida como que aquecida por uma radiação interna.
Sufa foi até um
armário que se estendia por toda a parede da direi
ta.
Indicou a extensão dele.
—
Aqui dentro há aparelhos de som e vídeo, roupas extras, revis
tas
e livros na sua língua, uma ampla geladeira com alguns produtos
alimentícios, artigos de higiene pessoal qu
e vai reconhecer, e quase tudo
de que possa precisar.
—
Como devo abri
-
lo?
—
indagou Suzanne.
—
Basta usar um comando de voz
—
disse Sufa, simplesmente. Ela
apontou para uma das duas portas da parede diante do armário.
—
As
instalações pessoais ficam logo
ali.
Suzanne foi até Sufa, ficando de pé perto dela e de frente para o
armário.
—
O que exatamente devo dizer?
—
Diga o que quer
—
explicou Sufa.
—
Depois use uma exclama
ção,
como "por favor", ou "agora".
—
Comida, por favor!
—
disse Suzanne, meio sem jei
to.
Mal ela pronunciou as palavras, uma das portas do armário se abriu
e mostrou uma geladeira de bom tamanho com recipientes de líquido e
comida de variável consistência e cor.
Sufa se inclinou e inspecionou o interior do aparelho. Examinou
alguns recipie
ntes.
—
Eu sabia
—
disse, endireitando a coluna.
—
Acho que puseram
apenas a seleção padronizada, embora eu tenha pedido algumas coisas
especiais. Mas não importa. Um clone operário irá trazer tudo que pos
sa
desejar.
—
Como assim, "clone operário"?
—
indag
ou Suzanne. O termo
lhe pareceu assustador.
—
Os clones operários são os servos
—
disse Sufa.
—
Fazem todo o
trabalho manual aqui em Interterra.
—
Eu já vi algum?
—
indagou Suzanne.
—
Ainda não
—
disse Sufa.
—
Eles preferem não ser vistos, até
serem chamad
os. Preferem a companhia de seus iguais e suas próprias
acomodações.
Suzanne fez que entendia com a cabeça, mas não era do jeito que
Sufa pensava. Fez aquele meneio porque sabia que na maioria das situa
-
ções em que havia intolerância, o grupo dominante sem
pre atribuía aos
oprimidos atitudes que faziam os opressores se sentirem melhor diante da
opressão.
—
E
esses
clones operários são clones mesmo?
—
perguntou Suzanne.
—
Certamente
—
disse Sufa.
—
Já são clonados há várias eras. A
origem deles foram os homin
ídeos primitivos, algo semelhante ao que o
seu povo chama de neandertais.
—
Como assim, nosso povo?
—
indagou Suzanne.
—
O que nos faz
diferentes de vocês além do fato de serem tão deslumbrantes?
—
Por favor...
—
implorou Sufa.
—
Já sei, já sei
—
repetiu S
uzanne, frustrada.
—
Não devo fazer
nenhuma pergunta, mas suas respostas às perguntas mais simples sem
pre
exigem alguma explicação.
Sufa riu.
—
Você está confusa, eu sei
—
disse.
—
Mas estamos só pedindo um
pouco de paciência. Como já explicamos, aprendem
os com a experiência
que é melhor ir devagar quando se trata da introdução ao nosso mundo.
—
O que significa que já receberam visitantes como nós antes
—
disse Suzanne.
—
É claro
—
disse Sufa.
—
Já tivemos muitos, durante os últimos
dez mil anos, mais ou m
enos.A boca de Suzanne abriu
-
se devagar até ficar
escancarada.
—
Disse dez mil anos?
—
Disse
—
confirmou Sufa.
—
Antes disso não nos interessáva
mos
pela sua cultura.
—
Está insinuando que...
—
Por favor
—
Sufa interrompeu. Deu um profundo suspiro.
—
Chega
de perguntas, a menos que sejam sobre as acomodações. Devo
insistir.
—
Está bem
—
disse Suzanne.
—
Vamos voltar aos clones operá
rios.
Como chamo um?
—
Comando de voz
—
disse Sufa.
—
É igual a quase tudo em
Interterra.
—
Digo apenas "clone operário"?
—
in
dagou Suzanne.
—
"Clone operário" ou só "operário"
—
disse Sufa.
—
Depois, é claro,
deve dizer uma palavra em tom de exclamação com a qual se sin
ta
confortável. Mas a frase precisa ser exclamativa mesmo.
—
Poderia fazer isso neste exato momento?
—
indagou
Suzanne.
—
Claro
—
disse Sufa.
—
Operário, por favor
—
disse Suzanne. Ficou olhando nos olhos de
Sufa. Nada aconteceu.
—
Isso não foi uma exclamação
—
explicou Sufa.
—
Tente outra vez.
—
Operário, por favor!
—
gritou Suzanne.
—
Muito melhor
—
disse Sufa.
—
Mas não precisa falar tão alto. Não
é
o volume de voz que importa. É a intenção. Os humanóides pre
cisam
saber sem a mínima sombra de dúvida que quer que eles apareçam. A
atitude padrão deles é não vir, de modo a nos incomodarem o mínimo
possível.
—
Usou
esse termo
humanóide
de propósito?
—
perguntou Suzanne.
—
É óbvio
—
disse Sufa.
—
Os clones operários parecem muito
humanos, embora sejam uma fusão de elementos andróides, partes
biomecânicas interconectadas e partes de hominídeos. São meio máquinas,
meio
organismos vivos, que convenientemente cuidam de si próprios e até
se reproduzem.
Suzanne olhou para Sufa com uma expressão de espanto que tam
-
bém passava descrença e consternação. Sufa interpretou
-
a como medo.
—
Mas não tema
—
disse Sufa.
—
É muito fácil
lidar com eles, e são
extremamente prestativos. Aliás, são criaturas maravilhosas, como sem
dúvida irá descobrir. O único problema é que, como seus antepassados
hominídeos específicos, são mudos
—
mas nos entendem perfeitamente.
Suzanne continuou a olhá
-
l
a, assombrada. Antes que pudesse fazer
nova pergunta, uma das portas à frente do armário se abriu e entrou uma
mulher escultural. Suzanne viu que estava esperando um autôma
to
grotesco, mas a mulher que estava diante dela era de uma beleza as
-
sustadora, co
m feições clássicas e cabelos louros, pele de alabastro e olhos
escuros e penetrantes. Estava de uniforme de cetim negro, de mangas
compridas.
—
Eis um exemplo muito bom de clone operário feminino
—
dis
se
Sufa.
—
Vai notar que ela está com brincos de argo
las. Todos os usam, por
algum motivo que nunca entendi, embora creia que tem alguma coisa a
ver com seu orgulho ou linhagem. Também vai notar que ela é muito
bonita, bem como as versões masculinas. Mas, o mais importan
te é que ela
realizará todos os seus
desejos. Seja lá o que for que quiser, basta lhe dizer
que ela tentará contentá
-
la, chegando mesmo quase a se ferir.
Suzanne fitou os olhos da mulher; pareciam lagos negros. Suas fei
-
ções eram tão esculturais e atraentes quanto as de Sufa, mas não havia
ne
las indício de expressão.
—
Ela tem nome?
—
indagou Suzanne.
—
É óbvio que não
—
disse Sufa, soltando uma risadinha.
—
Isso
certamente complicaria as coisas. Não íamos querer que nossa relação com
os operários se tornasse pessoal. Em parte é por isso que e
les nunca foram
programados para falar.
—
Mas ela fará tudo que eu pedir?
—
Sem dúvida
—
disse Sufa.
—
Qualquer coisa. Pode recolher suas roupas, lavá
-
las, preparar seu banho,
reabastecer sua geladeira, lhe dar uma massagem, até mudar a
temperatura da água
da piscina. Tudo que quiser ou de que precisar.
—
No momento acho que seria melhor ela ir embora
—
disse
Suzanne, e estremeceu imperceptivelmente. A idéia de ter alguém meio
ser vivo e meio máquina por perto era inquietante.
—
Vá embora, por favor!
—
disse
Sufa. A mulher se virou e saiu tão
silenciosa quanto entrara. Sufa voltou a olhar Suzanne.
—
Natural
mente,
da próxima vez que chamar um clone operário, virá um diferen
te. Vem
aquele que estiver disponível.
Suzanne fez sinal de estar entendendo, mas n
ão
estava.
—
De onde eles vêm?
—
Do subterrâneo
—
disse Sufa.
—
Como assim, moram em cavernas?
—
perguntou Suzanne.
—
Acho que sim
—
disse Sufa, vagamente.
—
Nunca estive por lá,
nem sei de ninguém que tenha estado. Mas já chega de clones operá
rios!
Precisam
os levá
-
la à sala de jantar! Gostaria de nadar ou tomar um banho?
Você é quem decide, mas não temos muito tempo.
Suzanne engoliu em seco. A garganta estava seca. Diante de tudo
que lhe haviam mostrado, ela achava difícil tomar até mesmo uma de
cisão
simple
s. Olhou para a piscina. Sua cor, agora mais verde
-
azulada do que
azul
-
anil, era tão convidativa quanto sua superfície levemente trêmula.
—
Talvez um mergulho seja uma boa
—
disse Suzanne.
—
Excelente
—
disse Sufa.
—
Há roupas limpas no armário. E
sapatos
também, devo acrescentar.
Suzanne assentiu.
—
Vou aguardar lá fora
—
disse Sufa.
—
Tenho a sensação de que
será bom que fique sozinha alguns minutos para recuperar o fôlego.
—
Acho que é melhor mesmo
—
disse Suzanne.
1
1
0
0
A sala de jantar ficava em um edifí
cio semelhante em tamanho e
forma aos chalés, porém sem camas. Também era aberta para o exterior,
porém dava para o impressionante pavilhão central, em vez de para os
extensos gramados e moitas de samambaias. Sua longa mesa central era
semelhan
te àquela q
ue havia nos alojamentos do setor de
descontaminação. As espreguiçadeiras acolchoadas pareciam as mesmas
também.
O grupo havia chegado de seus alojamentos individuais mais ou
menos ao mesmo tempo, em disposições de espírito visivelmente dis
tintas
com rela
ção às circunstâncias. Richard e Michael recusavam
-
se
intencionalmente a reconhecer qualquer receio. Estavam completamente
empolgados, como duas crianças soltas no parque temático dos seus
sonhos, e com a intenção de aproveitar qualquer privilégio a eles c
once
-
dido. Perry também estava entusiasmado com as possibilidades ineren
tes
àquele mundo novo, mas demonstrava menos alegria do que os levianos
mergulhadores. Suzanne estava mais confusa do que empolgada.
Continuava a entreter a idéia de que estavam exper
imentando uma es
-
pécie de alucinação coletiva de acordo com a predileção de cada um. Ao
contrário de todos os outros, Donald estava taciturno, convencido de que
aquilo tudo era um delírio proposital e requintado que os leva
ria todos a
algum desfecho nefan
do.A conversa girou em torno da viagem de disco e
as maravilhas das acomodações deles. Richard e Michael eram os mais
animados, espe
cialmente depois que souberam que a clone operária de
Suzanne era do sexo feminino. Richard fez uma insinuação quanto aos
p
ossíveis dese
jos que uma criatura assim tão submissa poderia satisfazer.
Suzanne ficou horrorizada, e lhe disse, com a maior clareza:
—
Tente agir como se pertencesse a uma raça civilizada!
O alimento era semelhante ao que haviam tomado nos aposentos da
á
rea de descontaminação, com a mesma variação curiosa no sabor
percebido por cada um, embora fosse apresentado em pratos elabora
dos,
para que cada um se servisse. Os pratos foram trazidos por dois homens
extremamente belos, vestidos com macacões de cetim n
egro e mangas
compridas, com zíperes frontais. Os dois usavam um brinco de argola.
De repente, Donald arremessou o garfo de ouro com força sobre o
prato de ouro. O estardalhaço foi surpreendentemente alto naquela sala
de mármore, ao reverberar nas paredes
de pedra. Richard parou no meio
de uma frase, enquanto descrevia o mergulho que havia dado em sua
piscina, com a boca cheia do que insistia ser uma grande quantidade de
sundae
com calda quente de chocolate. Suzanne pulou de medo, e dei
xou
cair o garfo tam
bém, com um ruído um pouco menos espalhafato
so, o que
lhe provou mais uma vez como estava tensa. Michael engasgou
-
se com o
que dizia ser torta de batata
-
doce.
—
Co
m
o vocês conseguem comer nessas circunstâncias?
—
ber
rou
Donald.
—
Que circunstâncias?
—
in
dagou Richard, a boca ainda cheia de
comida. Os olhos rapidamente percorreram a sala de um lado a outro,
com medo que o lugar houvesse sido invadido.
Donald inclinou
-
se para Richard.
—
Que
circunstâncias
?
—
repetiu, com um deboche evidente,
enquanto sacudi
a a cabeça, assombrado e desdenhoso.
—
O que jamais
vou conse
guir entender nesses mergulhadores saturados é se eles
precisam ser burros
para quererem fazer isso, ou se são a pressão e o gás
inerte que destroem o punhado de neurônios que eles talvez tivess
em
quando começaram.
—
De que raio você está falando?
—
perguntou Michael, ofendendo
-
se imediatamente.
—
Vou lhe dizer já, já do que estou falando
—
retrucou Donald.
—
Olha só em volta de você! Onde diabos nós estamos? O que estamos
fazendo aqui? Quem são
essas pessoas assim vestidas como se estives
sem
indo para algum baile universitário à fantasia?
Durante alguns minutos se fez silêncio. Todos evitaram o olhar
fuzilante de Donald. Eles andavam evitando escrupulosamente essas
perguntas.
—
Eu sei onde estam
os
—
disse Richard, afinal.
—
Estamos em
Interterra.
—
Ai, meu pai do céu
—
exclamou Donald, erguendo as mãos, de
tão exasperado.
—
Nós estamos em Interterra
—
repetiu.
—
Isso expli
ca
tudo. Muito bem, deixa eu te contar, isso não explica nada. Não ex
plic
a
onde estamos, nem o que estamos fazendo aqui, nem quem são essas
pessoas. E agora eles nos isolaram convenientemente em vários aposentos
individuais.
—
Disseram que nos contariam tudo que queremos saber
—
justi
-
ficou
-
se Suzanne.
—
Pediram
-
nos que fôssemo
s pacientes.
—
Pacientes!
—
zombou Donald.
—
Vou lhe dizer o que estamos
fazendo aqui... Somos prisioneiros!
—
E daí?
—
disse Richard.
O silêncio voltou a reinar. Michael depôs o garfo, desanimado
diante da explosão de Donald. Richard voltou a apreciar a s
obremesa, sem
des
viar os olhos de Donald, no maior atrevimento. Suzanne e Perry
simples
mente assistiram a tudo, bem como os clones operários mudos.
Richard abocanhou mais um tanto da sobremesa. Com a boca ain
da
cheia, disse:
—
Se somos prisioneiros, que
ro ver como
esse
pessoal trata os
amigos. Quero dizer, olha só
esse
lugar. É fantástico! Se não quiser co
mer,
Fuller
,
então não coma! Eu gostei disso aqui, então vá se danar!Donald
pôs
-
se de pé num salto com a intenção de alcançar Richard por sobre a
mesa
e acertar
-
lhe um murro. Perry interveio antes que eles pudessem
chegar às vias de fato.
—
Ei, parem aí, vocês dois
—
berrou Perry.
—
Parem de se provo
car!
Nada de brigas entre nós. Além disso, estão ambos certos. Não sa
bemos
nada sobre o que é isso aqui
, onde fica nem por que estamos aqui, mas
estamos sendo bem tratados. Talvez até bem demais.
Perry soltou o braço de Donald e quando sentiu o homem relaxar,
lançou um olhar para os clones operários imóveis, imaginando se aque
la
explosão momentânea os inco
modaria. Mas não incomodou. Os ros
tos
deles estavam tão imóveis e inexpressivos quanto haviam estado durante
toda a refeição.
Donald seguiu a linha de visão de Perry enquanto ajeitava a túnica.
—
Está vendo o que eu disse?
—
resmungou.
—
Eles até botam
es
ses
carcereiros para nos vigiar enquanto comemos.
—
Não sei se é isso mesmo
—
disse Suzanne. Depois, em alta voz,
acrescentou:
—
Operários, por favor, vão embora!
Sem darem sinal de terem tomado conhecimento da ordem de
Suzanne, os clones desapareceram atr
av
és de uma das três portas de saí
da
da sala de jantar.
—
Pronto, agora os
garçons
já não podem mais nos vigiar
—
disse
Suzanne.
—
Isso não significa nada
—
disse Donald. Os olhos dele exami
-
naram o lugar.
—
Provavelmente há microfones ocultos e câmeras e
m
toda essa sala.
—
Ora
—
disse Michael.
—
Olhando esse garfo e essa faca, fiquei
pensando. Será que isso é ouro mesmo, ou não?
Suzanne pegou seu garfo para avaliar o peso.
—
Estive pensando nisso antes
—
disse.
—
Surpreendentemente,
acho que é ouro, sim.
—
Não brinca!
—
disse Michael. Pegou o prato e avaliou o peso dos
dois objetos.
—
Temos uma pequena fortuna aqui.
—
Estamos sendo bem
tratados no momento
—
disse Donald, voltando ao tópico principal.
—
Acha que o tratamento vai mudar?
—
indagou Perry.
—
Pod
e mudar de uma hora para a outra
—
disse Donald, com um
estalar dos dedos.
—
Assim que eles conseguirem o que querem, sabe lá o
que vai acontecer? Estamos completamente vulneráveis.
—
Pode ser que mude, mas acho que não
—
disse Suzanne.
—
Como pode ter tan
ta certeza?
—
disse Donald.
—
Não tenho certeza
—
admitiu Suzanne.
—
Mas me parece óbvio.
Olhe só em torno de nós. Essas pessoas, sejam lá quem forem, são muito
avançadas. Não precisam de nada que possamos lhes dar. Aliás, acho que
nós é que precisamos apr
ender coisas extraordiná
rias com elas.
—
Sei que andamos evitando o assunto
—
disse Perry.
—
Mas
quando diz que são muito avançadas, está insinuando que essas pessoas
são extraterrestres?
A pergunta de Perry causou novo momento de silêncio. Ninguém
sabia
muito bem o que pensar, muito menos o que dizer.
—
Quer dizer, gente de outro planeta?
—
disse Michael, afinal.
—
Não sei bem o que estou insinuando
—
disse Suzanne.
—
Mas
todos já experimentamos aquela viagem incrível no disco. Deve repre
-
sentar algum tip
o de tecnologia de levitação magnética da qual nenhum
de nós jamais ouviu falar. E supõe
-
se que estamos sob o oceano, algo em
que eu ainda não consigo acreditar. Mas preciso dizer a todos. A
descontinuidade de Mohorovicic realmente existe, e ninguém jamais
conseguiu explicá
-
la.
Richard descartou a idéia com um gesto de desprezo.
—
Essa gente não é extraterrestre. Meu Deus, viram aquelas gati
-
nhas? Porcaria, eu já vi um monte de filmes sobre alienígenas, e eles
certamente não se parecem com essa gente!
—
Pod
em ter alterado a aparência para ficar de acordo com nossas
preferências
—
disse Suzanne.
—
Sim
—
disse Michael.
—
Foi isso que
pensei no início. Estamos sonhando que eles parecem tão bonitos.
—
É por isso que não estou nem aí
—
disse Richard.
—
É o que est
á
na minha cabeça que importa. Se os acho bonitos, então são bonitos.
—
O que me preocupa são os motivos deles
—
disse Donald.
—
Não
viemos parar aqui por acidente. É mais do que evidente que fomos
literalmente sugados para o fundo daquela chaminé. Eles qu
erem algu
ma
coisa de nós, senão já estaríamos mortos.
—
Acho que está certo quando diz que fomos trazidos para cá
propositalmente
—
disse Suzanne.
—
Sufa admitiu várias coisas para mim.
Primeiro, confirmou que passamos por uma descontaminação.
—
Mas fomos
descontaminados, por quê?
—
perguntou Perry.
—
Ela não disse
—
disse Suzanne.
—
Mas admitiu que já vieram
visitantes como nós aqui antes.
—
Ora, mas que interessante
—
disse Donald.
—
Ela disse o que foi
feito deles?
—
Não disse, não
—
disse Suzanne.
—
Bo
m, vocês podem se preocupar até caírem doentes
—
comen
tou
Richard. Depois inclinou a cabeça para trás e gritou:
—
Clones operários,
venham cá!
Instantaneamente apareceram dois humanóides, um de sexo mas
-
culino e um de sexo feminino. Richard deu uma olhada
na mulher e olhou
de relance para Michael, de um jeito conspirador.
—
Que boazuda!
—
sussurrou com uma empolgação incontida.
—
Richard
—
advertiu Suzanne
—
, quero que prometa que não vai
fazer nada que nos constranja ou comprometa como grupo.
—
Mas o que
você pensa que é, minha mãe?
—
retrucou ele. De
pois
olhou de relance para a operária e disse:
—
Que tal me servir mais um
pouco dessa sobremesa, docinho
-
de
-
coco?
—
Também quero
—
disse Michael. Bateu com o garfo de ouro no
prato de ouro.
Donald começou a
se erguer, mas Perry tornou a contê
-
lo.
—
Nada
de brigas
—
disse Perry.
—
Não vai nos levar a lugar ne
nhum.
Richard sorriu provocador para Donald, curtindo a frustra
ção e a
raiva do outro.
O som delicado de sinos chineses interrompeu a música de fundo
suav
e e ecoou na sala. Um momento depois Arak surgiu, solenemente.
Estava vestido com as roupas de costume, mas com um pequeno acrés
-
cimo. Em torno do pescoço trazia uma fita de veludo azul simples que
combinava perfeitamente com o tom de azul de seus olhos. E
stava ata
da,
formando um laço simples.
—
Olá, meus amigos
—
disse, exuberante.
—
Suponho que a re
feição
tenha sido do seu agrado.
—
Estava deliciosa
—
disse Richard.
—
Mas do que é feita?, que
ro
dizer, não se parece com nada do qual tenha sabor.
—
É em
sua maior parte constituída de proteínas planctônicas e
carboidratos de origem vegetal
—
disse Arak. Esfregou as mãos,
entusiasticamente
.
—
E então? E a comemoração que mencionei a vocês
antes? Não fazem idéia do número de pessoas aqui de Saranta que se
en
contram extremamente felizes com sua chegada à nossa cidade. Tive
-
mos que recusar a entrada a muita gente. Sabem, não estamos numa
cidade que receba muitos visitantes do seu mundo: certamente não como
Atlântida, ao leste, ou Barsama, a oeste. Todos estão a
nsiosos para
conhecê
-
los. Isso nos leva à pergunta principal: gostariam de vir até o
pavilhão, ou estão cansados demais devido à descontaminação?
—
Onde ele fica?
—
perguntou Michael.
—
Bem ali
—
disse Arak, apontando para a extremidade aberta da
sala de j
antar.
—
A comemoração vai ser no pavilhão aqui do palácio dos
visitantes. É muito conveniente. Aliás, fica a uma distância de pou
co mais
de cem metros, portanto podemos ir andando até lá. O que dizem todos?
—
Conte comigo
—
disse Richard.
—
Jamais recuso
um convite para
uma festa.
—
Nem eu
—
disse Michael.
—
Esplêndido!
—
disse Arak.
—
E o restante de vocês? Fez
-
se um
silêncio constrangedor. Perry acabou pigarreando.
—
Arak, para lhe dizer a verdade, estamos um pouco nervosos.
—
Eu usaria uma palavra mais
forte
—
disse Donald.
—
Franca
-
mente, antes de fazermos seja lá o que for, gostaríamos de ter alguma
idéia de quem vocês são e por que estamos aqui. Sabemos que nossa
presença aqui não foi fruto do acaso. Vou ser curto e grosso: sabemos que
fomos abduzidos
.
—
Compreendo suas preocupações e sua curiosidade
—
disse Arak.
Abriu as palmas das mãos viradas para cima, em um gesto conciliador.
—
Mas, por favor, apenas por esta noite, permitam que minha experiên
cia
prevaleça. Já lidei com visitantes no nosso mundo
antes, não em grande
número, é verdade, e não num grupo tão grande, mas ainda as
sim o
suficiente para saber o que é melhor. Amanhã responderei todas as suas
perguntas.
—
Por que essa espera?
—
quis saber Donald.
—
Por que não nos diz
logo agora?
—
Não pe
rcebe como o procedimento de descontaminação foi
estressante
—
disse Arak.
—
Pode pelo menos nos dizer quanto tempo ele durou?
—
inda
gou
Suzanne.
—
Pouco mais do que um dos meses de vocês
—
disse Arak.
—
Ficamos dormindo por mais de um mês?
—
indagou Mich
ael,
incrédulo.
—
Essencialmente, sim
—
disse Arak.
—
E isso é estressante para o
cérebro e para o corpo. amanhã terão que absorver mais informações
surpreendentes. Já aprendemos que é mais fácil absorvê
-
las quando
nossos visitantes estão descansados. Até
mesmo uma noite faz uma di
-
ferença tremenda. Portanto, por obséquio, relaxem hoje, seja aqui jun
tos
ou sós em seus chalés, ou, o que seria ainda melhor, na nossa
comemoração pela sua chegada.Perry estudou o rosto de Arak. Os olhos
azuis do homem sustenta
ram
-
lhe o olhar e lhe transmitiram uma
sinceridade que ele não pôde negar.
—
Está bem
—
concordou.
—
A essa altura eu não acho que possa
dormir, mesmo. Então irei, mas amanhã vou cobrar sua promessa.
—
É justo
—
disse Arak. Olhou para Suzanne.
—
E a Dra. N
ewell,
do que gostaria?
—
Eu também vou
—
respondeu Suzanne.
—
Maravilha
—
disse Arak.
—
E o senhor, Sr. Fuller? Qual é sua
decisão?
—
Não
—
disse Donald.
—
Sob as circunstâncias atuais, acharia
muito difícil participar de uma comemoração.
—
Muito bem
—
di
sse Arak esfregando as mãos outra vez, num
contentamento evidente.
—
Isso é mesmo incrível. Estou satisfeito pela
maioria de vocês vir. Haveria muita gente decepcionada se eu voltasse
sozinho. Sr. Fuller, compreendo seus sentimentos e os respeito. Por favo
r,
aprecie o seu repouso. Os clones operários o assistirão no que for preciso.
Donald concordou, mal
-
humorado.
—
Agora, vamos
—
disse Arak aos outros. Dirigiu
-
se à extremida
de
aberta da sala de jantar.
—
Haverá comida nessa festa?
—
indagou Richard.
—
Mas
é claro
—
disse Arak.
—
Da melhor qualidade que Saranta
puder oferecer.
—
Então não vou repetir a sobremesa
—
disse Richard. Jogou a
colher no prato, ergueu
-
se, espreguiçou
-
se e soltou um forte arroto.
Suzanne olhou
-
o, furiosa.
—
Richard, mostre um pouco
de respeito pelos outros, se não con
-
segue respeitar a si mesmo.
—
Mas eu procuro mostrar respeito, sim
—
disse Richard, com um
sorriso malicioso.
—
Evitei peidar na presença de acompanhantes tão
seletos.
Arak riu.
—
Richard, você vai fazer um sucesso enorm
e. Você é
maravilho
samente primitivo.
—
Está me gozando?
—
indagou Richard.
—
Não, de jeito nenhum
—
disse Arak.
—
Vão querer sua com
-
panhia o tempo todo. Eu lhe garanto. Vamos! Vamos apresentar vocês!
—
Com um gesto, Arak começou a andar na direção da ex
tremidade aberta
da sala.
—
Tá legal!
—
disse Richard, fazendo um sinal de positivo com os
polegares para Michael, entusiasmado. Michael retribuiu com exube
rância
semelhante.
—
Vamos cair na gandaia!
—
berrou Michael. Os dois mergulha
-
dores seguiram Arak,
ávidos por diversão.
Suzanne olhou para Perry, que deu de ombros e disse:
—
Isso é maluquice, ir a uma festa sob essas circunstâncias, mas
talvez consigamos encarar.
Depois olhou de relance para Donald.
—
Tem certeza de que não quer vir?
—
Tenho
—
disse D
onald, taciturno.
—
Mas se vocês dois que
rem
confraternizar, fiquem à vontade.
—
Eu vou porque talvez descubra mais alguma coisa
—
disse
Suzanne.
—
Não para confraternizar com ninguém, como disse.
—
Vamos!
—
disse Perry, do outro lado da sala.
—
Até mais
tarde
—
despediu
-
se Suzanne. Correu atrás de Perry e
dos outros, que já estavam atravessando o gramado.
Donald ficou remoendo o que Arak havia dito. Só tinha certeza de
que não confiava nele. Do ponto de vista de Donald, o cara era gentil
demais. Toda aque
la fantástica hospitalidade devia ser algum tipo de
armadilha. Mas Donald não sabia ainda para que fim, a não ser baixar a
defesa deles.
Donald virou
-
se e olhou para a extremidade da sala. O grupo já ia a
meio caminho em direção ao pavilhão com colunas, as
silhuetas con
-
trastando com o exterior iluminado do edifício. Redirecionando o olhar,
Donald fitou os dois clones operários, que estavam imóveis, de pé aolado,
contra a parede. Pareciam tão humanos que era difícil para Donald crer
que fossem parte máquina
s como Arak havia dito. Talvez fosse ape
nas
mais uma mentira, pensou Donald.
—
Operário, quero mais bebida
—
disse Donald.
O clone operário feminino imediatamente pegou a jarra na mesinha
auxiliar e foi até a mesa. Seus cabelos até os ombros eram cor
-
de
-
c
anela.
Ela tinha uma pele clara e translúcida. Inclinando
-
se começou a encher a
taça de Donald.
Donald subitamente agarrou
-
lhe o pulso, sem avisar. A pele dela
estava fria, sob seus dedos. Ela n
ão pulou, nem reagiu de nenhuma for
ma.
Em vez disso, continuo
u a despejar o líquido na taça.
Donald apertou, tentando fazê
-
la reagir, mas foi em vão. A mulher
terminou de encher a taça, apesar do aperto de Donald. Donald ficou
estupefato. A mulher era imensamente forte.
Inclinando a cabeça para trás, Donald olhou pa
ra o rosto
inexpressivo dela. Ela não tentou se livrar, mas, em vez disso, retribuiu o
olhar dele com um olhar vago. Donald soltou
-
lhe o braço.
—
Qual é o seu nome?
—
indagou.
Ela não reagiu verbalmente, nem de nenhuma outra forma. Além do
movimento rítmic
o de respiração não se viu nenhum outro. Ela nem
mesmo piscava.
—
Clone operário, fale!
—
ordenou Donald.
O silêncio continuou. Donald olhou para o clone operário mascu
lino,
mas nem ele reagiu.
—
Por que vocês trabalham e os outros, não?
—
perguntou Donal
d.
Nenhum dos dois clones reagiu.
—
Tá legal
—
disse Donald.
—
Operários, saiam!
Instantaneamente os dois operários foram até a porta pela qual ha
-
viam entrado e desapareceram. Donald se levantou e abriu a porta. Além
dela, uma escadaria descia, imergindo
nas trevas.
Fechando a porta, Donald foi até a extremidade aberta da sala.
Contemplou a cena. A luz, que antes estava tão brilhante, havia
esmaecido,
como se o sol inexistente estivesse quase se pondo. Donald só conseguiu
distinguir vagamente Arak e os out
ros se aproximando do pavilhão.
Sacudiu a cabeça. Imaginou outra vez se não estaria sonhan
do. Tudo
parecia tão bizarro, porém perturbadoramente real. Apalpou os braços e o
rosto. Estavam normais ao toque.
Donald inspirou profundamente. Sabia intuitivament
e que estava
diante da missão mais difícil da sua carreira. Esperava que seu treina
-
mento não o deixasse na mão, sobretudo o treinamento de prisioneiro de
guerra.
1
1
1
1
Alo vocabulário escatológico particular deles, Richard e Michael es
-
tavam "se cagando de
medo", mas tacitamente concordavam em negar
isso. Exatamente como em relação aos perigos do mergulho saturado,
reagiam com bravatas machistas distorcidas, que visavam ocultar seus
verdadeiros sentimentos.
—
Acha que aquelas garotas que vimos antes estarão
aqui na festa?
—
perguntou Richard a Michael. Haviam ficado para trás dos outros
alguns passos durante a caminhada para o pavilhão.
—
A esperança é a última que morre
—
respondeu Michael.
Caminharam em silêncio alguns instantes. Conseguiam escutar Arak
con
versando com Suzanne e Perry, mas não procuraram prestar atenção
ao que eles diziam.
—
Acha mesmo que ficamos dormindo durante mais de um mês?
—
perguntou Michael.
Richard parou de repente.
—
Você não está querendo gozar com a minha cara, está?
—
Não!
—
in
sistiu Michael.
—
Estava só perguntando.
—
O sono
nunca havia sido para Michael o lenitivo que era para os outros. Quan
do
criança, seu sono costumava ser perturbado por pesadelos. Depois que ia
dormir, o pai dele chegava bêbado e espancava a mãe. Quando
e
le
acordava, tentava interferir, mas o resultado era sempre o mesmo:
Michael também acabava apanhando. Infelizmente, o processo do sono
ficou inextricavelmente associado a esses episódios, de forma que, para
Michael, a idéia de ficar dormindo durante um mê
s era fonte de um
nervosismo enorme.
—
Alô!
—
disse Richard, dando uma série de tapinhas no rosto de
Michael.
—
Está me ouvindo?
Michael desviou os golpes irritantes de Richard.
—
Pare com isso!
—
Lembre
-
se de que não vamos nos preocupar com essa porra
—
d
isse Richard.
—
Tem alguma coisa de podre acontecendo por aqui, sem a
menor sombra de dúvida, mas foda
-
se o mundo. Vamos nos di
vertir, não
vamos ficar nos comportando que nem aquele babaca do Fuller. Meu
Deus! Quando escuto ele falando, fico feliz por ter
mos sido expulsos
daquela bosta de marinha. Senão, íamos estar recebendo or
dens de
bundões como ele.
—
É claro que vamos nos divertir
—
insistiu Michael.
—
Mas eu
estava só pensando, sabe como é, é muito tempo pra se ficar apagado.
—
Bom, então, não pense
!
—
disse Richard.
—
Senão vai pirar.
—
Tá legal!
—
disse Michael.
Suzanne chamou
-
os, para que se reunissem aos outros tr
ês. Ela e os
outros estavam aguardando.
—
E ainda por cima, ainda temos de aturar essa dona aí bancando a
mãezona
—
acrescentou Richard
.
Os dois mergulhadores alcançaram o restante do grupo, que parou
ao pé dos degraus que levavam até a entrada do pavilhão.
—
Tudo bem aí?
—
perguntou Suzanne a eles.
—
Chuchu beleza
—
respondeu Richard, forçando um sorriso.
—
Arak acabou de nos dizer uma c
oisa que vocês dois podem achar
interessante
—
disse Suzanne.
—
Presumo que notaram que está escu
-
recendo como se o sol tivesse se posto.
—
Nós notamos
—
disse Richard, ranzinza.
—
Eles têm noite e dia
aqui embaixo
—
disse Suzanne.
—
E apren
demos que a luz
vem de
bioluminescência.
Os dois mergulhadores inclinaram as cabeças para trás para olhar
direto para cima.
—
Estou vendo estrelas
—
disse Michael.
—
Esses são pontos relativamente pequenos de bioluminescência
azul esbranquiçada
—
explicou Arak.
—
Era nos
sa intenção recriar o
mundo como o conhecíamos, o que certamente incluía o ciclo circadiano.
A di
ferença em relação ao seu mundo é que nossos dias e noites são
maiores, e têm a mesma duração o ano inteiro. É claro que nossos anos
também são mais compridos
.
—
Então viveram no mundo exterior antes de virem para cá
—
disse
Suzanne.
—
Exato
—
disse Arak.
—
Quando foi que se mudaram?
—
indagou Suzanne. Arak ergueu
as mãos, defensivamente. Depois riu.
—
Estamos pondo o carro adiante dos bois. Não devo incentivá
-
los a
fazer perguntas esta noite. Lembrem
-
se, o dia de fazer isso é amanhã.
—
Só mais umazinha
—
disse Perry.
—
É fácil de responder, te
nho
certeza. De onde tiram a energia que usam aqui embaixo?
Arak suspirou, exasperado.
—
É a última pergunta, eu juro
—
disse Perry.
—
Pelo menos esta
noite.
—
E você é homem de palavra?
—
indagou Arak.
—
Mas sem dúvida
—
disse Perry.
—
Nossa energia vem de duas fontes principais
—
disse Arak.
—
Primeiro, geotérmica, proveniente de uma interligação nossa com o núcleo
da Te
rra. Mas isso gera o problema dé eliminar o calor excessi
vo, o que
fazemos de duas formas. Uma delas é permitindo que o magma suba pelo
o que vocês chamam de cadeia meso
-
oceânica, e a segunda é o
resfriamento por meio de circulação de água do mar. A troca
térmica com
água do mar exige um grande volume de líquido, o que nos
oferece
oportunidade para filtrar nosso plâncton. A desvantagem é que o processo
gera correntes oceânicas, mas vocês aprenderam a conviver com elas,
especialmente aquela que chamam de Co
rrente do Golfo.
"A segunda fonte de energia provém da fusão. Cindimos as molé
-
culas de água, formando oxigênio, que respiramos, e hidrogênio, que
fundimos. Mas esse é o tipo de debate que teremos amanhã. Hoje gos
taria
que simplesmente vivenciassem nosso
mundo e se divertissem,
principalmente se divertissem."
—
E pretendemos fazer justamente isso
—
disse Richard.
—
Mas
diga lá, essa festa aí vai ser regada ou não?
—
Temo que este termo não me seja familiar
—
disse Arak.
—
Isso se refere principalmente ao á
lcool
—
disse Richard.
—
Vocês
têm algum por aqui?
—
Mas é claro
—
disse Arak.
—
Vinho, cerveja e uma bebida
alcoólica particularmente pura que chamamos de cristal. O vinho e a
cerveja são semelhantes aos que vocês conhecem. Mas o cristal é dife
rente,
e a
conselho
-
os a irem com calma até se acostumarem com ele.
—
Não se apoquente, irmãozinho
—
disse Richard.
—
Michael e eu
somos catedráticos nisso.
—
Vamos cair na gandaia!
—
disse Michael, entusiasticamente.
Perry e Suzanne tiveram que ser empurrados para p
rosseguirem.
Ambos estavam encantados com as explicações de Arak,
especialmente Suzanne. De uma hora para outra, ela havia obtido as
respostas para dois dos mistérios da oceanografia, ou seja, por que o
magma sai pelas cadeias meso
-
oceânicas e por que exis
tem correntes
oceânicas, especial
mente a Corrente do Golfo. As respostas a ambas as
perguntas haviam escapado completamente aos cientistas.
O grupo subiu as escadas com Arak à frente. Quando passaram
entre duas das colunas maciças que sustentavam o teto a
bobadado,
Suzanne divisou a expressão excessivamente entusiasmada de Richard.
Preocu
pada com o comportamento que ele teria sob a influência de tudo
aqui
lo, inclinou
-
se para ele e murmurou:
—
Lembre
-
se de se comportar.
Richard olhou
-
a de relance. Sua expre
ss
ão era de descrença e de
-
boche.
—
Estou falando sério, Richard
—
acrescentou Suzanne.
—
Não
temos idéia do que vamos enfrentar, e não queremos nos colocar sob risco
maior do que já corremos. Se não puder deixar de beber, vá com calma.
—
Vá para o inferno
!
—
disse Richard. Acelerou o passo e al
cançou
Arak bem na hora em que duas enormes portas de bronze se abriram.
A primeira coisa que veio ao encontro dos visitantes foi o murmú
rio
de milhares de vozes empolgadas reverberando pelo vasto interior de
mármo
re branco do pavilhão. O patamar ao qual subiram dava em uma
varanda com balaustrada que circundava o salão circular. Juntos, os
componentes do grupo foram até o alto de uma grandiosa escadaria e
olharam para baixo.
—
Mas isso é que é festa!
—
gritou Richa
rd.
—
Meu Deus! Deve
haver umas mil pessoas aqui.
—
Poderia haver dez mil, se tivéssemos espaço para isso
—
disse
Arak a eles.
No centro do imenso salão de baile, sob a cúpula, havia uma pisci
na
redonda, iluminada de forma a parecer com uma enorme jóia de
água
-
marinha polida porém não facetada. Em torno dela havia uma borda de
trinta centímetros de altura por três metros de largura. Numerosas
escadas ligavam a varanda ao piso inferior.
O andar térreo do pavilhão estava apinhado. Todos estavam vesti
-
dos com
os mesmos trajes simples de cetim branco, exceto um ou outro
clone operário, sempre de preto. Os clones operários carregavam enor
mes
bandejas repletas de taças douradas e de petiscos. Todos os convi
dados
traziam atada ao pescoço uma fita de veludo, como
a de Arak. Apenas a
cor variava, não o tamanho, nem a forma, ou o jeito de atá
-
la. E, como
antes, todos eram incrivelmente belos.A notícia de que os visitantes
haviam chegado espalhou
-
se como fogo no mato pela multidão. As
conversas pararam, e os rostos s
e volta
ram para o alto. Foi impressionante
ver tantas pessoas mudas de expec
tativa assim.
Arak ergueu as mãos acima da cabeça com as palmas na direção da
platéia.
—
Sejam todos muito bem
-
vindos!
—
cumprimentou.
—
Tenho o
prazer de anunciar que todos os n
ossos visitantes, menos um, digna
ram
-
se comparecer a nossa comemoração de sua chegada a Saranta.
A multidão irrompeu em aplausos generalizados, todos de braços
erguidos, imitando o gesto de Arak.
—
Venham!
—
disse Arak. Gesticulou para que o grupo o segui
sse,
descendo a ampla escadaria.
Richard e Michael dispararam na frente, sôfregos, seguidos por
Suzanne e Perry, que iam mais hesitantes.
—
Isso é demais!
—
sussurrou Richard, extasiado.
—
Olha só que
mulheres! Parece até uma festa noturna da Victoria's Se
cret!
—
Todas elas mereceriam ser pôster central de uma revista mascu
-
lina
—
comentou Michael.
—
É difícil manter
-
se distante, diante de tudo isso
—
sussurrou
Suzanne a Perry.
—
Sinto
-
me como se estivéssemos estrelando uma
superprodução de Cecil B. DeMille
nos anos cinqüenta.
—
Entendo o que está sentindo
—
disse Perry.
—
Também me dá
uma idéia do que é ser um astro do
rock.
Essas pessoas estão mesmo
felizes da vida por nos ver. E olha só como todos são jovens! A maior
parte parece ter apenas vinte e poucos
anos.
—
É verdade, mas tem muitas crianças
—
disse Suzanne.
—
Es
tou
vendo umas que não devem ter mais que três ou quatro anos.
—
Não há muitos idosos
—
comentou Perry.
Ao final da escada, as pessoas recuaram quando o grupo desceu,
mas assim que eles atin
giram o piso, a multid
ão avançou com as mãos
para cima, as palmas para a frente.
Suzanne e Perry instintivamente
recuaram alguns passos, apesar da
óbvia receptividade da multidão.
Richard e Michael, ao contrário, se deixaram cercar de gente. Os dois
mergulh
adores logo perceberam que a multidão queria contato físico com
as mãos deles, e alegremente se dispuseram a tocar as palmas que
buscavam as suas. Era uma saudação semelhante àquela que Arak havia
usado com Suzanne, logo ao che
garem.
—
Eu amo todos vocês
—
disse Richard, bem alto, para gáudio dos
interterráqueos mais próximos, mas escolheu as palmas de mulhe
res
jovens e belas enquanto atravessava a multidão. Em seu entusiasmo, até
agarrou algumas, beijando
-
as
—
o que fez com que a festividade parasse
de r
epente, em meio aos gritos com que as escolhidas reagiram.
Richard olhou as mulheres que havia beijado e imaginou, durante
um breve momento, se devia recuar, subindo outra vez as escadas. As
mulheres, deslumbradas, passaram as m
ãos nos lábios, depois exami
na
-
ram os dedos, como se esperassem ver sangue neles. Claramente, o bei
jo
não fazia parte do repertório de saudações normal dos interterráqueos.
Richard lançou um olhar arrependido a Michael, que estava igualmen
te
tenso com a mudança repentina de comport
amento da multidão.
—
Não pude resistir
—
justificou
-
se Richard.
Três mulheres que ele havia beijado se entreolharam, e romperam
em gargalhadas. Depois todas as três se jogaram simultaneamente sobre
Richard para retribuírem o gesto. A multidão aplaudiu, ma
ravilhada, e se
comprimiu em torno dos mergulhadores ainda mais. Depois de várias
tentativas desajeitadas de dar beijos, as três mulheres educadamente se
afastaram para dar lugar a outras.
Um sorriso malicioso surgiu no rosto de Richard.
—
Parece que vamos
ensinar umas coisinhas a essas meninas
—
disse, sorrindo. Sentiu
-
se incentivado o suficiente para dar maiores de
-
monstrações de afeto. Michael, ao ver os êxitos de Richard, tratou de
imitá
-
lo. Mas logo as atividades deles foram interrompidas por um clone
operário que havia reagido a uma sugestão de Arak de dar a seus
convi
d
ados algo para beber. Os clones chegaram e meteram
-
lhes taças
doura
das nas mãos.
Até mesmo a reserva de Suzanne e de Perry começou a ser minada
diante daquela sociabilidade contagiante.
Foram cercados por pessoas
belas e amis
tosas, ávidas por pressionarem as palmas das mãos contra as
deles. Alguns dos cumprimentos foram feitos pelas criancinhas que
Suzanne havia visto quan
do chegaram. Suzanne perguntou a uma delas a
idade que tinha, de
pois de se impressionar com o inglês impecável e a
evidente inteligência dela.
—
Qual a
sua
idade?
—
indagou a criança, sem responder à per
-
gunta de Suzanne.
Suzanne estava para responder quando um homem que poderia ter
feito o papel de um deus grego no fi
lme de Cecil B. DeMille que ela havia
imaginado perguntou
-
lhe se ela vivia com algum companheiro. Antes que
Suzanne pudesse responder a essa pergunta curiosa, um ho
mem mais
velho, n
ão menos atraente, perguntou
-
lhe se ela conhecia seus pais.
—
Esperem aí u
m pouquinho
—
disse Arak, interpondo
-
se entre
Suzanne e seus admiradores.
—
Como todos sabem, dissemos especifi
-
camente a nossos convidados que as perguntas deles devem esperar até
amanhã. É justo que as nossas também esperem. Hoje é a noite de co
-
memorarm
os este maravilhoso acontecimento em Saranta e de nos di
-
vertirmos.
—
Ei, Arak!
—
berrou Richard do meio de um grupo de fãs. Esta
va
erguendo a taça dourada.
—
Esse é o tal cristal de que falou?
—
Sim, com efeito
—
disse Arak.
—
É fantástico!
—
berrou Rich
ard.
—
Adorei.
—
Que bom
—
disse Arak.
—
Mais uma coisinha
—
berrou Richard.
—
Vocês não têm uma
musiquinha aí? Quero dizer, uma festa não é festa sem música...
—
É isso aí
—
apoiou Michael.
—
Operários, música!
—
gritou Arak, mais alto do que o vozerio.
D
entro de instantes, ouviu
-
se música de fundo acima do ruído das
vozes
.
Era tão suave quanto a música existente no alojamento de
descontaminação.
Michael deixou escapar uma risada de deboche.
—
Não estou me referindo a música de elevador
—
berrou Richard
de
novo para Arak.
—
Estou querendo uma coisa assim com um baixo de
fundo e um ritmo legal. Uma coisa para dançar.
Arak deu outra ordem aos clones oper
ários, e a música logo mudou.
Richard e Michael trocaram olhares perplexos. A música tinha
pedal
e ritmo, m
as eram muito estranhos, diferentes de qualquer música que já
houvessem escutado.
—
Mas que raio de música é essa?
—
indagou Michael. Inclinou a
cabeça para o lado, para ouvir melhor.
—
Sei lá
—
disse Richard. Fechou os olhos e movimentou a cabeça,
de um j
eito ondulante. Ao mesmo tempo ensaiou alguns passos hesitan
tes,
rebolando os quadris. Os movimentos dele causaram algumas risadinhas
espremidas das moças que haviam reunido em torno de si.
—
Gostaram, hein?
—
perguntou ele.
As mulheres concordaram, sem n
ada dizer.
Richard levou a taça aos lábios e jogou a bebida toda fora, para
surpresa das pessoas em torno dele. Colocando o recipiente no chão,
agarrou a mão da moça mais próxima e correu para a plataforma que
cercava a piscina no centro da arena. Rindo a
valer, a multidão abriu
caminho e incentivou o casal, aos gritos. Ao chegar onde queria, Richard
saltou sobre a plataforma e puxou a mulher consigo. Virou
-
se de frente
para ela e, por instantes, ficou meio zonzo com tanta be
leza. Depois de ver
tanta gente
bonita, já havia começado até a se acostumar, mas ficou
especialmente impressionado com a aparência daquela moça.
—
Você é lindíssima!
—
sussurrou, as palavras ligeiramente arras
-
tadas.
—
Obrigada
—
disse ela.
—
Você também é atraente.
—
Acha mesmo?
—
per
guntou Richard.
—
Você é muito divertido
—
disse a mulher.
—
Legal
—
disse Richard. Depois precisou dar um passo para o lado
para recuperar o equilíbrio. Por um segundo a imagem da mulher saiu de
foco. Ele estava se sentindo ligeiramente tonto.
—
Está se se
ntindo bem?
—
indagou a moça.
—
Sim, estou bem
—
garantiu Richard. Sentia um formigamento nas
pontas dos dedos.
—
Esse cristal aí que vocês bebem acaba com a gente,
hein?
—
É o meu predileto
—
disse a mulher.
—
Então também é o meu
—
disse Richard.
—
Ei, q
uer aprender a
dançar?
—
O que isso significa, exatamente?
—
perguntou a mulher.
—
Era o que eu estava fazendo
—
disse Richard.
—
Só que faze
mos
juntos.
Richard fechou os olhos e repetiu os bamboleios anteriores. Aquilo
só durou um segundo, porque teve qu
e abrir os olhos para se reequilibrar
uma segunda vez. A multidão reagiu com aclamações e aplausos. Pedi
ram
bis.
Richard virou
-
se para a platéia e curvou
-
se exageradamente. Vie
ram
mais aclamações ainda. Voltando
-
se para a mulher, Richard come
çou a
pavon
ear
-
se, a balançar
-
se como no tuíste e a se sacudir o melhor que
podia ao som da música. A mulher o olhava com grande interesse e
achando muita graça, mas não conseguia imitá
-
lo. A única coisa que
conseguiu fazer com relativa perfeição foi erguer as mãos p
ara cima e
movê
-
las como Richard estava fazendo.
—
Preste bem atenção
—
disse Richard. Estendendo os braços,
agarrou a mulher pelos quadris e tentou fazê
-
la rebolar
-
se ritmicamente.
Ela não entendeu nada, mas achou hilariantes suas tentativas desen
-
gonçada
s. A multidão também.
Suzanne e Perry observavam com uma preocupação compreensível.
Suzanne disse a Perry que temia que Richard estivesse bêbado, e Perry
concordou. Mas não podiam deixar de notar que a multidão adorava
aquelas palhaçadas que ele estava faz
endo.
—
Seu amigo é muito engraçado
—
disse uma voz atrás de Perry.
Ele se virou e viu uma jovem cuja idade estimou em 18 anos. Ela tinha
olhos azuis bem vivos que lhe recordaram os de Suzanne, e um sorriso
contagiante. Ofereceu
-
lhe a palma da mão. Perry e
ncostou a sua palma na
dela, meio constrangido; sentiu o rosto ficar corado. A mulher era
perigosamente atraente, e bem mais alta do que ele.
—
Meu nome é Luna
—
disse, numa voz que fez os joelhos de Perry
ficarem bambos.
—
O meu é Perry.
—
Eu sei
—
disse
Luna.
—
Você é muito simpático. Notei que seus
dentes são mais brancos que os do Richard.
Perry ficou ainda mais corado. Concordou com a cabe
ça.
—
Obrigado
—
conseguiu dizer.
Os olhos de Luna voltaram ao centro da arena.
—
Sabe dançar, como o Richard?
Perr
y voltou a olhar de relance o mergulhador, que agora estava
apresentando sua versão do
break.
Naquele momento, estava girando de
costas no chão com as pernas para cima.
—
Acho que sim, suponho
—
disse Perry, cauteloso.
—
Talvez não
tão bem como Richard. El
e é um pouco mais extrovertido do que eu. Mas
para lhe dizer a verdade, já faz alguns anos que não danço.
—
Acho que o Richard é tão bom quanto um clone de entreteni
-
mento
—
disse Luna. Parecia estar fascinada pelo Richard, que agora
estava andando sem sai
r do lugar, como Michael Jackson, para delírio da
platéia.
—
Acho que o Richard nunca recebeu
esse
elogio antes
—
disse Perry.
Sempre imitando o outro, Michael pegou a mão de uma das mu
-
lheres que o cercavam e uniu
-
se a Richard na plataforma que cercava a
piscina. Mal começou a dançar, uma dúzia de outras mulheres subiu na
plataforma para participar.Agora havia um enxame de lindas mulheres
cercando Richard e Michael, tentando movimentar os braços e rebolar,
imitando os dois mergulhadores embriagados. Mas nã
o era fácil. Até os
mergulhadores tinham dificuldade de coordenar os movimentos com o
ritmo esquisi
to daquela música.
Vários dos jovens mais ousados de Interterra subiram à plataforma
para tentar imitar aquela dança estranha. Richard não gostou da concor
-
rência. Sem interromper os bamboleios, tratou de se aproximar de cada
um dos homens e com movimentos súbitos e exagerados dos quadris,
derrubou
-
os todos, expulsando
-
os da plataforma. A multidão, e até os
próprios homens, adoraram, achando que tudo fazia pa
rte do exercício.
Depois de meia hora de dança ininterrupta, todos atingiram os li
-
mites de tolerância. Sempre liderando a todos, Richard abriu os braços e
agarrou tantas mulheres quanto pôde antes de cair no chão, dando
risadinhas. Michael imitou a manobr
a de Richard, aumentando ainda
mais o monte onde pernas, braços e torsos suados cobertos por tecido fino
se entrelaçaram. Os mergulhadores, mesmo caídos, continuaram
pressionando a palma das mãos contra as palmas das moças, e as mu
-
lheres retribuíam com be
ijos. Atendendo a nova ordem de Arak, os clones
operários trataram de providenciar mais bebida.
—
Esse lugar aqui é um sonho que virou realidade
—
gritou Michael
depois de tomar um gole do copo recém
-
abastecido.
—
Coitado do Mazzola
—
disse Richard.
—
O co
itado do mer
-
gulhador do sino sempre perde a festa.
—
Do que acha que é feito
esse
tal de cristal?
—
indagou Michael.
Espiou dentro do seu copo. O fluido era completamente transparente.
—
Deixa isso pra lá
—
guinchou Richard, enquanto estendia um dos
braço
s e dava um exuberante abraço em uma das mulheres que se
comprimiam contra seu peito. Ao fazer isso, derramou um pouco de
bebida no peito, para divertimento daqueles que notaram.
—
Michael, tenho uma coisa para você
—
disse uma jovem de olhos
azuis e cabel
os bem escuros.
—
O quê, meu docinho?
—
indagou Michael.
Estava deitado de barriga para cima, fitando a imagem invertida da
mulher, que se encon
trava de pé perto da plataforma. Ela sorriu e mostrou
um potinho.
—
Quero que experimente a caldorfina
—
disse,
enquanto abria o
pote. Ofereceu
-
o a Michael, que usou a mão livre para retirar um pu
nhado
do creme.
—
Isso é um pouco demais para você, mas não faz mal
—
observou.
—
Desculpe
—
disse Michael
—
, mas o que devo fazer com ele?
—
Levou o creme ao nariz e o ch
eirou. Era inodoro.
—
Esfregue
-
o na mão
—
recomendou ela.
—
Farei o mesmo, de
pois
tocaremos a palma um do outro.
—
Ei Richie
—
chamou Michael, rolando sobre si mesmo e sen
tando
-
se.
—
Olha só essa novidade.
—
Richard não reagiu. Estava tor
nando a
encher
o copo de cristal.
Michael esfregou o creme na palma da mão e depois olhou para a
jovem atraente que o dera a ele. Ela tinha uma aparência sonolenta, os
olhos estavam semicerrados. Vagarosamente, ergueu a mão, e Michael
pressionou sua palma contra a dela.
A reação de Michael foi rápida e esmagadora. Os olhos se arregala
-
ram, depois se fecharam de puro prazer. Durante alguns minutos de
êxtase arrebatado, não conseguiu se mover. Quando finalmente conse
guiu,
arrancou o pote das mãos da mulher. Depois puxou in
sistente
mente o
braço de Richard.
—
Richie!
—
berrou Michael.
—
Você precisa experimentar
esse
troço!
Richard tentou se soltar. Mas Michael continuou a pux
á
-
lo.
—
Olha, não está vendo que estou ocupado?
—
disse Richard.
Estava tentando beijar duas mulhere
s ao mesmo tempo.
—
Richie, precisa experimentar essa coisa
—
repetiu Michael.
Mostrou o pote.
—
Mas que raio
é
isso?
—
disse Richard. Apoiou
-
se em um dos
cotovelos.
—
É creme para as mãos
—
disse Michael.
—
Está me interrompendo para me dizer que preciso e
xperimen
tar
creme para as mãos?
—
Richard não podia acreditar.
—
Mas qual é o seu
problema, hein?
—
Experimente
—
disse Michael.
—
É diferente de todos os cre
mes
para as mãos que já experimentou. Estou lhe dizendo que é de ar
rebentar
a boca do balão!!!
Suspirando, Richard aceitou um pouco do creme e esfregou
-
o nas
m
ãos. Depois olhou para Michael.
—
E agora, o que acontece?
—
Aperte a palma da sua mão contra a de uma das meninas
—
disse
Michael.
Richard chamou uma das duas que ele havia acabado de beijar,
mas
ela lhe pediu para esperar com um gesto. Pegou um pouco do creme e
esfregou em suas pr
óprias palmas, depois pressionou
-
a contra a de
Richard. O resultado foi o mesmo que havia sido para Michael. Richard
levou um minuto completo para conseguir sair do
delírio de êxtase que o
dominou.
—
Ai, meu Deus
—
exclamou.
—
Isso foi tal e qual um orgasmo! Me
dá mais aí!
Michael afastou bruscamente o pote da m
ão ávida do outro.
—
Vá procurar um para você
—
disse.
Richard tentou pegar o pote outra vez, mas Michael de
u
-
lhe um
tapa na m
ão.
Perry estava no meio de uma explicação a Luna, em que tentava dar
-
lhe uma idéia do que era ser presidente da Benthic Marine, quando sen
tiu
alguém bater de leve no seu ombro. Era Suzanne. Parecia preocupada.
—
Richard e Michael estão
começando a discutir
—
disse
Suzanne.
—
Estou preocupada. Arak está procurando manter as taças
deles cheias o tempo inteiro, e eles já estão muito bêbados.
—
ô
-
ô!
—
disse Perry.
—
Isso pode dar confusão.
—
Olhou de
relance na direção dos mergulhadores e os
viu empurrando
-
se.
—
Acho
melhor irmos lá e tentarmos controlá
-
los
—
disse Suzanne.
—
Acho que está certa
—
disse Perry. Mas estava com uma pena
enorme de sair de perto da Luna.
—
Deixe
-
os se divertir
—
disse uma voz atrás de Suzanne.
—
To
dos
estão adoran
do os dois. São muito animados.
—
Virando
-
se, viu o mesmo
homem que lhe havia perguntado se vivia com alguém.
—
Estamos achando que eles estão começando a ficar
descontrolados
—
disse Suzanne.
—
Não queremos abusar de sua
hospitalidade.
—
Deixe o Arak se p
reocupar com o comportamento deles
—
dis
se o
homem.
—
Como pode ver, ele os está incentivando a beber.
—
Notei isso
—
disse Suzanne.
—
Não foi uma boa idéia.
—
Deixe o Arak cuidar disso
—
disse o homem.
—
É função dele
tomar conta dos dois, não sua. Além
disso, gostaria de falar com você em
particular um instante.
—
Gostaria mesmo?
—
disse Suzanne. Ficou confusa diante da
quele
pedido. Lançou novo olhar aos mergulhadores e ficou aliviada ao ver que
haviam parado de bater boca e voltado ao grupo de mulheres
reclinadas.
Suzanne olhou para Perry, imaginando se ele teria escutado o pedido do
homem. E tinha. Perry sorriu maliciosamente e cutucou Suzanne, para
incentivá
-
la.
—
Por que não?
—
sussurrou Perry, aproximando a boca do ouvi
do
dela.
—
Hoje é dia de nos
divertirmos, e a emergência dos mergu
lhadores
já passou, por enquanto.
—
Será só um instante
—
disse o homem.
—
Como assim, "em particular"?
—
indagou Suzanne. Observou as
feições esculturais do estranho e seus olhos líquidos, e sentiu o cora
ção
dar um p
ulo. Jamais havia visto um homem de tamanha beleza clás
sica
assim, nem falado com um.
—
Bom, não é bem em particular
—
disse o homem com um sor
riso
cativante.
—
Achei que podíamos apenas nos afastar alguns passos ou
talvez subir as escadas até a varanda.
Eu só gostaria de falar com você a
sós
um instante.
—
Bom, acho que sim
—
disse Suzanne. Tornou a olhar
para Perry.
—
Vou ficar bem aqui
—
disse Perry
—
, com a Luna. Suzanne se
deixou guiar escada acima.
—
Meu nome é Garona
—
disse o homem enquanto subiam.
—
O meu é Suzane Newell
—
respondeu Suzanne.
—
Já sei
—
disse Garona.
—
Dra. Suzanne Newell, para ser exato.
Atingiram o alto da escadaria, e se recostaram na balaustrada. Lá
embaixo,
o baile era obviamente um sucesso: dava para se ouvirem os risos e as
c
onversas animadas da multidão. A maioria das pessoas estava circulando
em torno da área central da piscina onde os mergulhadores e seu harém
eram o foco das atenções. A multidão era ordeira, educada e respeitosa.
Aqueles mais próximos aos dançarinos estava
m constante
mente deixando
aqueles que estavam na periferia se aproximarem para verem tudo mais
de perto.
—
Obrigado por me conceder este momento
—
disse Garona.
—
Não é justo que monopolize seu tempo.
—
Tudo bem
—
disse Suzanne.
—
É até um alívio me afast
ar e ter
essa visão geral.
—
Precisava lhe dizer que a considero irresistível
—
disse Garona.
Suzanne estudou o rosto bonito de Garona.
Esperava ver ao menos o
vestígio longínquo de um sorriso malicioso. Em vez disso, ele a fitava com
uma intensidade riso
nha e cálida que lhe transmitia uma total sinceridade.
—
Diga isso outra vez
—
disse Suzanne.
—
Eu a acho absolutamente irresistível
—
repetiu Garona.
—
Acha mesmo?
—
perguntou Suzanne. Deu uma risadinha, ner
-
vosa.
—
Verdade
—
garantiu Garona.
Os olhos de
Suzanne voltaram à multidão, para lhe dar uma opor
-
tunidade de digerir aquela confissão inesperada. Hesitou antes de vol
tar a
fitá
-
lo.
—
É muito lisonjeiro, Garona
—
disse ela.
—
Pelo menos, acho que é.
Então, sinto muito se pareço cética, mas com todas e
ssas
mulheres
absolutamente divinas e perfeitas, acho meio difícil crer que esteja
interessado em mim. Quero dizer, conheço minhas limitações. Não sou
páreo para nenhuma dessas mulheres aí em termos de irresistibilidade. O
sorriso de Garona não desapareceu
nem um só instante.
—
Talvez seja difícil para você acreditar
—
disse ele.
—
Mas é ver
-
dade.
—
Bom, então fico sinceramente lisonjeada
—
disse Suzanne.
—
Mas
talvez possa me dizer por que me acha assim tão irresistível.
—
Não é fácil explicar
—
disse Garo
na.
—
Tente, pelo menos
—
insistiu Suzanne.
—
Creio que teria que dizer que envolve sua beleza, ou sua ino
-
cência. Ou talvez seu fascinante primitivismo.
—
Primitivismo?
—
repetiu Suzanne.
—
Foi assim que Arak qua
-
lificou o Richard.
—
Bom, ele também tem i
sso, sem sombra de dúvida
—
disse
Garona.
—
E isso é um elogio, para você?
—
indagou Suzanne.
—
Aqui em Interterra, é
—
disse Garona.
—
O que é Interterra, exatamente?
—
perguntou Suzanne.
—
E há
quanto tempo existe?
Garona sorriu, condescendente, e sacudi
u a cabe
ça.
—
Avisaram
-
me para não responder muitas perguntas que não fos
-
sem as estritamente pessoais, sobre mim mesmo.
Suzanne revirou os olhos.
—
Desculpe
—
disse, com um quê de sarcasmo.
—
Foi mal.
—
Não tem problema.
—
Então tenho que formular umas pe
rguntas pessoais?
—
Se quiser
—
disse Garona.
—
Bom...
—
disse Suzanne enquanto tentava pensar em uma per
-
gunta pessoal.
—
Sempre viveu aqui embaixo?
Garona soltou uma sonora gargalhada, alta o suficiente para atrair a
aten
ção de dois homens que se encontr
avam no andar de baixo. Eles
olharam para cima, acenaram ao reconhecer Garona, e come
çaram a se
encaminhar para as escadas.
—
Desculpe
-
me por ter rido
—
disse
—
, mas sua pergunta mostra
como você é maravilhosamente inocente. É extremamente revigorante.
Ado
raria conhecê
-
la mais a fundo. Quando se cansar da festa e quiser sair,
diga
-
me. Adoraria levá
-
la até o seu quarto. Podemos passar algum tempo
juntos tocando nossas palmas, só você e eu. O que me diz?
A boca de Suzanne foi vagarosamente se abrindo à medida
que o
verdadeiro significado da proposta de Garona ia ficando claro para ela.
Riu, zombeteira.
—
Garona, não acredito
—
disse.
—
Há pouquíssimo tempo esti
ve a
ponto de morrer. Agora estou na terra da fantasia com um cara lindo de
morrer me cantando e que
rendo ir ao meu quarto. O que devo responder?
—
Responda apenas que sim
—
sugeriu Garona.
—
Acho que estou atordoada demais para responder assim de ime
-
diato.
—
Posso perceber isso
—
disse Garona.
—
Mas posso animá
-
la e
ajudá
-
la a relaxar.
Suzanne sacudiu
a cabe
ça.
—
Acho que não pode entender. Estou com dificuldade de tomar a
decisão correta.
—
Você me excita
—
disse Garona.
—
Você me encanta. Quero ficar
ao seu lado.
—
Olha, vou lhe dar nota dez em persistência, viu
—
disse Suzanne.
—
Vamos conversar mais
tarde
—
disse Garona.
—
Aí vêm dois
amigos meus.
Suzanne virou
-
se para ver os dois homens que haviam se alertado
com a risada de Garona subirem o último degrau da escadaria prin
cipal e
se aproximarem. Não pôde deixar de observar que eram tão atraentes
qu
anto Garona. Vinham de braços dados, como dois na
morados.
—
Bem
-
vindos, Tarla e Reesta
—
disse Garona.
—
Já conheceram nossa hóspede de
honra, a Dra. Suzanne Newell?
—
Ainda não
—
disseram os dois em uníssono.
—
Estávamos
aguardando o momento de termos essa
honra.
—
Ambos fizeram uma
elegante reverência.
Suzanne obrigou
-
se a sorrir. Tudo aquilo era encantadoramente es
-
tranho ao extremo. Ela sentia que s
ó podia ser tudo um sonho.
Richard sabia que estava embriagado, mas certamente já havia
enchido mais a cara
antes. A embriaguez dele não parecia afastar
nenhuma das mulheres que ainda o cercavam. Ele via que os rostos das
mulheres mudavam enquanto dançava, o que significava que havia
alguma espé
cie de revezamento, mas aquilo não importava, uma vez que
eram to
das tão bonitas.
Sem querer, deu um encontrão em Michael, com força suficiente
para que ambos perdessem o equilíbrio. Caíram ao chão, desengonça
dos
demais para se machucar. Quando viram o que havia ocorrido, ri
ram com
tanta força que saíram lágrimas dos
seus olhos.
—
Que festança!
—
gritou Michael quando se recuperou o sufi
ciente
para falar. Enxugou os olhos com as costas da mão.
—
Ninguém vai acreditar em nós quando voltarmos para casa
—
disse Richard.
—
Principalmente quando contarmos que todas as garo
tas,
sem exceção, estão disponíveis. Quero dizer, é melzinho na chupeta, uma
coisa irreal.
—
Os caras daqui nem se importam
—
disse Michael.
—
Ei, olha só
aquela garota ali.
—
Qual?
—
indagou Richard. Rolando sobre si mesmo, tentou
seguir a linha de visão
de Michael através da multidão que se movi
-
mentava. Os olhos dele finalmente encontraram uma ruiva escultural que
andava de braço dado com um rapaz.
—
Uau
—
exclamou.
—
Eu a vi primeiro
—
disse Michael.
—
Sim, mas eu é que vou
ganhar essa parada.
—
Nem pen
sar.
—
Vá se foder
—
disse Richard, enquanto se punha de pé. Michael,
esticando
-
se todo, agarrou uma das pernas de Richard e o
derrubou. Ele caiu de cabeça e deslizou até a beirada da plataforma,
batendo com a testa no chão. Não se feriu, mas ficou uma fer
a, princi
-
palmente quando Michael tentou passar por ele para chegar até a garota.
Richard conseguiu enfiar o pé no caminho de Michael e derrubá
-
lo.
Quando Michael estava tentando se levantar, Richard se atirou em cima
dele. Depois agarrou a frente da túnic
a do amigo e deu
-
lhe um murro no
nariz.
Aquela violência súbita fez os convidados recuarem assustados.
Ouviu
-
se um ofegar coletivo quando o nariz de Michael começou a
sangrar.
Michael empurrou Richard, tirando
-
o de cima de si, e conseguiu se
ajoelhar. Rich
ard tentou fazer o mesmo, mas Michael deu
-
lhe um mur
ro
na lateral da cabe
ça, fazendo
-
o estatelar
-
se no chão.
—
Anda, seu safado!
—
provocou Michael.
—
Levante
-
se e lute.
—
O sangue lhe escorria pela frente do queixo e pingava no chão. Os
cilou,
apoiando
-
s
e ora num pé, ora noutro.
Richard conseguiu ficar de quatro. Olhou para Michael.
—
Você está morto
—
grunhiu.
—
Anda logo, bobalhão!
—
respondeu Michael.
Richard fez força para ficar de pé, mas também não conseguia se
equilibrar direito.
Arak, que estava a
uma certa distância dos mergulhadores quando
começou a briga entre os dois, abriu caminho através da multidão pe
-
trificada e muda. Colocou
-
se entre os dois mergulhadores bêbados.
—
Por favor
—
disse.
—
Seja lá qual for o problema, podemos
resolvê
-
lo.
—
Sa
ia da minha frente
—
replicou Richard. Empurrou Arak para o
lado e preparou
-
se para golpear a cabeça de Michael. Michael esquivou
-
se,
mas perdeu o equilíbrio ao fazê
-
lo, e caiu. Richard perdeu o equilíbrio
quando errou o golpe.
—
Clones operários, contenha
m os convidados!
—
ordenou Arak.
Richard e Michael conseguiram se erguer e trocar mais diversos
golpes ineficazes antes que dois clones operários masculinos
avantajados
interviessem. Cada um agarrou um mergulhador, aplicando
-
lhe um abraço de urso. Richard
e Michael continuaram tentando atingir
-
se
mutuamente até serem afastados um do outro mais ou menos dois metros.
Nesse momento Perry abriu caminho na multidão.
—
Será que vocês dois se esqueceram de onde estão, seus idiotas?
—
ralhou Perry.
—
Pelo amor de D
eus, não briguem! O que há com vocês?
—
Foi ele quem começou
—
disse Richard.
—
Não, foi ele
—
disse Michael.
—
Não, foi ele.
—
Não, foi ele.
Antes que Perry pudesse reagir a essa troca de acusações infantil, os
mergulhadores de repente desataram a rir. Ca
da vez que tentavam olhar
um para o outro, davam gargalhadas mais fortes. Logo, todos, menos
Perry e os clones operários, estavam rindo também. Ao comando de Arak,
os clones operários os soltaram, e os mergulhadores imediatamente se
cumprimentaram, como se
nada houvesse acontecido.
—
Mas qual foi o motivo da briga?
—
indagou Arak a Perry.
—
Cristal demais
—
explicou Perry.
—
Talvez devamos lhes dar uma bebida menos forte
—
disse Arak.
—
Ou isso, ou então, não lhes sirva mais nada
—
sugeriu Perry.
—
Mas não
quero estragar a festa
—
disse Arak.
—
Todos estão
adorando os dois.
—
A festa é sua
—
disse Perry.
Richard e Michael começaram a voltar para a plataforma.
—
Já sei o que vou fazer
—
murmurou Richard a Michael.
—
Vamos
decidir isso tirando a sorte. Vou dis
putar a ruiva com você.
—
Tudo
bem
—
concordou Michael.
—
Escolha
—
disse Richard.
—
Par ou ímpar?
—
Par
—
escolheu Michael.
Depois de contar até três, ambos mostraram um único dedo.
Michael sorriu de satisfação.
—
Muito justo!
—
exclamou.
—
Merda!
—
lament
ou
-
se Richard.
—
E agora, onde está ela?
—
indagou Michael. Os dois mergulha
-
dores esquadrinharam a multidão.
—
Está ali
—
disse Richard. Apontou
-
a.
—
E ainda com aquele
veadinho a tiracolo.
—
Volto num instante
—
disse Michael. Foi direto até a mulher que
observou estar vendo sua aproximação com grande interesse.
—
Oi, amoreco
—
cumprimentou Michael, evitando olhar nos olhos
do pré
-
adolescente que a acompanhava.
—
Meu nome é Michael.
—
Meu nome é Mura. Está machucado?
—
Ah, puxa, não
—
disse Michael.
—
Um
soquinho no nariz não
machuca o velho Michael. De jeito nenhum.
—
Não estamos acostumados a ver sangue
—
explicou Mura.
—
Escute!
—
disse Michael.
—
Que tal vir esfregar sua palma con
tra
a minha? O nosso grupinho está ali perto da piscina.
—
Adoraria toca
r sua palma
—
disse Mura.
—
Mas, primeiro,
permite que eu lhe apresente o Sart?
—
Ah, sim, como vai, Sart
—
disse Michael, indiferente.
—
Sua mãe
é muito bonita, mas por que não vai procurar uns amigos para brincar?
Tanto Mura quanto Sart soltaram risadinh
as. Michael n
ão gostou.
—
O que eu disse foi engraçado, é?
—
indagou, irritado.
—
Inesperado seria uma palavra melhor
—
conseguiu dizer Mura.
Michael tocou o braço de Mura.
—
Venha, meu bem.
—
E disse ao jovem:
—
Até já, Sart.
De braço
dado com Mura, Micha
el voltou todo empertigado, osci
lando um pouco,
involuntariamente, até onde estava Richard. Richard havia escolhido duas
mulheres que estavam demonstrando sua afeição por ele de forma
particularmente intensa. Apresentou
-
as como Meeta e Palenque. Uma era
l
oura, a outra morena, e ambas incrivelmente vo
luptuosas.
—
Richie, esta aqui é a Mura
—
disse Michael, orgulhoso. Richard
fingiu não notar a incrível ruiva. Em vez disso, apontou
para algo atrás de Michael, e perguntou quem era o pré
-
adolescente.
Michael
olhou para trás e irritou
-
se ao ver que o garoto os havia seguido.
—
Dê o fora, rapaz
—
dispensou
-
o Michael, de um jeito brusco.
Mura ignorou Michael e incentivou Sart a avançar. Apresentou
-
o a
Richard.
—
Prazer em conhecê
-
lo, hein, Sart
—
disse Richard.
—
Você,
também, Mura. Por que não se sentam?
—
Com todo o prazer
—
disse Mura.
—
Sem dúvida
—
disse Sart.
Michael revirou os olhos, numa irritação frustrada, enquanto
Richard conseguia passar
-
lhe à frente. Por um momento, pensou em dar
-
lhe um murro ali mesm
o.
—
Ei, você também, Mikey
—
provocou Richard.
—
Vamos, amigão,
sente
-
se e relaxe! Vai te fazer bem. Afinal, somos todos uma grande e feliz
família.
Esse comentário ocasionou risadinhas de todos os interterráqueos
que podiam escutá
-
lo, o que aumentou aind
a mais o constrangimento de
Michael. Ele enfiou a viola no saco e se sentou.
—
Ouça, Mikey
—
continuou Richard.
—
Essa minha linda caixinha
de surpresas, a Meeta, acabou de me dizer uma coisa interes
sante. Todos
gostam de nadar em Interterra.
—
Não brinca
—
disse Michael, animando
-
se.
—
Mencionou que
somos profissionais?
—
Claro
—
disse Richard.
—
Mas não sei bem se
entenderam o que eu disse. Parece que a idéia de trabalho não é lá uma
coisa muito familiar para eles.
—
Se trabalham nadando, então gostam de
nadar?
—
indagou
Meeta.
—
Claro que gostamos de nadar
—
disse Michael.
—
Bom, então por que todos nós não damos um mergulho?
—
sugeriu Meeta.
—
Por que não?
—
concordou Mura.
—
Vocês estão precisando se
refrescar um pouco.
—
Acho uma idéia maravilhosa
—
di
sse Sart. Richard olhou a
convidativa piscina verde
-
azulada.
—
Estão querendo nadar aqui, agora?
—
indagou.
—
E que momento seria melhor?
—
disse Palenque.
—
Estamos
todos com tanto calor, tão suados...
—
Mas e as roupas?
—
perguntou Richard.
—
Vamos ficar
encharcados.
—
Não usamos roupas quando nadamos
—
disse Meeta. Richard
olhou para Michael.
—
Esse lugar aqui está ficando cada vez melhor
—
observou.
—
E aí?
—
perguntou Meeta.
—
O que dizem os nadadores pro
-
fissionais?
Richard engoliu em seco. Ficou com
medo de dizer alguma coisa
para n
ão acordar.
—
Digo que aceitamos
—
gritou Michael.
—
Maravilha!
—
exclamou Meeta. Ela ficou de pé de um salto e
ajudou Palenque a se erguer. Sart se levantou e ajudou Mura. Num pis
car
de olhos os interterráqueos tiraram as
túnicas e as bermudas sem a menor
vergonha. Em todo o esplendor de sua majestosa nudez, todos
mergulharam perfeitamente na água e nadaram até o meio da piscina com
braçadas experientes e vigorosas.Richard e Michael ficaram embasbacados
demais durante um m
i
nuto para segui
-
los. Em vez disso lançaram olhares
de relance às pessoas que se encontravam por perto. Ficaram mais
surpresos ainda quando viram que a cena chamara a atenção apenas de
Perry. Depois Richard e Michael se entreolharam.
—
Mas que raio estamo
s esperando?
—
indagou Richard enquan
to
dava um sorriso de bêbado.
Apressados, os dois mergulhadores, desajeitados, livraram
-
se das
rou
pas. Ao mesmo tempo, saíram em disparada na direção da piscina.
Michael teve dificuldade em tirar a bermuda, e acabou t
ropeçando.
Richard saiu
-
se melhor e logo estava nadando para a parte rasa no centro
da piscina.
Ao chegar Richard foi literalmente atacado por Meeta e Palenque
que, de brincadeira, deram
-
lhe uma série de caldos. Richard aceitou o
assédio das duas belas mul
heres despidas com grande prazer, mas logo
perdeu o fôlego. Quando Michael chegou e começou uma brincadeira
semelhante com Mura, uma vez que Sart e Palenque haviam nadado para
o outro lado da piscina, Richard conformou
-
se em ficar relaxando em um
local ond
e ele e Meeta podiam ficar sentados com as cabeças fora da água.
—
Richard, Richard, Richard
—
gritava Meeta, alegremente, en
-
quanto pressionava a palma da mão seguidamente contra a dele e lhe
acariciava a cabeça.
—
Você é o visitante mais primitivamente a
traente
que jamais tivemos em Saranta. Talvez em toda a Interterra, há pelo
menos vários milhares de anos.
—
Achei que só a minha mãe gostava de mim
—
disse Richard, de
brincadeira.
—
Você conheceu sua mãe?
—
indagou Meeta.
—
Que esquisito.
—
É claro que c
onheci minha mãe
—
disse Richard.
—
Você não
conhece a sua?
—
Não
—
disse Meeta, rindo.
—
Ninguém em Interterra conhece sua
mãe. Mas não vamos falar disso. Em vez disso, por que não me leva para
seu quarto?
—
Bom, essa aí já é uma excelente idéia
—
disse Ri
chard.
—
Mas e a sua amiga Palenque? O que diremos a ela?
—
O que queira
—
disse Meeta, desinteressada.
—
Mas é mais fácil
simplesmente convidá
-
la. Tenho certeza de que aceitará vir conosco. E
Karena. Sei que ela também está com vontade de ir.
Richard tent
ou parecer indiferente, mas apesar disso sua surpresa
diante da sua boa sorte inesperada foi evidente. Ao mesmo tempo, diante
dessa reviravolta favor
ável, desejou não ter bebido tanto.
Foi um grupo barulhento que partiu do pavilhão para o refeitório.
Suza
nne, Perry e os mergulhadores cantavam músicas antigas dos Beades
a plenos pulmões para entreter os acompanhantes, os quais,
surpreendentemente, sabiam a letra. Suzanne caminhava ao lado de
Garona, Perry ia com Luna, Richard com Meeta, Palenque e Karena, e
Michael com Mura e Sart.
Embora Suzanne e Perry houvessem evitado beber muito, o que
beberam havia lhes subido às cabeças. Estavam longe de terem se em
-
briagado como Richard e Michael, mas ambos reconheciam que esta
vam
de pileque. Também estavam se diver
tindo a valer.
Arak havia se despedido deles quando o baile acabou, e prometeu
encontrá
-
los pela manhã. Havia lhes desejado um repouso agradável, e
agradecido a eles por comparecerem à comemoração.
—
Ei
—
gritou Richard quando terminaram de cantar sua vers
ão de
Come Together.
—
Vocês não conhecem alguma música aqui da sua terra?
—
É claro
—
disse Meeta. Imediatamente os interterráqueos co
-
meçaram a cantar, e embora as palavras fossem em inglês, o ritmo era tão
irregular quanto o da música do baile.
—
Chega!
—
gritou Richard.
—
Isso é esquisito demais. Vamos
cantar Beatles de novo.
—
Richard, sejamos justos
—
disse Suzanne.
—
Não tem problema
—
disse Meeta.
—
Preferimos cantar as can
-
ções do seu povo.
—
Michael! Que diabo está fazendo com as taças?
—
indagou R
ichard quando viu que o parceiro estava trazendo várias taças
vazias.
—
Pedi ao Arak
—
disse Michael.
—
Ele me disse que podia ficar
com elas. São de ouro. Aposto que tenho aqui dinheiro suficiente para dar
entrada em uma picape nova.
Richard inclinou
-
se e
arrancou uma das ta
ças das mãos do outro.
—
Ei, me devolve isso aí!
—
exigiu Michael. Richard riu.
—
Segura aí. Eu vou arremessar!
Michael entregou o restante das taças a Mura. Depois cambaleou
para tentar pegar a taça que ia ser lançada. Richard arremess
ou
-
a como se
fosse uma bola de futebol americano, e ela caiu girando nas mãos de
Michael. Todos aplaudiram. Michael curvou
-
se, agradecendo, perdeu o
equilíbrio e caiu. Todos riram e aplaudiram ainda mais.
—
Temos bichos que brincam disso
—
disse Mura.
—
Eu
vi alguns bichos de estimação quando viemos para os aloja
-
mentos
—
disse Suzanne.
—
Eles pareciam misturas de várias criaturas.
—
E são
—
disse Mura.
—
Vocês praticam esportes aqui?
—
indagou Richard. Michael
voltou e pegou o restante das taças.
—
Não, nã
o temos esportes
—
disse Meeta.
—
Exceto os jogos
mentais, coisas assim.
—
Não, nada disso!
—
disse Richard.
—
Eu me referia a jogos como
o hóquei e o futebol americano.
—
Não
—
disse Meeta.
—
Não temos competições físicas.
—
Por que não?
—
indagou Richard
.
—
Porque não é necessário
—
disse Meeta.
—
E fazem mal à saúde.
Richard lançou um rápido olhar a Michael.
—
Não admira que os homens sejam assim efeminados
—
disse.
Michael concordou.
—
Que tal a gente levar
Lucy in the Sky with Diamonds?
—
sugeriu
Suzan
ne.
—
Parece bem apropriada.Alguns minutos depois, ainda
cantando o refrão, o grupo entrou cambaleando no refeitório. Estava
escuro, porém os interterráqueos de alguma forma acenderam as luzes.
Perry estava para perguntar como faziam aquilo quando notou Do
nald. O
ex
-
oficial da Marinha estava sentado no escuro, totalmente mudo. O rosto
estava tão severo quanto estivera quando o grupo partiu para a
comemoração.
—
Meu Deus
—
disse Richard.
—
O Sr. Caxias está exatamente onde
estava quando saímos.
Michael orgul
hosamente depositou seu tesouro de ta
ças de ouro
sobre a mesa, com estardalhaço.
Richard jogou
-
se num assento diante de Donald à mesa. Arrastou
consigo as três mulheres, como troféus.
—
Então, almirante Fuller
—
disse, num tom zombeteiro enquanto o
saudava
de um jeito cômico.
—
Acho que pela nossa companhia e pelos
despojos pode ver que marcou bobeira.
—
Tenho certeza que sim
—
disse Donald, sarcástico.
—
Não faz idéia de como foi incrível, seu espertalhão
—
disse
Richard.
—
Está bêbado, marujo
—
disse Dona
ld, desdenhoso.
—
Felizmente
alguns de nós tiveram autocontrole suficiente para não perder o juízo.
—
Sim, bom, então vou lhe dizer o que há de errado com você
—
disse Richard, apontando um dedo oscilante para o rosto de Donald.
—
Você ainda pensa que está
naquela porcaria daquela marinha. Deixa eu
lhe dizer só uma coisinha. Você já saiu.
—
Você não só é burro
—
sibilou Donald
—
como também é nojento.
Richard perdeu as estribeiras. Empurrou as mulheres para um lado
e se jogou sobre a mesa de mármore, pegand
o Donald de surpresa. Apesar
da embriaguez, Richard conseguiu subir em cima de Donald e lhe apli
car
alguns murros ineficazes no lado da cabeça.
Donald reagiu prendendo Richard com um abra
ço de urso. Assim
imobilizados, naquele violento abraço, ambos rolar
am da espreguiçadei
ra
onde Donald se encontrava sentado, mas mesmo assim acertaram
-
se
mutuamente com socos curtos. Conseguiram ir parar em cima da mesa, o
que fez a cole
ção de taças de Michael cair no chão com grande barulho. Os
interterráqueos recuaram, a
medrontados, enquanto Suzanne e Perry
intervinham. Não foi fácil, mas conseguiram finalmente separar os dois
homens. Dessa vez foi o nariz de Richard que sangrou.
—
Seu miserável
—
exclamou Richard ao tocar o nariz e olhar o
sangue.
—
Sorte sua seus amigos
estarem aqui
—
disse
-
lhe Donald.
—
Eu
podia ter matado você.
—
Já basta
—
disse Perry.
—
Nada mais de provocações ou brigas.
Isso é ridículo. Estão ambos agindo como crianças.
—
Idiota!
—
acrescentou Donald. Empurrou os braços de Perry, que
o continham, e
ajeitou a túnica de cetim.
—
Escroto!
—
xingou Richard. Ele se afastou de Suzanne e virou
-
se
para suas três amigas.
—
Vamos para o meu quarto onde não vou precisar
ficar olhando a cara feia desse palerma.
Richard cambaleou até as mulheres, mas elas recuar
am. Depois, sem
dizerem mais nada, fugiram pela extremidade aberta da sala e sumiram
na noite. Richard as perseguiu, mas parou na beira do gramado. As
mulheres já iam a meio caminho do pavilhão.
—
Ei!
—
berrou Richard, colocando as mãos em concha ao redor
da
boca.
—
Voltem aqui! Meeta...
—
Acho que já é hora de ir para a cama
—
gritou Suzanne para
ele.
—
Já causou bastante confusão numa noite só.
Richard virou
-
se para o interior da sala, decepcionado e furioso. Deu
uma violenta palmada no tampo da mesa, for
te o suficiente para fazer
todos que ali estavam pularem.
—
Merda!
—
berrou, para todos ouvirem.
Quando Perry empurrou a porta de seu chalé com a mão trêmula,
que fez o possível para disfarçar, deixou Luna entrar antes dele. Já fazia
muito
tempo que ele f
icava assim a
sós
com uma mulher. Não fazia idéia
se seu nervosismo vinha do sentimento de culpa por estar traindo a
esposa ou por reconhecer que Luna era jovem demais para ele. Ainda por
cima, estava meio de pileque, mas ainda mais embriagante que o crist
al
era o fato de que uma jovem absolutamente deslumbrante o havia achado
atraente.
Enquanto lutava para esconder seu nervosismo, foi sensível o sufi
-
ciente para notar que a própria Luna também estava inquieta.
—
Posso lhe servir alguma coisa?
—
indagou Per
ry.
—
Disseram
-
me
que tenho comida e bebida à minha disposição aqui no quarto.
—
Ficou
olhando enquanto a moça ia até a piscina e se curvava para veri
ficar a
temperatura da água.
—
Não, obrigada
—
disse Luna. Depois começou a perambular pelo
recinto.
—
Vo
cê parece estar preocupada
—
disse Perry. Por falta de algo
melhor a fazer, foi até a cama e se sentou.
—
E estou
—
admitiu Luna.
—
Nunca vi uma pessoa agir como o
Richard.
—
Ele não é o nosso embaixador ideal
—
disse Perry.
—
Há muitas pessoas como ele lá
no seu mundo?
—
indagou Luna.
—
Infelizmente, este tipo não é incomum
—
disse Perry.
—
Em geral,
na família deles, a violência passa de geração para geração.
Luna sacudiu a cabe
ça.
—
E de onde vem o motivo para tanta violência?
Perry coçou a cabeça. Não q
ueria começar uma conversa sociológi
ca
nem se sentia capaz disso no momento. Ao mesmo tempo sentia que
precisava dizer algo. Luna o olhava, na expectativa da resposta.
—
Bom, vamos ver
—
disse.
—
Não venho pensando muito nis
so,
mas em nossa sociedade há
muitas pessoas descontentes por terem
expectativas altas demais e uma sensação de que têm direito a tudo.
Poucas são as pessoas realmente satisfeitas.
—
Não entendi
—
disse Luna.
—
Deixe
-
me dar
-
lhe um exemplo
—
continuou Perry.
—
Se al
guém compra um Ford E
xplorer, não demora
muito vê uma propagan
da de um Lincoln Navigator, que faz o Explorer
parecer a coisa mais feia do mundo.
—
Não sei o que são essas coisas.
—
São só coisas. E estamos condicionados através de uma propa
-
ganda infindável a sentir que nunca
temos as coisas certas.
—
Não entendo esse tipo de cobiça. Não temos nada parecido aqui
em Interterra.
—
Bom, então fica mais difícil de explicar
—
disse Perry.
—
Mas, de
qualquer forma, temos lá em cima muita insatisfação que se mani
festa
especialmente
nas famílias pobres, que têm menos coisas que to
das as
outras, e dentro das famílias as pessoas tendem a descontar umas nas
outras.
—
Isso é triste
—
disse Luna.
—
E assustador.
—
Pode ser
—
concordou Perry.
—
Mas somos condicionados a não
pensar nisso po
rque é isso que impulsiona a nossa economia.
—
Parece estranho ter uma sociedade que incentiva a violência
—
disse Luna.
—
A violência é chocante para nós porque nunca tivemos
nada disso aqui em Interterra.
—
Nunca?
—
indagou Perry.
—
Não, nunca
—
disse Lu
na.
—
Jamais vi ninguém bater em nin
-
guém. Isso me dá fraqueza.
—
Então por que não se senta?
—
convidou Perry. Bateu levemen
te
com a palma da mão sobre a cama ao seu lado, sentindo
-
se
constrangedoramente
óbvio. Mas Luna se aproximou e se sentou ao lado
d
ele.
—
Não está se sentindo zonza, está?
—
indagou Perry, tentando
conversar agora que ela estava tão próxima.
—
Quero dizer, não vai
desmaiar, ou coisa assim.
—
Não, estou bem.
Perry olhou os olhos azuis claros de Luna. Par um momento, ficou
mudo. Quando
conseguiu falar, disse:
—
Sabe, você
é
muito jovem.
—
Jovem? O que tem isso?
—
Bom...
—
disse Perry, escolhendo as palavras. Não sabia bem se
estava se referindo à reação dela a Richard ou à reação dele, Perry, a
Luna.
—
Quando se é jovem, não se tem a expe
riência de quando se é
mais velho. Talvez não tenha ainda tido tempo para presenciar cenas de
vio
lência.
—
Olha, não há violência aqui
—
disse Luna.
—
Resolvemos que não
haveria. Além disso, não sou tão jovem quanto provavelmente ima
gina.
Que idade acha
que tenho?
—
Sei lá
—
gaguejou Perry.
—
Mais ou menos vinte anos.
—
Agora você parece aflito.
—
Acho que estou mesmo um pouco
—
admitiu Perry.
—
Você
poderia ser minha filha.
Luna sorriu.
—
Posso lhe garantir que tenho mais de vinte. Isso o faz se sentir
m
elhor?
—
Um pouco
—
admitiu Perry.
—
Aliás, não sei por que estou tão
nervoso. Tudo aqui é ótimo, mas mesmo assim um tanto enervante.
—
Entendo
—
disse Luna. Sorriu novamente e ergueu as palmas
para tocar as dele.
Constrangido, Perry colocou suas m
ãos cont
ra as dela.
—
Por que estamos fazendo assim com as mãos?
—
indagou.
—
É só o jeito como mostramos amor e respeito. Não gostou?
—
Para mostrar amor, eu prefiro beijos
—
disse Perry.
—
Como Richard estava fazendo esta noite?
—
De um jeito um pouco mais íntim
o do que Richard
—
disse Perry.
—
Mostre
-
me como é
—
pediu Luna.
Perry inspirou, inclinou
-
se e beijou Luna de leve nos lábios. Quan
do
se afastou, Luna reagiu tocando os lábios de leve com as pontinhas dos
dedos, como que deslumbrada pela sensação.
—
Não go
stou?
—
indagou
Perry. Luna sacudiu a cabeça.
—
Não é isso, é que meus dedos e minhas mãos são mais sensíveis
que meus lábios. Mas mostre
-
me mais.
Perry engoliu em seco, nervoso.
—
Está falando sério?
—
Estou sim
—
disse Luna. Aproximou
-
se mais dele e olho
u
-
o com
uma expressão sonhadora.
—
Eu o acho muito encantador, senhor
presidente da Benthic Marine.
Perry envolveu
-
a com os braços e a puxou para sobre a colcha de
caxemira branca.
Michael estava no sétimo céu. Mura era a mulher dos seus sonhos.
Não podia
ser melhor. Ele nem mesmo se importou com a contínua
presen
ça de Sart. O garoto estava na piscina, deixando
-
o entreter
-
se com
Mura à vontade.
Exatamente quando Michael estava para desmaiar de tanto êxtase,
foi interrompido por uma batida à porta. Tentou
ignorá
-
la, mas final
mente
foi cambaleando até a entrada, nu em pêlo. Sentia
-
se mais em
briagado
ainda quando se erguia.
—
Quem é o infeliz que está aí?
—
berrou.
—
Sou eu, seu amigo Richard. Michael abriu a porta.
—
Que é que está pegando?
—
Nada
—
disse
Richard. Tentou olhar atrás de Michael.
—
Só achei
que talvez você precisasse de uma mãozinha, se é que entendeu do que
estou falando.
O cérebro embotado de Michael levou alguns segundos para en
-
tender a insinuação de Richard. Olhou de relance para Mura na
cama
redonda, depois para Richard.
—
Está brincando?
—
indagou Michael.
—
Não
—
disse Richard. Deu um sorriso safado.
—
Mura
—
disse
Michael
—
, importa
-
se se Richard entrar e ficar com a gente?
—
Só se ele prometer que vai se comportar
—
respondeu Mura.
Mi
chael voltou a fitar Richard com uma expressão de surpresa exa
gerada.
—
Você ouviu a moça
—
disse com um sorriso malicioso. Abriu
mais a porta e deixou Richard entrar no quarto. Quando os dois ho
mens
se aproximaram da cama, Mura estendeu ambas as mãos.
—
Venham, seus dois primitivos!
—
disse.
—
Adoraria pressionar
minhas palmas contra as de vocês.
Os dois mergulhadores trocaram um olhar de desconfiança com
-
preensiva, antes de Michael subir outra vez à cama e Richard arrancar de
qualquer jeito as roupas de
cetim que vestia. Ao se acomodar junto a Mura,
ele disse:
—
Vocês gostam muito de amor livre, hein?
—
É verdade
—
disse Mura.
—
Temos muito amor para dar. É a
nossa riqueza.
Pouco depois, os dois mergulhadores bêbados estavam
desfalecendo
de prazer nos br
aços de Mura. Não era o sexo propriamente dito, uma vez
que dopados como estavam nenhum deles era capaz de consu
mar o ato,
mas mesmo assim não podiam estar mais satisfeitos.
Sart havia observado a chegada de Richard de onde estava, do ou
tro
lado da pisci
na. Sentia
-
se ao mesmo tempo atraído e repelido por Richard.
Mas estava acima de tudo curioso. Depois de se cansar de na
dar, saiu da
água, secou
-
se, depois foi até o trio em êxtase. Mura sorriu para ele.
Estava com os braços em torno de ambos os mergulhad
ores, que haviam
caído num sono profundo.
Mura fez sinal para que Sart se sentasse na cama. Antes acariciava
de leve as costas de ambos os mergulhadores, mas depois deixou Sart
acariciar Richard. Isso permitia que ela se concentrasse em Michael.
Inicialmen
te, Sart só acariciou as costas de Richard, como Mura fize
-
ra antes, mas, cansando
-
se disso, começou a improvisar. Primeiro
esfregou
o braço e o ombro expostos de Richard. A pele de Richard
pareceu
-
lhe estranha a ponto de ser intrigante. Não era tão firme
quanto a
dos interterráqueos, e tinha muitas curiosas imperfeições minúsculas. Sart
transferiu suas atenções para a cabeça de Richard, onde havia notado um
desbotamento pequeno, de contornos indefinidos, de um vermelho
-
azulado, onde nasciam os cabelos, aci
ma da orelha. Quando Sart se incli
-
nou para examinar essa mancha mais de perto, tocando
-
a
intencionalmente com a ponta do dedo, os olhos de Richard se abriram de
repente.
Sart sorriu para ele com ar sonhador e voltou a acarici
á
-
lo com ter
-
nura.
—
Mas que m
erda é essa!?
—
berrou Richard. Deu um tabefe na mão
de Sart, para afastá
-
la. Cambaleante da bebedeira, pulou da cama.
Sart também ficou de pé. Imaginou se a tal marca acima da orelha de
Richard não estaria excessivamente sensível. Talvez não devesse tê
-
la
tocado.
O movimento súbito de Richard foi suficiente para acordar Michael.
Sonolento e atordoado, ele se sentou apesar do braço de Mura, que lhe
restringia os movimentos. Viu Richard cambalear ao lado da cama, fu
-
zilando Sart com o olhar. Sart parecia um
tanto culpado.
—
Que foi, Richie?
—
indagou Michael com uma voz pastosa e
áspera.
Richard não respondeu. Em vez disso, passou a mão sobre a cabeça
enquanto continuava a fitar Sart com um ódio mortal.
—
Que houve, Sart?
—
indagou Mura.
—
Toquei na mancha de
Richard
—
explicou Sart.
—
Aquela aci
ma
da orelha. Não devia ter feito isso.
—
Michael, venha cá!
—
ordenou Richard, ríspido. Com um ges
to,
chamou Michael, para que se afastasse da cama, enquanto andava trôpego
na direção da piscina.
Michael ficou de pé
, sentindo
-
se zonzo daquela soneca breve.
Seguiu Richard. Os dois homens cambalearam para onde não podiam ser
ouvi
dos. Michael sabia que Richard estava extremamente transtornado.
—
O que está havendo?
—
indagou Michael, baixinho. Richard passou as
costas d
a mão na boca. Ainda estava fuzilando
Sart com o olhar.
—
Acho que já entendi por que
esses
caras nem se importam com as
mulheres deles
—
respondeu Richard, também sussurrando.
—
Por quê?
—
indagou Michael.
—
Acho que são todos um bando de veados.
—
No dur
o?
—
Michael voltou a olhar para Sart. Essa possibilida
de
havia lhe passado pela cabeça na festa, ao ver tantos homens andan
do de
um lado para outro de braços dados, mas depois, em meio à empolgação
geral, até se esqueceu.
—
É, e vou te contar mais uma c
oisa
—
disse Richard.
—
Aquele
esquisitinho daquele veadinho ali andou massageando as minhas costas e
a minha cabeça. E eu o tempo todo pensando que era a mulher.
Michael riu, apesar do evidente rancor de Richard.
—
Não tem graça
—
disse Richard rispidamen
te.
—
Aposto que o Mazzola ia achar uma graça danada
—
disse
Michael.
—
Se contar isso ao Mazzola, eu te mato
—
disse Richard, entre os
dentes.
—
Você e mais dez outros
—
zombou Michael.
—
Mas, enquanto
isso não acontece, o que pretende fazer?
—
Acho que d
evíamos mostrar a
esse
veadinho o que achamos dessa
raça
—
disse Richard.
—
O cara passou as mãos em mim de cima até
embaixo, porra. Eu não vou deixar essa passar sem um troco. Acho que
não devemos deixar nenhuma dessas pessoas aqui se iludir sobre os
noss
os métodos de persuasão.
—
Tá legal
—
disse Michael.
—
Estou dentro. O que está tramando?
—
Primeiro, dá um jeito de tirar a garota daqui
—
disse Richard.
—
Ah, essa não! A gente precisa mesmo fazer isso?
—
Mas sem sombra de dúvida
—
disse Richard, impacie
nte.
—
E
pára com essa cara de contrariado. Pode lhe dizer que volte amanhã. O
importante é dar a
esse
camaradinha uma lição, e não queremos nenhu
ma
testemunha. Ela vai berrar feito bezerro desmamado, e a gente vai acabar
encarando dois daqueles clones op
erários.
—
Está bem
—
disse Michael. Respirou fundo para tomar cora
gem e
voltou à cama.
—
O Richard está bem?
—
perguntou Mura.
—
Está ótimo
—
disse Michael.
—
Mas cansado. Aliás, estamos
ambos cansados. Talvez exaustos seja uma palavra melhor. Além disso
,
estamos de cara cheia, como sem dúvida já deve ter notado.
—
Isso não me incomoda
—
disse Mura.
—
Me diverti à beça.
—
Que bom
—
disse Michael.
—
Mas agora estamos querendo te
perguntar se dá para continuar a pressionar palmas amanhã. Quero di
zer,
talve
z seja hora de você se retirar.
—
Mas claro
—
disse Mura, sem hesitar. Imediatamente saiu de
cima da cama e começou a se vestir. Sart também.
—
Não quero que me entenda mal
—
disse Michael.
—
Gostaria que
voltasse amanhã.
—
Entendo que estejam cansados
—
d
isse Mura, afável.
—
Não se
preocupem. Vocês são nossos visitantes, e voltarei amanhã, se for
esse
seu
desejo.
Sart atou o cordão em torno da cintura e voltou a olhar para Richard,
que não havia saído de onde estava, a meio caminho da bei
ra da piscina.
—
Sart
—
disse Michael, seguindo a linha de visão do garoto.
—
Por
que não fica mais um pouco? Richard quer lhe pedir desculpas por
amedrontá
-
lo quando pulou da cama daquele jeito.
Sart olhou para Mura. Ela deu de ombros.
—
Você é quem sabe, amigo.
Sart volt
ou a olhar para Michael, que sorriu e piscou para ele.
—
Se os convidados desejam que eu fique, então ficarei
—
disse Sart.
Voltou à cama com um ar meio fanfarrão e lá se sentou.
—
Maravilha
—
disse Michael.Mura terminou de se vestir e se
dirigiu primeiro
a Michael, depois a Richard, para pressionar a palma da
sua mão nas mãos de cada um deles uma última vez. Disse a ambos que
estar com eles lhe havia proporciona
do muito prazer, e que ansiava por
encontrar
-
se com eles no dia seguinte. Antes de fechar a por
ta atrás de si,
ela lhes desejou boa
-
noite.
Depois que o som da porta se dissipou, fez
-
se um breve e
desconfortável silêncio. Richard e Michael ficaram olhando para Sart, e
Sart fitava ora um, ora o outro homem. Sart começou a inquietar
-
se. Pôs
-
se
de pé.
—
Talvez eu devesse pedir mais bebidas
—
disse, para começar a
conversa.
Richard deu um sorriso forçado e sacudiu a cabeça. Depois se apro
-
ximou de Sart com uma ginga que sugeria que ele não sabia bem onde
estava pondo os pés.
—
Que tal mais comida?
—
disse
Sart.
Richard tornou a sacudir a cabeça. Já estava a um braço de distân
cia
do garoto. Sart recuou um pouco.
—
Eu e o meu amigo aqui temos uma coisa importante que quere
-
mos lhe dizer
—
disse
-
lhe Richard.
—
É verdade
—
acrescentou Michael. Andou de forma
igualmen
te
instável, contornando a extremidade da cama para chegar perto de
Richard, efetivamente encurralando Sart num canto entre a cama e a
parede.
—
Vou te dizer de um jeito curto e grosso para que não haja mal
-
entendidos
—
continuou Richard.
—
Não su
portamos veados como você.
—
Aliás, eles nos deixam meio malucos
—
disse Michael.
Os olhos de Sart deslocavam
-
se rapidamente de um para o outro
rosto embriagado, que escarneciam dele.
—
Talvez seja melhor eu ir embora
—
disse Sart, nervoso.
—
Não antes de
termos certeza absoluta de que sabe do que estamos
falando
—
disse Richard.
—
Não sei o que querem dizer com veado
—
admitiu Sart.
—
Homossexual, bicha, fresco, essas coisas
—
disse Richard, num
tom de desprezo.
—
O termo não importa. O caso é que não gosta
mos de
caras que gostam de homens. E temos a ligeira desconfiança de que você
se encaixa nessa categoria.
—
É claro que gosto de homens
—
disse Sart.
—
Gosto de todas as
pessoas.
Richard olhou para Michael, depois olhou outra vez para Sart.
—
Também não go
stamos de bissexuais.
Sart disparou para a porta, mas não conseguiu fugir. Richard agar
-
rou um dos braços dele, enquanto Michael agarrava
-
lhe um tufo de
cabelos.
Richard rapidamente prendeu o outro braço de Sart também, e com
uma risada triunfante, segurou
as duas mãos do rapaz contra suas cos
tas.
Sart lutou, mas isso de nada adiantou, principalmente porque Michael
ainda o segurava pelos cabelos. Depois que Sart foi imobiliza
do, Michael
deu
-
lhe um soco no estômago que o fez dobrar
-
se.
Ambos os mergulhador
es soltaram o rapaz, depois riram enquanto
o viam dar alguns passos incertos. Sart estava tentando desesperadamente
recuperar o f
ôlego. O rosto dele ficou roxo.
—
Tá legal, mariquinha
—
escarneceu Richard.
—
Aqui vai um
presentinho por você ter posto suas
patas sujas em mim.
Richard ergueu o rosto de Sart com a mão esquerda e atingiu
-
o com
a direita. Não foi um murro qualquer, mas um violento gancho no qual
colocou toda sua força. Este segundo golpe pegou em cheio no rosto de
Sart, esmagando
-
lhe o nariz e j
ogando
-
o violentamente para trás, de
maneira que, perdendo o equilíbrio, acabou batendo com a cabeça na
quina aguçada de uma mesinha
-
de
-
cabeceira de mármore. Infelizmen
te, a
fria pedra penetrou vários centímetros na parte de trás do crânio do jovem.
Richa
rd, a princípio, não percebeu as conseqüências fatais de seu
violento golpe. Ficou preocupado demais com a dor intensa que sentiu
nas juntas dos dedos, machucadas no golpe. Gemendo, apoiou a mão
ferida na outra e berrou um palavrão.
Michael olhou horroriza
do o corpo flácido de Sart cair inerte. Pe
-
daços de tecido cerebral escorriam da horrível ferida. Subitamente só
brio,
Michael curvou
-
se sobre o garoto atingido, que produzia sons
gorgolejantes.
—
Richard!
—
gritou Michael, meio sussurrando, meio em voz al
ta.
—
Parece que temos um problema.
Richard recusou
-
se a responder. Ainda sentia dor, andava de um
lado para outro pela sala e sacudia a m
ão com os dedos bem abertos.
Michael ficou de pé.
—
Richard?! Meu Deus do céu! O cara morreu!
—
Morreu!
—
repetiu Rich
ard. Aquela palavra definitiva estilha
çou
a concentração de Richard em si mesmo.
—
Bom, quase. A cabeça dele está com um buraco. Bateu nessa
droga dessa mesa aí.
Richard cambaleou de novo para onde Michael se achava e olhou o
corpo inerte de Sart.
—
Mas q
ue merda!
—
exclamou.
—
Que porra é que vamos fazer agora?
—
desesperou
-
se Michael.
—
Por que precisava dar
-
lhe um murro assim tão forte?
—
Foi sem querer, ouviu?
—
berrou Richard.
—
Bom, e o que vamos fazer?
—
repetiu Michael.
—
Sei lá
—
disse Richard.
Ne
sse momento, o corpo maltratado de Sart exalou seu
último sus
-
piro, e o gorgolejar cessou.
—
Pronto
—
disse Michael, estremecendo.
—
Ele morreu! Preci
-
samos fazer alguma coisa rápido!
—
Talvez devamos cair fora daqui
—
disse Richard.
—
Não dá para cair for
a
—
retrucou Michael.
—
Para onde a gen
te
iria? Pombas, a gente nem sabe onde está!
—
Tá legal, me deixa pensar
—
disse Richard.
—
Merda, não que
ria machucar o rapaz.
—
Ah, não mesmo
—
disse Michael, sarcástico.
—
Pelo menos a esse ponto, não
—
disse Rich
ard.
—
E se alguém entrar aqui?
—
indagou Michael.
—
Você tem razão
—
disse Richard.
—
Precisamos esconder o corpo.
—
Onde?
—
exigiu saber Michael, aflito.
—
Sei lá!
—
berrou Richard. Olhou em torno, freneticamente. Depois
tornou a olhar para Michael.
—
Ac
abei de ter uma idéia que talvez
funcione.
—
Legal
—
disse Michael.
—
O que é?
—
Primeiro me ajude a levantá
-
lo
—
disse Richard. Ele se curvou
sobre o corpo, rolou
-
o para um lado, depois meteu as mãos sob os bra
ços
de Sart.
Michael segurou os pés de Sart,
e juntos eles ergueram o garoto do
chão.
1
1
2
2
O novo dia chegou de forma gradativa, exatamente como chegaria
na superfície da Terra. A intensidade da luz aumentou devagar, fazendo
desaparecerem as estrelas no teto escuro e abobadado. A cor dele pas
sou,
em
etapas, do índigo bem escuro para um rosa
-
vivo e finalmente para um
impecável azul
-
celeste. Saranta começou a se movimentar.
Suzanne foi o primeiro dos visitantes vindos da superfície da Terra a
acordar com a chegada da aurora artificial. Enquanto olhava
seu quarto,
notando o mármore branco, os espelhos e a piscina, percebeu,
sobressaltada, que aquela experiência interterráquea surreal não havia
sido um mero sonho.
Vagarosamente, virou a cabeça para o lado e viu, pasmada, a
silhueta adormecida de Garona. E
le dormia de lado, de frente para ela.
Suzanne ficou estarrecida por ter permitido que o homem passasse a noite
com ela. Não era
esse
o seu costume. A única forma pela qual ela se
refreara um pouco havia sido a terminante recusa de tirar a túnica de seda
e
a bermuda. Passara a noite vestida, assim como estavam antes.
Suzanne não sabia se podia atribuir sua decisão de permitir que ele
ficasse à pequena quantidade de cristal que havia bebido, ou se a causa
havia simplesmente sido a bela aparência e as excelen
tes cantadas de
Garona. Por mais que detestasse admitir isso, a atração física era
importante
para ela na hora de se envolver com um homem. Aliás, tinha
sido essa, em parte, a razão pela qual ela havia permanecido enredada em
um caso passageiro com um ator
em Los Angeles, muito depois da rela
ção
ter ido por água abaixo.
Como que sentindo o olhar dela, Garona abriu seus olhos escuros e
líquidos, e sorriu com ar sonolento. Foi difícil para Suzanne sentir
-
se
muito arrependida.
—
Desculpe se acordei você
—
con
seguiu dizer. Ele era tão belo à
primeira luz do dia quanto parecera na noite anterior.
—
Por favor, não se desculpe
—
disse Garona.
—
Gostei de ter
acordado, e ver que ainda estou com você.
—
Como é que você consegue dizer sempre as palavras certas?
—
dis
se Suzanne. Estava sendo sincera, não sarcástica.
—
Digo aquilo que gostaria que me dissessem
—
explicou Garona.
Suzanne concordou com a cabeça, mostrando que entendia. Era uma
variação sensata da Regra de Ouro.
Garona rolou na direção dela e tentou abraçá
-
la. Suzanne esquivou
-
se, passando por baixo do braço dele, e saiu da cama.
—
Por favor, Garona
—
disse Suzanne.
—
Não vamos repetir a noite
passada. Agora, não.
Garona se jogou na cama outra vez e ficou olhando para Suzanne,
um tanto intrigado.
—
Não ente
ndo sua relutância
—
disse.
—
Será que é porque não
gosta de mim?
Suzanne suspirou.
—
Ora, Garona, com toda essa sua sofisticação e sensibilidade, não
posso imaginar por que é tão difícil para você perceber o motivo. Como
lhe disse ontem à noite, levo um c
erto tempo para conhecer alguém.
—
O que precisa saber?
—
indagou Garona.
—
Pode me fazer
qualquer pergunta pessoal que queira.
—
Olha
—
disse Suzanne.
—
Eu certamente gosto de você. Só o fato
de tê
-
lo deixado dormir aqui já é prova disso. Não costumo agir
assim
com homens que conheço há tão pouco tempo. Mas deixei mes
mo você
ficar, e não me arrependo. Só que não pode esperar muito de mim. Pense
em tudo que ainda estou tentando entender.
—
Só que não é natural
—
disse Garona.
—
Suas emoções não
deviam ser
tão imprevisíveis.
—
Eu discordo!
—
replicou Suzanne.
—
Isso se chama autoproteção.
Não posso ficar por aí permitindo que desejos surgidos de impulsos
momentâneos governem meu comportamento. E você devia fazer o
mesmo. Afinal, não sabe nada sobre mim. Talv
ez eu tenha um marido, ou
um namorado.
—
Presumo que tenha
—
disse Garona.
—
Aliás, ficaria surpreso se
não tivesse. Mas isso não me importa.
—
Bonito
—
Suzanne apoiou as mãos nos quadris, desafiadora.
—
Você não se importa, mas e eu?
—
Suzanne se deteve.
Esfregou os
olhos ainda sonolentos. Já estava ficando toda excitada, e havia desper
-
tado há apenas alguns minutos.
—
Não vamos discutir nada disso ago
ra
nesse momento
—
disse Suzanne.
—
Esse dia já vai ser bastante desafiador.
Arak prometeu responder às n
ossas perguntas, e, pode ter certeza, eu
tenho muitas.
—
Ela se dirigiu até um dos muitos espelhos e
cautelosamente entrou na linha de visão de sua imagem. Fez uma ca
reta
ao ver o reflexo. Talvez estivesse completamente transtornada, mas havia
uma coisa q
ue sabia com certeza: não ficava nada bem com aque
le
cabelinho de três centímetros de comprimento.
Garona sentou
-
se na beira da cama e espregui
çou
-
se.
—
Vocês, humanos de segunda geração, são tão sérios!
—
Não sei o que quer dizer com "segunda geração"
—
disse Suzanne.
—
Mas acho que tenho motivo para estar séria. Afinal, não vim aqui
por vontade minha. Como disse o Donald, fomos abduzidos. E não
preciso lembrar que isso significa ser levado à força.
Como já havia prometido, Arak apareceu logo depois que
o grupo já
havia tomado café, perguntando se todos estavam prontos para a sessão
didática.Perry e Suzanne estavam visivelmente ávidos, Donald estava
menos anima
do, e Richard e Michael, completamente desinteressados.
Aliás, agiram de forma tensa e moderada
, bem diferente do jeito atrevido
de costume. Perry presumiu que estivessem de ressaca e insinuou isso a
Suzanne.
—
Não duvido
—
respondeu Suzanne.
—
Bêbados como estavam,
não seria de se admirar. Como está se sentindo?
—
Excelente
—
disse Perry.
—
Apesar
de tudo. Foi uma noite in
-
teressante. E seu amigo, Garona? Ficou até muito tarde?
—
Ficou um tempinho
—
respondeu Suzanne, evasiva.
—
E a Luna?
—
Também
—
disse Perry. Nenhum dos dois olhou o outro nos
olhos.
Assim que o grupo ficou pronto, Arak levou
-
os a
través do gramado
na direção de uma estrutura hemisférica semelhante ao pavilhão, embora
em escala muito menor. Perry e Suzanne acompanhavam Arak. Donald ia
alguns passos atrás deles, e Richard e Michael ainda mais atrás.
—
Ainda acho que você devia contar
ao Donald
—
insistiu Michael,
baixinho.
—
Ele talvez tenha uma idéia do que fazer.
—
Que merda acha que esse babaca vai fazer?
—
respondeu
Richard.
—
O garoto morreu. O Fuller não vai ressuscitá
-
lo.
—
Talvez ele tenha uma idéia melhor sobre onde deveríamo
s ocul
tar
o corpo
—
disse Michael.
—
Tenho medo que o encontrem. Sabe o que
estou querendo dizer. Não quero que você descubra o que fazem aqui
embaixo com os assassinos.
Richard parou de repente.
—
De quem está falando, de mim?
—
Ora, você o matou
—
disse
Michael.
—
Você também bateu nele
—
disse Richard.
—
Mas não o matei
—
disse Michael.
—
E a idéia foi toda sua.
Richard olhou o amigo com ódio.
—
Estamos nisso juntos, seu nojento. Foi no seu quarto. O que me
acontecer, vai acontecer com você também. Está
claro como o dia.
—
Venham, vocês dois
—
chamou Arak. Estava segurando uma porta aberta
que dava para o interior do pequeno prédio hemisférico, sem janelas. Os
outros componentes do grupo estavam de pé ao lado e olhando na direção
dos mergulhadores.
—
Deix
a isso pra lá
—
murmurou Michael, nervoso.
—
O caso é que
o corpo está mal escondido. Precisa perguntar ao Donald se ele consegue
bolar um lugar melhor para o colocarmos. Talvez ele seja um ex
-
oficial
babaca, mas é um cara vivo.
—
Você venceu
—
disse Richa
rd, relutante.
Os dois mergulhadores apertaram o passo e se reuniram aos outros.
Arak sorriu amavelmente e depois entrou no prédio seguido por Suzanne
e Perry. Quando Donald atravessou a soleira, Richard puxou
-
lhe a man
ga.
Donald arrancou o braço, soltand
o
-
o e fitou Richard com rancor, mas
prosseguiu.
—
Ei, comandante Fuller!
—
sussurrou Richard.
—
Espere aí um
momento.
Donald lançou um olhar de relance para trás, com expressão de
desprezo, endereçado a Richard, e continuou a andar. Arak os guiou ao
longo
de um corredor curvo sem janelas.
—
Queria me desculpar pelo meu comportamento de ontem à
noite
—
disse Richard, alcançando Donald, de forma a andar logo atrás
dele.
—
Pelo quê?
—
indagou Donald, desdenhoso.
—
Por ser burro, por
estar bêbado ou por se perm
itir enganar por essa gente?
Richard mordeu o lábio inferior antes de responder.
—
Talvez os três. Ficamos mesmo num porre de fazer gosto. Mas
não é
esse
o motivo pelo qual quero falar com você.
Donald parou de repente. Richard quase deu um encontr
ão nele.
Michael efetivamente colidiu com Richard.
—
O que é, marujo?
—
inquiriu Donald, com uma voz de quem não
admitia baboseiras.
—
Trate de ir desembuchando. Temos uma palestra
interessante a assistir que não desejo perder.
—
Bom, sabe o que é...
—
Richard come
çou, mas aí tropeçou nas palavras, sem saber como começar.
Donald o intimidava, fazendo
-
o deixar de lado as fanfarronices anteriores.
—
Vamos, marujo
—
disse Donald, de forma brusca.
—
Desembuche.
—
Michael e eu achamos melhor sair de Interterra
—
disse Ri
chard.
—
Ah, para dois cabeçudos, vocês até que são inteligentes
—
disse
Donald.
—
Imagino que essa súbita iluminação divina tenha ocorrido a
vocês esta manhã. Bom, talvez eu deva lembrar
-
lhes que não sabemos
onde estamos até que Arak decida nos contar. En
tão, uma vez que te
-
nhamos descoberto isso, talvez possamos conversar de novo.
—
Donald
fez sinal de se retirar. Richard agarrou o braço dele, de puro desespero.
Donald olhou a mão de Richard, furioso.
—
Solte
-
me antes que eu perca
completamente o controle
.
—
Mas...
—
disse Richard.
—
Pare com isso, marujo!
—
berrou Donald, interrompendo a
conversa e dando um puxão no braço para soltá
-
lo das mãos de Richard.
Depois, caminhando rapidamente, abaixou
-
se para passar por uma porta
no fim do corredor, atrás dos out
ros.
—
Por que diabos você não lhe contou?
—
Michael quis saber, num
sussurro irritado.
—
Você também não contou
—
salientou Richard.
—
Sim, porque você disse que ia falar
—
disse Michael. Ergueu as
mãos, frustrado.
—
Grande conversa! Minha avó poderia ter
feito me
lhor.
Agora voltamos ao ponto de partida. E você precisa admitir, aque
le corpo
não está no melhor esconderijo. E se o acharem?
Richard estremeceu.
—
Detesto pensar nessa possibilidade. Mas foi o melhor que pu
-
demos fazer, diante das circunstânci
as.
—
Talvez devêssemos ficar o tempo todo no quarto
—
sugeriu
Michael.
—
Isso não vai resolver nada
—
disse Richard.
—
Vamos! Trate
-
mos ao menos de descobrir onde estamos, para vermos se conseguimos
bolar um jeito de dar o fora.
Os dois homens seguiram Don
ald e se acharam em uma sala futu
-
rista e redonda com nove metros de diâmetro e teto abobadado. Não
havia janelas. Uma única fileira de doze cadeiras anatômicas cercava uma
área central escura e ligeiramente convexa.
Arak e Sufa estavam sentados diretament
e em frente à entrada, em
cadeiras com consoles de controle embutidos nos braços. Imediatamente à
direita de Arak e Sufa se encontravam duas pessoas que os mergulha
-
dores nunca tinham visto antes. Embora esse casal estivesse de branco,
como era o costume,
não eram tão bonitos como os outros interterráqueos.
Suzanne e Perry estavam sentados à esquerda de Arak e Sufa. Donald
estava longe deles, à direita, sozinho, com montes de lugares vazios entre
ele e os outros.
—
Por favor, Richard, Michael
—
chamou Arak.
—
Tomem seus
lugares. Qualquer um que quiserem. E aí começaremos.
Richard fez questão de passar por várias cadeiras vazias e sentar
-
se
ao lado de Donald. Richard cumprimentou
-
o com a cabeça, mas Donald
reagiu mudando o peso do corpo para longe do mergulha
dor. Michael
sentou
-
se ao lado de Richard.
—
Mais uma vez, sejam bem
-
vindos a Interterra
—
disse Arak.
—
Hoje vamos desafiar seus intelectos de forma muito positiva. E enquanto
isso irão logo descobrir como todos vocês tiveram sorte.
—
Que tal começar nos
contando quando voltaremos para casa?
—
perguntou Richard.
—
Cala essa matraca!
—
rosnou Donald. Arak riu.
—
Richard, aprecio muito sua espontaneidade e impulsividade, mas
tenha paciência.
—
Em primeiro lugar, gostaríamos de lhe apresentar dois de nos
sos
cidadãos de destaque
—
disse Sufa.
—
Tenho certeza de que irão
achar
muito útil conversar com eles, pois, como vocês, eles também vieram do
mundo da superfície. Permitam
-
me apresentar
-
lhes Ismael e Mary Black.
O casal ficou de pé um momento e cumprimentou
-
os com uma
reverência. Michael aplaudiu por hábito, mas parou de imediato ao
perceber que tinha sido o único a bater palmas. Suzanne e Perry, curio
sos
e de olhos arregalados, fitaram atentamente o casal.
—
Mary e eu gostaríamos de lhes dar boas
-
vindas tam
bém
—
dis
se
Ismael. Era um homem consideravelmente alto, com feições acentu
adas,
finas e compridas e olhos bem encovados.
—
Estamos aqui porque
passamos por aquilo pelo qual estão para passar, e por isso podemos estar
em condições de ajudá
-
los. Como suge
stão geral, eu os incentiva
ria a não
tentar absorver muita coisa rápido demais.
Michael se inclinou para Richard e murmurou:
—
Acha que ele está se referindo àquele creme para as mãos porreta
que usamos ontem à noite?
—
Calem
-
se!
—
Alertou Donald asperame
nte, enfatizando as síla
-
bas.
—
Se continuarem a interromper, vou ter de lhes pedir que se sen
tem
longe de mim.
—
Tá legal, falou
—
disse Michael.
—
Obrigado, Ismael
—
disse Arak. Depois, olhando para cada um
dos visitantes, acrescentou:
—
Espero que você
s todos aprovei
tem bem a
oferta dos Blacks. Sentimos que uma divisão de trabalho poderá ajudar.
Sufa e eu estaremos à sua disposição para fins de pres
tação de
informações, e as questões de adaptação serão respondidas por Ismael e
Mary.
Suzanne chegou mai
s perto de Perry. Havia em seu rosto uma nova
express
ão preocupada.
—
Como assim, questões de "adaptação"? Quanto tempo acha que
eles pretendem nos manter aqui?
—
Sei lá
—
sussurrou Perry. Também estava perplexo diante dessa
mesma insinuação.
—
Antes de com
eçarmos, gostaria de dar a cada um
dos senhores um telecomunicador e óculos
—
disse Sufa. Abriu uma caixa
que trou
xera à reunião, e de lá tirou cinco pacotinhos, cada um com um
nome impresso em negrito na parte de cima. Com eles nos braços, foi
distribuin
do
-
os aos seus respectivos donos. Richard e Michael rasgaram as
embalagens dos seus como se atacassem presentes de Natal. Suzanne e
Perry abriram os seus com cuidado. Donald deixou o dele fechado so
bre o
colo.
—
Parecem óculos e um relógio de pulso sem mo
strador
—
disse
Michael. Ficou decepcionado. Experimentou os óculos. Tinham for
mato
aerodinâmico e lentes transparentes.
—
É um sistema telecomunicador
—
explicou Sufa.
—
São ativados
por comando de voz, e cada um está regulado para a voz de uma certa
pes
soa, não são intercambiáveis. Vamos mostrar
-
lhes como utilizá
-
los
mais tarde.
—
O que eles fazem?
—
indagou Richard. Experimentou os ócu
los
também.
—
Quase tudo
—
disse Sufa.
—
Conectam
-
se com fontes centrais
cujas informações aparecem virtualmente atravé
s dos óculos. Também
permitem comunicação com qualquer habitante de Interterra por visão e
pelo som. Fazem até coisas corriqueiras, como chamar os táxis aéreos, mas
depois falarei mais sobre eles.
—
Vamos começar
—
disse Arak. Tocou o teclado sobre o conso
le
diante de si, e a área escura e convexa se tornou azul fosforescente.
"A primeira coisa sobre a qual devemos falar é o conceito do
tempo
—
disse Arak.
—
Isso talvez seja o assunto mais difícil para gente
como vocês entender, porque aqui em Interterra o
tempo não é o
construto imutável que aparenta ser na superfície da Terra. Seu cientista,
Sr. Einstein, reconheceu a relatividade do tempo, no sentido que depende
da posição de observação da pessoa. Aqui em Interterra vocês depara
rão
com muitos exemplos de
ssa relatividade. O mais simples, por exem
plo, é
a idade de nossa civilização. Do ponto de vista das referências da
superfície terrestre, nossa civilização é incrivelmente antiga, ao passo que,
de nosso ponto de referência, e daquele do restante do sistem
a so
lar, não é.
Sua civilização se mede em termos de milênios, a nossa, de milhões de
anos, e o sistema solar, em bilhões de anos.
—
Ai meu pai do céu
—
reclamou Richard.
—
Será que vamos ser
obrigados a ficar aqui ouvindo essa ladainha? Pensei que você i
a nos dizer
onde diabos nós estamos.
—
Se não compreenderem os fundamentos
—
disse Arak
—
, o que
vou lhes expor será inacreditável, até sem sentido.
—
Por que não começamos do fim para o princípio?
—
sugeriu
Richard.
—
Diga
-
nos onde estamos, depois o resto
.
—
Richard!
—
ralhou Suzanne.
—
Quieto aí! Richard revirou os
olhos, para Michael ver. Michael mostrou sua impaciência descruzando e
tornando a cruzar as pernas.
—
O tempo não é uma constante
—
continuou Arak.
—
Como eu já
disse, o seu astuto cientista, E
instein, reconheceu isso, mas o erro dele foi
pensar que a velocidade da luz era o limite máximo do movi
mento. Não é
verdade, embora seja necessária uma enorme quantidade de quanta de
energia focalizada para se romper
esse
limite. Uma boa analogia, tirada
da
vida diária, é a quantidade extra de energia necessá
ria para uma mudança
de fase que transforma um sólido num líquido, ou um líquido num gás.
Impulsionar um objeto além da velocidade da luz é como uma mudança
de fase para uma dimensão onde o tempo
é
p
lástico e tem relação apenas
com o espaço.
—
Cruz
-
credo!
—
disse Richard, sem pensar.
—
Isso é alguma piada?
Donald pôs
-
se de pé e se sentou longe dos dois mergulhadores.
—
Tente ser paciente
—
disse Arak.
—
E se concentre no fato de que
o tempo não é uma
constante. Pense nisso! Se o tempo é mesmo relativo,
então pode ser controlado, manipulado e transformado. O que nos leva ao
conceito da morte. Ouçam com toda a atenção! Na superfí
cie da Terra a
morte vem sendo um acessório necessário da evolução, e a evo
lução é a
única justificativa da morte. Mas, uma vez que a
evolução
gerou um ser
cognitivo e sensato, a morte não é mais necessária, passa a ser um
desperdício.
Diante daquela menção a morte, Richard e Michael afundaram
-
se
mais nas poltronas. Perry ergueu
a mão. Arak imediatamente lhe con
-
cedeu a palavra.
—
Temos permissão para fazer perguntas?
—
indagou Perry.
—
Mas é claro
—
disse Arak, afavelmente.
—
Isso aqui tem o ob
-
jetivo de ser mais um seminário do que uma palestra. Mas peço
-
lhes que
apenas façam pe
rguntas sobre o que eu já disse, e não sobre o que
imaginam que eu vá dizer.
—
Você falou em medir o tempo
—
disse Perry.
—
Quis dizer que
sua civilização, conforme diz, antecede nossa civilização lá da superfície?
—
Sem dúvida
—
disse Arak.
—
E somos mais
antigos uma quan
-
tidade de tempo quase incompreensível para sua experiência. Nossa
história interterráquea gravada remonta a quase seiscentos milhões de
anos.
—
Ah, espera aí!
—
zombou Richard.
—
Isso é impossível. Isso aí
que você está dizendo é um monte
de abobrinhas. Então vocês já exis
tiam
antes dos dinossauros?
—
Somos muito mais antigos que os seus dinossauros
—
confir
mou
Arak.
—
E sua descrença é inteiramente compreensível. Por isso vamos
devagar com essa introdução a Interterra. Não pretendo me e
x
ceder ao
sublinhar
esse
aspecto, mas é muito mais fácil adaptar
-
se à sua realidade
atual por partes.
—
Está tudo muito bem
—
disse Richard.
—
Mas que tal nos dar
umas provas de todas essas lorotas? Estou começando a achar que todo
esse
lance é uma armaçã
o daquelas bem sofisticadas, e, francamente, não
estou interessado em perder meu tempo sentado aqui.
Nem Donald, nem Suzanne reclamaram daquela interrupção de
Richard. Ambos estavam alimentando reflexões semelhantes, embora
Suzanne certamente não fosse cap
az de manifestar seu ceticismo de um
modo assim tão grosseiro. Arak, porém, permaneceu imperturbável.
—
Muito bem
—
disse Arak, pacientemente.
—
Vamos lhes for
necer algumas
provas em relação às quais possam estabelecer um para
lelo com a história
de sua ci
vilização. Nossa civilização andou observando e registrando o
progresso da sua civilização humana de segunda geração desde o tempo
de sua evolução.
—
O que quer dizer exatamente com ser humano de segunda ge
-
ração?
—
Vai entender logo
—
disse Arak.
—
Em pri
meiro lugar, va
mos
lhes mostrar algumas imagens interessantes. Como já disse, an
damos
observando o progresso de sua civilização, e até cerca de cinqüenta anos
atrás, pudemos fazer isso à vontade. Desde então, a sofisticação
tecnológica cada vez maior de
sua civilização vem limi
tando nossa
vigilância, que restringimos para evitarmos ser detecta
dos. Aliás, paramos
de usar a maioria de nossas portas de saída antigas, como a que usamos
para
trazê
-
los
a Interterra, ou aquela de Barsama, nossa cidade
-
irmã, a
oeste. Mandamos vedar ambas com magma, mas a inépcia burocrática dos
clones operários impediu a execução do decreto.
—
Meu Deus, você é mesmo um cara prolixo, hein, meu irmão
—
disse Richard.
—
Cadê as provas?
—
A caverna na qual nosso submersível aportou?
—
indagou
Suzanne.
—
Correto
—
disse Arak.
—
Ela normalmente fica cheia de água do mar?
—
indagou Suzanne.
—
Mais uma vez correto
—
disse Arak. Suzanne virou
-
se para Perry.
—
Não admira que o monte submarino Olimpo jamais tenha sido
detectado pelo Geosat.
O monte submarino não tem massa suficiente para
ser captado por um gravímetro.
—
Ora, vamos!
—
reclamou Richard.
—
Já chega de enrolação.
Vamos mostrando as provas!
—
Certo, Richard
—
disse Arak,
pacientemente.
—
Por que não sugere um período da história d
e vocês
que gostariam de observar nos nossos arquivos de referência? Quanto
mais antigo melhor, para que eu possa provar o que digo.
Richard olhou para Michael, pedindo ajuda.
—
Que tal os gladiadores?
—
disse Michael.
—
Vamos ver uns
gladiadores romanos.
—
O combate entre gladiadores podia ser observado
—
disse Arak,
relutante
—
, mas essas gravações violentas se encontram sob censura
bastante severa. Para vê
-
las, seria necessário obter anuência especial do
Conselho de Anciãos. Talvez alguma outra época sej
a mais adequada.
—
Mas isso é pra lá de ridículo!
—
exclamou Richard.
—
Tente se controlar, marujo
—
atalhou Donald.
—
Deixe
-
me tentar entender o que você está querendo dizer
—
disse
Suzanne.
—
Está insinuando que tem gravações de toda a história humana,
e
quer que escolhamos algum período histórico para poder
mos ver
imagens dele?
—
Exatamente
—
respondeu Arak.
—
Que tal a Idade Média?
—
sugeriu Suzanne.
—
Essa é uma era bem grande
—
disse Arak.
—
Pode ser mais es
-
pecífica?
—
Certo
—
disse Suzanne
—
Que ta
l a França do século XIV?
—
Mas vai cair justo na Guerra dos Cem Anos
—
disse Arak, sem
entusiasmo.
—
É curioso que até a senhora, Dra. Newell, solicite ima
gens
de uma época tão violenta. Mas, afinal, vocês, humanos de segun
da
geração, têm antecedentes v
iolentos.
—
Mostre as pessoas se divertindo, não em guerra
—
disse Suzanne.
Arak tocou o teclado do seu console e depois se inclinou para falar
em um
pequeno microfone no centro dele. Quase de imediato a ilumi
nação da
sala se apagou e a tela do chão criou
vida, enchendo
-
se de imagens
borradas passando a uma velocidade incrível. Fascinados, to
dos se
inclinaram sobre a mureta e ficaram assistindo.Finalmente as imagens
começaram a passar mais devagar, depois pararam. A cena projetada era
nítida e cristalina,
com um colorido na
tural e com três dimensões
holográficas perfeitas. Era de um pequeno trigal no fim do verão, gravada
de uma altitude de cerca de 120 a 150 metros. Um grupo de pessoas havia
interrompido a lida na colheita. As foices estavam espalhadas a
o acaso em
torno de várias toalhas sobre as quais se encontrava servida uma refeição
modesta. O áudio era de ci
garras de verão a ciciar intermitente.
—
Isso não é interessante
—
disse Arak depois de dar uma espia
-
da.
—
Não prova nada. Fora as vestimentas
grosseiras das pessoas, não se
pode identificar a época. Vamos recomeçar a busca.
Antes que alguém pudesse reagir a tela ficou borrada outra vez en
-
quanto milhares de imagens passavam. Olhar aquela luz intermitente e
rápida dava tontura, mas logo ela foi f
icando mais lenta e parou.
—
Ah, essa é muito melhor
—
exclamou Arak. Agora a imagem era
a de um castelo erigido numa proeminência rochosa, onde estava
acontecendo alguma espécie de torneio. O ponto de onde as imagens
haviam sido filmadas era bem mais alto
que o da cena anterior. A colo
-
ração da vegetação em torno das muralhas do castelo indicava que esta
-
vam em meados do outono. O pátio estava repleto de gente turbulenta
cujas vozes compunham um murmúrio atenuado. Todos estavam traja
dos
com vestes medieva
is coloridas. Flâmulas com brasões drapejavam ao
vento. Em cada extremidade de uma cerca longa e baixa que passava pelo
centro do pátio, dois cavaleiros acabavam de se preparar para uma justa.
Seus cavalos ajaezados com capas coloridas estavam de frente um
para o
outro,
escavando
o solo, de excitação.
—
Como foi que filmaram isso?
—
indagou Perry. Estava hipnoti
-
zado pela imagem.
—
É um gravador padronizado
—
disse Arak.
—
Quero dizer, de que ponto de observação?
—
insistiu Perry.
—
De
algum tipo de helicóp
tero?
Arak e Sufa riram.
—
Desculpe as risadas
—
disse Arak.
—
Helicópteros são veículos feitos com base na sua tecnologia. Não com a
nossa. Além disso, um veículo assim seria i
n
vasivo demais. Essas imagens
foram feitas por uma nave antigravitacional pequen
a, silenciosa, não
tripulada, pairando a cerca de seis mil e quinhentos metros de altura.
—
Ei, lá em Hollywood fazem isso o tempo todo
—
disse Richard.
—
Grande coisa! Isso não prova nada.
—
Se isso for cenário, é o mais realista que já vi
—
disse Suzanne
. Ela
se inclinou mais para ver melhor. Pelo que sabia, Hollywood não
conseguiria atingir aquele grau de detalhismo.
Enquanto assistiam à cena, os escudeiros dos cavaleiros de armadu
-
ra recuaram, e os guerreiros baixaram as lanças. Com um cristalino som
de
trombetas, os dois cavalos avançaram de lados opostos da cerca de
troncos. À medida que se aproximavam um do outro os aplausos da
multidão aumentavam de intensidade. Aí, logo antes dos cavaleiros se
tocarem, a tela ficou branca. Um momento depois voltou a
o azul
fosforescente inicial. Depois surgiu uma janela com a seguinte mensa
gem:
"Cena censurada. Solicitar permissão ao Conselho de Anciãos."
—
Droga!
—
exclamou Michael.
—
Eu já estava envolvido no lance.
Quem foi que venceu afinal: o cara de verde ou o
de vermelho?
—
O Richard está certo
—
disse Donald, de repente, ignorando
Michael.
—
Estas cenas podem ser montadas com facilidade demais.
—
Talvez
—
disse Arak, sem se mostrar nem um pouco ofendido.
—
Mas posso lhes mostrar o que quiserem. Não seríamos ca
pazes de
encenar todo o complemento da história da primeira geração condi
-
cionado ao desejo momentâneo de vocês.
—
Que tal uma coisa mais antiga?
—
sugeriu Perry.
—
Que tal a
época neolítica no mesmo ponto onde era o castelo?
—
Excelente idéia!
—
disse Ara
k.
—
Vou fornecer as coordena
das
sem uma época específica, além de, digamos, antes de dez mil anos atrás,
e deixar o programa de busca verificar se há alguma imagem ar
-
mazenada.A tela voltou a exibir imagens que passavam em ritmo célere.
Dessa vez a luz i
ntermitente durou muito mais tempo.
Suzanne tocou o braço de Perry. Inclinou
-
se para ele quando ele se
virou para ela.
—
Acho que o que estamos vendo são imagens autênticas
—
disse
Suzanne.
—
Eu também
—
disse Perry.
—
Sabe
-
se lá que tecnologia se em
-
prego
u para gravá
-
las!
—
Não estou pensando muito na tecnologia, mas no fato de que
esse
lugar existe mesmo
—
sussurrou Suzanne.
—
Não estamos sonhan
do tudo
isso.
—
Ah!
—
comentou Arak.
—
Acho que a busca encontrou algo. E a
época deve ser vinte e cinco mil an
os atrás.
—
Enquanto falava, as
imagens foram passando mais lentamente até pararem outra vez.
O cenário era a mesma saliência rochosa, mas sem o castelo. Em vez
disso, no alto do morro, se via uma escarpa curta escavada no cen
tro,
formando uma caverna não
muito profunda. Agrupada em torno da
entrada da caverna via
-
se um grupo de homens de neandertal, vesti
dos
com peles de animais e confeccionando implementos rudimen
tares.
—
Parece o mesmo lugar, sim
—
comentou Perry.
Enquanto todos assistiam, a imagem au
mentou, mostrando mais de
perto a cena dom
éstica.
—
E as imagens são mais nítidas
—
acrescentou Perry.
—
Naquela época não nos importávamos que vissem nossas
naves
—
explicou Arak.
—
E por isso não havia problema em nos
aproximar
mos até uns trinta metros,
mais ou menos, para estudarmos o
compor
tamento.
Enquanto todos assistiam à seqüência, um dos homens de
neandertal endireitou
-
se depois de raspar uma pele. Enquanto se erguia,
por acaso olhou diretamente para cima. Quando olhou, seu rosto
animalesco fi
co
u subitamente pálido, e a boca escancarou
-
se, num misto
de surpresa
e terror. A imagem da tela estava próxima o suficiente e nítida
o bastan
te para revelar seus grandes dentes quadrados.
—
Bem
—
comentou Arak
—
, aí
está
um exemplo de um caso em
que nosso
disco antigravitacional de controle remoto foi visto. Esse pobre
coitado provavelmente pensa que está recebendo uma visita dos deuses.
—
Minha nossa
—
disse Suzanne.
—
Ele está tentando chamar a
atenção dos outros para que olhem para cima também!
—
A lingu
agem deles era muito limitada
—
disse Arak
—
, mas sei
que havia outra subespécie nesta mesma época e na mesma área, apro
-
ximadamente, à qual vocês deram o nome de Cro
-
Magnon. A capaci
dade
lingüística deles era muito melhor.
O neandertal grunhia e pulava a
pontando para a câmera. Logo o
grupo inteiro já estava olhando para o céu. Várias mulheres que traziam
consigo filhos pequenos imediatamente os puseram no colo e desapare
-
ceram na caverna, enquanto outras fugiam.
Um homem mais ousado se curvou, pegou uma p
edra do tamanho
de um ovo e arremessou
-
a para o c
éu. O míssil foi se aproximando, depois
passou pela lateral do campo de visão da câmera.
—
Nada má, a pontaria do cara
—
disse Michael.
—
O Red Sox
podia contratá
-
lo como arremessador.
Arak tocou o seu conso
le, e a imagem desapareceu. Ao mesmo tem
-
po, as luzes da sala se acenderam. Todos voltaram para suas cadeiras.
Arak e Sufa olharam em torno. Os visitantes estavam todos calados por
enquanto, at
é Richard.
—
Qual foi a data aproximada dessa gravação?
—
indag
ou Perry,
afinal.
Arak consultou seu console.
—
No seu calendário, seria o dia 14 de julho de 23.342 antes de
Cristo.
—
Vocês não se incomodavam de que a câmera fosse vista?
—
indagou Suzanne. A imagem do rosto do neandertal não lhe saía da
cabeça.
—
Estáva
mos começando a nos preocupar com a possibilidade de
sermos detectados
—
concordou Arak.
—
Nossa ala conservadora che
gou
até a falar em eliminar os seres cognitivos da face da Terra nessa época.
—
Por que vocês se incomodariam com gente tão primitiva?
—
i
ndagou Perry.
—
Puramente para evitar a detecção
—
disse Arak.
—
É óbvio que
vinte e cinco mil anos atrás, devido ao primitivismo de sua civilização,
isso não importava. Mas sabíamos que iria, com o tempo. Sabemos que
nossas naves têm sido ocasionalmente a
vistadas até mesmo em sua épo
ca
moderna e isso nos preocupa, sim. Felizmente, essas visões vêm sen
do em
sua maioria encaradas com descrença, ou, então, os que acreditam
imaginam que nossas naves interplanetárias vêm de algum outro lugar do
universo, não
de dentro da própria Terra.
—
Espere aí um segundo
—
disse Donald, de repente.
—
Não gosto
de jogar água fria na fervura de ninguém, mas não creio que esse
espetaculozinho que vocês estão encenando aqui esteja provando algu
ma
coisa. Seria moleza criar tudo
isso com imagens geradas em compu
tador.
Por que não pára com essa enrolação toda e simplesmente nos diz quem
representa e o que quer de nós?
Durante um momento, ninguém disse nada. Arak e Sufa inclina
ram
-
se um para o outro e deliberaram entre si baixinh
o. Depois
conferenciaram
com Ismael e Mary. Depois de uma reunião breve aos
cochichos, os anfitriões voltaram a se recostar nos encostos das cadei
ras.
Arak olhou diretamente para Donald.
—
Sr. Fuller, seu ceticismo é totalmente compreensível
—
disse
Arak.
—
Não sabemos se os outros suspeitam de nós como o senhor.
Talvez eles possam influenciar sua opinião mais tarde. Naturalmente, irão
sendo apresentadas mais provas à medida que for se desenrolando esta
apresentação para introduzi
-
los ao nosso mundo, e ten
ho certeza de que
se convencerá. Enquanto isso, gostaríamos de solicitar que te
nha paciência
durante só mais algum tempo.Donald não respondeu. Simplesmente
fuzilou Arak com o olhar.
—
Vamos seguir adiante
—
disse Arak.
—
E permita
-
me apre
sentar
-
lhes um r
esumo da história de Interterra. Para isso, precisa
mos começar
no seu mundo, a superfície da Terra. A vida por lá começou por volta de
quinhentos milhões de anos depois que a Ter
ra se formou, e levou vários
bilhões de anos para se desenvolver. Os cientis
tas de seu mundo sabem
bem disso. O que não sabem
é
que nós, humanos de primeira geração,
evoluímos cerca de quinhentos e cinqüenta milhões de anos atrás, durante
a primeira fase da evolu
ção. O motivo pelo qual seus cientistas não
tomaram conhecimento des
sa primeira fase é que quase todo o registro
fossilizado dela desa
pareceu durante uma época que chamamos de
Período das Trevas. Mas falaremos disso depois. Primeiro precisamos
mostrar algumas imagens desses primeiros tempos de nossa civilização,
mas a qua
li
dade não é boa.
A luz diminuiu de intensidade progressivamente. Na escuridão
cres
cente Suzanne e Perry se entreolharam, mas nada disseram. A atenção
dos dois se voltou em breve para a tela do chão. Depois de outro inter
valo
de luz intermitente, aparec
eu uma cena tomada ao nível dos olhos,
mostrando um ambiente semelhante ao que os visitantes haviam visto em
Interterra. A principal diferença era que os edifícios eram brancos em vez
de negros, embora as formas fossem semelhantes. E o povo pa
recia
compos
to de seres humanos normais
—
não eram todos lindos e estavam
ocupados em diversas tarefas diárias.
—
Observando estas cenas, somos forçados a sorrir diante de nos
so
próprio primitivismo
—
disse Sufa.
—
Sem dúvida
—
concordou Arak.
—
Não tínhamos clones o
pe
-
rários naqueles tempos antigos.
Suzanne pigarreou. Estava tentando se situar diante de tudo que
Arak estava dizendo. Como cientista terráquea estava constatando que a
palestra dele entrava em conflito com tudo que ela sabia sobre evolu
ção
em geral e a
evolução humana em particular.
—
Está querendo dizer que
essas imagens que estamos vendo são de quinhentos e cinqüenta milhões
de anos atrás?
—
Exato
—
respondeu Arak. Reprimiu uma risada. Ele e Sufa evi
-
dentemente estavam se divertindo diante das palhaçada
s de um deter
-
minado indivíduo para erguer um bloco de pedra.
"Desculpem
-
nos por achar isso tão engraçado
—
disse ele.
—
Já faz
um bom tempo que não assistimos a nenhuma dessas seqüências. Isso era
quando tínhamos alguma coisa parecida com as nacionalidade
s que vocês
têm, embora elas hajam desaparecido depois dos primeiros cin
qüenta mil
anos de nossa história. As guerras desapareceram ao mesmo tempo, como
devem estar imaginando. Como podem ver, a superfície da terra era
muito diferente do jeito que é agora
, e é essa aparência que recriamos aqui
em Interterra. Naquele tempo havia apenas um supercontinente e um
superoceano."
—
O que aconteceu depois?
—
perguntou Suzanne.
—
Por que sua
civilização resolveu viver debaixo da terra?
—
Por causa do Período das Tre
vas
—
disse Arak.
—
Nossa civili
-
zação já tinha quase um milhão de anos de progresso pacífico até come
-
çarmos a perceber processos potencialmente ameaçadores ocorrendo em
uma galáxia próxima à nossa. Dentro de relativamente pouco tempo,
ocorreu uma série d
e explosões cataclísmicas que deram origem a
supernovas, literalmente cobrindo a Terra com tempestades de radiação
suficientes para dissipar a camada de ozônio. Podíamos ter resolvido isso,
mas nossos cientistas também reconheceram que
esses
eventos galáct
icos
perturbavam também o delicado equilíbrio da população de asteróides do
sistema solar. Ficou óbvio que a Terra receberia chuvas de colisões de
planetóides, exatamente como ocorreu quando ela se encon
trava em seu
estado primordial.
—
Caramba!
—
gemeu R
ichard.
—
Não dá mais para agüentar essa
conversa.
—
Cale a boca, Richard!
—
ordenou Suzanne rispidamente sem ti
rar
os olhos de Arak.
—
Então Interterra se mudou para debaixo da terra.
—
Exato
—
confirmou Arak.
—
Sabíamos que a superfície da terra se torna
ria
inabitável. Foi uma era de desespero. Procuramos outro lar em todo o
sistema solar, sem êxito, e ainda não havíamos desenvolvido a tecnologia
do tempo, para podermos procurar em outras galáxias. De
pois, chegou
-
se
à conclusão de que nossa única chance
de sobreviver seria nos mudarmos
para a zona subterrânea, ou, para ser mais exato, para de
baixo do oceano.
Como detínhamos essa tecnologia, conseguimos fazer a mudança num
prazo miraculosamente curto. E em pouco tempo, depois que nos
mudamos, o mundo conf
orme o conhecemos foi consumido por uma
radiação mortal, por um bombardeio de asteróides, e por movimen
tos
sísmicos. Foi bastante perigoso, mesmo sob a superfície do oceano, porque
a certa altura o oceano quase evaporou devido ao calor intenso. Todas as
f
ormas de vida da Terra foram destruídas, exceto algumas bacté
rias
primitivas, alguns vírus e um certo número de algas verde
-
azuladas.
De repente a tela ficou branca, e a sala se iluminou de novo. Todos
permaneceram calados.
—
Bom, foi isso
—
disse Arak.
—
Uma cápsula concentrada da
história e dos conhecimentos científicos de Interterra. Agora, tenho certeza
de que querem fazer algumas perguntas.
—
Quanto tempo durou o Período das Trevas?
—
indagou Suzanne.
—
Pouco mais de vinte e cinco mil anos
—
respondeu
Arak.
Suzanne sacudiu a cabeça, perplexa e descrente, mas tudo aquilo
fazia um
pouco de sentido do ponto de vista científico. E o mais im
portante é que
explicava a realidade que ela presenciava naquele mo
mento.
—
Mas vocês ficaram sob o oceano
—
disse P
erry.
—
Por que seu
povo não voltou para a superfície da Terra?
—
Por dois motivos principais
—
disse Arak.
—
Em primeiro lu
gar
tínhamos tudo de que necessitávamos e havíamos nos acostumado a
nosso ambiente. E o segundo motivo foi que, quando a vida na su
per
fície
evoluiu de novo, as bactérias e os vírus que se desenvolveram eram
organismos aos quais jamais havíamos sido expostos. Em outras
palavras
,
quando o clima chegou a permitir que reemergíssemos, a biosfera era
contrária a nós do ponto de vista antig
ênico. Talvez letal seja uma palavra
melhor, a menos que quiséssemos passar por uma adaptação muito
custosa. E então, ficamos aqui até hoje, muito contentes e feli
zes,
principalmente porque aqui, sob o oceano, não estamos sujeitos aos
caprichos da naturez
a. De todo universo que visitamos até agora, este
pequeno planeta é o que melhor se adapta ao organismo humano.
—
Agora entendo por que precisamos passar por uma descontami
-
nação tão exaustiva
—
disse Suzanne.
—
Tínhamos que ficar totalmen
te
isentos de mi
croorganismos.
—
Exato
—
disse Arak.
—
E ao mesmo tempo precisavam adap
tar
-
se
aos nossos organismos.
—
Em outras palavras
—
continuou Suzanne
—
, a evolução ocor
reu
duas vezes na Terra, sendo o resultado essencialmente o mesmo.
—
Quase o mesmo
—
corrigiu
Arak.
—
Houve algumas diferen
ças
em algumas espécies. A princípio ficamos surpresos com isso, mas depois
fez sentido, uma vez que o DNA original é o mesmo. A vida multicelular
evoluiu a partir das mesmas algas verde
-
azuladas em am
bos os casos,
aproximada
mente nas mesmas condições climáticas.
—
E é por isso que vocês se denominam seres humanos de primei
ra
geração
—
disse Suzanne
—
e nos chamam de humanos de segunda
geração.
Arak sorriu de satisfa
ção.
—
Contávamos que entendesse tudo isso tão rapidamente q
uanto
entendeu, Dra. Newell
—
disse.
Suzanne virou
-
se para Perry e Donald.
—
Estudos científicos confirmam uma parte de tudo isso
—
disse.
—
Tanto os indícios geológicos quanto os oceanográficos sugerem que houve
um único continente na Terra antigamente, d
enominado Pangéia.
—
Perdão
—
disse Arak.
—
Não tenho a intenção de interrompê
-
la,
mas isso não corresponde a nosso continente original. Pangéia vol
tou a se
formar durante a última parte das perturbações geológicas do
Período das
Trevas. Nosso continente
sofreu uma destruição total na astenosfera antes
disso.
Suzanne indicou que entendia, com a cabe
ça.
—
Muito interessante
—
disse ela.
—
E deve ter sido
esse
o moti
vo
pelo qual o registro fóssil da primeira evolução se perdeu.
Arak sorriu, satisfeito, uma
segunda vez.
—
Sua compreensão desses conhecimentos básicos é
bastante
encoraj
adora, Dra. Newell. Mas já havíamos percebido isso antes que
chegasse aqui.
—
Antes que eu chegasse?
—
indagou Suzanne.
—
O que quer dizer
com isso?
—
Nada
—
acrescentou Arak, ma
is que depressa.
—
Absoluta
mente
nada. Talvez devêssemos recordar a seus colegas que foi o rom
pimento de
Pangéia que levou à formação da configuração atual dos continentes.
—
É verdade
—
concordou Suzanne enquanto olhava Arak, ansio
sa.
Tinha a sensação
incômoda de que Arak estava escondendo algo dela.
Olhou para Donald e Perry e imaginou até que ponto estavam entenden
-
do aquilo. A apresentação de Arak estava claramente além da capacidade
de compreensão de Richard e Michael. Ambos pareciam estudantes
ente
diados.
—
Bom, gente
—
disse Arak, procurando manifestar certo entu
-
siasmo esfregando as mãos uma na outra
—
, imagino como devem es
tar
reagindo a todas essas informações. É uma experiência atemorizante ver
contestadas todas as suas idéias preconcebidas e
aceitas. É por isso que
vimos insistindo em introduzi
-
los devagar no nosso mundo. Arris
caria o
palpite de que já receberam bastantes informações por meio de palestra,
talvez até demais. A essa altura, acho que seria melhor lhes mostrar
algumas das nossas
formas de viver em primeira mão.
—
Quer dizer que vai nos levar à cidade?
—
indagou Richard.
—
Se isso for do gosto de todos
—
disse Arak.
—
Estou dentro
—
disse Richard, ávido.
—
Eu também
—
disse Michael.
—
E o restante de vocês?
—
indagou Arak.
—
Eu vou
—
disse Suzanne.
—
É claro que vou
—
disse Perry quando Arak olhou para ele.
Quando foi a vez de Donald, ele simplesmente confirmou com a cabeça.
—
Maravilha
—
disse Arak.
—
Agora, se derem a mim e a Sufa
alguns minutos, permanecendo em seus lugares, provi
denciaremos
tudo.
—
Estendeu a mão para Sufa, e ela também se ergueu. Juntos eles
pas
saram à saleta de reuniões contígua.
Perry sacudiu a cabe
ça.
—
Estou me sentindo abalado. Essa situação inteira está ficando
totalmente inacreditável.
—
Não sei se devo a
creditar em alguma coisa
—
disse Donald.
—
O irônico é que tudo me parece fantástico demais para não ser
verdade
—
disse Suzanne.
—
E tudo faz um certo sentido do ponto de
vista científico.
—
Olhou para Ismael e Mary Black, que se encontra
vam
sentados pac
ientemente.
—
Por favor, gente, contem
-
nos sua história. É verdade que vie
ram
do mundo da superfície?
—
Sim, é
—
confirmou Ismael.
—
De onde?
—
indagou Perry.
—
De Gloucester, Massachusetts
—
disse Mary.
—
Não brinca
—
disse Michael. Endireitou
-
se na cade
ira.
—
Ora, eu
também sou de Massachusetts, de Chelsea. Já estiveram lá?
—
Já ouvi falar
—
disse Ismael
—
, mas nunca estive lá.
—
Todos de North Shore já estiveram em Chelsea
—
disse Michael,
contendo o riso.
—
Porque lá fica uma ponta da Ponte Tobin.
—
Nu
nca ouvimos falar dessa Ponte Tobin
—
disse Ismael. Os olhos
de Michael semicerraram
-
se de desconfiança.
—
Como vieram parar aqui em Interterra?
—
indagou Richard.
—
Tivemos muita sorte
—
disse Mary.
—
Muita sorte mesmo.
Exatamente como vocês.
—
Estavam mer
gulhando?
—
indagou Perry.
—
Não
—
disse Ismael.
—
Enfrentamos uma tormenta terrível no
caminho dos Açores para a América. Era para termos morrido afogados
como os outros passageiros do navio. Mas, como disse a Mary, tivemos
sorte, e fomos salvos por acaso
, por um veículo interplanetário
interterráqueo. Literalmente fomos sugados pela mesma porta de saída
que vocês, e depois ressuscitados pelos interterráqueos.
—
Qual o nome do navio de vocês?
—
perguntou Donald.
—
Chamava
-
se
Tempest
—
disse Ismael
—
, o que
se revelou bem ade
-
quado, considerando
-
se o destino que teve. Era uma escuna de Gloucester.
—
Escuna?
—
indagou Donald, estranhando aquilo.
—
Em que ano
isso ocorreu?
—
Deixe
-
me ver se me lembro
—
disse Mary.
—
Eu tinha 16 anos.
Então foi em 1801.
—
Ai meu
Deus do céu
—
murmurou Donald. Fechou os olhos e
passou a mão na cabeça calva. Havia raspado a cabeça naquela manhã.
—
E vocês ainda perguntam o motivo do meu ceticismo!?
—
Mary, isso foi há uns duzentos anos
—
disse Suzanne.
—
Eu sei
—
disse Mary.
—
É di
fícil crer, mas não é maravilhoso?
Olha como parecemos jovens.
—
Espera que acreditemos que você tem mais de duzentos anos?
—
indagou Perry.
—
Vão levar tempo para entender o mundo no qual se encontram
agora
—
disse Mary.
—
Só posso lhes dizer que deviam t
entar evitar
formar qualquer opinião antes de terem visto e ouvido mais. Podemos nos
lembrar de como nos sentíamos quando nos deram essas mesmas
informações. E lembrem
-
se de que para nós tudo foi ainda mais
estarrecedor, uma vez que sua tecnologia evoluiu
muito nos últimos
duzentos anos.
—
Apóio a Mary nesse conselho
—
disse Ismael.
—
Tentem man
ter
em mente o que Arak disse no início da sessão. O tempo tem um
significado diferente aqui em Interterra. Aliás, os interterráqueos não
morrem da mesma forma que
na superfície.
—
Não morrem o cacete
—
sussurrou Michael.
—
Cale essa boca
—
sussurrou Richard em resposta, entre os dentes.
1
1
3
3
Para Perry e os outros, o táxi aéreo parecia o mesmo que haviam to
-
mado no dia anterior, mas Arak disse que era um modelo mais
recente e
muito superior. Independentemente disso, ele levou o grupo de uma
forma igualmente fácil e silenciosa do terreno do palácio dos visitantes
para a movimentada cidade.
—
Os imigrantes em geral passam uma semana inteira na sala de
conferências antes
de se aventurarem a sair assim
—
disse Sufa.
—
Pode
ser pesado para o intelecto, bem como para as emoções. Esperamos não
estar indo rápido demais com vocês.
—
Têm alguma idéia a expor a respeito disso?
—
indagou Arak.
—
Naturalmente estamos abertos a suge
stões.
Os componentes do grupo se entreolharam, cada qual esperando
que o outro respondesse. Como Sufa havia dito, a situação era de
estarrecer, principalmente com a nuvem de outros táxis aéreos passan
do
rapidamente em todas as direções concebíveis. Só o
fato de não co
lidirem
entre si já era qualquer coisa de espetacular.
—
Ninguém tem uma opinião?
—
persistiu Arak.
—
Tudo aqui é impressionante
—
admitiu Perry.
—
Assim, é difí
cil
dar opinião. Mas creio que, do meu ponto de vista, quanto mais eu
vir,
melh
or. O fato de meramente experimentar sua tecnologia, como viajar
nesse táxi aéreo, torna tudo que disse mais aceitável.
—
O que vai nos mostrar?
—
indagou Suzanne.
—
Essa foi uma decisão difícil
—
disse Arak.
—
Por isso Sufa e eu
levamos tanto tempo organi
zando tudo. Foi difícil resolver por onde
começar.
Antes que Arak pudesse terminar, o aerodeslizador parou subita
-
mente, depois desceu rápido. Um momento depois, a porta de saída
apareceu onde antes não havia sequer sinal dela.
—
Como é que a porta se abre
assim?
—
indagou Perry.
—
É uma transformação molecular no material compósito
—
dis
se
Arak. Gesticulou para que todos desembarcassem.
Perry inclinou
-
se para Suzanne quando se levantou.
—
Bela explicação
—
reclamou.
O táxi aéreo havia deixado o grupo dian
te de um prédio relativa
-
mente baixo, sem janelas, revestido do mesmo basalto negro que os outros
prédios. Seus lados tinham cerca de trinta metros de comprimento e seis
metros de altura, inclinavam
-
se num ângulo de sessenta graus criando
uma pirâmide trun
cada atarracada. Havia pouco movimento de pedestres.
Mesmo assim, no momento em que apareceram os huma
nos secundários,
começou a formar
-
se uma pequena multidão.
—
Espero que vocês não se importem de serem celebridades
—
disse
Arak.
—
Como tenho certeza de
que perceberam ontem à noite, toda a
Saranta está encantada com a chegada de vocês.
A multidão que estava se reunindo era turbulenta, porém educada.
Os que estavam mais próximos aos visitantes estendiam as mãos ansio
sos,
procurando pressionar as palmas c
om eles. Richard e Michael ado
raram
fazer isso, principalmente com as mulheres. Arak teve que agir como
guarda
-
costas para conseguir fazer o grupo passar pela porta, prin
-
cipalmente os dois mergulhadores. A multidão ficou do lado de fora,
respeitosa.
—
Es
tou gostando cada vez mais desse lugar
—
disse Richard.
—
Que bom
—
disse Arak.
—
Todos são muito cordiais
—
disse Suzanne.
—
Claro
—
disse Sufa.
—
É nosso modo de ser. Além disso, vocês
são extraordinariamente divertidos.
Suzanne olhou de relance para Dona
ld, para ver sua reação. Ele só
meneou quase imperceptivelmente a cabeça, como se suas suspeitas se
confirmassem.
Lá dentro, o grupo se viu em uma enorme sala quadrada com inte
-
rior negro em vez do branco de costume. Era bem simples, sem decora
ção,
nem mo
bília, nem mesmo portas, fora a de entrada. Vários interterráqueos
estavam de pé na sala, de frente para paredes despoja
das. Quando viram
quem havia chegado, começaram a se movimentar.
Arak passou rapidamente com os cinco para uma parte vazia da
parede e
murmurou qualquer coisa no comunicador de pulso. Para es
-
panto do grupo, a parede diante deles se abriu da mesma forma que a
porta do t
áxi aéreo. Arak os arrebanhou para um pequeno cubículo atrás
dela.
—
Um dia você precisa me explicar como funciona esse m
ecanis
mo
de abertura e fechamento
—
disse Perry a Arak. Perry pousou a mão na
parede assim que entrou na sala menor porém igualmente vazia. A
textura e a condutividade térmica do material lhe lembraram alguma
coisa semelhante à fibra de vidro.
—
Certament
e
—
disse Arak, mas estava ocupado falando no
comunicador. Um momento depois, a parede vedou
-
se e a sala mer
gulhou.
Todos instintivamente se agarraram em quem estivesse mais próxi
-
mo, uma vez que tinham ficado praticamente destituídos de peso.
—
Meu Deus!
—
deixou escapar Michael.
—
A sala está caindo.
—
É só um elevador
—
disse Arak.
Todo o grupo de humanos de segunda gera
ção riu, envergonhado.
—
Ora, como é que eu ia saber?
—
queixou
-
se Michael. Achou que
os outros estavam rindo dele.
—
Voltando à decisão
do que lhes mostrar
primeiro
—
disse Arak.
—
Sufa e eu resolvemos fazer o contrário do que
talvez vocês fizessem na superfície. Em vez de lhes mostrar a vida do
berço ao túmulo, pen
samos em mostrar
-
lhes a vida do túmulo ao berço.
—
Arak deu um sorriso ma
licioso ao apresentar essa inversão claramente
ilógica, e Sufa imitou
-
o.
—
Devemos estar indo para algum lugar muito profundo
—
disse
Suzanne. Estava preocupada demais pelas cercanias para reagir ao co
-
mentário de Arak. Embora não houvesse ruído nem movime
nto per
-
ceptível, a imponderabilidade comparativa lhes indicava a velocidade de
descida.
—
Estamos mesmo indo bem fundo
—
disse Arak.
—
E, por con
-
seguinte, vai estar meio quente lá embaixo.
Finalmente a velocidade da descida reduziu
-
se, e todos instintiva
-
mente se prepararam. Perry pôs a mão na parede outra vez e sentiu uma
onda térmica antes de sua abertura. Arak e Sufa foram na frente ao saírem.
Corredores profusamente iluminados se estendiam em três direções:
diretamente à frente, e para ambos os lados.
Cada um era um estudo de
perspectiva. Podiam
-
se também ver múltiplos outros corredores orien
-
tados em ângulos retos.
Um pequeno veículo aberto aguardava
-
os próximo ao elevador. Ele
parecia ser fruto da mesma tecnologia do táxi aéreo, uma vez que paira
va
silenciosamente a alguns metros do chão. Arak fez sinal para que todos
entrassem. Perry e Suzanne subiram com Sufa, mas Donald hesitou,
efetivamente impedindo que Richard e Michael subissem. Inspecionou até
onde pôde os corredores aparentemente intermináve
is. Como Arak havia
avisado, o ar estava quente. O alto da cabeça de Donald brilhava de suor.
—
Por favor
—
disse Arak, indicando um lugar no pequeno ôni
bus
antigravitacional.
—
Isso parece uma espécie de presídio
—
disse Donald,
desconfiado.
—
Não é presí
dio
—
garantiu
-
lhe Arak.
—
Não há presídios
em Interterra.
Michael olhou Richard de relance e fez um sinal com o polegar para
cima.
—
Se não é presídio, então o que é?
—
indagou Donald.
—
É uma catacumba
—
disse Arak.
—
Não precisam se preocu
par. É
totalm
ente segura, e só vamos ficar aqui durante o tempo que durar nossa
curta visita instrucional.
Relutante, Donald subiu no ônibus. Estava claro que ele não estava
lá muito mais animado para visitar um cemitério subterrâneo do que
estaria por se encontrar em
uma prisão. Richard e Michael o seguiram.
Depois que Arak se sentou, disse algo ao microfone do console. Dentro de
segundos, já estavam disparando pelo corredor como um trem ex
presso
silencioso, salvo pelo som do vento.
O motivo para usarem o veículo fico
u claro depois de eles terem
viajado alguns minutos. Viajando o mais rápido que podiam a uma
velocidade ampliada pela proximidade das paredes, cobriram uma grande
distância dentro do que se revelou uma imensa malha labiríntica sub
-
terrânea. Depois de um qu
arto de hora e meia dúzia de curvas em ân
gulo
reto estonteantes, o veículo reduziu a velocidade e parou.
Várias saletas saíam de cada corredor, e em uma delas Arak entrou,
conduzindo o grupo. Donald deixou claro que não estava feliz por esítar
tão isolado
, e ficou ao lado da porta.
As paredes da saleta estavam repletas de nichos. Arak foi até um de
-
terminado nicho, na altura do peito, e retirou dele uma caixa e um livro.
—
Já faz muito tempo que não venho aqui
—
disse. Espanou a
poeira de cima dos dois obj
etos.
—
Esta caixa é o meu túmulo.
—
Ergueu
-
a. Era preta e mais ou menos do tamanho de uma caixa de sapatos.
—
E
este livro contém a lista das datas de todas as minhas mortes anteriores.
—
Mas que cascata!
—
deixou escapar Richard.
—
Agora quer que
acredit
emos que você ressurgiu dos mortos! E não uma vez, mas várias.
Ora, qual é, compadre!?Suzanne viu
-
se concordando com a cabeça,
enquanto Richard ex
pressava a reação dela. Exatamente quando estava
começando a crer em tudo que estavam lhe dizendo, Arak preci
sava vir
com uma decla
ração que desafiava qualquer tentativa de credulidade. Ela
olhou de relance para Perry para ver se ele havia reagido da mesma forma.
Mas Perry estava hipnotizado pelo livro, que Arak havia colocado em
suas mãos.
Arak abriu com cuidad
o a tampa da caixa, olhou o conteúdo, de
pois
passou
-
o para que todos o examinassem. Suzanne espiou, relutan
te,
incerta do que ia ver. Mas era apenas uma camada de cabelos.
Arak e Sufa sorriram juntos. Era como se estivessem se divertindo
com a confus
ão d
os seus hóspedes.
—
Permitam
-
me que lhes explique
—
disse Arak.
—
Na caixa há um
cacho de cabelos de cada um dos meus corpos anteriores. Os cor
pos em si
foram devolvidos à astenosfera derretida, que não fica distan
te de onde
nos encontramos. Como já deve
m ter imaginado, tudo se recicla em
Interterra.
—
Não entendi
esse
livro
—
disse Perry. Folheou algumas pági
nas,
olhando de relance as colunas de números escritos à mão, que não faziam
sentido, pois não eram datas como as do calendário gregoriano. Havia
c
entenas delas, o que tornava tudo mais complicado ainda.
—
Não pode mesmo entender
—
disse Arak com um sorriso brin
-
calhão.
—
Ainda não. Ou pelo menos não até subirmos para a câmara de
processamento principal.
—
Tirou o livro de Perry e recolocou
-
o no nich
o
junto com a caixa.
Confuso, o grupo seguiu Arak para fora da saleta e voltou a subir no
veículo antigravitacional. A viagem de volta pareceu levar menos tempo
que a de ida, e logo chegaram ao elevador.
—
Se esperam que aprendamos alguma coisa dessa visit
inha, en
tão
não deu certo
—
disse Suzanne, ao entrarem no elevador.
—
Mas vai dar
—
garantiu
-
lhe Arak.
—
Tenha um pouco de pa
-
ciência.Saíram do elevador num andar apinhado de seres humanos primá
-
rios, e alguns clones operários. Estava tão cheio que foi di
fícil o grupo
permanecer junto, especialmente quando alguns indivíduos reconhe
ceram
os humanos secundários, da festa da noite anterior, e vieram assediá
-
los,
na esperança de pressionar palmas com eles. Richard e Michael foram os
mais procurados.
Apesar de
ssa multidão, Arak e Sufa acabaram conseguindo levar
seus hóspedes até uma grande tela. Na tela se viam centenas de nomes de
indivíduos seguidos por números de salas e horas. Arak olhou
-
a alguns
momentos, antes de encontrar um nome conhecido.
—
Ora, vejam
—
disse Arak a Sufa. Apontou um dos nomes.
—
Reesta resolveu falecer. Mas que maravilhosa conveniência! E ele reser
vou
a sala trinta e sete. Não poderia ser melhor. É uma das mais novas, com a
aparelhagem de transferência bem visível.
—
Já era hora dele f
alecer
—
comentou Sufa.
—
Ele vem recla
mando
muito daquele corpo, há anos.
—
Será perfeito para nosso objetivo
—
disse Arak.
—
Talvez, tendo decidido isso, eu vá ao centro de fertilização
—
disse Sufa.
—
Isso vai me dar chance de preparar as coisas e dize
r aos
clones que o grupo vai aparecer por lá em breve.
—
Idéia maravilhosa
—
exultou Arak.
—
Devemos estar lá antes de
uma hora. Veja se consegue programar para vermos uma emersão mais ou
menos a essa hora.
—
Vou tentar
—
disse Sufa.
—
E que tal levar o gr
upo para nossos
aposentos depois?
—
A idéia era justamente essa
—
disse Arak.
—
Só espero que te
-
nhamos tempo.
—
Até daqui a pouco
—
disse Sufa, enquanto tocava palmas de leve
com Arak. Depois se foi.
—
Muito bem, gente
—
continuou Arak, voltando ao grupo
—
,
vamos tentar ficar todos juntos. Se alguém se separar do grupo, é só
perguntar onde fica a sala trinta e sete.
—
Arak partiu, abrindo cami
nho
entre as pessoas aglomeradas que olhavam a tela.
Suzanne fez questão de ficar perto dele tanto quanto pôde.
—
"Falecer" é um eufemismo igual ao do nosso mundo?
—
inda
gou
Suzanne.
—
Semelhante, seria mais correto
—
respondeu Arak. Os mergu
-
lhadores lhe chamaram a atenção, pressionando as palmas de todas as
mulheres que viam.
—
Richard e Michael
—
chamou.
—
Por fav
or,
mantenham
-
se perto do grupo! Haverá muito tempo para pressionar
palmas esta noite. Vocês terão tempo de folga.
—
Vamos testemunhar algum tipo de eutanásia?
—
indagou
Suzanne, com um pressentimento.
—
Meu Deus, não!
—
respondeu Arak.
—
Ismael e Mary dis
seram que vocês não morrem como nós
—
comentou Suzanne.
—
Correto
—
disse Arak. Depois teve que parar e voltar para onde
Richard e Michael se encontravam rodeados de gente. Enquanto ele li
-
berava os dois mergulhadores, Suzanne chegou perto de Perry.
—
Não
estou preparada para presenciar nenhuma cena mórbida
—
disse.
—
Nem eu
—
disse Perry.
—
Talvez devêssemos ter preferido ouvir mais palestras antes dessa
excursão prática
—
disse Suzanne, tentando fazer um pouco de graça.
Perry soltou uma risada sem gra
ça.
Arak conseguiu fazer Richard e Michael avançarem, e ficou com eles
para afastar os fãs entusiasmados. Suzanne e Perry seguiram
-
nos com
Donald logo atrás. Nessa configuração conseguiram chegar diante da
porta da sala 37.
Perry olhou para o relevo da grande
porta de bronze. Reconheceu
-
o
como o cão de três cabeças, Cérbero, que guardava o mundo dos mortos
na mitologia grega. Surpreso, mencionou
-
o a Arak.
—
Não o copiamos dos
seus gregos
—
disse Arak, com um sorri
so.
—
Não, foi justamente o
contrário.
—
Quer di
zer que os gregos o copiaram de Interterra?
—
indagou
Perry.
—
Exato
—
disse Arak.
—
Como assim?
—
perguntou Perry.
—
Por causa de uma experiência fracassada
—
disse Arak.
—
Há
milhares de anos, um contingente de indivíduos liberais de Atlântida
passou pel
a dura adaptação à superfície com planos grandiosos de mo
-
dificar o desenvolvimento sociológico da superfície da Terra. Infeliz
mente,
foi um fracasso. Depois de várias centenas de anos de tentativas vãs, ficou
dolorosamente óbvio que não havia meio de alt
erar a tendên
cia dos
humanos de segunda geração para a violência. Portanto, aban
donou
-
se
toda a experiência. Mesmo assim, vários legados interterráqueos
restaram depois que a ilha que erigiram afundou, como nossas formas
arquitetônicas, o conceito de d
emocracia e um conheci
mento superficial
de nossa mitologia primitiva, inclusive o Cérbero.
—
Então houve base real para a lenda de Atlântida
—
exclamou
Suzanne.
—
Mas é claro
—
disse Arak.
—
Atlântida empurrou para cima uma
das portas de saída em montanha
s submarinas para formar uma ilha logo
diante da entrada do mar Mediterrâneo.
—
Ei, espera só um pouquinho aí!
—
protestou Richard.
—
Va
mos
parar com essa conversa mole! Ou a gente entra ou eu e o Mike vamos
voltar para o salão principal, onde estão rolan
do as coisas le
gais.
—
Está bem, desculpe
—
disse Arak. Depois, acrescentou para
Suzanne:
—
Podemos conversar mais sobre a experiência de Atlântida em
outra ocasião, se quiserem.
—
Gostaria muito disso
—
disse Suzanne. Depois, quando Arak
abriu a porta, e
la se inclinou para falar com Perry.
—
Platão situa a ilha de
Atlântida diante do Estreito de Gibraltar, nos seus
Diálogos.
—
Verdade?
—
disse Perry. Mas já estava concentrado nos sons e nas imagens da cena
além da porta de bronze. Estava longe de ser mór
b
ida, como Suzanne
temia. Era uma festa bastante alegre, que fazia lem
brar aquela à qual o
grupo havia comparecido na noite anterior, porém em menor escala. A
sala tinha apenas o tamanho de uma sala de estar grande. As cento e
poucas pessoas, mais ou menos
, que se encontravam reunidas ali estavam
vestidas com os trajes do costume, menos um in
divíduo que se destacava
visivelmente. Estava de vermelho, em vez de branco. Nos fundos da sala,
embutido na parede, havia um enorme equi
pamento em formato de rosca
q
ue lembrou a Perry uma máquina de ressonância magnética. Perto dele
havia uma mesa com uma caixa e um livro semelhantes aos que Arak
havia mostrado ao grupo na catacumba mais abaixo.
—
Arak!
—
exclamou o homem de vermelho quando enxergou os
novos visitante
s.
—
Que surpresa agradável!
—
Imediatamente pediu
licença às pessoas que estavam conversando e foi até a porta.
—
E trou
xe
seus pupilos! Sejam bem
-
vindos!
—
Minha nossa
—
sussurrou Suzanne a Perry quando o homem de
vermelho se aproximou.
—
Eu o conheci o
ntem à noite.
—
Suzanne
lembrou
-
se perfeitamente dele, era um dos dois homens que haviam
vindo falar com ela e Garona.
—
Ele nem parece que está para falecer.
—
Para ela, ele parecia ser a própria imagem da saúde e o arquétipo de
atratividade masculina com
seus espessos cabelos negros, a pele impe
-
cável e os olhos cintilantes. Imaginou que ele talvez tivesse trinta e tan
tos
anos.
—
Isso aqui não parece nenhum velório
—
comentou Perry.
—
Obrigado, Reesta
—
disse Arak.
—
Achei que não se importa
ria
se nosso
s visitantes presenciassem sua festa. Conheceu
-
os na come
-
moração de ontem à noite?
—
Tive a honra de conhecer a Dra. Newell
—
disse Reesta. Cum
-
primentou Suzanne com uma reverência e depois estendeu
-
lhe a palma da
mão.Meio constrangida, Suzanne tocou
-
lhe
a palma com a sua. Ele sor
riu,
radiante.
—
Deixe
-
me apresentar
-
lhe Perry, Donald, Richard e Michael
—
disse Arak. Apontou para os homens enquanto falava. Reesta reagiu
fazendo uma reverência para cada um por sua vez. Richard e Michael não
estavam prestand
o muita atenção. Estavam mais interessados nas
convidadas, várias das quais já haviam visto na noite anterior.
—
Sufa e eu decidimos mostrar aos nossos visitantes um pouco da
nossa cultura
—
continuou Arak.
—
Estamos fazendo isso antes de dar
-
lhes muitas e
xplicações. Achamos que pode reduzir a descrença com que
em geral deparamos durante a orientação.
—
Um plano maravilhoso
—
comentou Reesta.
—
Entrem! Por
favor.
—
Saiu do caminho e fez um gesto gracioso para que entrassem.
"Então eles não fazem idéia do mo
tivo dessa comemoração?
—
perguntou Reesta enquanto os humanos de segunda geração enchiam a
sala.
—
Não exatamente
—
disse Arak.
—
Ah, mas que inocência maravilhosa
—
comentou Reesta.
—
É tão
reanimador!
—
Mas acabamos de visitar meu nicho
—
acrescentou Ar
ak.
—
Só
que eu, propositalmente, não lhes dei uma explicação completa.
—
Abordagem magnífica
—
comentou Reesta, enquanto piscava e
dava a Arak uma cutucada com o cotovelo. Depois olhou para o gru
po,
antes de encontrar os olhos de Suzanne.
—
Hoje é um dia
impor
tante para
mim. Hoje este meu corpo vai morrer.
Suzanne não pôde evitar um recuo diante dessa notícia. Não só o
homem parecia perfeitamente saudável, mas também agia como tal. O
anúncio captou a atenção até mesmo de Richard e Michael.
—
Ah, mas não
se desesperem
—
disse Reesta, sorrindo do temor de
Suzanne.
—
Aqui em Interterra é uma hora razoavelmente feliz, mais uma
inconveniência ou aborrecimento. E para mim já era tempo. Este corpo
aqui foi um abacaxi desde o início. Tive que substituir muitos
ór
gãos e os
joelhos duas vezes. Todos os dias parece que surge um novo problema. E
acabei de ouvir esta manhã que o tempo de espera para um novo corpo
caiu para quatro anos, devido à falta de demanda atual. Por algum motivo,
ninguém anda morrendo ultimamente
.
—
Só quatro anos!
—
exclamou Arak.
—
Maravilhoso! Estava
imaginando por que você decidiu tão subitamente. Na semana passada
mesmo você havia dito que estava pensando em fazer alguma coisa as
sim
nos próximos dois anos.
—
É uma dessas coisas que nunca par
ece conveniente
—
disse
Reesta.
—
Andava adiando isso, preciso admitir. Mas agora não posso
deixar passar essa oferta momentânea de curto prazo de reencarnação.
—
Me perdoe
—
disse Perry.
—
Estou confuso, mas quanto tem
po
vocês vivem aqui em Interterra?
—
Depende do que deseja saber
—
disse Reesta, com um brilho nos
olhos.
—
Há uma grande diferença entre o corpo e a essência em termos
de duração da vida por aqui.
—
Cada corpo em geral dura de duzentos a trezentos anos
—
disse
Arak.
—
Mas pode haver exceçõe
s.
—
Como tive que aprender do pior jeito
—
acrescentou Reesta.
—
Só
consegui fazer este aqui durar cento e noventa. Foi o pior que já tive.
—
Está insinuando que o dualismo corpo
-
mente existe em
Interterra?
—
indagou Suzanne.
—
Sim, de fato
—
disse Arak.
Sorriu como um pai orgulhoso. Depois,
dirigindo
-
se a Reesta, acrescentou:
—
A Dra. Newell aprende rápido.
—
Está na cara
—
disse Reesta.
—
De que diabo vocês estão falando?
—
indagou Richard.
—
Se ouvisse em vez de ficar aí embasbacado, teria uma idéia me
-
lhor
—
disse Suzanne.
—
Perdoe
-
me!
—
disse Richard, imitando sotaque britânico.
—
O que entende por "essência"?
—
perguntou Perry.
—
Refiro
-
me a
sua mente, a sua personalidade, todo o complemen
to de seu ser espiritual
e mental
—
disse Arak.
—
Tudo aquilo q
ue faz de você o que você é. E
aqui em Interterra as essências vivem para sem
pre. São transferidas
intactas de um corpo antigo para um novo.
Suzanne e Perry apresentaram uma torrente de perguntas, depois
Perry tentou dar a vez a Suzanne. Mas Arak ergueu a
s m
ãos para fazer
ambos se calarem.
—
Lembrem
-
se de que somos intrusos aqui
—
disse.
—
Tenho cer
-
teza de que têm muitas dúvidas. É
esse
o objetivo dessa visita. Seria falta
de educação interromper esse momento particular, de forma que darei
maiores explica
ções depois.
—
Depois se voltou para Reesta.
—
Obriga
do,
meu amigo. Não incomodaremos mais. Parabéns, e bom descanso.
—
Não precisa agradecer a mim
—
disse Reesta.
—
E uma honra que
tenha trazido esses hóspedes. A presença deles torna a ocasião ain
da mai
s
especial.
—
Vamos nos comunicar depois
—
disse Arak.
—
Quando vai
morrer?
—
começou a reunir o grupo, para retornarem pela porta.
—
Um pouco mais tarde
—
disse Reesta, na maior naturalidade.
—
Vamos ocupar a sala durante mais algumas horas. Mas aguarde!
Arak parou e se voltou para o amigo.
—
Acabei de ter uma idéia
—
disse Reesta, empolgado.
—
Talvez
nossos hóspedes de segunda geração gostassem de me ver morrer.
—
É uma oferta muito generosa
—
disse Arak.
—
Certamente não
queremos impor nossa presença, ma
s seria muito instrutivo.
—
Não é imposição nenhuma
—
disse Reesta, já animado com a
idéia.
—
Já aproveitei bem a festa, e eles podem continuar sem a minha
presença física.
—
Então, aceitamos
—
disse Arak. Acenou para que Richard e
Michael voltassem, uma ve
z que os mergulhadores entediados haviam ido
para o corredor.
—
Espero que não haja derramamento de sangue
—
disse Suzanne a
Arak.
—
Certamente não, em comparação com o que vocês assistem e
chamam de entretenimento lá no seu mundo da superfície
—
disse Arak
.
Reesta usou o comunicador de pulso antes de dar uma volta pela
sala e pressionar palmas com todos os presentes. Isso causou uma sensa
-
ção cada vez mais forte de empolgação. Depois ele se aproximou da mesa
sobre a qual se encontravam a caixa e o livro. Qu
ando fez isso a multi
dão
começou a aplaudir. Primeiro ele cortou um cacho de cabelos e o colocou
na caixa. Depois escreveu uma data no livro, e os aplausos co
meçaram a
aumentar.
Uma porta apareceu perto da máquina semelhante a um equipa
-
mento de ressonân
cia magnética, e dois clones operários entraram na sala.
Ambos traziam consigo taças douradas que entregaram a Reesta. Reesta
ergueu as taças e a multidão calou
-
se. Depois Reesta bebeu ambas, uma
após a outra.
Depois a multidão aplaudiu. Reesta fez uma rev
erência para os con
-
vidados e até para os humanos secundários. Depois os dois clones o
ajudaram a entrar na porta de noventa centímetros de largura do equi
-
pamento semelhante ao de ressonância magnética. Ele colocou primei
ro os
pés e deslizou para dentro
até a cabeça ficar bem além da borda. Nesse
ponto um espelho foi baixado de forma que Reesta pudesse ver os
convidados e os convidados pudessem ver seu rosto. Depois de um aceno
final, Reesta fechou os olhos e pareceu acomodar
-
se como se dormisse.
Um dos c
lones operários foi até a lateral do equipamento e colocou a
mão com a palma para baixo sobre um quadrado branco. Quase ime
-
diatamente ouviu
-
se um zunido seguido de um brilho avermelhado que
encheu a abertura do aparelho. Um momento depois, o corpo de Rees
ta
enrijeceu
-
se e os olhos se abriram. Esse estado tetânico durou vários
minutos, depois dos quais o corpo de Reesta ficou flácido, seus olhos
afundaram nas órbitas e a boca entreabriu
-
se, mostrando que morrera.
A multidão que murmurava ficou em silêncio.
O brilho
avermelhado dentro da abertura da máquina diminuiu de intensidade e o
zunido foi se
reduzindo. Depois se ouviu um forte som de sucção, seguido
pelo barulho de uma grande válvula se fechando, e o corpo de Reesta
desapareceu. Um minuto estava perfei
tamente visível, no minuto seguinte
já havia sumido. A multidão permaneceu parada e muda. Segundos se
passaram. Suzanne estava confusa emocional e intelectualmente. A morte,
em qualquer forma, a perturbava. Arriscou um olhar para Perry. Ele enco
-
lheu os om
bros, igualmente perplexo.
—
E aí, já acabou?
—
indagou Richard.
Arak fez sinal para que ele se calasse e aguardasse.
Michael apoiou o corpo no outro p
é e bocejou.
De repente todos os comunicadores de pulso de todas as pessoas se
ativaram simultaneamente,
inclusive os dos humanos secundários.
Embora Ismael e Mary Black tivessem lhes dado instruções simples para
usar as unidades
—
que era apenas falar neles num tom exclamativo
—
,
ninguém ainda os havia experimentado. Então, quan
do a voz de Reesta
saiu deles
, os cinco ficaram estarrecidos.
—
Alô, meus amigos
—
disse a voz de Reesta.
—
Tudo foi muito
bem. A morte foi bem
-
sucedida, e sem complicações. Vejo vocês daqui a
quatro anos, mas não se esqueçam de se comunicar comigo.
Uma aclamação geral saiu da boca do
s humanos primários, e ejes
entusiasticamente tocaram as palmas uns dos outros, obviamente co
-
memorando o evento.
—
A morte por aqui não é lá grande coisa
—
sussurrou Michael a
Richard.
—
É, mas acho que precisa ser desse jeito especial
—
sussurrou
Richard
.
—
É um bom momento para nos retirarmos
—
disse Arak. Tão
imperceptivelmente quanto possível, ele arrebanhou os humanos secun
-
dários para seguirem até o corredor e depois os liderou de volta aos ele
-
vadores. Suzanne e Perry estavam cheios de dúvidas, mas
Arak as adiou.
Estava ocupado demais procurando arrastar Richard e Michael. Donald
estava impassível como sempre.Só quando eles entraram de novo no táxi
aéreo foi possível conver
sar. Mesmo antes da entrada da nave se vedar,
Perry começou:
—
Temo que esta
visita vá gerar mais perguntas que respostas. Arak
concordou.
—
Então ela foi eficaz
—
disse. Colocou a palma da mão na mesa
redonda negra central e disse: "Centro de Fertilização, por favor!" Qua
se
de imediato o disco vedou
-
se, ascendeu, depois disparou
horizontal
mente.
—
O que exatamente nós testemunhamos ali?
—
indagou Suzanne.
—
A morte do corpo atual de Reesta
—
disse Arak. Ele se recostou e
voltou a relaxar. Não estava acostumado à tensão de estar em público com
um grupo tão grande e não
-
iniciado de
humanos secundários.
—
Para onde foi o corpo?
—
indagou Richard.
—
Voltou para a astenosfera derretida
—
disse Arak.
—
E a essência dele?
—
indagou Perry.
Arak fez uma pausa como se estivesse procurando palavras.
—
É difícil explicar essas coisas, mas sup
onho que vão entender se
disser que os dados da memória e a personalidade dele foram transferi
dos
para nosso centro informático integrado.
—
Cacete!
—
exclamou Michael!
—
Olha ali na frente daquele prédio!
É uma porra de um Corvette!
Apesar do interesse i
ntenso de todos nas explicações de Arak eles
não puderam deixar de reagir ao entusiasmo de Michael e seguir o dedo
que ele apontava. O que viram foi um Chevrolet Corvette antigo todo
coberto por incrustações de cracas diante do que parecia uma pilha
aleató
ria de blocos infantis.
—
O que aquele Corvette está fazendo ali?
—
indagou Michael
quando passaram zunindo por ele.
—
É um 62
—
continuou.
—
Tive um
igualzinho só que verde.
—
Esse edifício é nosso Museu da Superfície da Terra
—
explicou
Arak.
—
O automóv
el é o único objeto que sentimos que simboliza sua
cultura atual.
—
Está em péssimo estado
—
disse Michael. Voltou a sentar
-
se.
—
É óbvio
—
disse Arak.
—
Já estava há um bocado de tempo
debaixo da água antes que o recuperássemos. Mas voltando à pergunta de
Perry. Quando o clone operário começou a seqüência de morte, todo o
conteúdo mental de Reesta em termos de memória, emoções,
autoconsciência e até sua forma exclusiva de pensar foram extraídos e
armazenados na íntegra, disponíveis para serem totalmente rec
upera
dos
mais tarde.
Os humanos secundários fitaram Arak com os olhos arregalados,
num silêncio que revelava seu espanto.
—
Não só a essência de Reesta pode ser recuperada
—
continuou
Arak.
—
Pode ser consultado e se pode até conversar com ele por seu
com
unicador de pulso antes que seja recuperada. Ou, melhor ainda, não
só é possível comunicar
-
se com ele, mas também pode
-
se vê
-
lo na
configuração de seu último corpo através do centro de mídia em cada um
dos aposentos de vocês. A Central de Informações gera
uma ima
gem
virtual que combine com qualquer conversa que estejam tendo.
—
E se alguém morrer antes de chegar à máquina de transferên
-
cia?
—
indagou Richard.
—
Isso não acontece
—
disse Arak.
—
A morte é um evento pla
-
nejado em Interterra.
—
Isso é demais
para mim
—
disse Perry.
—
O que está nos dizen
do
está tão distante da credibilidade que por enquanto não sei nem o quê
perguntar.
—
Não estou surpreso
—
disse Arak.
—
Foi exatamente esse o
motivo pelo qual eu e Sufa resolvemos começar mostrando a vocês as
coisas em vez de simplesmente relatá
-
las.
—
Tive muita dificuldade para acreditar que a mente pode ser
transferida
—
disse Suzanne.
—
A inteligência, a memória e a persona
-
lidade estão associadas a conexões dendríticas dentro do cérebro huma
no.
O número
é estarrecedor. Estamos falando de bilhões de neurônios com
até mil conexões cada um.
—
É muita informação
—
concordou Arak.
—
Mas não excessi
va, pelos padrões cósmicos. E você está certa quando diz
que as cadeias de neurônios são importantes. O que nossa
central de
informações faz é reproduzir as cadeias dendríticas a nível molecular
utilizando átomos de carbono isomerizados com duplas ligações entre si.
É como uma impressão digital, chamamo
-
la de impressão mental.
—
Estou perdido
—
disse Perry.
—
Não se d
esespere
—
incentivou Arak.
—
Lembre
-
se de que
esse é
apenas o começo. Haverá tempo para que você consiga encaixar tudo isso
no seu devido contexto. Além disso, nossa visita de agora ao centro de
fertilização irá lhe mostrar o que fazemos com a impressão m
ental.
—
O que tem naquele museu da Superfície da Terra pelo qual pas
-
samos?
—
indagou Donald.
Arak hesitou. A pergunta de Donald havia interrompido a seq
üên
-
cia de seus pensamentos.
—
Quero dizer, o que exibem, especificamente?
—
disse Donald.
—
Além do C
orvette encharcado.
—
Muitos objetos variados
—
disse Arak, vagamente.
—
Uma
amostra das coisas que representam a história e a cultura dos humanos
secundários.
—
De onde vieram?
—
indagou Donald.
—
A maioria do fundo do mar
—
disse Arak.
—
Além das tragé
d
ias
marítimas e da guerra, vocês vêm usando o oceano progressiva e
tolamente como lixeira. Ficariam surpresos ao verem o que o lixo revela
sobre uma cultura.
—
Gostaria de visitá
-
lo
—
disse Donald. Arak encolheu os ombros.
—
Como queira
—
disse.
—
Você é o
primeiro visitante que apre
-
senta
esse
pedido. Considerando
-
se as maravilhas de Interterra que agora
se encontram disponíveis para você, estou surpreso por estar interessa
do
nisso. Certamente não há nada ali que já não conheça por completo.
—
Todos são d
iferentes
—
disse Donald, lacônico.Alguns minutos
depois, o táxi aéreo depositou o grupo nos degraus da frente do centro de
fertilização. Estava instalado num prédio que lembrava o Partenon, só que
era negro. Quando Perry mencionou a semelhança, Arak lhe d
isse que
outra vez era ao contrário, semelhante à adaptação grega de Cérbero, uma
vez que o centro de fertilização dos interterráqueos tinha muitos milhões
de anos de idade.
Como o centro de falecimentos, a estrutura se situava em uma par
te
menos congesti
onada da cidade. Independentemente disso, logo que
apareceram os humanos secund
ários, atraíram outra vez uma multidão,
forçando Arak a dedicar
-
se a fazer manobras para possibilitar o avanço de
Richard e Michael, para que entrassem e se pusessem fora do alc
ance das
mãos ávidas que os humanos primários lhes estendiam.
O interior desse prédio era a antítese do interior do centro de fale
-
cimentos. Era brilhante e branco, como os prédios do palácio dos visi
-
tantes. A outra diferença era que por ali havia muitos
outros clones
operários, correndo atarefados de um lado para outro.
Arak levou o grupo apressadamente até uma sala lateral com um
vasto número de pequenos tanques de aço inox que pareciam biorreatores
em miniatura para Suzanne. Estavam unidos uns aos outro
s por uma
tubulação emaranhada e complicada, formando o que parecia uma linha
de produção de alta tecnologia. O ar era úmido e quente. Vários clones
operários monitoravam diversos mostradores e medidores.
—
Essa não é a parte mais interessante
—
disse Arak
.
—
Mas é
melhor começar do princípio. Esses tanques abrigam nossas culturas de
tecido ovariano e testicular. Os óvulos e espermatozóides são seleciona
dos
aleatoriamente, e seus cromossomos são escaneados para se verifi
car se há
imperfeições moleculares,
sendo em seguida embaralhados
microssomicamente. As células germinativas reformadas são depois
verificadas, antes de serem fertilizadas. Se alguém quiser dar uma es
piada,
há uma janelinha disponível.
—
Arak apontou um dispositivo binocular
ao longo da li
nha de montagem.Suzanne foi a única que aceitou a oferta
dele. Curvou
-
se e espiou Dentro de uma minúscula câmara abaixo da
objetiva do microscópio, pôde ver um óvulo sendo penetrado por um
espermatozóide ativo. O processo aconteceu rapidamente. Um momento
depois, o zigoto já se
guira adiante, e dois novos gametas foram injetados
na câmara.
—
Mais alguém?
—
indagou Arak, depois que Suzanne se ergueu.
Ninguém se manifestou.
—
Muito bem
—
disse Arak.
—
Vamos prosseguir para a sala de
gestação e uma fase mais i
nteressante.
—
Ele os guiou por toda a sala de
gametas até um ambiente do tamanho de vários campos de futebol lado a
lado. Ali dentro havia numerosas fileiras de prateleiras que sustenta
vam
inúmeras esferas transparentes. Entre as fileiras andavam centena
s de
clones operários verificando cada esfera por sua vez.
—
Minha nossa!
—
murmurou Suzanne, quando entendeu o que
estava presenciando.
—
Os zigotos em replicação que vêm do processo de fertilização são
novamente verificados para se detectar anormalidades
cromossômicas em
nível molecular
—
explicou Arak.
—
Uma vez que se determine que estão
isentos de qualquer imperfeição, e tenham atingido o núme
ro necessário
de células, são implantados em uma esfera e podem se desenvolver.
—
Podemos andar entre as esfer
as?
—
indagou Suzanne.
—
Claro
—
disse Arak.
—
É por isso que estamos aqui, para que
possam ver com seus próprios olhos.
Vagarosamente, o grupo foi andando por um corredor de centenas
de metros de comprimento com linhas de esferas de cada lado. Suzanne
est
ava fascinada e estarrecida ao mesmo tempo. Cada esfera continha,
colada a sua base, uma placenta roxa escura e amorfa.
—
Isso tudo é muito artificial
—
comentou Suzanne.
—
Sem dúvida
—
disse Arak.
—
Toda reprodução em Interterra é feita assim por ectogêne
se?
—
indagou Suzanne.
—
Claro
—
disse Arak.
—
Não queremos deixar que o
acaso deci
da algo tão importante quanto a reprodução.
Suzanne parou e olhou para um embrião com não mais de doze
centímetros de comprimento. Ela sacudiu a cabeça. Seus minúsculos
braç
os e pernas se moviam como se nadasse.
—
O processo a perturba?
—
indagou Arak. Suzanne balançou a
cabeça afirmativamente.
—
Isso é mecanizar um processo que, creio, deveria ser deixado a
cargo da natureza.
—
A natureza é impiedosa
—
disse Arak.
—
Nós pode
mos fazer
muito melhor, e com todo o cuidado.
Suzanne encolheu os ombros. Não estava a fim de se envolver em
discussões. Começou a andar outra vez.
—
Parecem com as esferas em que vocês estavam
—
disse Perry a
Richard e Michael.
—
Não fode!
—
exclamou Rich
ard.
—
Por favor!
—
berrou Suzanne, irritada, para Richard.
—
Já es
tou
ficando cansada da linguagem que vocês dois parecem sentir a obri
gação
de usar.
—
Desculpe ter ofendido sua majestade
—
replicou Richard.
—
Esses recipientes são semelhantes, mas não
iguais
—
disse Arak,
depressa. A última coisa que ele queria era qualquer tipo de altercação no
centro de fertilização.
Suzanne parou abruptamente e espiou dentro de uma das esferas.
Ficou abestalhada com o que viu. Dentro dela havia uma crian
ça que
pareci
a ter pelo menos dois anos de idade.
—
Por que essa criança aqui ainda está na esfera?
—
perguntou.
—
É perfeitamente normal
—
garantiu
-
lhe Arak.
—
Normal?
—
contestou Suzanne.
—
Em que idade elas são...
—
procurou a palavra certa
—
decantadas?
—
Ainda diz
emos que nascem
—
disse Arak.
—
Ou, usando um
termo mais técnico, dizemos que emergem.
—
Que seja
—
disse Suzanne.
Ver aquela criança presa na esfera cheia de fluido a fazia estremecer de
náusea. Parecia tão frio, calculista e cruel.
—
Em que idade as crian
ças são
libertadas?
—
Preferivelmente, não antes dos quatro anos
—
respondeu Arak.
—
Esperamos até o cérebro adquirir maturidade suficiente para
receber a impressão mental. Além disso, não queremos que o cérebro
fique so
brecarregado com dados desorganizad
os mais do que o necessário.
Suzanne trocou olhares com Perry.
—
Venham
—
chamou Sufa. Fez sinal para que se apressassem.
—
Estão para fazer uma emersão. Tentei adiá
-
la o quanto foi
possível; precisam correr.
—
Sufa virou
-
se e disparou na direção de onde
h
avia vindo.
Arak apressou o grupo para segui
-
la, na intenção de passar rapida
-
mente por uma sala que chamou de sala de impressão, para chegarem à
sala de emersão, mais adiante. Mas Suzanne se deteve na soleira da por
ta
da sala de impressão, abalada pelo e
spetáculo.
A sala era de um quarto do tamanho da sala de gestação. Em vez de
esferas seladas com embriões, o espaço estava cheio de tanques transpa
-
rentes contendo crianças de quatro anos de aparência angelical. Cada
criança estava suspensa em fluido, mas
numa posição fixa. Os cordões
umbilicais e as placentas ainda estavam presentes, apesar das idades re
-
lativamente avançadas das crianças.
—
Não sei bem se quero ver isso
—
disse Suzanne quando Arak a
cutucou de leve.
Os outros se reuniram silenciosamente e
m torno do primeiro tan
que,
boquiabertos. A cabeça da criança estava imobilizada como que preparada
para a cirurgia cerebral estereotática. Os olhos estavam aber
tos, assim
mantidos por retratores de pálpebras, e os olhos em si se en
contravam
fixados com
suturas límbicas. De um aparelho parecido com um revólver,
raios de luz eram disparados através da lateral do tanque transparente
dentro de cada uma das pupilas da criança. Os raios pisca
vam com uma
freqüência rápida e alternativa.
—
O que está acontecend
o aqui?
—
perguntou Perry. Parecia até tortura.
—
É perfeitamente seguro e indolor
—
disse Arak. Reuniu o gru
po e
fez sinal para que Suzanne se juntasse aos outros.
—
A criança parece estar sendo bombardeada por um revólver de
videogame
—
disse Michael.
—
Posso entender por que essa seria sua dedução a partir de sua
cultura violenta
—
disse Arak.
—
Mas não poderia estar mais longe da
verdade. Para ampliar a analogia anterior sobre a transferência que usei
no centro de falecimento, essa criança está apenas
recebendo a transfe
-
rência de uma impressão mental de um indivíduo cuja essência estava
armazenada na Central de Informações. O que estão vendo aqui é o
procedimento de recuperação da essência.
Suzanne avançou vagarosamente com a mão sobre a boca. Sentia
-
s
e
como uma criança num filme de terror: com medo de olhar mas incapaz
de tirar os olhos da tela. Enquanto contemplava o garotinho imobiliza
do,
estremeceu. Para ela, a imagem era a corporificação do desvario
biotecnológico.
—
Como já viram no centro de fal
ecimentos
—
continuou Arak
—
,
levamos apenas alguns segundos para extrair a impressão mental. Mas
implantá
-
la são outros quinhentos. Precisamos usar uma técnica primitiva
de laser de baixa energia porque até hoje ninguém descobriu uma rota de
melhor acesso
do que a retina. Naturalmente, a rota retinal faz sentido,
uma vez que a retina é embrionariamente uma evaginação do cérebro. O
proces
so funciona, mas não é rápido. Aliás, pode levar até trinta dias.
—
Cacetada!
—
comentou Richard.
—
O coitado do moleque
tem
que ficar assim amarradinho durante um mês inteiro?
—
Creia
-
me, não sentem dor nenhuma
—
disse Arak.
—
E a essência da criança em si?
—
indagou Suzanne.
—
Estamos lhe dando sua essência enquanto conversamos
—
dis
se
Arak
—
juntamente com uma extraordi
nária reserva de conhecimento e
experiência.
—
Sorriu orgulhosamente.Suzanne meneou a cabeça, mas não
para concordar. Via o processo como uma exploração danada. Para ela era
uma espécie de parasitismo, incutir uma alma antiga em um recém
-
nascido inocente.
A impressão mental estava abduzindo o corpo da
criança.
—
Arak! Depressa!
—
chamou Sufa, insistentemente, de uma por
ta
do lado oposto da sala.
—
Estão perdendo o evento!
—
Vamos!
—
Arak apressou o grupo.
—
É importante que vejam
isso. É o produto acabado.
Suzanne ficou feliz por sair da frente daquela imagem inquietante
da criança amarrada. Correu atrás de Arak, evitando propositalmente
olhar para quaisquer outros tanques. Donald, Richard e Michael ficaram
para trás, hipnotizados pela visão. Michael ergueu
o dedo, e estendeu a
mão com a intenção de interromper o raio laser. Donald deu
-
lhe um tapa
na mão.
—
Pára de fazer besteira, marujo!
—
resmungou.
—
É
—
disse Richard.
—
O garoto pode perder as lições de piano
dele.
—
E soltou uma risada.
—
Isso é esquisi
to pra cacete
—
disse Michael. Contornou o tan
que
para ver se podia enxergar dentro do tambor da pistola laser.
—
Bom, veja o lado positivo
—
disse Richard.
—
E bem mais fá
cil do
que ir à escola. Se não machuca ninguém, como o Arak diz, até que eu
acho l
egal. Porra, eu detestava ir à escola.
Donald olhou para Richard, desdenhoso.
—
Como se eu não tivesse adivinhado.
Os três correram para alcançar os anfitriões. Na sala seguinte, en
-
contraram Arak, Sufa, Suzanne e Perry de pé em torno de uma área
revestida
de um estofado de cetim na base de um escorregador de aço
inox. O escorregador vinha de dentro da parede; sua extremidade supe
-
rior estava vedada por portas de vaivém duplas. Sentada no centro da
depressão almofadada estava uma linda menina de quatro anos
, já ves
tida
com os trajes típicos de Interterra. Era óbvio que havia chegado
recentemente, descendo pelo escorregador. Vários clones operários a
estavam ajudando.
—
Bem
-
vindos, cavalheiros
—
disse Arak a Donald e
aos mergu
lhadores. Apontou para a meninin
ha.
—
Quero que conheçam
Barlot.
—
Oi, docinho
-
de
-
coco
—
disse Richard numa voz fininha, de um
jeito tatibitate. Estendeu a mão para beliscar a bochecha da menina.
—
Por favor
—
disse Barlot ao se desviar da mão de Richard.
—
É
melhor não me tocar durante
quinze a vinte minutos, porque acabei de
sair do secador. Os nervos do meu integumento precisam de uma opor
-
tunidade de se adaptar ao ambiente gasoso.
Richard recuou.
—
Esses três homens também são visitantes recém
-
chegados da
superfície da terra
—
disse A
rak, indicando Donald, Richard e Michael.
—
Minha nossa
—
disse Barlot.
—
Mas que coisa maravilhosa! Cinco
visitantes da superfície ao mesmo tempo. Estou feliz por receber tamanha
h
onra no dia da minha emersão.
—
Estávamos exatamente dando boas
-
vindas a Ba
rlot, que está
retornando ao mundo físico
—
explicou Arak.
Barlot confirmou com a cabe
ça.
—
E é maravilhoso estar de volta.
—
Examinou as mãozinhas,
virando
-
as e espichando
-
as. Depois deu uma espiada nas pernas e nos pés.
Mexeu os artelhos.
—
Parece um bom
corpo
—
acrescentou.
—
Pelo
menos até agora.
—
Soltou uma risadinha espremida.
—
Acho que parece um corpo esplêndido
—
disse Sufa.
—
E que
olhos azuis tão lindos! Seu último corpo tinha olhos azuis?
—
Não, mas o anterior ao último tinha
—
disse Barlot.
—
Gosto de
variar. Às vezes permito que a cor dos olhos seja escolhida aleatoria
mente.
—
Como se sente?
—
indagou Suzanne. Sabia que era uma per
gunta
idiota, mas, sob aquelas circunstâncias, não conseguiu imaginar mais nada
para perguntar. Estava impression
ada com o marcante con
traste entre a
voz pueril e a sintaxe adulta da garota.
—
Antes de mais nada, faminta
—
disse Barlot.
—
E impaciente.
Estou louca para ir para casa.
—
Há quanto tempo estava armazenada?
—
indagou Perry.
—
Se é que essa é a palavra cer
ta.
—
Chamamos de ficar na memória
—
disse Barlot.
—
E presumo
que foram cerca de seis anos. Era o tempo de espera que divulgaram
quando fui extraída. Mas, para mim, parece que foi do dia para a noite.
Quando estamos na memória nossas essências não são pro
gramadas para
registrar a passagem do tempo.
—
Seus olhos estão doendo?
—
perguntou Suzanne.
—
Nem um pouquinho
—
disse Barlot.
—
Creio que está se refe
-
rindo às hemorragias semelhantes a chamas que sem dúvida devo ter na
esclerótica, não é?
—
Sim
—
admiti
u Suzanne. Os brancos de ambos os olhos de Barlot
estavam vermelhos, da cor de um caminhão de bombeiros.
—
Isso foi das suturas de fixação límbicas
—
disse Barlot.
—
De
vem
ter acabado de ser removidas.
—
Lembra
-
se de quando esteve no aquário?
—
indagou Mi
chael.
Barlot riu.
—
Jamais ouvi ninguém chamar o tanque de implantação de aquá
rio.
Mas, respondendo a sua pergunta, não. Minha primeira lembrança
consciente neste corpo, e em todos os corpos anteriores, aliás, foi de ter
despertado na esteira transportad
ora do secador.
—
As experiências de extração, memória e recuperação são
estressantes, sob algum aspecto?
—
perguntou Suzanne.
Barlot pensou um momento antes de responder.
—
Não
—
disse, finalmente.
—
A única parte estressante é que agora
vou precisar espe
rar até a puberdade para me divertir de verda
de...
—
Ela
riu, assim como Arak, Sufa, Richard e Michael.
—
Esta é nossa casa
—
disse Sufa, de um táxi aéreo que pairava en
-
quanto a porta de saída se materializava. Ela indicou uma construção
semelhante aos c
halés do palácio dos visitantes, porém sem os vastos
gramados. Agrupava
-
se, num estilo à la Levittown, com centenas de
outras exatamente como ela.
—
Arak e eu achamos que seria instrutivo
para vocês experimentarem como vivemos e talvez fazerem uma refei
çã
o.
Estão todos cansados demais ou gostariam de entrar para nos fazer uma
visita?
—
Eu aceitaria um rango
—
disse Richard, ávido.
—
Eu adoraria ver sua casa
—
disse Suzanne.
—
É muito hospita
-
leiro da parte de vocês.
—
Sinto
-
me honrado
—
disse Perry.
Donald
simplesmente concordou com um meneio de cabe
ça.
—
Estou morrendo de fome
—
disse Michael.
—
Então, está decidido
—
disse Sufa. Ela e Arak desceram do
aerodeslizador e fizeram sinal para que os outros os seguissem.
Como os alojamentos do centro de visitant
es, o interior era uni
-
formemente branco
—
mármore branco com tecido branco e dezenas de
espelhos. Além disso o quarto principal se abria para o exterior com uma
piscina que ia do interior até o exterior. O lugar exibia poucos móveis.
Vários painéis hologr
áficos grandes, como aqueles que o gru
po havia
visto no setor de descontaminação, constituíam a única de
coração.
—
Entrem, por favor
—
disse Sufa.
O grupo entrou em fila, observando o ambiente.
—
Até parece o meu apartamento de Ocean Beach
—
disse Michae
l.
—
Ah, corta essa!
—
zombou Richard, enquanto lhe dava um tapa
no alto da cabeça, de brincadeira.
—
Todas as casas de Interterra são abertas assim?
—
indagou Perry.
—
São, sim
—
confirmou Arak.
—
Por mais irônico que possa
parecer, nós que moramos no sei
o da Terra preferimos o ar livre.
—
Parece meio difícil de trancar
—
disse Richard.
—
Não usamos trancas em Interterra
—
explicou Sufa.
—
Ninguém rouba nada?
—
indagou Michael.
Tanto Arak quanto Sufa riram. Depois, envergonhados, pediram
desculpas.
—
Não ri
mos por querer
—
disse Arak.
—
Mas é que vocês são
muito divertidos. Nunca conseguimos prever o que vão dizer. É muito
cativante.
—
Creio que isso se deve ao nosso encantador primitivismo
—
disse
Donald.
—
Exato
—
concordou Arak.
—
Não há roubos em Interte
rra
—
disse Sufa.
—
Ninguém preci
sa
roubar, porque há bens suficientes para todos. Além do mais, nin
guém é
dono de nada. A propriedade privada desapareceu bem no começo de
nossa história. Nós, interterráqueos, simplesmente usamos aquilo de que
precisamos
.
O grupo sentou
-
se. Sufa chamou os clones operários, que surgiram
imediatamente. Junto com eles veio um dos animais de estimação que os
humanos secundários haviam visto dos táxis aéreos. De perto tinha uma
aparência ainda mais bizarra, sendo uma curiosa m
istura de cão, gato e
macaco. O animal saltou para dentro da sala e foi direto até os visitantes.
—
Sark!
—
berrou Arak.
—
Comporte
-
se!
O animal parou, obediente e, com seus olhos felinos, contemplou os
humanos secundários com uma grande curiosidade. Quand
o ficou de pé
nas patas traseiras, que eram simiescas, com cinco dedos, viu
-
se que tinha
cerca de um metro de altura. Seu nariz canino torceu
-
se ao farejar.
—
É um animal bem esquisito
—
disse Richard.
—
É um homídio
—
disse Sufa.
—
Um homídio particularme
nte
bonito, aliás. Ele não é adorável?
—
Venha cá, Sark!
—
gritou Arak.
—
Não quero que incomode
nossos convidados.
Sark imediatamente correu atrás de Arak e, de pé nas patas trasei
ras,
começou a coçar a cabeça do dono.
—
Bom garoto
—
disse Arak, satisfei
to.
—
Sirvam uma refeição aos hóspedes
—
ordenou Sufa aos clones
operários, que rapidamente desapareceram.
—
Sark parece
-
se um pouco
com um bando de animais mistura
dos para formar um só
—
disse Michael.
—
É uma forma de descrevê
-
lo
—
disse Arak.
—
Sark é u
ma qui
-
mera desenvolvida há éons atrás e que vem sendo clonada desde então. É
um animal notável. Será que alguém gostaria de ver um de seus me
lhores
truques?
—
Claro
—
disse Richard. Para ele, o animal parecia uma experiên
-
cia biológica frustrada.
—
Eu ta
mbém
—
disse Michael.
Arak ficou de pé e fez um gesto para Sark ir para fora. Seguiu o
animal e pediu a Richard e Michael que o seguissem até o pátio. Os
mergulha
dores se levantaram e foram para o jardim, onde encontraram
Arak pro
curando algo nas profund
ezas de uma moita de samambaias.
—
Muito bem, aqui está um
—
disse Arak. Ele se ergueu, com um
pequeno graveto emborrachado na mão. Voltou ao gramado.
—
Vejam,
vocês não vão acreditar nisso. É muito divertido.
—
Anda, mostra logo!
—
disse Richard, meio des
confiado. Arak
curvou
-
se e ofereceu o pau a Sark. O animal pegou
-
o com
grande
animação, tagarelando como um macaco. Depois, após descre
ver um
movimento circular com o braço, jogou o graveto para o outro lado do
jardim.
Arak observou o graveto até que toca
sse o chão. Depois se virou
para os mergulhadores.
—
Grande arremesso, não acham?
—
Nada mau
—
concordou Michael.
—
Pelo menos, para um
homídio.
Os cantos da boca de Richard se moveram, num sorriso ir
ônico.
—
Esperem até verem o resto
—
disse Arak.
—
Só um
segundo.
—
Arak correu até onde o graveto havia caído, pegou
-
o e trouxe
-
o de volta.
Tornou a dá
-
lo a Sark. O animal voltou a tomar impulso com o braço e a
jogar o graveto aproximadamente no mesmo local. Arak, zelo
samente,
tratou de correr e pegá
-
lo pela
segunda vez. Quando voltou
estava meio
sem fôlego.
—
Conseguem acreditar nisso?
—
disse.___Esse
diabinho seria capaz de fazer isso o dia inteiro. Continuará
arremessando o graveto tantas vezes quantas eu for pegá
-
lo.
Os dois mergulhadores olharam um para o
outro. Michael reviro' os
olhos, enquanto Richard abafava uma gargalhada.
—
A comida está na mesa!
—
anunciou Sufa lá de dentro. Arak
ofereceu o graveto a Richard.
—
Quer experimentar?
—
Acho que não
—
disse Richard.
—
Além do mais, estou faminto.
—
Então
vamos comer
—
disse Arak, afavelmente. Jogou o graveto
outra vez na moita de samambaia e se dirigiu para dentro de casa, se
guido
por Sark.
—
Este lugar está ficando cada vez mais esquisito
—
resmungou
Richard para Michael enquanto margeavam a piscina.
—
Pode apostar
—
disse Michael.
—
Não admira que eles não
tenham se importado quando eu trouxe as taças ontem à noite. Nada
pertence a ninguém. Estou lhe dizendo, podíamos fazer fortuna aqui
embaixo que eles não estariam nem aí.
Junto com a comida, os clones
operários haviam trazido uma mesa
dobrável, que haviam colocado no centro de um círculo formado por sete
espreguiçadeiras. Arak e os mergulhadores se reuniram aos outros. Sark
subiu nas costas da cadeira de Arak e começou a coçá
-
lo atrás das orelhas.
Todo
s se serviram e começaram a comer.
—
Bom, é aqui que passamos a maior parte do tempo
—
disse Arak
depois de uma pequena pausa constrangedora. Sentia que os humanos
secundários estavam um pouco confusos por causa dos eventos daquele
dia.
—
Alguém tem alguma
pergunta a fazer?
—
O que vocês fazem por aqui?
—
indagou Suzanne para come
çar a
conversa. Estava mais a fim de bater papo do que de abordar as questões
de maior importância que lhe passavam pela cabeça.
—
Nós tiramos proveito de nossos corpos e mentes
—
explicou
Arak.
—
Lemos muito e vemos muitos programas holográficos.
—
O povo
de Interterra não trabalha?
—
perguntou Perry.
—
Alguns sim
—
disse Arak.
—
Mas não é necessário, e aqueles que
trabalham só fazem o que querem. Todo o trabalho subalterno, que co
ns
-
titui a maior parte do trabalho, é feito pelos clones operários. Todo o tra
-
balho de monitoração e controle é feito pelo Centro de Informações. Dessa
forma, as pessoas ficam livres para tratar de seus próprios interesses.
—
Os clones operários não se in
comodam com isso?
—
indagou
Donald.
—
Não fazem greve, nem se revoltam?
—
Não, de jeito nenhum
—
disse Arak, com um sorriso.
—
Os clones
são como... Bom, como seus animais domésticos. Foram feitos de modo a
se parecerem com humanos por motivos estéticos, m
as seus cérebros são
muito menores. Têm função limitada no lobo frontal de forma que suas
necessidades e interesses são diferentes. Adoram traba
lhar e servir.
—
Parece exploração
—
disse Perry.
—
Deve parecer
—
disse Arak.
—
Mas é para isso que servem as
máquinas, como os automóveis, na sua cultura, que eu não creio que
vocês sintam que estão explorando. A analogia seria melhor se seus au
-
tomóveis tivessem partes vivas ao lado das partes de máquina. Tenho
certeza de que precisam usar os carros, senão eles
se deterioram. O mesmo
ocorre com os clones operários, só que eles não toleram o lazer. Ficam
deprimidos e regridem sem trabalho nem ordens.
—
É incômodo para nós
—
comentou Suzanne
—
porque pare
cem
muito humanos.
—
Precisam se lembrar de que eles não são
humanos
—
replicou
Sufa.
—
Há tipos diferentes de clones?
—
perguntou Perry.
—
A aparência deles é essencialmente a mesma
—
respondeu
Arak.
—
Mas existem os servos, os operários e os de entretenimento, do
sexo feminino e masculino. Está na programação.
—
Com sua tecnologia, por que não usam robôs?
—
perguntou
Donald.
—
Boa pergunta
—
disse Arak.
—
Tínhamos andróides há muito
tempo, uma linhagem inteira deles, aliás. Mas as máquinas, quando não
têm partes biológicas, tendem a se quebrar e precisam ser conser
tadas.
Precisávamos ter andróides para consertar outros andróides,
ad infinitum.
Era inconveniente, e até ridículo. Foi só quando aprendemos a casar o
biológico com o mecânico que resolvemos
esse
problema. O resultado
definitivo dessa pesquisa e desenvolvi
mento foram os clones operários, e
eles são muito superiores a qualquer andróide. Cuidam de si mesmos
completamente, até o ponto de se consertarem e até se reproduzirem, para
manter sua população num nível estável.
—
Impressionante
—
disse Perry, simplesme
nte. Suzanne meneou a
cabeça.
O grupo ficou calado. Quando terminaram de comer, Sufa disse:
—
Acho que talvez já seja hora de levá
-
los todos para seus aposen
tos
no palácio dos visitantes. Vocês precisam de um pouco de tempo para
processar o que viram e ou
viram. Além disso não queremos sobrecarregá
-
los no seu primeiro dia. Sempre haverá o dia seguinte.
—
Ela sorriu
benignamente ao se erguer.
—
Você está certa quando diz que precisamos de tempo
—
disse
Suzanne, levantando
-
se também.
—
Acho que já passei do m
eu limite.
Sem nem um pingo de dúvida,
esse
foi o dia mais estarrecedor, eston
teante
e atordoante da minha vida.
Michael hesitou à porta do seu chalé. Richard estava de pé
diretamente atrás dele. Eles haviam acabado de ser deixados ali por Arak
e Sufa.
—
O que acha que vamos encontrar?
—
perguntou Michael.
—
Pelo amor de Deus!
—
queixou
-
se Richard.
—
Como é que posso
saber antes de você abrir a porra da porta?
Michael agarrou a maçaneta e a puxou. Os dois mergulhadores
passaram pela porta e deram um olhar
de relance pela sala.
—
Acha que alguém esteve aqui?
—
indagou Michael, nervoso.
Richard revirou os olhos.
—
O que você acha, miolo mole?
—
disse.
—
A
cama foi feita e o lugar foi limpo. Olha, alguém até empilhou todos os
pratos e as taças que você trouxe
do baile e do refeitório.
—
Talvez tenham sido apenas os clones
—
disse Michael.
—
É possível
—
disse Richard.
—
Acha que o corpo ainda está lá onde nós o colocamos?
—
Bem, nós certamente não vamos saber até olharmos
—
disse
Richard.
—
Tudo bem, deixa que
eu vejo.
—
Espere!
—
Richard disse, agarrando o braço de Michael.
—
Primeiro vou ver se a barra está limpa.
Richard olhou em torno, além da piscina, e rapidamente se satisfez.
Ninguém estava por perto, e ele se reuniu ao amigo.
—
Tá legal, pode ver como es
tá o corpo.
Michael se posicionou rapidamente diante do arm
ário que ficava em
frente à cama.
—
Bebidas, por favor!
—
ordenou.
A porta da geladeira se escancarou. O aparelho estava repleto de
v
ários recipientes de bebida e comida.
—
Parece que está como o d
eixamos
—
disse Michael.
—
Isso é bom
—
disse Richard.
Michael curvou
-
se e removeu vários recipientes, expondo o rosto
branco de Sart. Os olhos sem vida miravam Michael, acusadores. Michael
rapidamente meteu os recipientes de volta na geladeira para oculta
r aque
-
la horrível imagem. O corpo de Sart fora o primeiro defunto que Michael
vira além do de seu avô. Mas o avô foi colocado em um caixão, vestido
com um
smoking.
Além do mais, o velho tinha 94 anos.
—
Bom, essa foi um alívio
—
disse Richard.
—
Por enqua
nto
—
disse Michael.
—
Mas isso não significa que eles
talvez não o encontrem esta noite ou amanhã. Talvez devêssemos levá
-
lo
para fora e enterrá
-
lo em uma dessas moitas de samambaias.
—
Que diabo vamos usar para cavar, colheres de chá?
—
indagou
Richard.
—
Talvez então tenhamos que levá
-
lo para o seu chalé e colocá
-
lo
na sua geladeira. Ficar com ele aqui me dá calafrios.
—
Não vamos arriscar levá
-
lo de um lado para outro
—
disse
Richard.
—
Deixe ele aí onde está.
—
Então vamos trocar de aposentos
—
sugeriu
Michael.
—
Lem
bre
-
se de que foi você quem o matou, não eu.
Os olhos de Richard semicerraram
-
se amea
çadoramente.
—
Já tivemos essa conversa
—
disse ele, devagar.
—
E ficou deci
dido:
estamos nisso juntos. Agora feche essa matraca e pare de falar no corpo.
—
E aquela idéia de contarmos ao Fuller?
—
Deixa pra lá
—
disse Richard.
—
Mudei de idéia a respeito disso.
—
Como assim?
—
Porque aquele caxias babaca não vai ter nenhuma idéia melhor
do que fazer com o corpo. E eu não sei se temos que nos preocupar tanto
assim. Ora, ninguém nem perguntou onde andava
esse
boiola aí o dia
inteiro hoje. Além disso, Arak disse que eles não têm cadeia aqui.
—
Isso é porque não há ladrões
—
redargüiu Michael.
—
O Arak
não disse nada sobre assassinato, e com toda aquela papagaia
da que nos
mostraram sobre extração da mente, tenho o mau pressentimento de que
eles vão ficar muito perturbados com isso. Talvez nos reciclem, como
fizeram com o Reesta.
—
Ei, calma aí!
—
disse Richard.
—
Como posso me acalmar com um cadáver na minha gela
deira?
—
berrou Michael.
—
Cala essa boca
—
berrou Richard, em resposta. Depois, em voz
mais baixa, acrescentou:
—
Meu pai do céu, todos na vizinhança vão es
-
cutar você! Controle
-
se. O principal é a gente cair fora daqui o quanto
antes. Enquanto isso o Sar
t fica na geladeira, o que vai impedir que ele
deixe o local fedendo. Vamos pensar em transportá
-
lo para outro lugar se
alguém começar a investigar e a fazer perguntas sobre ele. Certo?
—
Acho que sim
—
disse Michael, porém sem muito entusiasmo.
1
1
4
4
O
teto
da caverna submarina escureceu
-
se gradativamente, imitando
um fim de tarde normal, exatamente como na noite anterior. Suzanne e
Perry, maravilhados pela semelhan
ça entre o teto abobadado e o céu da
superfície, assistiram deslumbrados ao espetáculo das pse
udo
-
estrelas que
começavam a piscar no crepúsculo violeta. O eternamente tacitur
no
Donald, ao contrário, olhava de mau humor as sombras crescentes sob os
canteiros de samambaias. Todos os três estavam de pé no grama
do, a
cerca de doze metros de distância
da extremidade aberta do refei
tório. Lá
dentro clones operários atarefados punham a mesa para o jantar. Richard
e Michael já ocupavam seus lugares, loucos de fome.
—
Isso é absolutamente incrível
—
disse Suzanne. Curvou o pes
coço
para trás, para poder o
lhar direto para cima.
—
As estrelas bioluminescentes?
—
indagou Perry.
—
Tudo
—
disse Suzanne.
—
Inclusive as estrelas.
—
Ela acabara de
chegar de seu chalé, onde havia nadado, tomado um banho e até tentado
tirar uma pestana. Mas não havia conseguido dorm
ir de jeito nenhum. A
cabeça fervilhava demais.
—
Há alguns aspectos que são estarrecedores
—
admitiu Donald.
—
Não consigo encontrar uma só coisa que não seja
—
disse
Suzanne. Olhou para o pavilhão escuro do outro lado do gramado onde
fora dada a festa da
noite anterior.
—
A começar pelo fato de que este
paraíso imenso se encontra debaixo da terra, sob o oceano. Como foi
estranho eu ter mencionado
Viagem ao centro da Terra
de Júlio Verne,
quando estávamos dando início ao nosso mergulho, considerando
-
se que
estamos realmente aqui! Perry achou graça.
—
É
—
disse.
—
Foi bem oportuno.
—
Oportuno e espantoso
—
acrescentou Suzanne.
—
Principal
mente
agora que parece que tudo que Arak e Sufa andaram dizendo é verdade,
por mais fantástico que pareça.
—
É difícil ne
gar a tecnologia que temos visto
—
disse Perry, em
-
polgado.
—
Mal posso esperar para aprender mais sobre os detalhes,
como a biomecânica dos clones operários ou os segredos dos táxis aé
reos.
Patentes de qualquer coisa dessas nos deixariam milionários. E o
turismo?
Já pensou a procura que haveria por uma excursão a este mun
do?
Ultrapassaria qualquer previsão!
—
Perry tornou a soltar risadinhas.
—
De uma forma ou de outra, a Benthic Marine vai se tornar a
Microsoft do novo século.
—
As revelações de Arak sã
o extraordinárias
—
concordou Donald,
contra a vontade.
—
Mas há umas lacunas nelas que vocês, deslumbra
dos
como estão, parecem estar esquecendo.
—
Do que está falando?
—
indagou Perry.
—
Tirem os óculos cor
-
de
-
rosa
—
disse Donald.
—
Pelo que vejo, a
perg
unta principal ainda não foi formulada: o que estamos fazendo aqui?
Não fomos salvos de nenhum naufrágio de escuna, como os Blacks.
Fomos proposital e deliberadamente sugados pela tal porta de saída deles,
e eu gostaria de saber por quê.
—
O Donald está ce
rto
—
disse Suzanne, subitamente pensativa.
—
Com toda essa empolgação vivo me esquecendo de que, afinal de
contas, fomos vítimas de uma abdução. Isso certamente nos leva a per
-
guntar o que estamos fazendo aqui.
—
Eles sem dúvida estão nos tratando bem
—
d
isse Perry.
—
Por
enquanto
—
disse Donald.
—
Mas, como eu já disse, po
deriam mudar
num piscar de olhos. Não creio que vocês estejam se dando conta de como
estamos vulneráveis.
—
Eu sei como estamos vulneráveis
—
disse Perry com uma certa
irritação.
—
Ora,
bolas, com a tecnologia avançada que
esses
caras têm,
poderiam nos desintegrar num instante. Arak falou em viagens
interplanetárias, até em viagens intergalácticas e em tecnologia do tem
po.
Mas eles gostam de nós. Para mim isso é evidente, mesmo que não s
eja
para você. Acho que devíamos ser mais compreensivos e menos
paranóicos.
—
Gostam de nós, uma ova
—
disse Donald com veemência.
—
Nós
os divertimos. Quantas vezes já ouvimos isso? Acham nosso primitivismo
engraçado ou bonitinho, como se fôssemos animais
do
mésticos. Estou
cansado de ver gente rindo de mim.
—
Não nos tratariam bem assim se não gostassem de nós
—
per
-
sistiu Perry.
—
Você é ingênuo demais
—
disse Donald.
—
Recusa
-
se a se lem
-
brar de que somos prisioneiros, para todos os efeitos, que fomos
a
bduzidos e manipulados naquele centro de descontaminação. Fomos
trazidos até aqui por um motivo que ainda não nos foi revelado.
Suzanne concordou. As palavras de Donald lhe recordaram um
comentário descuidado de Arak que lhe dera a impressão de que ele já
esperava a chegada dela. Suzanne considerara o tal comentário per
-
turbador, no momento, mas depois ele fora esquecido, suplantado por
revelações mais surpreendentes.
—
Talvez eles estejam nos recrutando
—
disse Perry, subitamente.
—
Para quê?
—
indagou Don
ald, intrigado.
—
Talvez estejam se desdobrando tanto para nos mostrar tudo
porque querem nos preparar para sermos seus representantes
—
disse
Perry, animando
-
se com a idéia enquanto falava.
—
Talvez eles final
mente
tenham decidido que já é tempo de estab
elecerem relações com nosso
mundo, e querem que sejamos seus embaixadores. Francamente,acho que
poderíamos nos sair tremendamente bem, sobretudo se fizés
semos isso
através da Benthic Marine.
—
Embaixadores!
—
repetiu Suzanne.
—
Idéia interessante! Eles nã
o
querem se adaptar a nossa atmosfera por causa de sua falta de imu
nidade
a nossas bactérias e vírus, e nem gostam do processo de descontaminação
necessário para voltarem a Interterra.
—
Exato
—
disse Perry.
—
Se fôssemos representantes deles, não
teriam
que fazer nada disso.
—
Embaixadores? Deus me livre
—
resmungou Donald. Ergueu as
mãos e sacudiu a cabeça, de frustração.
—
E agora, qual é o problema?
—
indagou Perry, a irritação
retornando. Donald estava começando a lhe dar nos nervos.
—
Eu sabia que vo
cês dois eram otimistas
—
disse Donald
—
, mas
essa idéia de sermos embaixadores ganhou o troféu.
—
Acho que é uma possibilidade perfeitamente razoável
—
disse
Perry.
—
Escute, Sr. Presidente da Benthic Marine!
—
disse Donald, rís
pido,
como se o título fos
se vergonhoso.
—
Esses interterráqueos não vão nos
deixar voltar. Se não fosse um otimista tão irremediável já teria entendido
isso.
Suzanne e Perry ficaram calados enquanto remoíam o comentário de
Donald. Nenhum dos dois queria pensar naquele assunto, mui
to menos
debatê
-
lo.
—
Acha que planejam nos manter aqui para sempre?
—
pergun
tou
Suzanne, afinal. Teve de admitir que nada que Arak ou Sufa lhe haviam
dito indicava que existisse algum plano para devolvê
-
los ao seu navio na
superfície do oceano.
—
Se não
me engano, se eles não nos deixarem voltar, é isso que vai
acontecer
—
disse Donald, sarcasticamente.
—
Mas por quê?
—
inquiriu Perry. Já não havia mais raiva em sua
voz.
—
É óbvio
—
disse Donald.
—
Essas pessoas vêm evitando que
Interterra seja detectada h
á milhares de anos. Como poderiam se sentir
bem nos deixando voltar à superfície, sabendo o que sabemos?
—
Meu Deus!
—
murmurou Suzanne.
—
Acha que o Donald está certo?
—
indagou Perry.
—
Receio que ele tenha muitas evidências do que pensa
—
disse
Suzanne.
—
Não há motivo para eles estarem menos preocupados com a
contaminação agora do que no passado. E têm ainda mais motivos para
ficarem preocupados agora, que nossa tecnologia está avançando cada vez
mais. Talvez se divirtam com nosso primitivismo, mas desc
on
fio que
morrem de medo da violência de nossa cultura.
—
Mas continuam nos chamando de visitantes
—
contestou Perry.
—
Este lugar onde estamos é o palácio dos visitantes. Os visitantes
não ficam para sempre.
—
Em seguida, irracionalmente, acrescentou:
—
Além disso, não posso ficar aqui para sempre. Quero dizer, tenho famí
lia.
Já estou preocupado por ainda não ter podido lhes dizer que estou bem.
—
Esse
é
outro problema
—
disse Donald.
—
Eles sabem muita coisa
a nosso respeito. Sabem de nossas famílias. C
om toda a tecnologia deles,
podiam ter nos oferecido uma oportunidade de informar aos nossos en
tes
queridos que não morremos. O fato de não terem feito isso, creio eu, é
mais uma prova de que pretendem nos manter aqui.
—
Acho que você tem razão
—
disse Su
zanne. Depois suspirou.
—
Há só meia hora, no meu quarto, eu estava desejando ter um
telefo
ne daqueles antigos, só para poder ligar para o meu irmão. Ele é o
único parente que sentiria minha falta.
—
Você não tem família?
—
indagou Donald.
—
Infelizmente,
não
—
disse Suzanne.
—
Essa parte da minha vida
simplesmente não deu certo, e os meus pais, eu perdi há anos.
—
Tenho esposa e três filhos
—
disse Donald.
—
É claro que isso não
significa muito para os interterráqueos. Para eles todo o conceito de
paterni
dade parece pitorescamente antiquado.
—
Meu Deus!
—
disse
Perry.
—
O que vamos fazer? Precisamos dar o fora daqui. Tem que existir
um jeito.
—
Ei, vocês todos!
—
gritou Michael da sala de jantar.
—
O rango
está na mesa. Venham comer!
—
Infelizmente eles é q
ue estão dando as cartas
—
disse Donald,
ignorando Michael, o qual desapareceu outra vez, voltando ao refeitó
-
rio.
—
Não há nada que possamos fazer a essa altura, a não ser manter os
olhos abertos.
—
O que significa tirar vantagem da hospitalidade deles
—
disse
Suzanne.
—
Até certo ponto
—
disse Donald.
—
Eu nunca defenderia a idéia
de confraternizar com o inimigo.
—
É essa parte que me intriga
—
disse Suzanne.
—
Eles não agem
como inimigos. São tão delicados e pacíficos... É difícil imaginá
-
los
fazendo alg
uma coisa má contra alguém.
—
Manter
-
me longe da minha família é uma das piores coisas que
posso imaginar
—
disse Perry.
—
Não do ponto de vista deles
—
disse Donald.
—
Com
esse
negócio
de reprodução feita mecanicamente e a gravação da mente e da
personali
dade de adultos em crianças de quatro anos de idade, não há
famílias em Interterra. É possível que eles não entendam os vínculos
familiares.
—
Que diabo vocês estão fazendo aí fora nessa escuridão?
—
ber
rou
Michael. Ele havia voltado à parte do edifício q
ue interligava o re
feitório e
o gramado.
—
Os clones operários estão esperando. Não vêm comer?
—
Acho que seria melhor, mesmo
—
disse Suzanne.
—
Estou fa
-
minta.
—
Não sei se estou, depois dessa troca de idéias
—
disse Perry.
Começaram a andar na direção d
a luz que saía e clareava a grama
escura.
—
Deve haver alguma coisa que possamos fazer
—
disse Perry.
—
Podemos evitar ofendê
-
los
—
disse Donald.
—
Isso pode ser crucial.
—
O que poderíamos fazer que os ofendesse?
—
quis saber Perry.
—
Não estou preocupado
conosco
—
disse Donald.
—
São
esses
mergulhadores tapados que me preocupam.
—
Que tal falar diretamente com eles sobre o assunto?
—
sugeriu
Perry.
—
Por que não perguntar a Arak quando nos encontrarmos com ele
amanhã se vamos poder ir embora? Então teríamo
s certeza.
—
Pode ser arriscado
—
disse Donald.
—
Acho que não devíamos
enfatizar nosso interesse em partir. Se fizermos isso, eles podem restrin
gir
nossa liberdade. No momento, teoricamente, podemos chamar tá
xis
aéreos com comunicadores de pulso e podem
os ir e vir à vontade. Não
quero perder esse privilégio. Podemos precisar dele se houver chance de
sairmos daqui.
—
Esse é outro pensamento interessante
—
concordou Suzanne.
—
Mas não vejo nenhum motivo pelo qual não possamos perguntar por que
estamos aqui
. Talvez a resposta a essa pergunta nos diga se eles esperam
que fiquemos para sempre.
—
Não é má idéia
—
disse Donald.
—
Eu concordo, contanto que
não demos muito na vista, insistindo no assunto. Aliás, por que não faço
essa pergunta amanhã na sessão que
Arak disse que teremos?
—
Gostei da sugestão
—
disse Suzanne.
—
O que achou, Perry?
—
Não sei o que pensar, a essa altura
—
disse Perry.
—
Vamos, apressem
-
se!
—
disse Michael, assim que os três entra
ram
na sala.
—
Esse babaca desse clone operário aí não q
uer nos deixar tocar
nas travessas antes de todos estarem aqui, e é mais forte que um touro.
Um clone operário estava de pé junto à mesa central com as mãos
sobre as tampas dos rescaldos.
—
Como sabia que ele estava nos esperando?
—
perguntou Suzanne
ao oc
upar um dos assentos.
—
Bom, não tínhamos certeza, né, porque esse
pateta aí não fala
—
admitiu Michael.
—
Mas estamos torcendo para que
seja esse o motivo. Estamos mortos de fome.
Perry e Donald se sentaram. Quase imediatamente o clone oper
á
rio
ergueu as
tampas dos rescaldos.
—
Taí!
—
exclamou Richard.
Dentro de minutos, a refeição já estava servida. Durante algum
tempo, ninguém falou. Richard e Michael estavam ocupados demais
comendo; os outros estavam absortos, pensando em sua conversa recente
no gramado
.
—
O que vocês estavam fazendo lá no escuro?
—
indagou Richard,
irrompendo depois em voz alta:
—
Falando sobre algum funeral? Estão
todos tão cabisbaixos!
Ninguém respondeu.
—
Grupinho animado
—
resmungou Richard.
—
Pelo menos temos modos à mesa
—
retruco
u Donald.
—
Vá para o inferno
—
disse Richard.
—
Sabe, de repente estou achando isso estranhamente irônico
—
disse Suzanne.
—
O quê, os modos do Richard à mesa?
—
indagou Michael, sol
-
tando um forte arroto.
—
Não, nossa reação a Interterra
—
disse Suzanne.
—
Como assim?
—
perguntou Perry.
—
Pense no que temos aqui
—
disse Suzanne.
—
Parece o paraíso,
mesmo que não seja no céu, como é nosso pensamento tradicional. No
entanto, tem tudo que nós consciente e inconscientemente desejamos:
juventude, beleza, imort
alidade e abundância. É um verdadeiro Éden.
—
A beleza nós podemos confirmar, não, Mikey?
—
disse Richard.
—
Por que acha irônico?
—
perguntou Michael, ignorando Richard.
—
Porque estamos preocupados achando que seremos obrigados a
ficar
—
disse Suzanne.
—
Todos sonham em ir para o céu, e nós aqui, com
medo de não podermos sair dele.
—
Como assim, sermos obrigados a
ficar?
—
inquiriu Richard.
—
Não acho irônico
—
disse Donald.
—
Se a minha família esti
vesse
aqui, comigo, eu talvez ficasse. Mas não agora. Al
ém disso, não gosto de
ser forçado a fazer nada. Pode parecer piegas, mas valorizo a minha
liberdade.
—
Nós vamos sair daqui, não vamos?
—
perguntou Richard, in
-
sistentemente.
—
De acordo com o Donald, não
—
disse Perry.
—
Mas precisamos sair
—
deixou esca
par Richard.
—
E por que, hein, marujo?
—
indagou Donald.
—
O que faz você
ficar tão ansioso para sair do paraíso da Suzanne?
—
Eu estava falando de modo geral, não do ponto de vista
pessoal
—
interrompeu Suzanne.
—
Francamente, conhecer a forma pela
qual
eles se conservam imortais me deu um pouco de náusea hoje.
—
Não sei do que vocês estão falando
—
disse Richard.
—
Mas
quero sair daqui o mais rápido possível.
—
Eu também
—
concordou Michael.
Soou uma campainha suave que ninguém havia ouvido antes. To
-
dos
se entreolharam, intrigados, mas antes que pudessem falar, a porta se
abriu e entraram Mura, Meeta, Palenque e Karena. O bando de belas
mulheres estava de excelente humor. Mura foi direto até Michael e lhe
ofereceu a palma da mão, numa saudação típica dos
interterráqueos.
Depois de eles terem pressionado rapidamente as palmas uma contra a
outra, ela se sentou na beirada da espreguiçadeira de Michael. Meeta,
Palenque e Karena se aproximaram de Richard, que ficou de pé num salto.
—
Ah, gatinhas, vocês voltar
am!
—
gritou Richard. Tocou as pal
mas
das mãos de todas as três e abraçou
-
as, entusiasmado. Elas cumpri
-
mentaram Suzanne, Perry e Donald, rapidamente, mas cobriram Richard
de agrados, e o mergulhador desfaleceu de puro êxtase. Quando ele ten
-
tou se deixar
cair para trás na espreguiçadeira, elas o impediram. Disse
-
ram que estavam loucas para levá
-
lo ao quarto dele para nadarem
juntos.
—
Bom, sim, claro
—
gaguejou Richard. Fez continência para
Donald antes de se retirar com seu míni
-
harém.
—
Vamos!
—
Mura apr
essou Michael.
—
Vamos também. Eu lhe
trouxe um presente.
—
O que é?
—
indagou Michael. Deixou
-
se ser rebocado até a porta.
—
Um pote de caldorfina!
—
disse Mura.
—
Ouvi dizer que gos
tou
disso.
—
Adorei, é o termo exato
—
gritou Michael. Em seguida, os do
is
saíram saltitando da sala.
Antes dos demais comensais poderem tecer quaisquer comentários,
a campainha suave soou outra vez. Dessa feita, anunciou a chegada de
Luna e Garona. Os interterráqueos pareciam estar cercando seus par
ceiros
da noite anterior.
—
Oh, Suzanne!
—
arrulhou Garona, ao pressionar a palma da mão
contra a dela.
—
Estava louco para que chegasse a noite, para que eu
pudesse vir passá
-
la outra vez com você!
—
Perry, meu amor
—
disse Luna, efusiva.
—
O dia foi longo
demais. Espero que não t
enha sido cansativo demais para você.
Nem Suzanne nem Perry conseguiam decidir se ficavam
mortificados
ou encantados, principalmente sendo cumprimentados com
pro
testos amorosos assim t
ão melosos. Ambos gaguejaram respostas
ininteligíveis enquanto permitia
m que seus respectivos parceiros os er
-
guessem das espreguiçadeiras.
—
Acho que estamos de saída
—
disse Suzanne a Donald enquanto
Garona a puxava, brincalhão, para a extremidade aberta do refeitório.
—
E nós devemos estar indo para o mesmo lugar que eles
—
disse
Perry a Donald enquanto Luna o arrastava.
Donald acenou, indiferente, mas nada disse. No instante seguinte,
viu
-
se sozinho com os dois clones oper
ários mudos.
Michael não se lembrava de outra ocasião em que se sentira tão
excita
do. Nunca uma mulh
er assim tão bela e desejável parecera tão
interessada
nele. Por insistência dela, os dois começaram a girar enquanto
avan
çavam em movimentos sinuosos pelo gramado escuro na direção do
quarto dele. Com seus longos cabelos flutuando ao vento, Mura era uma
visão arrebatadora para Michael, e ele teria continuado a fazer aquilo
durante horas, se a tonteira não houvesse impedido.
Sentindo
-
se zonzo, Michael parou de girar, mas tudo a sua volta
continuou girando. Ele cambaleou para sua direita, tentando em v
ão
ma
nter o equilíbrio. Incapaz de se firmar nas pernas, despencou de
qualquer maneira. Mura também caiu com ele.
Riram juntos incontrolavelmente. Levantaram
-
se ainda oscilando
um pouco, depois prosseguiram correndo at
é o chalé de Michael. De
pois
de entrarem,
viram
-
se ambos sem fôlego.
—
Bem
—
disse Michael. Inspirou profundamente duas vezes, mas
continuou se sentindo zonzo. Só de olhar para Mura naqueles trajes
colantes, já tremia de desejo.
—
O que gostaria de fazer primeiro? Dar um
mergulho?
Mura olhou Micha
el demoradamente, de um jeito provocador. Sa
-
cudiu a cabe
ça.
—
Não, não quero nadar agora
—
disse ela, a voz rouca.
—
Na noite
passada você estava cansado demais para carinhos íntimos. Man
dou
-
me
embora antes que eu pudesse fazê
-
lo feliz.
—
Mas isso não é
verdade
—
protestou Michael.
—
Eu estava feliz.
—
Quer dizer que Sart o fez feliz?
—
Não, mas que inferno!
—
gritou Michael, ofendendo
-
se ime
-
diatamente.
—
Que diabo de pergunta é essa?
—
Não se perturbe
—
disse Mura, espantada com a reação de
Michael.
—
N
ão estou insinuando nada. Além disso, é perfeitamente
natural ter prazer com pessoas de qualquer sexo.
—
Epa, isso comigo não cola
—
retrucou Michael, ríspido.
—
Nem
pelo caramba!
—
Michael, por favor, se acalme
—
suplicou Mura.
—
Por que está
tão nervoso?
—
Não estou nervoso!
—
replicou Michael.
—
Sart fez alguma coisa que o irritou?
—
Não, ele se comportou bem
—
disse Michael, nervoso.
—
Alguma coisa o aborreceu
—
disse Mura.
—
Sart ficou aqui a
noite inteira? Eu não o vi em parte alguma durante o dia.
—
N
ão! Não!
—
gaguejou Michael.
—
Ele saiu logo depois de você.
Richard só lhe pediu desculpas por ficar com raiva dele, e pronto. Ele saiu.
Mas é um bom garoto.
—
Por que Richard ficou com raiva dele?
—
Não sei
—
disse Michael, irritado.
—
Será que vamos fic
ar fa
-
lando do Sart a noite inteira? Pensei que tivesse vindo aqui para me ver.
—
E vim mesmo
—
disse Mura. Aproximando
-
se de Michael, aca
-
riciou
-
lhe o peito. Por baixo dos dedos, sentiu o coração dele se acele
-
rar.
—
Acho que você teve um dia difícil. Dev
íamos acalmar você, e sei
exatamente o que fazer.
—
O quê?
—
Deite
-
se ali na cama
—
instruiu Mura.
—
Vou friccionar seu
corpo e massagear seus músculos.
—
Ah, está aí uma ótima idéia.
—
E depois que você serenar, vamos pressionar palmas com a
caldorfina.
—
Isso me parece perfeito, gata
—
disse Michael, recuperando a
compostura.
—
Vamos nessa.
—
Certo, eu já volto
—
disse Mura. Cutucou Michael para que ele
fosse para a cama. Michael obedeceu, despreocupado, deitando
-
se sobre a
coberta macia.
Mura foi até a g
eladeira pegar uma bebida gelada para ambos. Deu
o comando diretamente no receptor, de forma a fazê
-
lo o mais suave
-
mente possível, evitando perturbar Michael. Depois daquele pequeno
acesso de fúria dele, ela havia sentido que ele estava tenso e precisava
da
maior consideração possível. Sabia agora como os humanos secundá
rios
se perturbavam facilmente por causa das coisas mais estranhas.Mura se
surpreendeu ao ver que o compartimento estava abarrotado.
—
Minha nossa
—
disse.
—
O que é que puseram aqui dentr
o?
Devido à
amolação
de Mura, procurando saber sobre Sart, o ardor
de
Michael havia se reduzido consideravelmente. Em vez de ficar te
cendo
fantasias enquanto se encontrava deitado de bruços na cama, esperando a
massagem que ela lhe faria, ele ficou reflet
indo, aflito, so
bre a conversa à
mesa do jantar, a possibilidade de estarem presos em Interterra.
Conseqüentemente, o comentário dela sobre a geladeira es
tar cheia nem
mesmo lhe penetrou na consciência, até ele ouvir emba
lagens de
alimentos e frascos de
bebidas se espatifarem no chão, e depois o grito
sufocado. Foi só aí que se lembrou do corpo de Sart, mas então já era tarde
demais...
—
Mas que merda!
—
sussurrou Michael ao saltar da cama. Exa
-
tamente como ele temia, Mura estava de pé, diante da geladei
ra escan
-
carada, com a mão sobre a boca. Sua expressão era de puro horror.
Dentro da geladeira, o rosto congelado e pálido de Sart se encon
-
trava emoldurado por pilhas de recipientes de alimentos.
Michael correu até Mura e a abraçou. Ela se deixou amparar
por ele,
e teria desmaiado, se ele não a tivesse sustentado.
—
Escute aqui! Escute aqui!
—
disse Michael, desesperado, num
murmúrio forçado.
—
Posso explicar.
Mura recuperou o equilíbrio e rejeitou o abraço de Michael. Com a
mão trêmula, tocou a face de Sa
rt, dentro da geladeira. Estava dura como
madeira e fria como gelo.
—
Oh, não!
—
gemeu Mura. Levando as mãos às suas próprias fa
ces
empalidecidas, estremeceu como se um vento frio houvesse subita
mente
atravessado o aposento. Quando Michael tentou abraçá
-
la de novo, ela lhe
deu um empurrão para poder continuar olhando Sart. Por mais
aterrorizante que fosse a imagem, ela não conseguia desviar os olhos dela.
Michael curvou
-
se, freneticamente, pegou os objetos caídos e me
teu
-
os outra vez na geladeira para oc
ultar o jovem morto dos olhos da
moça.
—
Precisa se acalmar
—
disse, nervoso.
—
O que aconteceu com a essência dele?
—
indagou Mura. O san
-
gue lhe voltou às faces, tornando
-
as rubras. O choque e a consternação
estavam se transformando em raiva.
—
Foi um aci
dente
—
disse Michael.
—
Ele caiu e bateu a cabeça.
—
Michael tentou abraçá
-
la outra vez, mas ela recuou e o manteve à
distância de um braço.
—
Mas, e a essência dele?
—
indagou Mura outra vez, embora no
fundo já soubesse qual era a horrenda verdade.
—
Olh
a aqui, ele morreu, caramba!
—
redargüiu Michael.
—
A essência dele se perdeu!
—
conseguiu dizer Mura. Sua raiva
transitória estava se transformando em pesar. As lágrimas inundaram
-
lhe
os olhos verde
-
esmeralda.
—
Olha, gata
—
disse Michael num tom entre so
licitude e
irritação
—
, infelizmente o garoto morreu. Foi um acidente. Você precisa
se conter.
As lágrimas se transformaram em soluços à medida que a realidade
da tragédia atingia o núcleo da essência de Mura.
—
Preciso contar aos anciãos
—
disse ela. Viro
u
-
se e começou a se
encaminhar para a porta.
—
Não, espere!
—
disse Michael. Estava desesperado. Contornou
-
a
para impedir que saísse.
—
Escute
-
me!
—
Agarrou
-
a com ambas as mãos.
—
Largue
-
me!
—
gritou Mura. Tentou livrar
-
se dele.
—
Preciso
anunciar essa cal
amidade.
—
Não, precisamos conversar
—
insistiu Michael. Lutou com ela
enquanto Mura tentava livrar
-
se.
—
Largue
-
me!
—
berrou Mura, a voz se elevando entre os soluços.
Conseguiu soltar um braço.
—
Cale essa boca!
—
gritou Michael. Deu
-
lhe uma bofetada com
a
palma da mão aberta, para tentar tirá
-
la daquele estado de histeria. Em
vez disso, ela abriu a boca e emitiu um grito de arrebentar os tím
-
panos.
Temendo as conseqüências, Michael tapou
-
lhe a boca com uma das mãos,
mas não bastou. Mura era alta e vigoros
a, e deu um jeito de fugir dele,
soltando novo grito.
Com uma certa dificuldade, Michael conseguiu tapar
-
lhe a boca
outra vez, mas, por mais que tentasse, não conseguia mantê
-
la quieta.
Impulsivamente, arrastou
-
a para o lado fundo da piscina e caiu com ela
dentro d'água. Mas nem mesmo o mergulho súbito refreou os gritos dela,
de modo que ele foi obrigado a segurar a cabeça da moça abaixo da
superfície.
Ela continuou lutando, e quando ele a trouxe para a superfície para
respirar, ela soltou um grito tão fort
e quanto os anteriores. Michael tor
nou
a empurrá
-
la para debaixo da água, e dessa vez a reteve ali até a violenta
movimentação dela ficar mais lenta, depois cessar.
Vagarosamente, ele foi soltando a cabeça de Mura, com medo de
que ela pulasse para fora e
gritasse outra vez. Em vez disso, o corpo da
moça, flácido, flutuou até a superfície, o rosto voltado para dentro d'água.
Ele puxou o corpo até a beira da piscina e o ergueu, colocando
-
o
sobre a borda de mármore. Uma mescla espumosa de muco e saliva saía
-
l
he do nariz e da boca entreaberta. Ao olhá
-
la, percebendo que estava
morta, um calafrio percorreu
-
lhe a espinha. Seus dentes começaram a
bater incontrolavelmente. Ele havia matado alguém
—
alguém de quem
gostava muito.
Por um momento, ficou perfeitamente q
uieto. Imaginou se alguém
teria ouvido os gritos de Mura. Graças a Deus, a noite estava tranqüi
la.
Em pânico, ele a arrastou até a cama, deitou
-
a lá, e cobriu
-
a com a colcha.
Depois, correndo, passou pela piscina e penetrou nas trevas noturnas.
O chalé de
Richard ficava a menos de 50 metros, e Michael percor
-
reu essa distância em segundos. Esmurrou a porta.
—
Seja lá quem for, vá embora!
—
ordenou a voz de Richard lá de
dentro.
—
Richard! Sou eu!
—
berrou Michael.
—
Não quero nem saber quem é!
—
respondeu R
ichard, aos
berros.
—
Estamos ocupados aqui dentro.
—
Não dá para esperar, Richie
—
insistiu Michael.
—
Preciso fa
lar
com você.
Uma torrente de imprecações precedeu um curto silêncio. Final
-
mente, a porta se abriu, com violência.
—
É melhor que seja urgen
te
—
rosnou Richard. Estava comple
-
tamente pelado.
—
Surgiu um problema
—
anunciou Michael.
—
E já, já, vai arranjar mais um
—
avisou Richard. Depois notou que
Michael estava encharcado.
—
Por que mergulhou na piscina as
sim
vestido?
—
Você precisa vir com
igo até o meu chalé
—
gaguejou Michael.
Richard percebeu o grau de nervosismo do amigo. Espiou o inte
rior
do chalé, atrás de si, para ver se alguma das mulheres estava próxi
ma o
suficiente para escutar.
—
Isso tem alguma coisa a ver com o corpo do Sart?
—
indagou ele,
sussurrando.
—
Infelizmente sim
—
disse Michael.
—
Onde está a Mura?
—
Ela é que é o problema
—
disse Michael.
—
Ela viu o corpo.
—
Ai, meu Jesus!
—
lamentou
-
se Richard.
—
Ela ficou nervosa?
—
Ficou fora de si
—
disse Michael.
—
Você precisa
vir!
—
Tá legal! Acalme
-
se! Mas ela perdeu o juízo mesmo, é?
—
Estou lhe dizendo, ela pirou legal. Quer fazer o favor de dar um
jeito aí e vir comigo?
—
Está bem, já vou
—
acalmou
-
o Richard.
—
Não grite! Só pre
ciso
de alguns minutos. Vou ter que me livra
r das minhas amigas.
Michael concordou enquanto Richard fechava a porta na cara dele.
Virando
-
se, voltou correndo ao seu chal
é. Depois de ver se o corpo de
Mura estava onde ele o tinha deixado, trocou de roupa, depois ficou
andando de um lado para outro, a
guardando Richard.
Richard foi fiel à sua palavra, chegando em menos de cinco minu
tos.
Esquadrinhou o aposento no momento em que passou pela porta. Tudo
parecia bem tranqüilo. Estava esperando encontrar Mura a solu
çar
incontrolavelmente na cama, mas não
a viu em parte alguma.
—
E aí, onde está ela?
—
cobrou.
—
No banheiro?
Michael não respondeu. Fez sinal a Richard para que o seguisse, e
contornou os pés da cama. Abaixando
-
se, com a mão trêmula, agarrou a
ponta da coberta e jogou
-
a para o lado, para expor
o cadáver. A pele de
Mura, antes cor de alabastro e translúcida, havia ficado de um azul
mosqueado, e a espuma que lhe escorria da boca e do nariz vinha
avermelhada.
—
Mas que diabo...?
—
disse Richard, boquiaberto. Ajoelhou
-
se,
procurando a carótida, par
a verificar a pulsação. Depois voltou a ficar de
pé. O rosto dele ficou flácido devido ao choque.
—
Ela morreu!
—
Ela abriu a geladeira
—
explicou Michael.
—
Viu o corpo de Sart.
—
Tudo bem, entendi essa parte
—
disse Richard. Estava olhando o
amigo fixame
nte.
—
Mas por que a matou?
—
Eu lhe disse, ela pirou
—
disse Michael.
—
Começou a gritar a
plenos pulmões. Fiquei com medo que acordasse a cidade inteira.
—
Por que diabo a deixou abrir a geladeira?
—
cobrou Richard,
zangado.
—
Me distraí por dois segundo
s
—
disse Michael.
—
Claro, devia ter sido mais cauteloso
—
ralhou Richard.
—
É fácil para você dizer isso
—
rebateu Michael.
—
Eu lhe disse
que não queria
esse
corpo aqui. Ele devia estar na sua geladeira, não na
minha.
—
Tá legal, fica frio
—
disse Richa
rd.
—
Precisamos pensar no que
vamos fazer.
—
Não tem mais lugar na minha geladeira
—
disse
Michael.
—
Vamos ter que colocá
-
la na sua.
Richard não gostou nada da idéia de arrastar o corpo até o seu cha
lé,
mas não teve nenhuma idéia alternativa, e sabia que
precisavam fa
zer
alguma coisa rapidamente. Se Mura fosse encontrada, Sart seria também.
De uma forma ou de outra, ele ficaria envolvido.
—
Está certo
—
concordou Richard, relutante.
—
Vamos acabar logo
com esse negócio.
Rapidamente eles rolaram Mura para
cima da colcha, depois enrola
-
ram
-
na e, Richard sustentando a cabeça e Michael, os pés, transportaram
-
na pelo gramado até o chalé de Richard. Tiveram um pouco de
dificuldade para fazê
-
la passar pela porta, uma vez que era relativamente
estreita.
—
Caramba
—
reclamou Michael.
—
Transportar um corpo é mais
ou menos a mesma coisa que carregar um colchão. Mais difícil do que a
gente pensa.
—
É por causa do peso morto
—
brincou Richard, sorrindo do duplo
sentido.
Eles jogaram o corpo em pleno chão. Enquanto Mic
hael abria a
coberta, Richard foi até a geladeira e a esvaziou. Como era a segunda vez
que empreendiam a operação "cadáver
-
na
-
geladeira", sabiam exata
mente
o que fazer, ou seja, para colocar Mura lá dentro precisariam re
organizar
completamente o conteúdo
.
—
Prontinho
—
disse Richard.
—
Me dê uma mão aqui. Juntos,
conseguiram meter o corpo de Mura no compartimento.
Ela era mais alta e mais pesada do que Sart, de forma que foi mais
difí
cil encaixá
-
la lá dentro. No final, foram obrigados a deixar alguns rec
i
-
pientes de comida e bebida de fora.
Richard se ergueu depois de finalmente conseguir fechar a porta.
—
Precisamos parar com isso.
—
Parar com o quê?
—
indagou Michael.
—
Parar de apagar esses interterráqueos. Já usamos todas as gela
-
deiras.
—
Muito engraç
ado. Mas por que não estou rindo?
—
Não me obrigue a responder, seu pateta
—
disse Richard.
—
Vou lhe dizer o que significa na verdade
—
disse Michael.
—
Precisamos dar o fora daqui de Interterra! Agora, com dois cadáveres, as
chances de alguém descobrir u
m dobraram.
—
Devia ter pensado nisso antes de apagar a dona.
—
Estou lhe dizendo, não tive escolha!
—
berrou Michael.
—
Não
queria acabar com a raça dela. Mas ela não calava a boca!
—
Não grite!
—
disse Richard.
—
Você tem razão. Precisamos dar o
fora daq
ui. A única coisa boa é que parece que aquele almirante de meia
-
tigela está pensando da mesma forma que nós.
Suzanne não conseguia se lembrar da última vez em que havia
nadado nua, e ficou agradavelmente chocada com a sensação enquanto
dava braçadas na pi
scina. E embora estivesse ligeiramente constrangida
por estar sem roupas, principalmente diante da forma física impecável de
Garona, não estava tão nervosa quanto imaginava que ficaria. Provavel
-
mente era porque Garona a fazia se sentir aceita como era, ap
esar de suas
imperfeições físicas.
Depois que atingiu a extremidade oposta da piscina, Suzanne mer
-
gulhou para inverter a direção em que nadava, e, acelerando, voltou para
onde Garona se achava, satisfeito, sentado à beira da piscina, com ape
nas
os pés de
ntro d'água. Ela agarrou
-
lhe um dos tornozelos e conse
guiu
puxar o rapaz para dentro da piscina. Eles mergulharam e se abraçaram
sob a superfície da água.
Depois que se fartaram de trocar carícias assim submersos, nada
ram
para a lateral e saíram da pisci
na. A leve brisa que soprava, vinda da
extremidade aberta do aposento, arrepiou a parte de trás dos braços e as
laterais das coxas de Suzanne.
—
Gostei de você ter voltado esta noite
—
disse ela. Estava mes
mo
feliz por vê
-
lo.
—
Eu também gostei. Passei o
dia esperando
esse
momento.
—
Não
sabia se você voltaria
—
disse Suzanne.
—
Para ser franca, tive medo de
que não voltasse. Acho que me comportei de um jeito imaturo na noite
passada.
—
Como assim?
—
Devia ter deixado mais clara a minha opção. Ou não deixar
você
ficar, ou, deixando, agir de forma mais apropriada. Mas fiquei em cima do
muro.
—
Adorei cada momento, mesmo assim
—
disse Garona.
—
Nos
sa
interação não tinha objetivo definido. A idéia era apenas passar al
gum
tempo juntos, e foi o que fizemos.
Suz
anne fitou Garona com gratidão, lamentando, sem nada di
zer,
que fosse preciso viajar até um mundo mítico e surreal para en
contrar um
homem assim belo, generoso e sensível. Enquanto sua mente elaborava de
forma natural a idéia de levá
-
lo consigo ao voltar
, o pensamento de que
talvez não voltasse a trouxe de volta à realidade. Também trouxe à tona
outra pergunta fundamental, ainda sem res
posta.
—
Garona, pode me dizer por que nos trouxeram aqui para
Interterra?
—
perguntou Suzanne, de repente.
Garona suspi
rou.
—
Sinto muito
—
disse.
—
Não posso interferir no trabalho de Arak.
Você e seu grupo estão sob a responsabilidade dele.
—
Mas dizer
-
me por que estamos aqui seria uma interferência?
—
Sim
—
disse Garona, sem hesitar.
—
Por favor, não me colo
que
nessa p
osição. Quero muito ser aberto e sincero com você, mas nesse
assunto não posso, e
me sinto mal por ser obrigado a lhe negar alguma
coisa.
Suzanne ficou olhando o rosto de seu novo amigo e conseguiu no
tar
que estava sendo sincero.
—
Desculpe perguntar
—
di
sse ela. Ergueu a mão, e ele ergueu a
dele também. Vagarosamente, pressionaram as palmas uma contra aoutra.
Suzanne sorriu de felicidade; estava começando a se acostumar com
aquela carícia interterráquea.
—
Talvez eu deva lhe perguntar como vai indo a orie
ntação de Arak.
—
Eu diria que muito bem
—
comentou Suzanne.
—
Ele e Sufa são
anfitriões muito corteses.
—
Mas claro
—
disse Garona.
—
Tiveram sorte em pegar um gru
po
tão interessante. Ouvi dizer que já levaram vocês à cidade. Gosta
ram de lá?
—
Foi fasci
nante. Visitamos o centro de falecimentos e o centro de
reprodução, bem como a casa de Arak e Sufa.
—
Mas como progrediram rápido
—
comentou Garona.
—
Estou
mesmo impressionado. Jamais soube de humanos de segunda geração que
houvessem progredido depressa a
ssim. Qual a sua reação sobre o que viu
e ouviu? Não consigo imaginar o quanto tudo foi extraordinário para você.
—
A palavra
inacreditável jamais
foi tão apropriada.
—
Achou algo perturbador?
Suzanne tentou descobrir se Garona estava querendo saber a verd
a
-
de, ou se queria que ela fizesse rodeios.
—
Houve uma coisa que me incomodou, sim
—
começou Suzanne,
decidindo ser franca com Garona. Passou a explicar sua reação negativa
ao processo de implantação da mente.
Garona concordou.
—
Entendo seu ponto de vist
a
—
disse.
—
É uma conseqüência
natural de suas raízes judaico
-
cristãs, que atribuem valor tão alto ao
indivíduo. Mas lhe garanto que também damos. A essência da criança não
é ignorada, mas adicionada à essência implantada. É um processo onde há
um benefíc
io mútuo, uma verdadeira simbiose.
—
Mas como pode uma essência de alguém que não nasceu com
-
petir com a de um adulto já experiente?
—
Não se trata de competição
—
respondeu Garona.
—
Ambas se
beneficiam, embora obviamente a criança se beneficie mais. Poss
o lhe
garantir, como alguém que já passou por esse processo inúmeras
vezes,que fui fortemente influenciado por cada essência de cada corpo que
tive. É definitivamente um processo cumulativo.
—
Parece uma racionalização
—
disse Suzanne.
—
Mas vou tentar
man
ter minha mente aberta.
—
Espero que tente. Tenho certeza de que Arak tenciona voltar ao
assunto nas sessões didáticas. Lembre
-
se de que a saída de hoje não teve o
objetivo de esgotar as coisas, mas de ajudar a superar a descrença cos
-
tumeira contra a qual
nossos visitantes inicialmente lutam.
—
Sei disso. Mas
é
verdade que tendo a esquecer
-
me. Então, obri
-
gada por me recordar.
—
É um prazer
—
disse Garona.
—
Você é um homem belo e sensível, Garona. É maravilhoso estar
ao seu lado.
—
Ela se pegou imaginando
como seria caminhar com ele
numa praia em Malibu ou pegar a Auto
-
Estrada 1, margeando a Big Sur,
no litoral da Califórnia. Havia uma coisa que Interterra não tinha, era o
oceano, e, como oceanógrafa, Suzanne havia feito do oceano o centro do
seu universo.
—
Você é linda. É extraordinariamente divertida.
—
Graças ao meu cativante primitivismo
—
disse Suzanne. Achou
que Garona tivera a intenção de elogiá
-
la, mas teria preferido outra pa
-
lavra, em vez de
divertida,
principalmente depois da reclamação de
Donal
d.
—
Seu primitivismo é adorável
—
concordou Garona. Durante
alguns segundos, Suzanne acalentou a idéia de dizer a
Garona qual era sua reação a ser chamada de primitiva, mas
conteve
-
se. Naquela fase do relacionamento entre os dois, preferia ser
positiva. E
m vez disso, falou:
—
Garona, há uma coisa que eu gostaria que você soubesse sobre
mim. Garona aguçou os ouvidos.
—
Quero que saiba que não tenho outro namorado. Tinha um, mas
acabou.
—
Não me importo. A única coisa que me importa é que você está
aqui neste
momento.
—
Mas eu me importo
—
disse Suzanne, um pouco magoada.
—
Eu
me importo, e muito.
1
1
5
5
A
manhã do segundo dia completo dos humanos secundários em
Interterra começou da mesma forma que o primeiro dia. Suzanne e Perry
partilharam avidamente um com o
outro as experiências da noite ante
rior
e estavam ansiosos pelo que o dia lhes traria. Donald estava menos
empolgado e um pouco taciturno. Richard e Michael estavam tensos e
calados, e
,
quando falavam, era só sobre quando iriam partir. Donald
precisou man
dá
-
los se calar quando Arak chegou.
Depois de conduzirem o grupo de volta à mesma sala de conferên
-
cias que haviam usado no dia anterior, Arak e Sufa se dedicaram a uma
sessão educacional que se arrastou durante horas. Foi basicamente um
debate científico
que incluiu a forma pela qual Interterra canalizava a
energia geotérmica; como se conservava o clima interterráqueo, inclu
sive
o mecanismo usado para gerar a chuva noturna; como a tecnologia da
bioluminescência era usada para fornecer iluminação uniforme
tan
to ao ar
livre quanto em ambientes fechados; como se manuseavam a água, o
oxigênio e o dióxido de carbono; e como se cultivavam as plan
tas
comestíveis, fotossintéticas e quimiossintéticas com a técnica da
hidroponia.
Quando a imagem da tela do piso fo
i sumindo e a iluminação geral
começou a retornar, os únicos dois humanos secundários que estavam
prestando atenção eram Suzanne e Perry. Donald estava olhando para
outro lado, obviamente absorto em seus próprios pensamentos. Richard e
Michael estavam ferr
ados no sono. Quando a iluminação atingiu seu
apogeu, ambos os mergulhadores acordaram, e eles e Donald tentaram
fingir que haviam escutado tudo.
—
Concluindo a sessão desta manhã
—
disse Arak, parecendo não
se importar com a desatenção de certos indivíduo
s
—
, tenho certeza de
que vocês têm agora uma idéia mais clara do motivo pelo qual perma
-
necemos aqui neste mundo subterrâneo, ou seja, além da questão
microbiana. Ao contrário do que transpira na superfície terrestre, fo
mos
capazes de construir um ambien
te perfeitamente estável sem flutuações
climáticas, tais como idades do gelo ou outros desastres rela
cionados com
o tempo; energia essencialmente ilimitada, que não é fonte de poluição; e
uma fonte alimentar completamente adequada, que pode ser reabasteci
da.
—
O plâncton é sua fonte exclusiva de proteínas?
—
indagou
Suzanne. Ela e Perry continuavam fascinados por todas aquelas revela
ções
científicas.
—
A fonte principal
—
disse Arak
—
, a outra fonte é a proteína
vegetal. Costumávamos usar algumas espécies
de peixes, mas paramos
quando começamos a nos preocupar com a capacidade dos animais ma
-
rinhos maiores de reconstituir sua população. Infelizmente, essa é uma
lição que os humanos secundários parecem não estar dispostos a aceitar.
—
Especialmente no caso
das baleias e do bacalhau
—
disse Suzanne.
—
Exato
—
disse Arak. Olhou para os outros presentes na sala.
—
Mais alguma pergunta antes de voltarmos à parte prática?
—
Arak, tenho uma pergunta
—
disse Donald.
—
Pode falar
—
anuiu Arak. Alegrou
-
se. Donald, at
é o momento,
havia demonstrado muito pouco interesse em participar.
—
Gostaria de saber por que fomos trazidos para cá
—
disse
Donald.
—
Esperava que fosse perguntar algo relativo ao que estivemos
debatendo.
—
É difícil para mim concentrar
-
me em questões té
cnicas quando
não sei por que estou aqui.
—
Entendo
—
disse Arak. Curvando
-
se, confabulou aos sussurros
com Sufa e os Blacks. Depois, voltando a recostar
-
se, acrescentou:
—
Infelizmente, não posso responder completamente a sua pergun
ta,
pois fomos especif
icamente proibidos de lhes contar o motivo princi
pal
pelo qual estão aqui. Mas posso lhes dizer isso: um dos motivos foi deter a
tentativa de perfuração na porta de saída de Saranta, o que, devo dizer
com prazer, conseguimos. Também posso lhes garantir qu
e hoje saberão
qual foi o motivo principal. Será que isso basta por enquanto?
—
Acho que sim
—
disse Donald.
—
Mas se vamos saber mesmo,
não vejo por que não pode nos contar agora.
—
Por uma questão de protocolo
—
disse Arak. Donald concordou
com a cabeça,
relutante.
—
Como oficial de carreira da Marinha, acho que posso aceitar essa
resposta.
—
Alguma outra pergunta sobre a apresentação de hoje?
—
inda
gou
Arak.
—
Estou meio sobrecarregado no momento
—
admitiu Perry.
—
Mas tenho certeza de que vou ter pergu
ntas à medida que o dia for pas
-
sando.
—
Bom, então vamos dar início à nossa excursão
—
disse Arak.
—
Com base no que ouviram esta manhã, onde gostariam de ir primeiro?
—
Que tal o Museu da Superfície da Terra?
—
sugeriu Donald antes
que qualquer dos outro
s pudesse responder.
—
Sim!
—
manifestou
-
se Michael, entusiasticamente.
—
O lugar que
tem aquele Corvette na frente!
—
Você gostaria de ver o Museu da Superfície da Terra?
—
inda
gou
Arak com um óbvio assombro. Lançou um olhar de relance a Sufa. A
reação d
ela foi a mesma.
—
Acho que seria interessante
—
disse Donald.
—
Eu também
—
disse Michael.
—
Mas por quê?
—
indagou Arak.
—
Desculpem nossa surpresa,
mas depois de tudo que lhes dissemos, estamos intrigados por quere
rem
se voltar para o passado em vez do
futuro.
Donald encolheu os ombros.
—
Talvez seja só um quê de nostalgia.
—
Vendo o que resolveram exibir lá, talvez tenhamos uma idéia
melhor de sua reação ao nosso mundo
—
explicou Suzanne, esponta
-
neamente. Não estava tão interessada em ver o Museu quant
o estava em
ver os outros lugares que Arak descrevera, mas fez questão de apoiar o
pedido de Donald.
—
Muito bem
—
disse Arak, com um jeito afável.
—
O Museu da
Superfície da Terra será nossa primeira parada do dia.
Todos se levantaram. Pela primeira vez D
onald se mostrou ansioso,
principalmente quando saíram do prédio. Ele pediu a Arak que lhe
mostrasse como chamar um táxi aéreo, e Arak ficou satisfeito em aten
der
seu pedido. Foi até mais além, mandando Donald colocar a pal
m
a da mão
sobre a mesa preta cen
tral do táxi e dar o comando que deter
minava o
destino do veículo.
—
Isso foi fácil
—
disse Donald, quando a nave se elevou, silen
ciosa,
sem solavancos, depois disparou na direção correspondente.
—
Claro
—
disse Arak.
—
Foi feito para ser fácil, mesmo. T
odos os
visitantes achavam as viagens de táxi fascinantes. Nunca
se cansavam de
admirar a vista da cidade e a área ao redor dela. Estican
do os pescoços,
tentavam ver tudo, mas era difícil; havia muito a ver, mas o veículo se
movia a uma velocidade incríve
l. Em poucos minutos eles estavam
pairando acima da entrada do museu, a uns seis metros de distância do
Chevrolet
Corvette incrustado por cracas.
—
Meu Deus, eu adorava aquele carro
—
disse Michael, com um
suspiro melancólico, quando eles desceram do táxi
aéreo. Ele parou e
contemplou o monumento, nostálgico.
—
Eu namorava a Dorothy
Drexler
naquele tempo. Não sei qual dos dois tinha as formas mais atra
entes, se
ela ou o carro.
—
Os dois precisavam de uma chave de ignição para funcionar?
—
indagou Richard,
com um sorriso malicioso.
Michael tentou acertar o amigo com a mão espalmada, mas Richard
esquivou
-
se com facilidade. Depois dançou rapidamente, apoiado nos
artelhos, como um pugilista profissional, antes de tentar retribuir o golpe.
—
Nada de pancadaria
—
alertou Donald asperamente, metendo
-
se
entre os dois mergulhadores.
—
Seu Corvette talvez servisse para você e a Dorothy
—
disse
Suzanne
—
, mas eu sinto uma vergonha danada vendo que os
interterráqueos acham que isso aí representa nossa cultura.
—
É, dá
a impressão de que somos supersuperfíciais
—
concor
dou
Perry.
—
Além de estar enferrujado e em péssimo estado de conser
vação.
—
Superficiais e materialistas
—
disse Suzanne
—
o que, segundo
suponho, provavelmente é verdade, quando refletimos um pouco sob
re o
assunto.
—
Estão exagerando na interpretação do simbolismo
—
explicou
Arak.
—
O motivo pelo qual o colocamos aqui na frente do museu é muito
mais simples. Como agora estamos relegados a observar vocês de longe,
para evitar que sejamos detectados por s
ua tecnologia em rápido
desenvolvimento, são os automóveis que notamos mais. De uma gran
de
distância, tem
-
se a impressão de que os carros são a forma dominan
te de
vida na superfície da Terra, sendo que os humanos secundários agem
como robôs ao cuidarem d
eles.
Suzanne teve dificuldade para conter o riso diante de uma afirma
ção
tão absurda, mas quando pensava no assunto era capaz de entender por
que eles viam isso de uma grande distância.
—
O mais simbólico é o projeto do Museu em si
—
disse Arak.
Todos os
olhos se voltaram para o edifício. De perto, a construção
emanava uma aura inegavelmente sepulcral. Com cinco andares,
compunha
-
se de segmentos retilíneos, superpostos ou dispostos em
ângulo reto, de modo a compor uma forma complexa e bem geométrica. A
ma
ior parte dos segmentos estava repleta de janelas quadradas.
—
O edifício simboliza a arquitetura urbana dos humanos secun
-
dários
—
comentou Arak.
—
Parece bem feio, todo quadrado assim, feito um monte de cai
-
xas
—
disse Suzanne.
—
Não agrada aos olhos
—
a
dmitiu Arak.
—
Exatamente como a
maioria das cidades de vocês, que são essencialmente aglomerados de
arranha
-
céus semelhantes a caixas sobre plantas semelhantes a grades.
—
Há algumas exceções
—
disse Suzanne.
—
Algumas
—
concordou Arak.
—
Mas, infelizment
e, a maior par
te
das lições de arquitetura que os habitantes de Atlântida deram aos seus
antepassados na antigüidade se perderam, ou foram ignoradas.
—
É um edifício enorme
—
comentou Perry. Abrangia o equiva
lente
a um quarteirão de uma cidade moderna.
—
Precisa ser
—
disse Arak.
—
Temos uma imensa Coleção de ar
-
tefatos da superfície terrestre. Lembre
-
se de que estamos falando de um
período de milhões e milhões de anos.
—
Então o Museu não abrange só a cultura dos humanos secun
-
dários?
—
Certamente que nã
o
—
disse Arak.
—
Também abriga toda a
gama da evolução atual da superfície terrestre. Naturalmente, temos nos
interessado mais pelos últimos dez mil anos mais ou menos, por moti
vos
óbvios. Embora
esse
segmento represente um mero piscar de olhos em
compar
ação ao período como um todo, concentramos nele nossas coleções.
—
E os dinossauros?
—
indagou Perry.
—
Temos uma mostra pequena mas representativa de espécimes
preservados
—
disse Arak. Depois acrescentou num aparte:
—
São
criaturas de uma violência aterr
orizante!
—
Sacudiu a cabeça como se
experimentasse uma onda de náusea passageira.
—
Quero ver essa
mostra
—
disse Perry, avidamente.
—
Estou louco para saber de que cor
eram os dinossauros.
—
Eram em sua maior parte de um verde
-
acinzentado meio inde
-
finido
—
disse Arak.
—
Bem feios, se quer mesmo saber.
—
Vamos entrar
—
sugeriu Sufa.
O grupo penetrou no saguão de entrada. Era uma sala enorme,
revestida com o mesmo basalto preto que o exterior. Através de abertu
ras
no teto alto entravam réstias de luz. Elas
se entrecruzavam na semi
-
obscuridade geral como fachos de luz de holofotes em miniatura,
iluminando os objetos em exposição de forma impressionante. Múlti
plos
corredores se originavam nesse núcleo central.
—
Por que não há ninguém aqui?
—
indagou Suzanne
. Olhou em
todas as direções, e só viu corredores vazios de mármore. A voz ecoou
várias vezes no silêncio sepulcral.
—
É sempre assim
—
explicou Arak.
—
Este museu, apesar da
importância que tem, não é particularmente popular. A maioria das
pessoas prefere
não se recordar da ameaça que seu mundo representa
para o nosso.
—
Está se referindo à ameaça de detecção?
—
acrescentou Suzanne.
—
Exato
—
disse Sufa.
—
Isso aqui parece um lugar onde seria fácil se perder
—
disse Perry.
Espiou o interior de alguns dos c
orredores silenciosos, compridos e mal
iluminados.
—
Não é bem assim
—
disse Arak. Apontou para a esquerda.
—
Começando aqui, com as algas verde
-
azuladas, as exposições
evolucionárias são cronológicas.
—
Depois apontou para a direita.
—
E
desse lado temos
a cultura dos humanos secundários começando com os
hominídeos africa
nos mais remotos e chegando até o presente. Em
qualquer lugar do museu, pode
-
se determinar como encontrar o caminho
de volta ao saguão de en
trada, seguindo
-
se a direção dos espécimes
pro
gressivamente mais antigos.
—
Eu gostaria de ver as exibições que buscam reproduzir nossa
época moderna
—
disse Donald.
—
Certamente
—
disse Arak.
—
Siga
-
me.
Vamos pegar um atalho através dos primeiros cinco ou seis milhões de
anos.
O grupo seguiu Arak e Su
fa como se fossem estudantes que estives
-
sem participando de uma excursão ao museu. Suzanne e Perry acharam
difícil não parar e olhar cada artefato exposto, principalmente quando
chegaram às salas dedicadas aos dos egípcios, gregos e romanos. Nem
Suzanne n
em Perry haviam visto nada igual antes. Era como se alguém
tivesse voltado no tempo com carta branca para escolher os melhores
objetos. Suzanne ficou particularmente encantada com o vestuário do
período exposto com extremo bom gosto nos manequins de tamanh
o
natural.
—
Vão notar que há uma diferença quantitativa marcante em nossas
coleções
—
explicou Arak. Ele havia permanecido com Suzanne e Perry
enquanto os outros seguiam adiante.
—
Temos comparativamente pouco
material moderno. Quanto mais recuamos na his
tória, maiores são as
exibições. Há muitos e muitos anos, costumávamos fazer viagens mes
mo,
com vestimentas protetoras, para obter material para o museu.
Naturalmente, acabamos tendo que parar com
esse
costume, por medo de
nos expormos, logo que seus ante
passados desenvolveram a escrita.
—
Arak!
—
gritou Sufa de um ponto várias galerias à frente.
—
Donald, Richard e Michael estão andando rápido, então irei na frente com
eles!
—
Perfeito
—
disse Arak.
—
Vamos nos encontrar todos no sa
guão
de entrada dentro
de mais ou menos uma hora.
Sufa concordou e acenou em despedida.
—
Por que se preocupavam com a exposição aos povos antigos?
—
perguntou Suzanne.
—
Eles certamente não possuíam uma tecnologia que
pudesse causar problemas a vocês.
—
É bem verdade
—
admitiu
Arak.
—
Mas sabíamos que vocês,
seres humanos secundários, teriam essa tecnologia algum dia, e não
queríamos nenhum registro dessas nossas visitas. Já bastava nos preo
-
cuparmos com o experimento fracassado de Atlântida, embora
esse
não
nos preocupasse tan
to, já que os humanos primários envolvidos haviam
desempenhado o papel de humanos de segunda geração.
Suzanne concordou com a cabeça, mas a atenção dela havia se des
-
viado para um antigo e elaborado vestido minóico, que deixava os seios
completamente à mos
tra.
—
Há um período na sua história moderna do qual possuímos
muitos artefatos
—
disse Arak.
—
Gostariam de dar uma olhada?
Suzanne olhou para Perry, que encolheu os ombros.
—
Por que não?
—
disse Suzanne.
Arak dobrou à esquerda e rumou a passos largos at
é uma galeria
lateral repleta de delicadas peças de cerâmica grega. Seguido de perto por
Suzanne e Perry, ele dobrou outra esquina e subiu um lance de escadas
sem nada de especial. No andar acima, chegaram a uma enorme galeria
cheia de peças da Segunda Gue
rra Mundial. Os artefatos iam de coisas tão
pequenas quanto placas de identificação de cães e insígnias de uniformes
até objetos tão grandes quanto um tanque Sherman, um avião B
-
24
Liberator e um submarino alemão intacto, com todos os tipos de objetos
entr
e eles. Estava claro que tudo na galeria já havia estado um dia
submerso no oceano.
—
Minha nossa
—
comentou Perry enquanto andava entre as pe
ças
expostas.
—
Isso aqui parece mais um pátio de ferro
-
velho do que uma
exposição de museu.
—
Parece que nossa ú
ltima guerra mundial contribuiu substan
-
cialmente para o acervo do seu museu
—
disse Suzanne. Ela e Arak per
-
maneceram no patamar das escadas. Essa não era uma exposição pela
qual Suzanne pudesse se interessar.
—
Uma contribuição e tanto
—
concordou Arak.
—
Objetos como os
que estão vendo aqui choveram no fundo dos oceanos durante mais de
cinco anos. Durante as últimas centenas de anos de sua história, nossa
única fonte de objetos raros foi o fundo do mar.
Suzanne olhou de relance o submarino.
—
O crescimen
to explosivo da tecnologia dos submarinos e das suas
operações preocupou vocês?
—
Só no tocante à tecnologia do radar
—
disse Arak.
—
Princi
palmente quando a tecnologia do sonar se combinou
com a de confec
ção de mapas de perfilagem batipelágica. Essa tecn
ologia
foi um dos motivos por que resolvemos fechar as portas de acesso como
aquela pela qual você entrou.
Enquanto Suzanne e Arak continuavam a discutir o sonar e sua
ameaça à segurança de Interterra, Perry perambulou por toda a largura da
galeria da Segu
nda Guerra Mundial. Algumas peças da coleção pare
ciam
estar em perfeitas condições, outros objetos estavam com incrustações de
cracas como o Corvette em frente ao museu. Ao fim do corredor, ele
meteu a cabeça por uma janela que dava para leste e vis
lumbr
ou as
imensas espirais que serviam como sustentação dos Açores.
Perry relanceou os olhos pelo pátio lá embaixo e depois tornou a
olhar. O
Oceanus,
o submersível da Benthic Marine, se encontrava apoiado
so
bre o que parecia ser uma plataforma conectada a um
grande táxi aéreo.
—
Ei, Suzanne!
—
gritou Perry.
—
Venha ver!
Suzanne correu para se reunir a ele. Arak seguiu
-
a. Ambos se de
-
bruçaram da janela e seguiram o dedo de Perry, que indicava o subma
rino.
—
Meu Deus!
—
disse Suzanne.
—
É o nosso submersível!
O que ele
está fazendo aqui?
—
Ah, sim
—
disse Arak.
—
Esqueci de mencionar quanto inte
resse
seu navio gerou junto aos curadores do museu. Creio que, com sua
permissão, eles pretendem exibi
-
lo ao lado das outras peças.
—
Ele sofreu alguma avaria?
—
indago
u Perry.
—
Nada grave
—
disse Arak.
—
Clones operários especializados
repararam as luzes externas e o braço manipulador. Ele também foi
descontaminado, mas sob outros aspectos está intacto. Vocês conhecem os
componentes dessa embarcação?
—
Um pouco
—
disse
Perry.
—
Mas não de um ponto de vista
operacional. Suzanne sabe mais do que eu. Eu só naveguei nele duas
vezes.
—
Donald é que é o especialista mesmo
—
disse Suzanne.
—
Ele
conhece essa embarcação como a palma da mão.
—
Excelente
—
disse Arak.
—
Nós quería
mos mesmo formular
algumas perguntas sobre o sonar, que descobrimos ser ainda mais sofis
-
ticado do que havíamos imaginado.
—
Ele é que pode responder a elas
—
disse Suzanne.
—
O que é aquilo sobre o qual o submarino está apoiado?
—
in
-
dagou Perry.
—
E um v
eículo aéreo de carga
—
disse Arak.
Michael fez questão de ficar ao lado de Donald, que estava
atravessan
do o museu como se estivesse fazendo uma caminhada, em vez
de apre
ciando os espécimes. Depois de alguns passos, Michael era sempre
obrigado a correr
para acompanhar as largas passadas de Donald. Donald
há muito deixara Richard e Sufa para trás.
—
Por que diabo está indo tão rápido?
—
disse Michael, sem fôle
-
go.
—
O que é isso, alguma corrida?
—
Você não precisa me acompanhar
—
retrucou Donald. Ele do
b
rou
outra esquina e prosseguiu. Eles passavam por uma galeria que continha
esculturas e pinturas renascentistas.
—
Richard e eu achamos que devíamos sair de Interterra o mais
rápido possível
—
conseguiu dizer Michael. Estava ofegante.
—
Vocês dois deixaram
isso claro na hora do café
—
disse Donald,
desdenhoso. Dobrou outra esquina e entrou em uma sala com paredes
revestidas de tapetes.
—
Estamos ficando meio preocupados
—
disse Michael, procu
rando
manter
-
se lado a lado com o rápido ex
-
oficial da Marinha.
—
Com o quê, marujo?
—
indagou Donald.
—
Porque... bom... temos um problema
—
disse Michael, hesi
-
tante.
—
Tem a ver com um casal desses interterráqueos.
—
Não estou interessado em seus problemas pessoais
—
disse
Donald, em tom ríspido.
—
Mas é que aconteceu
um acidente
—
disse
Michael.
—
Ou, aliás, dois acidentes.
Donald parou de repente, e Michael também. Donald golpeou o ar
diante do rosto de Michael. Os lábios de Donald estavam
arreganhados
,
num sorriso de escárnio.
—
Olha aqui, seu cabeça de melão! Vocês
dois resolveram se en
-
volver com
esses
interterráqueos. Eu não quero saber das suas dificul
dades
de relacionamento com eles. Entendeu?
—
Mas...
—
Nada de "mas", marujo
—
vociferou Donald.
—
Estou tentan
do
achar um meio de sairmos daqui, e não quero que
nem você nem seu
amiguinho idiota me desviem desse objetivo.
—
Tá legal, tá legal
—
disse Michael, levantando a mão defensiva
-
mente.
—
Estou contente por você estar trabalhando nesse sentido. Estou
querendo sair daqui tão rápido quanto puder, só penso niss
o. Quero dizer,
vou ajudar de todas as formas que puder.
—
Não vou me esquecer disso
—
disse Donald, ironicamente.
—
Tem alguma idéia de como vamos conseguir?
—
Vai ser difícil
—
admitiu Donald.
—
Vamos ter que encontrar
alguém além do Arak para nos dar um
as respostas válidas. O melhor, é
claro, seria encontrar alguém que não esteja gostando daqui mas que já
esteja aqui há tempo suficiente para saber como sair.
—
Ninguém parece insatisfeito
—
comentou Michael.
—
É como se
vivessem numa grande festa.
—
Não e
stou falando dos interterráqueos
—
disse Donald.
—
Arak
insinuou que várias pessoas do nosso mundo acabaram vindo parar
nestas bandas. Alguns devem estar com saudades de casa e não devem ser
tão amigos dos interterráqueos como Ismael e Mary parecem ser. É
da na
-
tureza humana, ou pelo menos da natureza dos humanos secundários,
resistir a quem os obriga a fazer alguma coisa. É
esse
tipo de pessoa que eu
gostaria de encontrar.
—
Como você sugere fazer isso?
—
Não sei
—
admitiu Donald.
—
Vamos ter que manter nos
sos olhos abertos para não perder a
oportunidade quando ela se apresentar. Até que gosto de estar passeando
pela cidade. Certamente não vamos encontrar uma pessoa assim sentados
naquela droga de sala de confe
rências.
—
Mas
esse
lugar está deserto
—
reclam
ou Michael. Os olhos dele
desviaram
-
se momentaneamente para inspecionar os corredo
res vazios.
—
Não vim aqui conhecer ninguém
—
disse Donald.
—
Vim aqui a
esse
museu dos infernos na esperança de encontrar algumas armas. Achei
que encontraria algumas, mas
ainda não vi nenhuma. Um museu sobre
história humana sem armas é ridículo. O pacifismo desses interterráqueos
está me fazendo subir pelas paredes.
—
Armas!
—
comentou Michael. Concordou com a cabeça. A idéia
não havia ainda entrado na mente dele, mas ficou
imediatamente intri
-
gado.
—
Legal! Para lhe dizer a verdade, estava imaginando por que você
queria vir aqui.
—
Bom, agora você sabe, marujo?
—
disse Donald.
—
E talvez você
possa até ajudar, já que
esse
lugar é assim imenso. Se nos dividir
mos,
poderemos
cobrir uma área bem maior.
Mal Donald deu essa sugestão, captou com o rabo do olho algo que
ainda não tinha visto em nenhuma outra sala de exposições: uma porta
fechada com as palavras
E
NTRADA
R
ESTRITA
numa placa presa a ela. Cu
-
rioso quanto ao seu conteúd
o, aproximou
-
se dela, com Michael a se
gui
-
lo
de perto. Quando Donald chegou mais perto, viu que havia várias outras
palavras em letras menores:
S
OLICITE
P
ERMISSÃO PARA ENTRAR
AO
CONSELHO DE ANCIÕES
..
—
Que diabo
é
esse Conselho de Anciãos?
—
perguntou Mic
hael por
sobre o ombro de Donald.
—
Uma espécie de órgão de governo, creio eu
—
disse Donald.
Pousando a mão na porta, empurrou
-
a. Estava destrancada, como to
das as
portas de Interterra.
—
Eureca!
—
disse Donald, ao vislumbrar alguns dos
objetos exi
bidos
na sala atrás da porta. Empurrou a porta, escancarando
-
a,
e pas
sou pelo umbral. Michael seguiu
-
o e assobiou.
—
Não admira que não tenhamos muitas armas
—
disse Donald.
—
Parece que ficam todas numa galeria oculta própria.
—
A sala era estreita
em comparaç
ão às outras, mas extremamente longa. De ambos os lados se
encontravam prateleiras para exposição das peças atulhadas de armas.
Os dois homens haviam ido até aproximadamente a metade da ga
-
leria. Na prateleira diretamente em frente à entrada estava uma bes
ta
medieval com uma aljava de quadrelos pontiagudos. Michael inclinou
-
se
e ergueu a besta de onde se encontrava. Tornou a assobiar. Jamais havia
manuseado uma arma daquelas.
—
Caramba!
—
comentou.
—
Mas que troço mais assustador.
—
Bateu no corpo da arma c
om as juntas dos dedos. O som foi de uma batida
sonora. Tangeu o cordel do arco. Ainda estava bom. Ergueu a arma e
mirou ao longo de seu eixo.
—
Aposto que isso aqui ainda fun
ciona.
Donald já havia se afastado para a direita, mas logo viu que estava
segui
ndo o sentido cronológico errado. As armas estavam ficando mais
antigas. Adiante, divisou uma coleção de espadas, arcos e lanças gregos e
romanos. Virou
-
se e passou por Michael, que estava ocupado tentan
do
curvar a besta com uma manivela manual de modo a
retesar o cordel e
prendê
-
lo no seu dispositivo de travamento.
—
O arco ainda tem um bocado de força
—
disse Michael quan
do
finalmente teve êxito. Colocou um dos dardos na guia e ergueu a arma
carregada para que Donald a visse.
—
O que acha?
—
Pode ser qu
e funcione
—
disse Donald, vagamente, enquanto se
encaminhava no sentido contrário. Sentiu
-
se mais animado ao ver os
primeiros exemplares de arcabuzes primitivos.
—
Mas eu estava espe
-
rando uma coisa mais definitiva que uma balestra.
—
Pensei que isso aqui
fosse uma besta
—
disse Michael.
—
É a
mesma coisa
—
disse Donald sem se virar.
Michael pousou o dedo na alavanca de disparo e, sem querer, ati
rou.
O dardo partiu zunindo de sua posição na guia, ricocheteou na parede de
basalto com um som agudo de algo qu
e raspa, passou como um
relâmpago rente à orelha direita de Donald e se enterrou em uma das
prateleiras de madeira. Donald havia sentido o deslocamento de ar do
projétil quando ele passou.
—
Mas será possível!
—
rosnou Donald.
—
Você quase me furou
com ess
a porcaria aí!
—
Desculpe
—
disse Michael.
—
Mal encostei no gatilho.
—
Bote isso de volta no lugar antes que um de nós saia ferido
—
berrou Donald.
—
Pelo menos sabemos como funciona
—
disse Michael. Donald
sacudiu a cabeça, enojado, enquanto erguia a mão
para ver
se a orelha
estava em bom estado. Graças a Deus, não havia sido ferido. A flecha
havia passado perto o suficiente para tirar sangue. Resmun
gando uma
série de impropérios a respeito dos palhaços que lhe haviam caído nas
mãos, continuou percorrend
o a galeria. Logo se viu diante de uma coleção
de fuzis e revólveres da Segunda Guerra Mundial. Para sua decepção
estavam em péssimo estado, depois de sofrer os efeitos corro
sivos da água
do mar. Foi ficando cada vez mais desanimado, até que deu com uma
L
uger alemã perto do fim da sala. À primeira vista ela parecia estar em
excelente estado de conservação.
Sem perceber que estava contendo a respiração, Donald pegou a
pistola e avaliou seu peso. Para sua alegria, a arma parecia nova em fo
lha,
mesmo após ri
gorosa inspeção. Com grande expectativa ele abriu o pente.
Um sorriso surgiu
-
lhe no rosto. Estava carregada!
—
Encontrou alguma coisa boa aí?
—
perguntou Michael. Havia
seguido Donald.
Donald empurrou o pente para dentro da coronha da pistola. Ele
produziu
um som mec
ânico positivamente seguro. Ergueu a arma.
—
Era isso que eu estava procurando.
—
Maneiro!
—
exclamou
Michael.
Donald recolocou a Luger com todo o carinho onde a havia encon
-
trado.
—
O que está fazendo?
—
perguntou Michael.
—
Não vai levá
-
la?
—
A
gora, não
—
disse Donald.
—
Só quando souber o que vou fazer
com ela.
Richard parou de repente. Não conseguia acreditar no que estava
ven
do. Era uma sala entupida de tesouros, a maioria antigos. Havia inú
-
meras taças, tigelas e até estátuas inteiras de o
uro maciço, todas
iluminadas com raios concentrados de luz, que enfatizavam seu brilho. A
um canto, via
-
se uma série de baús cheios de dobrões. Era uma expo
sição
deslumbrante.
O que tornava a visão ainda mais estonteante para Richard era que a
coleção int
eira de valor inestimável estava ao alcance de qualquer pes
soa,
uma vez que os objetos estavam expostos sem vitrines protetoras como ele
via em todos os museus onde já havia estado. E isso além do fato de que
não havia vigias na porta do museu.
—
Isso é i
nacreditável
—
disse Richard.
—
Meu Deus, isso é fan
-
tástico. O que eu não faria por um carrinho de mão cheio dessas coisas!
—
Gostou desses objetos?
—
perguntou Sufa.
—
Se eu gostei? Adorei
—
gaguejou Richard.
—
Nunca vi nada igual
a isso aqui. Duvido que
haja tanto ouro em Fort Knox.
—
Temos salas de armazenagem abarrotadas dessas coisas
—
in
-
formou Sufa.
—
Há muitos anos que os navios afundam com tesouros.
Posso providenciar para que enviem uma certa quantidade de objetos
semelhantes ao seu quarto, para
que se regale com eles, se quiser.
—
Está querendo dizer coisas como as que estamos vendo aqui?
—
Certamente
—
disse Sufa.
—
Prefere as estátuas grandes ou os
objetos menores?
—
Não sou exigente
—
disse Richard.
—
Mas e as jóias? O museu
também tem jóias?
—
Sem dúvida
—
disse Sufa.
—
Mas a maioria delas
vem da An
tigüidade da superfície da Terra. Gostaria de vê
-
las?
—
Por que não?
—
concordou Richard.
No caminho para a galeria de jóias antigas, Richard vislumbrou um
artefato em uma mostra de objetos raros do
século XX que o fez sorrir. Em
um pedestal da altura do peito, via
-
se um disco Frisbee cuidadosa
mente
iluminado por uma réstia de luz, como se também fosse tão ines
timável
quanto o ouro.
—
Mas olha só que coisa!
—
murmurou Richard, ao parar diante do
di
sco amarelo esverdeado. Notou algumas marcas de dentes de ca
chorro
na beirada do disco.
—
Mas por que puseram isso aqui?
—
per
guntou a
Sufa, que já estava lá na frente.
Sufa voltou para o ponto onde Richard se achava para ver ao que ele
estava se referin
do.
—
Não sabemos bem o que é isso
—
admitiu ela.
—
Mas algumas
pessoas sugeriram que poderia ser um modelo de um de nossos veículos
antigravitacionais como nossos táxis aéreos ou nossos cruzadores
interplanetários. Durante algum tempo tememos que alguém h
ouvesse
presenciado a passagem de uma das nossas naves.
Richard jogou a cabeça para trás e deu uma boa risada.
—
Deve estar brincando
—
disse.
—
Não estou, não
—
disse Sufa.
—
O formato dele é muito su
gestivo,
e pode
-
se girá
-
lo de forma a capturar uma alm
ofada de ar, imi
tando uma
nave antigravitacional.
—
Não é modelo de nada
—
disse Richard.
—
Não passa de um
Frisbee.
—
Mas para que serve?
—
indagou Sufa.
—
Para jogar
—
disse Richard.
—
A gente o arremessa como você
disse e depois alguém o pega. Deixe
-
me
mostrar
-
lhe.
—
Richard pegou o
Frisbee e jogou
-
o de leve, formando um ângulo com a horizontal. O
brinquedo atingiu um apogeu, depois voltou. Ele o pegou na palma da
mão, entre o polegar e os dedos.
—
É só isso
—
disse.
—
Fácil, não?
—
Parece
—
disse Sufa.
—
Deixe
-
me jogá
-
lo para você, e você o pega, como eu fiz
—
disse
Richard. Ele recuou uns quinze metros na galeria e jogou o Frisbee para
Sufa. Ela fez os movimentos como se fosse pegá
-
lo, mas era muito desa
-
jeitada. Embora o disco roçasse a mão dela, ela n
ão conseguiu agarrá
-
lo;
ele caiu no chão. Depois de revirar os olhos diante da falta de coordena
ção
dela, Richard afastou
-
se e mostrou
-
lhe de novo como proceder. No novo
arremesso ela se mostrou mais desajeitada que no primeiro.
—
Vocês não têm muita ativ
idade física, não é?
—
observou Richard,
num tom de menosprezo.
—
Jamais vi alguém que não conse
guisse
agarrar um Frisbee.
—
Com que objetivo?
—
Objetivo nenhum
—
retrucou Richard.
—
Só para se divertir. É
um esporte. Jogar essa coisa de um lado para o ou
tro dá à gente a
oportunidade de se exercitar correndo.
—
Parece
-
me uma inutilidade
—
disse Sufa.
—
Não gostam de fazer exercício aqui em Interterra?
—
Claro
—
disse Sufa.
—
Gostamos de nadar, principalmente, mas
também de caminhar e brincar com nossos hom
ídios. É claro que tam
bém
praticamos sexo, como tenho certeza de que Meeta, Palenque e Karena lhe
mostraram.
—
Estou falando de esporte!
—
queixou
-
se Richard.
—
Sexo não é
esporte.
—
Para nós, é
—
afirmou Sufa.
—
E sem dúvida é uma atividade
bem vigorosa.
—
Que tal um esporte onde se tente vencer?
—
perguntou Richard.
—
Vencer?
—
indagou Sufa.
—
Sabe, competir!
—
disse Richard, chateado.
—
Não tem jogos
competitivos por aqui?
—
Mas, é claro que não!
—
disse Sufa.
—
Paramos com essa boba
-
gem éons atrás, qua
ndo eliminamos as guerras e a violência.
—
Ai meu
Jesus!
—
extravasou Richard.
—
Não têm esportes! Quer dizer que não
jogam hóquei, nem futebol, nem golfe! Caramba! E pen
sar que a Suzanne
acha
esse
lugar aqui um paraíso!
—
Por favor, se acalme
—
suplicou S
ufa.
—
Por que está tão nervoso?
—
Pareço nervoso?
—
indagou Richard, na maior inocência.
—
Parece, sim
—
disse Sufa.
—
Acho que estou precisando fazer um pouco de exercício
—
dis
se
Richard. Com o Frisbee debaixo do braço, estalou as juntas dos de
dos,
ne
rvosamente. Sabia que estava tenso, e sabia por quê: vivia imaginando
um clone operário encontrando o corpo de Mura encolhi
do dentro da sua
geladeira.
—
Por que não leva o Frisbee?
—
sugeriu Sufa.
—
Talvez Michael ou
um dos outros queira jogar com você.
—
Por que não?
—
disse Richard, sem muito entusiasmo.
—
Muito bem, todos vocês!
—
anunciou Arak. O grupo havia torna
-
do a se reunir no terraço diante do museu depois de passar mais de uma
hora dentro do prédio. Estavam todos debatendo o que haviam visto
dur
ante a visita, exceto Richard, que ficou pelos cantos, jogando o Frisbee
no ar e pegando
-
o sem parar. Três táxis aéreos os aguardavam no final da
escadaria.
—
Vamos falar da programação do restante da manhã
—
disse Arak.
—
Sufa vai acompanhar Perry até a f
ábrica de táxis aéreos e sua
oficina de manutenção. Perry, creio, preferiu fazer essa visita.
—
Exatamente, queria muito
—
confirmou Perry.
—
Ismael e Mary vão acompanhar Donald e Michael até a Central
de Informações
—
prosseguiu Arak.
Donald concordou.
—
E você, Richard?
—
indagou Arak.
—
Qual dos dois lugares
prefere visitar?
—
Tanto faz
—
disse Richard, continuando a arremessar o Frisbee
no ar.
—
Tem que escolher um ou outro
—
disse Arak.
—
Tá legal, então a fábrica de táxis aéreos
—
disse Richard, im
-
pas
sível.
—
E a Suzanne?
—
perguntou Perry.
—
A Dra. Newell irá comigo a uma reunião com o Conselho dos
Anciãos
—
disse Arak.
—
Sozinha?
—
Querendo protegê
-
la, Perry olhou de relance para
Suzanne.
—
Está tudo bem
—
tranqüilizou
-
o Suzanne.
—
Enquanto vocês
vis
itavam o submarino na galeria da Segunda Guerra, Arak explicou que
os Anciãos queriam falar comigo profissionalmente, como oceanógrafa.
—
Mas por que sozinha?
—
indagou Perry.
—
E por que não que
rem
que eu vá? Afinal sou presidente de uma empresa oceanogr
áfica.
—
Acho que não estão interessados no lado comercial
—
disse
Suzanne.
—
Não esquenta.
—
Tem certeza?
—
persistiu Perry.
—
Absoluta
—
disse Suzanne. Deu tapinhas no ombro de Perry.
—
Então vamos
—
chamou Arak.
—
Vamos todos nos reencon
trar
no palácio
dos visitantes mais tarde.
—
Fazendo sinal para que os outros o
seguissem, ele contornou a plataforma onde se encontrava o Corvette
antigo e começou a descer os largos degraus até os táxis aéreos que
flutuavam ao pé da escadaria.
Pareceu mesmo estranho p
ara Suzanne estar sozinha com Arak
quando o táxi aéreo partiu, arrebatando
-
os para o seu destino. Era a
primeira vez que Suzanne se afastava dos outros, exceto quando dormiu
no seu chalé. Ela olhou para Arak, e ele sorriu para ela. Estar assim
próxima dele
a fez tomar consciência de como ele era bonito.
—
Está gostando de sua orientação?
—
indagou Arak.
—
Ou está se
sentindo frustrada, achando que ela está indo devagar, ou depressa
demais?
—
Avassaladora, é a melhor descrição da minha opinião sobre
ela
—
dis
se Suzanne.
—
A velocidade não vem ao caso, e eu certamente
não estou nem um pouco frustrada.
—
Seu grupo é um desafio e tanto para se criar e adaptar o melhor
protocolo de orientação. Vocês são todos muito diferentes uns dos outros,
um fato que nós intert
erráqueos consideramos não só fascinante, como
também intimidador. Sabe, devido à seleção e adaptação, somos todos
muito parecidos entre nós, como tenho certeza de que deve ter percebido.
—
Todos são muito gentis
—
disse Suzanne, meneando a cabeça
afirmati
vamente e estremecendo diante do lugar
-
comum. Percebeu que,
até aquele comentário de Arak, ainda não havia refletido muito no as
-
sunto. Agora que estava pensando nisso, percebeu que era verdade. Não
só eram todos atraentes no sentido clássico, mas igualmen
te educados,
inteligentes e simpáticos. Havia pouca, senão nenhuma variação entre
seus temperamentos.
—
"Gentil"
é uma palavra neutra demais
—
disse Arak.
—
Espero
que não esteja entediada de conviver conosco.
Suzanne soltou uma risadinha curta e envergonh
ada.
—
É difícil me entediar estando assim deslumbrada como estou
—
disse.
—
Posso lhe garantir isso, não estou entediada.
—
Os olhos dela
vaguearam até a vista inacreditável da cidade com os enxames de táxis
aéreos zunindo ao redor. A última coisa que sen
tia era tédio, mas de
repente percebeu do que Arak estava falando. Depois de algum tem
po,
Interterra talvez se tornasse um lugar cansativo devido à sua
homogeneidade. Alguns dos mesmos aspectos que faziam dela um pa
-
raíso também a tornavam insossa.
Suzann
e concentrou
-
se em um prédio impressionante que se desta
-
cava da tapeçaria que era a cidade e a tirou dos seus devaneios quando o
táxi aéreo rapidamente se aproximou dele. Era uma enorme pirâmide
negra com uma parte superior dourada. Quando o táxi parou e
depois
desceu até uma passarela que conduzia à entrada da pirâmide, ela ficou
abismada ao notar como o edifício se parecia com a Grande Pirâmide
egípcia de Gizé. Como já estivera em Gizé, juraria que a versão
interterráquea era até mais ou menos do mesmo t
amanho. Quando
mencionou a semelhança a Arak, ele sorriu, com ar de superioridade.
—
Esse projeto foi uma das nossas contribuições à cultura egípcia
—
declarou Arak.
—
Tínhamos grandes esperanças em relação a eles, pois, a
princípio, eram uma civilização c
onsideravelmente pacífica. Enviamos
uma delegação para viver com eles nos primórdios da histó
ria egípcia
com a intenção de fazê
-
los se destacar entre os outros povos
extremamente belicosos que haviam se desenvolvido. A experiência não
foi um empreendiment
o da mesma monta que o movimento de Atlântida,
e nos esforçamos muito, mas, no final, fracassamos.
—
Mostraram a eles como construir prédios e lhes forneceram os
projetos?
—
indagou Suzanne. Para ela o mistério da Grande Pirâmide era
um dos mais fascinante
s do mundo antigo.
—
Claro
—
disse Arak.
—
Precisamos fazer isso. Também lhes
ensinamos o conceito de arco, mas eles se recusaram terminantemente a
crer que funcionaria, e nunca o usaram em nenhuma construção.
O táxi aéreo parou, e a lateral se abriu.
—
Pr
imeiro você
—
disse Arak, gentilmente.
Depois que entraram, Suzanne percebeu que qualquer semelhança
entre as duas construções havia desaparecido. O interior da pirâmide
interterráquea era de mármore branco cintilante, e os espaços interio
res,
grandiosos
em vez de claustrofóbicos.
Quando Suzanne e Arak percorreram um corredor rumo ao centro
do edifício, Suzanne teve nova surpresa. Garona saiu de um corredor
lateral, surgindo bem na frente dela e lhe deu um caloroso abraço.
—
Garona!
—
murmurou Suzanne, obv
iamente extasiada. Retri
buiu
-
lhe o abraço.
—
Mas que agradável surpresa! Eu não esperava te ver antes
da noite. Ou pelo menos esperava vê
-
lo esta noite.
—
É claro que teria me visto à noite
—
disse Garona.
—
Mas não
consegui esperar.
—
Olhou
-
a nos olhos.
—
Sabia que você viria ao
Conselho dos Anciãos hoje, de forma que vim esperá
-
la.
—
Pois adorei
—
respondeu Suzanne.
—
É melhor nos apressarmos
—
disse Arak.
—
O Conselho está nos
aguardando.
—
Certamente
—
disse Garona. Parou de abraçar Suzanne e pe
gou a
m
ão ela. Os três começaram a andar.
—
Como foi sua manhã?
—
indagou Garona.
—
Esclarecedora
—
disse Suzanne.
—
A tecnologia de vocês é es
-
pantosa.
—
Tivemos uma palestra científica
—
explicou Arak.
—
Alguma visita?
—
indagou Garona.
—
Ao Museu da Superfície
da Terra
—
contou Suzanne.
—
É mesmo?
—
Garona pareceu surpreso.
—
Foi um pedido específico do Sr. Donald Fuller
—
explicou Arak.
—
Acharam a visita instrutiva?
—
perguntou Arak.
—
Foi interessante
—
disse Suzanne.
—
Mas eu não teria escolhi
do
esse lugar
, não diante do que aprendemos na palestra científica.
Aproximaram
-
se de um par majestoso de portas de bronze. Em cada
painel se via uma figura em relevo que Suzanne reconheceu ser um
ankh,
ou um antigo s
ímbolo egípcio da vida. Era mais um lembrete para el
a da
evidente troca de informações dos interterráqueos com a civilização antiga
dos seres humanos secundários. Aquilo a fez imaginar o que mais teria
resultado dessa cultura avançada.
No momento em que o grupo chegou a elas, as portas se abriram
para o int
erior da sala, girando em dobradiças silenciosas. Além delas se
viu um salão circular com teto em cúpula, sustentado por uma colunata.
Como o resto do interior da pirâmide, era em mármore branco, embo
ra os
capitéis
das colunas fossem de ouro.
Diante da in
sistência de Arak, Suzanne ultrapassou o limiar de már
-
more. Deu alguns passos hesitantes antes de parar. Examinou a câmara
monumental. Doze cadeiras de estilo imperial se encontravam distribuí
-
das por sua periferia. Cada uma se situava entre um par de col
unas. Todas
estavam ocupadas
—
supostamente por membros do Conselho, cuja
idade
variava de 5 a 25 anos. O inesperado grupo de idades tão variadas deixou
Suzanne ligeiramente confusa. Alguns dos membros eram tão pequenos
que, quando sentados, seus pés nem t
ocavam no chão.
—
Entre, Dra. Suzanne Newell
—
disse um dos componentes do
Conselho, numa voz claramente pré
-
adolescente. Para Suzanne, ela
parecia uma menina de dez anos.
—
Meu nome é Ala, e é minha vez de
falar pelo Conselho. Portanto, por favor, não ten
ha medo! Sei que o prédio
é imponente e intimidador, mas queremos apenas falar com você, se vier
ao centro da sala, todos poderemos vê
-
la com clareza.
—
Estou mais surpresa do que temerosa
—
disse Suzanne ao avan
-
çar até um ponto diretamente abaixo do pont
o mais alto da cúpula.
—
Disseram
-
me que eu ia me apresentar ao Conselho dos Anciãos.
—
E foi a ele que veio
—
disse Ala.
—
O fator determinante para se
fazer parte do Conselho é o número de vidas que a pessoa teve, não a
idade do corpo atual.
—
Entendo
—
disse Suzanne, embora ainda considerasse
perturbador estar diante de um corpo governamental parcialmente com
-
posto de crianças.
—
O Conselho dos Anciãos formalmente lhe dá as boas
-
vindas
—
disse Ala.
—
Obrigada
—
respondeu Suzanne, sem saber mais o que diz
er.
—
Trouxemos você a Interterra na esperança de que pudesse nos
fornecer informações que não fomos capazes de obter monitorando suas
comunicações na superfície terrestre.
—
Que tipo de informações?
—
indagou Suzanne. Sentiu que es
tava
fechando a guarda.
Em sua imaginação ouviu a voz de Donald dizendo
que os interterráqueos queriam algo deles, e depois que o obti
vessem, os
tratariam de forma muito diferente.
—
Não se alarme
—
disse Ala, conciliadora.
—
É difícil não se alarmar
—
disse Suzanne.
—
Principa
lmente
porque você me faz recordar que eu e meus colegas fomos abduzidos para
seu mundo, o que, devo dizer, foi uma experiência aterrorizante.
—
Pedimos desculpas por isso
—
disse Ala.
—
E deve entender que
pretendemos recompensá
-
los por seu sacrifício. Mas
somos nós que
estamos alarmados. Sabe, a integridade e segurança de Interterra são
responsabilidade nossa. Sabemos que você é uma oceanógrafa de desta
-
que no seu mundo.
—
Estão sendo muito generosos
—
disse Suzanne.
—
Na verdade,
estou há relativamente po
uco tempo nesse campo.
—
Permita
-
me interrompê
-
la
—
disse um outro ancião. Era um
adolescente que começava a deslanchar no seu crescimento.
—
Meu nome
é Ponu, e atualmente sou o vice
-
representante. Dra. Newell, estamos
cientes da alta consideração que têm
pela senhora seus colegas do ramo.
Cremos que esse respeito
é
uma prova confiável da capacida
de
profissional de uma pessoa.
—
Como queiram
—
disse Suzanne. Não estava com vontade de
debater o assunto sob as circunstâncias do momento.
—
O que querem me
per
guntar?
—
Em primeiro lugar
—
disse Ala
—
, gostaria de saber se lhe in
-
formaram que nosso ambiente é isento de bactérias e vírus comuns no seu
mundo.
—
Arak deixou isso bem claro
—
disse Suzanne.
—
E presumo que entenda que a detecção de nossa civilização
por
uma civilização como a sua seria desastrosa.
—
Posso entender a preocupação de vocês com a contaminação
—
disse Suzanne.
—
Mas não estou convencida de que seria necessaria
mente
desastroso, principalmente se forem adotadas salvaguardas ade
quadas.
—
Dr
a. Newell, não pretendemos fazer disso um debate
—
avisou
Ala.
—
Mas certamente deve estar ciente do fato de que sua civilização
ainda está num estágio muito inicial de desenvolvimento social. O in
-
teresse individual puro e simples é a força de motivação d
ominante, e a
violência é cotidiana. Aliás o seu país mesmo é tão primitivo que per
mite
que toda e qualquer pessoa porte uma arma.
—
Permita
-
me parafraseá
-
la
—
aparteou Ponu.
—
O que minha estimada colega anciã está
afirmando é que a fome do seu mundo e a
cobiça por nossa tecnologia
serão tão grandes que nossas necessidades especiais seriam postas de lado.
—
Exato
—
disse Ala.
—
E não podemos aceitar um risco desses.
Não durante pelo menos cinqüenta mil anos, mais ou menos, para dar a
vocês, humanos secundá
rios, uma oportunidade de se tornarem mais ci
-
vilizados. Contanto, é claro, que não se destruam antes de chegarem lá.
—
Certo
—
disse Suzanne.
—
Como está dizendo, isto não é um
debate, e vocês me convenceram de que crêem que minha cultura é um
risco para
a sua. Partindo daí, o que querem de mim?
Fez
-
se uma pausa. Suzanne olhava de Ala para Ponu. Como
nenhum dos dois respondeu, ela olhou de relance para os outros rostos.
Nin
gu
ém falou. Ninguém se moveu. Suzanne voltou a fitar Arak e Garona.
Garona sorriu,
tranqüilizando
-
a. Suzanne voltou a se dirigir a Ala.
—
Bom, e agora?
—
perguntou. Ala suspirou.
—
Gostaria de lhe fazer uma pergunta direta
—
disse.
—
Uma
pergunta cuja resposta tememos ouvir. Sabe, seu mundo começou a fazer
várias perfurações no fundo do
oceano nos últimos anos, aparentemen
te
de forma aleatória. Observamos esses episódios com uma preocupa
ção
cada vez maior, pois não sabemos quais são seus objetivos. Sabemos que a
perfuração não é para a prospecção de petróleo nem de gás natu
ral, pois
es
ses
recursos não existem nas áreas onde essa perfuração está sendo feita.
Andamos monitorando as comunicações, como sempre fi
zemos, mas sem
conseguirmos saber o porquê das perfurações.
—
Estão interessados em saber por que o
Benthic Explorer
andou
perfura
ndo a montanha submarina?
—
indagou Suzanne.
—
Estou muito interessada
—
disse Ala.
—
Vocês estavam per
-
furando diretamente em cima de nossas antigas portas de saída. A
probabilidade disso ocorrer puramente por acaso é extremamente pe
-
quena.
—
Não foi por a
caso
—
admitiu Suzanne. Assim que ela pro
-
nunciou essas palavras um murmúrio geral irrompeu entre os anciãos.
—
Deixem
-
me terminar
—
pediu Suzanne.
—
Estávamos perfuran
do a
montanha para vermos se podíamos alcançar diretamente a astenosfera.
Nosso ecobatí
metro indicou que o monte era um vul
cão inativo com uma
câmara de magma cheia de lava de baixa den
sidade.
—
Por acaso a decisão de perfurar este local em particular se origi
-
nou de uma suspeita de que Interterra existe?
—
indagou Ala.
—
Não!
—
disse Suza
nne.
—
Definitivamente não!
—
Não houve influência da suspeita da existência de uma civiliza
-
ção submarina no processo de decisão?
—
indagou Ala.
—
Como já disse, estávamos perfurando puramente por motivos
geológicos
—
disse Suzanne.
Os anciãos conferencia
ram em voz alta uns com os outros. Suzanne
virou
-
se e relanceou os olhos de novo para Arak e Garona. Ambos sor
-
riram para incentivá
-
la.
—
Dra. Newell
—
disse Ala para redirecionar a atenção de Suzanne
para si
—
, por acaso, em sua capacidade profissional, j
á ouviu dizer
qualquer coisa vinda de qualquer fonte que sugerisse que alguém sus
peita
da existência de Interterra?
—
Não nos círculos científicos
—
disse Suzanne.
—
Mas publica
ram
alguns romances sobre um mundo subterrâneo.
—
Sabemos da obra do Sr. Vern
e e do Sr. Doyle
—
disse Ala.
—
Mas
eram livros de ficção que visavam unicamente ao entretenimento.
—
Certo
—
disse Suzanne.
—
Fantasia pura. Ninguém achou que as
histórias deles se baseassem em fatos, embora eles provavelmente te
nham
se inspirado em um h
omem chamado John Cleves Symmes, que realmente
acreditava que o centro da Terra era oco.
Os anciãos voltaram a murmurar em voz alta, nervosos.
—
As crenças do Sr. Symmes influenciaram de algum modo a opi
-
nião dos cientistas?
—
indagou Ala.
—
Até certo ponto
—
disse
Suzanne.
—
Mas eu não me preocupa
ria muito com isso, porque estamos
falando da primeira parte do século XIX. Em 1838 a teoria dele realmente
motivou uma das primeiras expe
dições científicas norte
-
americanas. Foi
realizada sob o comando do te
ne
nte Charles Wilkes, e seu objetivo inicial
era encontrar a entrada do interior oco da Terra, que Symmes pensava
ficar debaixo do Pólo Sul.
Mais murmúrios exaltados ecoaram por toda a sala.
—
E qual foi o resultado dessa expedição?
—
indagou Ala.
—
Nada que
preocupasse Interterra
—
disse Suzanne.
—
Aliás, o
objetivo da expedição mudou antes mesmo de ela começar. Em vez de
procurar a entrada do interior da Terra, quando começaram, eles rece
-
beram a missão de encontrar novas áreas de caça a focas e baleias.
—
Então ignoraram a teoria do Sr. Symmes?
—
indagou Ala.
—
Completamente
—
disse Suzanne.
—
E ninguém jamais tor
nou a
propor a idéia.
—
Somos realmente muito gratos
—
disse Ala
—
, principalmente
considerando
-
se que o Sr. Symmes estava correto em alguns aspe
ctos. O
Pólo Sul era, e ainda é, nossa principal porta interplanetária e
intergaláctica.
—
Não é curioso?
—
disse Suzanne.
—
Infelizmente é um pouco tar
-
de para o Sr. Symmes provar que estava certo. Seja lá como for, percebo
pelas perguntas que estão me fa
zendo que querem saber se seu segredo
está seguro, e devo dizer que está, pelo menos que eu saiba. Mas enquanto
estamos falando no assunto, talvez eu deva mencionar que embora hoje
em dia nin
guém creia que a Terra seja oca, sempre existiram grupos
margina
is que conversam sobre alienígenas provenientes de culturas
avançadas que nos visitaram ou que vivem entre nós. Sempre existe um
programa de tevê ou outro cujo tema é
esse.
Mas essas idéias de visitas de
alienígenas se referem aos alienígenas vindos do esp
aço exterior, não de
dentro da Terra.
—
Sabemos do que está falando
—
disse Ala.
—
E essa associação
nos é favorável. Vem sendo particularmente útil nas poucas ocasiões em
que uma de nossas naves interplanetárias foi observada pelos humanos
secundários.
—
A
única outra coisa que eu deveria mencionar
—
disse
Suzanne
—
é que nossa cultura vem tendo mitos sobre a Atlântida que
chega
ram a nós dos antigos gregos. Mas asseguro a vocês que a
comunidade científica os considera puros mitos ou possivelmente
resultado
da des
truição de uma antiga cultura dos humanos secundários
por uma vio
lenta erupção vulcânica. Jamais existiu a teoria de que uma
cultura de humanos primários vive sob o oceano.
Os anciãos conferenciaram ruidosamente outra vez. Suzanne reme
-
xeu
-
se, pou
co à vontade, enquanto eles deliberavam.
Ala concluiu o discurso em particular com um meneio da cabeça
dirigido aos seus iguais e depois tornou a voltar sua atenção para Suzanne.
—
Gostaríamos de lhe perguntar a respeito dos episódios de per
-
furação aleató
ria em águas profundas que vêm ocorrendo no decorrer dos
últimos anos aproximadamente na área de Saranta. Nenhuma delas
ocorreu no cume de um monte submarino.
—
Imagino que esteja se referindo à perfuração que se fez para
confirmar as mais recentes teorias
de extensão do fundo do mar
—
dis
se
Suzanne.
—
Essas perfurações foram feitas simplesmente para reco
lher
testemunhos de rocha para se estabelecer sua idade.
Os anciãos tornaram a irromper em uma curta explosão de tagare
-
lice exaltada. Depois que termina
ram, Ala perguntou.
—
Houve alguma vez alguma insinuação de que a suposta câmara
de magma que estavam perfurando contivesse ar, em vez de lava de bai
xa
densidade?
—
Não, que eu saiba
—
disse Suzanne.
—
E eu era a cientista à
frente do projeto.
—
Essas por
tas de saída deviam ter sido vedadas faz tempo
—
dis
se
um dos anciãos, com certa veemência.
—
Agora não é hora de recriminações
—
aconselhou Ala, diplo
-
maticamente.
—
Estamos tratando do presente.
—
Depois, tornando a
olhar para Suzanne, indagou:
—
Em sum
a, em sua vida
profissional,jamais ouviu falar que alguém tivesse imaginado a existência
de uma civilização sob o oceano, nem criasse qualquer teoria semelhante?
—
Só como mitos, como já mencionei
—
disse Suzanne.
—
E agora, como última pergunta, que gosta
ríamos de fazer
—
disse
Ala.
—
Estamos cada vez mais apreensivos acerca da progressi
va falta de
respeito de sua civilização pelo ambiente marinho. Em
bora tenhamos
ouvido algumas menções a esse problema em seus meios de comunicação,
a taxa de poluição e a
pesca predatória vêm aumentando. Como até certo
ponto dependemos da integridade do oceano, estamos querendo saber se
o debate que existe na sua civili
zação sobre o assunto é só conversa vazia
ou reflete uma preocupa
ção real?
Suzanne suspirou. Essa era u
ma questão que lhe dizia respeito bem
de perto. Sabia muito bem que a verdade era no mínimo desanimadora.
—
Algumas pessoas estão tentando mudar a situação
—
disse
Suzanne.
—
Essa resposta deixa transparecer que a questão não é considera
da
importante pela
maioria
—
comentou Ala.
—
Talvez não, mas aqueles que realmente se preocupam dedicam
-
se
de corpo e alma a essa causa.
—
Porém talvez o público em geral não esteja ciente do papel crucial
que o oceano desempenha no grande ciclo ecológico da superfície ter
restre;
por exemplo, o fato de que o plâncton regula tanto o oxigênio quanto o
dióxido de carbono da superfície da Terra.
Suzanne sentiu o rosto ficar vermelho como se de alguma forma ela
fosse culpada pela forma pela qual os humanos secund
ários tratavam o
s
oceanos do mundo.
—
Infelizmente, a maioria dos povos e a maioria dos países enca
ram
o oceano como uma fonte inesgotável de suprimento de alimentos e uma
fossa sem fundo para dejetos e lixo.
—
Isso é mesmo muito triste
—
disse Ala.
—
E preocupante.
—
E
uma visão deturpada causada pelo egoísmo
—
disse Ponu.
—
Não posso deixar de concordar com vocês
—
admitiu Suzanne.
—
É um
problema que eu e meus colegas estamos trabalhando para mi
tigar. É uma
batalha.
—
Bom, era isso
—
disse Ala. Ergueu
-
se do assento. As
sim que ficou
de pé, caminhou diretamente até Suzanne, com a mão estendida e a palma
virada para a frente.
Suzanne ergueu também a mão e pressionou a palma dela contra a
de Ala. A cabeça de Ala chegava apenas até o queixo de Suzanne.
—
Obrigada por seu úti
l parecer
—
disse Ala, com sinceridade.
—
Pelo menos em relação à segurança de Interterra, você afastou nossos
temores. Como recompensa, lhe oferecemos toda a gama dos frutos de
nossa civilização. Há muito para se ver e para se vivenciar. Com sua
formação,
está qualificada de maneira especial, muito mais do que qual
-
quer outro dos nossos visitantes terrestres. Vá e regale
-
se!
Um súbito aplauso dos outros anciãos deixou Suzanne momenta
-
neamente confusa. Ela agradeceu, constrangida, os aplausos, com um
meneio
de cabeça, antes de falar em voz alta, para poder ser ouvida em
meio aos insistentes aplausos.
—
Obrigada por me oferecerem esta oportunidade de visitar
Interterra. Sinto
-
me honrada.
—
Somos nós que nos sentimos honrados
—
disse Ala. Gesticu
lou
para Arak
e Garona, fazendo sinal para que Suzanne os seguisse.
Mais tarde, depois que os três saíram da Grande Pirâmide, Suzanne
fez uma pausa para olhar rapidamente a imponente construção. Pergun
-
tou
-
se se não deveria ter indagado ao Conselho se ela e os outros e
ram
visitantes temporários ou eternos cativos de Interterra. Parte do motivo
pelo qual ela não havia feito a pergunta era o medo da resposta. Mas
agora sentia que desejava ter perguntado assim mesmo.
—
Você está bem?
—
perguntou Garona, interrompendo
-
lhe o
flu
xo
dos pensamentos.
—
Sim, estou
—
respondeu Suzanne. Voltou a andar, ainda absor
ta
em reflexões. A única coisa que a visita havia esclarecido mesmo ha
-
via
sido o motivo pelo qual ela e os outros haviam sido trazidos para
Interterra. Os anciãos queri
am interrogar um oceanógrafo profissional
acerca das suspeitas sobre a existência de Interterra. Ela não achava que o
tratamento que ela e seus colegas recebiam iria mudar agora que os
interterráqueos tinham atingido sua meta. Por outro lado, agora se sen
tia
a única responsável pelo sofrimento dos companheiros da superfí
cie. Se
não fosse por ela, eles não teriam sido abduzidos.
—
Tem certeza de que está se sentindo bem?
—
indagou Garona.
—
Parece tão pensativa...
Suzanne obrigou
-
se a sorrir.
—
É difícil n
ão estar
—
disse.
—
Há tanta coisa a assimilar.
—
Você prestou um grande serviço a Interterra
—
comentou Arak.
—
Como disse Ala... todos lhe somos gratos.
—
Não têm de quê
—
disse Suzanne enquanto tentava sustentar o
sorriso. Mas foi difícil. Sentindo que
Donald estava certo, e que esta
vam
em Interterra para ficar, sua intuição lhe dizia que o confronto se
ria
inevitável, e considerando
-
se as personalidades de alguns de seus
companheiros, a situação poderia, dentro em breve, ficar violenta e
incontrolável.
1
1
6
6
Esse lugar me dá calafrios
—
disse Michael.
—
É esquisito estar assim tão deserto
—
disse Donald.
—
Tam
bém é
estranho eles nos deixarem perambular por aqui sozinhos.
—
Eles confiam nas pessoas
—
disse Michael.
—
Isso a gente tem de
reconhecer.
—
Eu c
hamaria isso de dar bobeira
—
disse Donald.
Os dois humanos de segunda geração estavam percorrendo a Cen
-
tral de Informações. Ismael e Mary Black os haviam acompanhado até a
entrada do vasto edifício, mas haviam preferido ficar do lado de fora
enquanto Don
ald e Michael faziam sua visita. Lá dentro os ho
mens se
viram em um enorme labirinto de corredores e passagens que se
interceptavam. O lugar era uma
colméia
de salas cheias do chão até o teto
com o que lhes pareceram discos rígidos de uma colossal rede de
computadores. A não ser por dois clones operários que eles haviam
encontrado em uma sala perto da entrada, ainda não tinham visto vivalma.
—
Não acha que vamos nos perder aqui, acha?
—
perguntou
Michael, inquieto. Olhou para trás, para o caminho por onde
tinham
vindo. Todos os corredores pareciam iguais.
—
Estou tomando nota dos nossos movimentos
—
disse Donald.
—
Tem certeza?
—
indagou Michael.
—
Já demos um milhão de voltas.
Donald parou.
—
Escuta aqui, seu cabeça
-
dura
—
disse.
—
Se está grilado, por que
é que não volta para a porcaria da entrada e espera lá?
—
Tudo bem
—
disse Michael.
—
Estou na boa.
—
Na boa, o cacete
—
disse Donald. Começou a andar outra vez.
—
Mas por que você quis vir aqui, afinal?
—
indagou Michael al
-
guns minutos depois.
—
Vamos ap
enas dizer que eu estava curioso
—
respondeu Donald.
—
Parece um pesadelo
—
disse Michael.
—
Ou um filme de ter
ror
sobre o descontrole da tecnologia
—
estremeceu.
—
Pelo menos dessa vez sou obrigado a concordar com você, ma
-
rujo
—
disse Donald.
—
É como s
e a tecnologia houvesse dominado tudo.
—
O que acha que esses equipamentos todos fazem?
—
Arak insinuou que eles governam isso tudo aqui
—
disse
Donald.
—
Aparentemente, monitoram tudo. E armazenam as essências
das pessoas. Deus sabe quanta gente está tran
cafiada nessa coisa nesse
mo
mento.
Michael tornou a estremecer.
—
Acha que eles sabem que estamos aqui?
—
Aí você me pegou, marujo
—
disse Donald. Andaram mais
alguns minutos em silêncio.
—
Já não viu o bastante?
—
indagou Michael.
—
Acho que sim
—
disse
Donald.
—
Mas vou insistir mais um
pouquinho só.
—
Será que essa coisa se conserta sozinha?
—
Se for o caso
—
disse Donald
—
, então teríamos que perguntar
quem estaria mais vivo, se a máquina ou essas pessoas que parecem ter
tão pouco o que fazer.
De repen
te, Donald ergueu uma das mãos, detendo Michael.
—
O
que é?
—
gritou Michael.
Donald encostou um dedo nos lábios para que Michael se calasse.
—
Não está ouvindo isso?
—
sussurrou.
Michael inclinou a cabeça e escutou. Realmente estava captando
sons bem baixo
s a uma grande distância; leves vibrações que abalavam o
silêncio que, fora elas, era absoluto.
—
Está escutando?
—
indagou Donald. Michael confirmou.
—
Parecem risadas. Donald concordou.
—
Um tipo curioso de risadas
—
disse.
—
Acontece a intervalos
regula
res.
—
Se eu não achasse impossível, diria que eram risadas gravadas,
como as que se ouve numa comédia de tevê.
Donald estalou os dedos.
—
Você está certo! Eu sabia que conhecia
esse
som.
—
Mas isso é uma loucura
—
disse Michael.
—
Vamos tirar isso a limpo
!
—
disse Donald.
—
Vamos seguir o som.
Com uma curiosidade crescente os dois homens prosseguiram, es
-
perando encontrar a fonte. Nas encruzilhadas de cada corredor precisa
-
vam parar e escutar para escolher uma dire
ção. Gradativamente os sons
ficaram mais a
ltos, e, com eles, as escolhas ficaram mais claras. Quando
fizeram a última curva, descobriram que o som vinha de uma sala à
esquerda. Nesse ponto já estavam convencidos de que estavam mesmo
ouvindo um seriado de tevê; podiam até ouvir os diálogos.
—
Parec
e uma reprise do
Seinfeld
—
murmurou Michael.
—
Quieto!
—
disse Donald, quase sem emitir som. Achatou
-
se con
-
tra a parede ao lado da porta da sala e fez sinal para que Michael ficasse
ao lado dele. Devagar, Donald avançou. Para sua surpresa, parecia a sala
de monitoração de uma estação de tevê. A parede em frente estava co
berta
de mais de uma centena de monitores. Todos estavam ligados, a
maioria
sintonizada em diversos programas, embora alguns apenas exi
bissem as
cores de teste.
Inclinando
-
se um pouco mai
s para a frente, Donald notou um ho
-
mem sentado em uma poltrona anatômica branca no centro da sala em
frente aos monitores. O sujeito era muito diferente dos interterráqueos
típicos; estava ficando calvo e seus cabelos eram grisalhos e
desgrenhados
.
Realme
nte, diante dele, a tela exibia os personagens Elaine, George,
Kramer e Jerry.
Donald tornou a se achatar contra a parede do corredor, longe da
porta aberta. Olhou para Michael e murmurou:
—
Você estava certo! É um velho episódio de
Seinfeld.
—
Eu reconhec
eria essas vozes em qualquer lugar
—
disse Michael.
Donald ergueu o dedo até os lábios de novo.
—
Tem um velho ali assistindo ao programa
—
sussurrou.
—
E está
na cara que ele não parece interterráqueo.
—
Verdade?
—
perguntou Michael, em voz baixa.
—
Por e
ssa eu não esperava
—
disse Donald. Sugou o lábio infe
rior
enquanto refletia sobre a situação.
—
Sem dúvida
—
disse Michael.
—
E agora, o que fazemos?
—
Vamos entrar e saber quem é esse cara
—
disse Donald.
—
Tal
vez
tenhamos dado sorte. Mas, veja bem! De
ixe que eu falo, certo?
—
Fique à vontade
—
disse Michael.
—
Tudo bem, então vamos
—
disse Donald. Desencostando
-
se da
parede, entrou na sala. Michael o seguiu. Eles se moveram silenciosa
-
mente, embora a tevê estivesse tão alta que o homem jamais poderia t
ê
-
los
ouvido se aproximar.
Sem saber como evitar que o homem se assustasse, e mesmo assim
querendo chamar a atenção dele, Donald simplesmente entrou no que
achou que era o campo de visão do homem, só que quase fora dele. O
estratagema não funcionou. O cara
estava enfeitiçado pelo programa; o
rosto dele estava paralisado, numa expressão relaxada, apatetada, os olhos
semicerrados, que nem piscavam, colados à tela.
—
Com licença
—
disse
Donald, mas a voz dele se confundiu com novo acesso de risadas
gravadas.
Co
m delicadeza, Donald cutucou o braço do homem. O homem deu
um pulo na cadeira. Vendo os dois intrusos ao fazer isso, encolheu
-
se.
Mas recuperou
-
se rápido também.
—
Espere aí um minuto! Estou reconhecendo vocês dois!
—
ex
-
clamou.
—
Vocês são dois dos visita
ntes da superfície que acabaram de
chegar.
—
Chegar
não é bem o termo
—
disse Donald.
—
Não tivemos es
-
colha. Fomos abduzidos.
—
Olhou o homem, que não tinha mais de 52
anos, com um corpo curvado e magro. Tinha olhos bem encovados, con
-
gestionados, feições
rudes e um rosto vincado de rugas profundas. Era o
cara com aparência mais idosa que Donald havia visto em Interterra.
—
Vocês não sofreram um naufrágio?
—
indagou o homem.
—
Longe disso
—
disse Donald. Apresentou
-
se e apresentou
Michael.
—
Muito prazer e
m conhecê
-
los
—
disse o homem, animado.
—
Estava com esperança de ter essa oportunidade.
—
Avançou para aper
tar
-
lhes as mãos.
—
E é assim que as pessoas deveriam se cumprimentar
—
acrescentou.
—
Já me enchi dessa besteira de ficar pressionando as palmas
d
as mãos.
—
Qual o seu nome?
—
indagou Donald.
—
Harvey Goldfarb! Mas pode me chamar de Harv.
—
Está aqui sozinho?
—
Pode apostar. Vivo sozinho aqui.
—
O que está fazendo?
—
Não
é
muita coisa
—
disse Harvey. Olhou de relance para os
monitores.
—
Assisto a p
rogramas de tevê, especialmente aqueles de
Nova York.
—
É o seu emprego?
—
Mais ou menos, creio eu, mas
é
como se eu fosse um voluntá
rio.
Eu só gosto de ver trechinhos de Nova York. Gosto bastante de
Allin the
Family,
mas é difícil encontrar reprises dess
a hoje em dia. Uma pena.
Seinfeld é
batuta, mas não consigo entender muito as piadas.
—
Essa sala serve para quê?
—
indagou Donald.
—
Só para diversão?
Harvey riu, desdenhoso, enquanto sacudia a cabeça.
—
Os interterráqueos não estão interessados pela tevê
, e não a
assistem muito. É a Central de Informações que se interessa. A Cen
tral de
Informações de Saranta é um dos principais locais de recepção dos meios
de comunicação da superfície terrestre em Interterra. Monitora os meios
de comunicação da superfíci
e para se certificar de que não há referência à
existência de Interterra.
—
Harvey indicou os monitores com ambas as
mãos.
—
Essa coisa funciona 24 horas por dia, sete dias por semana.
"Ei, agora me lembrei de uma coisa. Vocês receberam uma tremen
da
cober
tura da CNN e de outras redes de televisão. Estão no noticiá
rio por
terem sido engolidos por um vulcão submarino."
—
Então, ninguém suspeitou de nada de anormal?
—
perguntou
Donald.
—
Nem desconfiaram
—
disse Harvey.
—
Só um monte de
baboseira sobre geolo
gia. Bom, voltando à minha função, me ofereci como
voluntário para ficar aqui embaixo monitorando os programas de tevê
para os arquivos e censurar qualquer cena de violência.
—
Depois da censura não deve sobrar quase nada dos programas
—
disse Donald, com
um riso cínico.
—
Por que eles se preocupam com isso?
—
Sei lá, não faz muito sentido
—
concordou Harvey.
—
Mas se eles
assistirem aos programas, esses não podem conter nenhuma vio
lência.
Não sei se já sabe, mas essa gente, os interterráqueos verdadei
ros
, não
suportam violência. Ela os deixa literalmente doentes!
—
Então você não é um interterráqueo genuíno. Harvey soltou outra
risada curta.
—
Eu? Harvey Goldfarb, um interterráqueo? Eu pareço um
interterráqueo? Com essa cara?
—
Parece mesmo um pouco mais v
elho do
que os outros.
—
Mais velho e mais feio
—
bufou Harvey.
—
Mas eu sou assim.
Eles andaram tentando me convencer a concordar em deixá
-
los fazer todo
o tipo de coisa comigo, até implantar cabelos em mim, mas recu
sei.
Mesmo assim, devo reconhecer que
eles cuidaram da minha saúde. Não
resta dúvida disso. Os hospitais deles parecem até oficinas. Eles colocam
uma parte nova na gente, e a gente sai dali novinho. Mas, mesmo assim,
não sou interterráqueo. Sou nova
-
iorquino. Tenho uma casa maravilhosa
na melh
or área do Harlem.
—
O Harlem mudou um pouquinho
—
informou Donald.
—
Há
quanto tempo não vê sua casa?
—
Foi em 1912 que eu vim para Interterra.
—
Como chegou aqui?
—
Um pouco de sorte e a intervenção dos interterráqueos. Fui sal
vo
de me afogar com alguma
s centenas de pessoas depois que nosso navio
bateu num
iceberg.
—
O
Titanic
?
—
perguntou Donald.
—
Qual mais poderia ser
—
disse Harvey.
—
Estava voltando para
minha casa em Nova York.
—
Então, deve haver um bom número de passageiros do
Titanic
aqui em Int
erterra?
—
indagou Donald.
—
No mínimo várias centenas
—
disse Harvey.
—
Mas não estão
todos em Saranta. Muitos se mudaram para Adântida, e para outras
cidades. Eram muito procurados. Sabe, os interterráqueos nos acham
divertidos.
—
Já vi
esse
filme
—
diss
e Donald.
—
Aproveite isso enquanto pode
—
aconselhou Harvey.
—
De
pois
que se aclimatar aqui, não vai mais ser considerado tão interessan
te.
Acredite.
—
Você deve ter passado o pão que o diabo amassou
—
disse
Donald.
—
Não, até que venho sendo feliz aqui
—
disse Harvey, defensi
-
vamente.
—
Tem seus prós e contras.
—
Quero dizer, na noite em que o
Titanic
afundou.
—
Ah, claro! É verdade. Aquela noite foi pavorosa. Pavorosa!
—
Sente saudades de Nova York?
—
De certa forma
—
disse Harvey. Seus olhos adquiriram
uma ex
-
pressão distante.
—
Aliás,
é
engraçado, eu sinto falta mesmo da Bolsa de
Valores. Sei que parece estranho, mas eu era um homem que havia subi
do
na vida por mim mesmo... Era corretor, e adorava negociar. Trabalha
va
arduamente, mas adorava a emoção
de acompanhar o mercado.
—
Harvey inspirou profundamente e depois exalou o ar de uma só vez, num
suspiro profundo. Tornou a voltar a atenção para Donald.
—
Bom, já
chega de falar de mim. E vocês? Foram mesmo abduzidos para Interterra?
Se foram, são os pri
meiros de que ouço falar. Estava com a impressão de
que haviam sido salvos do vulcão submarino que a CNN noticiou.
—
Houve mesmo uma erupção naquele momento
—
disse
Donald.
—
Mas creio que foi mais para disfarçar o fato de que fomos
sugados para uma das po
rtas de saída de Interterra. De uma forma ou de
outra, nossa chegada aqui não teve causas naturais. Fomos seqüestrados
por algum motivo, que até agora não nos revelaram.
Harvey olhou de Donald para Michael e depois voltou a fitar
Donald.
—
Vocês não parece
m nada encantados com Interterra.
—
Estou impressionado
—
disse Donald.
—
Seria difícil não ficar
impressionado, mas não estou encantado.
—
Humm
—
disse Harvey.
—
Isso o coloca numa categoria pecu
liar.
Todos os outros que são trazidos para cá se tornam de
fensores do lugar da
noite para o dia. E esse seu amigo, aí?
—
O Michael sente o mesmo que eu
—
disse Donald. Michael con
-
firmou com a cabeça.
—
Sabe
—
prosseguiu Donald
—
, não gostamos de
ser forçados a fazer nada, por melhor que possa parecer. Mas, e voc
ê,
Harv?
Harvey olhou atentamente o rosto de Donald e até deu outra olha
da
de relance em Michael, que no momento estava rindo junto com os risos
gravados do programa.
—
Está falando sério, não está embasbacado com
este lugar, mes
mo com toda essa gente bon
ita e suas festas?
—
Estou lhe dizendo, não gostamos de ser forçados a nada.
—
E estão mesmo interessados na minha opinião? Donald
concordou.
—
Certo
—
disse Harvey. Inclinou
-
se mais para perto deles e bai
xou
o tom de voz.
—
Deixe
-
me lhes dizer uma coisa:
se eu pudesse partir esta
noite para Nova York, não perderia tempo. Isso aqui é tão tranqüi
lo e
perfeito que enlouquece qualquer pessoa normal.
Donald não pôde conter um sorriso. O velho era da mesma opi
nião
dele.
—
Estou lhe dizendo, nunca acontece nad
a aqui
—
continuou
Harvey.
—
Tudo é igual, entra dia, sai dia. Nunca acontece nada de errado.
Não sei o que eu faria por um dia na Bolsa de Nova York. Que
ro dizer,
preciso de um pouco mais de tensão para me sentir vivo, ou, no mínimo,
algumas más notícias
ou problemas de vez em quando para poder
apreciar como a vida é boa.
Michael fez um rápido sinal de positivo com o polegar para Donald.
Mas Donald o ignorou. Em vez disso ele perguntou a Harvey se alguém
havia alguma vez conseguido fugir de Interterra.
—
Está brincando? Estamos debaixo dessa porcaria desse oceano!
Quero dizer, de verdade. O que acha, que pode simplesmente ir andan
do
e sair daqui? Se fosse verdade, não estaria vendo Harvey Goldfarb aqui
sentado tentando dar uma espiadinha na Grande Maçã. E
staria lá em cima,
roendo as unhas.
—
Mas os interterráqueos saem
—
disse Donald.
—
Certamente que sim. Mas as saídas e entradas são todas controla
-
das pela Central de Informações. E quando os interterráqueos saem, saem
lacrados dentro das naves deles. Alé
m do mais, eles costumam mandar
apenas clones operários. Sabe, são muito cautelosos ao evitar qualquer
conexão entre este mundo e o nosso. Lembre
-
se de que um único
estreptococo extraviado seria o suficiente para provocar o caos aqui.
—
Parece que andou pen
sando um pouco nisso.
—
Sem dúvida
—
disse Harvey.
—
Mas são apenas devaneios.
Donald voltou a atenção para o painel de monitores de tevê.
—
Pelo menos, pode
-
se sentir conectado com o mundo da super
fície
nesta sala.
—
É por isso que fico aqui
—
disse Harv
ey, como se fosse o dono do
lugar.
—
É uma aparelhagem fantástica. Fico por aqui o tempo todo. Posso
assistir simplesmente a todos os canais de tevê principais do mundo da
superfície.
—
Pode transmitir, além de receber?
—
indagou Donald.
—
Não, o sistema é
passivo
—
respondeu Harvey.
—
Quero dizer,
há potência e antenas ilimitadas em simplesmente todas as montanhas da
superfície do globo, mas não há câmeras. As telecomunicações de
Interterra são totalmente diferentes, e muito mais sofisticadas, como tenho
c
erteza de que já entenderam.
—
Se nós lhe déssemos uma câmera analógica de tevê padrão, acha
que poderia conectá
-
la com
esse
equipamento, sem ninguém saber, e ser
capaz de fazer transmissões?
Harvey acariciou o queixo enquanto ponderava sobre a pergunta de
Donald.
—
Talvez, se convencesse um dos clones especializados em eletrô
-
nica a me ajudar, isso fosse possível
—
disse.
—
Mas onde vai arranjar
uma câmera de tevê?
—
Sei o que está pensando
—
disse Michael, enquanto um sorriso
conspirador surgia
-
lhe no ros
to.
—
Está pensando nas câmeras do
submersível
.
—
Quando o grupo se reunira diante do museu depois da
visita, Perry e Suzanne haviam lhes contado que haviam visto o
Oceanus
no pátio do museu.
Donald lançou outro olhar furioso para Michael. Michael captou a
mensagem e calou a boca.
—
Mas não entendo
—
disse Harvey.
—
Por que iriam querer que eu
fizesse isso?
—
Olha aqui, Harv
—
disse Donald, recuperando a
compostura.
—
Meus colegas e eu não estamos nada satisfeitos por
estarmos aqui contra a nossa vontade ser
vindo de diversão para
esses
interterráqueos. Queremos voltar para casa.
—
Espere aí um minuto
—
disse Harvey.
—
Devo ter perdido al
-
guma parte do que falou. Está querendo montar uma câmera de tevê para
sair de Interterra?
—
É possível
—
disse Donald.
—
A
essa altura, é apenas uma idéia:
uma peça de um quebra
-
cabeça que ainda não percebi como é, mas, seja lá
qual for, não podemos montá
-
lo sozinhos. Precisaríamos da sua ajuda
porque já está aqui há tempo suficiente para saber como as coisas fun
-
cionam. A per
gunta é: você estaria disposto a ajudar?
—
Desculpe
-
me
—
disse Harvey, sacudindo a cabeça.
—
Precisam
entender que
esses
interterráqueos não iam ver isso com bons olhos. Se eu
fosse ajudar, passaria a ser um dos caras mais desprezados da cidade. Eles
me en
tregariam aos clones operários. Os interterráqueos não gostam de
fazer nada ruim, mas os clones não estão nem aí. Eles simplesmente fazem
o que lhes é ordenado.
—
Mas por que se importaria com o que os interterráqueos pen
-
sam?
—
indagou Donald.
—
Você se u
niria a nós. Em retribuição a sua
ajuda, nós lhe devolveríamos Nova York.
—
Verdade?
—
perguntou Harvey. Os olhos dele brilharam.
—
Está
falando sério? Me levariam para Nova York?
—
Seria o mínimo que poderíamos fazer
—
respondeu Donald.
O disco Frisbee f
luorescente pairou sobre o gramado. Richard havia
feito um excelente lançamento, e o Frisbee reduziu a velocidade e
começou a cair bem ao alcance do clone operário que Richard havia
ordenado que jogasse com ele. Mas em vez de agarrar o disco, o clone
permi
tiu que ele ultrapassasse sua mão estendida. O disco bateu na testa
dele com uma pan
cada retumbante. Richard bateu com a mão aberta na
própria testa, com
pletamente frustrado. Praguejou como o marinheiro que
havia sido um dia.
—
Bom lançamento, Richard
—
e
logiou Perry,
reprimindo o riso. Perry estava sentado à beira da piscina do refeitório
com Luna, Meeta, Palenque e Karena.
Sufa havia enviado os dois homens
de volta ao palácio dos visitantes depois da visita deles à fábrica de tá
xis
aéreos, antes que qu
alquer dos outros houvesse voltado de suas
respectivas excursões. Inicialmente Richard havia sido acolhido pela
chegada quase simultânea de suas três amigas e de Luna, mas essa euforia
desapareceu quando viu que nenhuma delas conseguia ma
nejar o Frisbee.
—
Isso é completamente ridículo
—
reclamou Richard, enquanto
andava para recuperar o Frisbee aos pés do clone operário.
—
Ninguém
aqui embaixo consegue pegar uma porcaria de um disco, muito menos
lançar um.
—
Richard parece estar tenso de novo hoje
—
disse
Luna. Perry
concordou.
—
Ele está assim o dia inteiro, que eu saiba.
—
Estava estranho ontem à noite também
—
disse Meeta.
—
Mandou
-
nos embora cedo.
—
Ora, ora,
essa,
pelo que posso deduzir, deve ser por causa do
caráter dele
—
disse Perry.
—
Não pode faz
er nada?
—
indagou Luna.
—
Duvido
—
disse Perry.
—
A menos que vá lá e jogue aquele
pedaço de plástico idiota um pouco mais.
—
Gostaria que ele se acalmasse
—
disse Luna. Perry pôs as mãos
em concha ao redor da boca.
—
Richard!
—
chamou.
—
Por que não vem
para cá descansar? Está
ficando nervoso por nada.
Richard fez um gesto obsceno para Perry. Perry encolheu os ombros
para Luna.
—
Obviamente ele não está lá muito amistoso.
—
Por que não vai até lá e fala com ele, ao menos?
—
sugeriu Luna.
Com um gemido, Pe
rry ficou de pé.
—
Temos uma surpresa para ele
quando voltar ao seu chalé
—
dis
se Meeta.
—
Tente convencê
-
lo a vir.
—
Não o convidaram, vocês mesmas?
—
perguntou Perry.
—
Sim, mas ele disse que queria jogar o Frisbee.
—
Cacete!
—
exclamou Perry, sacudindo
a cabeça.
—
Está bem, vou
tentar.
—
Não mencione a surpresa
—
disse Meeta.
—
Senão não vai ter
tanta graça. Não queremos que ele tente adivinhar o que é.
—
Sim, claro
—
resmungou Perry. Irritado por ter que sair de per
to
de Luna, aproximou
-
se a passos lar
gos de Richard, o qual estava
impacientemente dando instruções ao clone operário.
—
Está perdendo tempo
—
disse Perry.
—
Eles não sabem jogar
nossos jogos por aqui, Richard. Não estão programados para isso. Não
estão interessados em manter a forma física.
Richard empertigou
-
se.
—
Isso está na cara, ora.
—
Suspirou e xingou outra vez.
—
É frus
-
trante, porque eles têm corpos maravilhosos. O problema é que não têm
nenhum instinto de competição, e eu preciso disso. Porcaria, até as moças
são fáceis demais. Não
dá para persegui
-
las, nem insistir até conseguir.
Essa merda toda desse lugar aqui me parece morto. O que não daria por
um ótimo jogo bem suado de croqu
et
ou de hóquei...
—
Vamos fazer uma coisa
—
disse Perry.
—
Vou apostar uma cor
-
rida com você na piscina
grande do pavilhão. Que tal?
Richard olhou Perry um momento antes de arremessar o Frisbee
bem longe. Depois mandou o clone operário pegá
-
lo. Obedientemen
te, o
clone operário saiu correndo. Richard olhou
-
o um momento an
tes de se
voltar para Perry.
—
Não,
obrigado
—
disse Richard.
—
Vencer você na natação não
vai me dar nenhum prazer. Aliás, adoraria mesmo era dar o fora daqui.
Estou uma pilha de nervos.
—
Acho que estamos todos preocupados com
esse
negócio de
ir
embora
—
disse Perry, baixando o tom de voz
.
—
Então, estamos todos
meio nervosos.
—
Bom, estou um pouco mais nervoso
—
disse Richard.
—
O que acha que fazem por aqui com gente que comete um crime grave?
—
Não faço a menor idéia
—
disse Perry.
—
Não creio que te
nham
crimes graves. Arak disse que el
es não têm prisões. Por que per
gunta?
Richard brincou com a ponta do pé na grama e depois olhou para
longe. Começou a falar, depois parou.
—
Está preocupado com o que farão se tentarmos ir embora e eles
nos pegarem?
—
Sim, é isso aí
—
disse Richard, aprov
eitando a sugestão.
—
Bom, isso é uma coisa que vamos ter que levar em
consideração
—
disse Perry.
—
Mas, por enquanto, preocupar
-
se com isso
não vai nos levar a lugar algum.
—
Acho que está certo
—
disse Richard.
—
Por que simplesmente não se diverte com
aquelas três belíssimas
moças?
—
sugeriu Perry. Indicou Meeta, Palenque e Karena com a ca
-
beça.
—
Por que não canaliza um pouco dessa sua energia incontrolável
levando
-
as ao seu chalé? Não consigo entender isso, mas elas são loucas
por você.
—
Não sei se d
evo levá
-
las ao meu quarto de novo
—
disse Richard.
—
E por que não?
—
perguntou Perry.
—
Não é um sonho trans
-
formado em realidade? Quero dizer, olha só aquelas gatas. São verda
-
deiras modelos de roupa íntima feminina.
—
E complicado demais para explicar
—
disse Richard.
—
Seja lá por que motivo for, não consigo imaginar que seja mais
importante do que satisfazer essas sereias tão sôfregas.
—
É, bom, talvez você esteja certo
—
disse Richard, sem muito
entusiasmo. Arrancou o disco das mãos do clone operário
, que fora
obedientemente buscá
-
lo. Voltou ao refeitório com Perry. Meeta, Palenque
e Karena ficaram de pé e o receberam com as palmas das mãos já prontas
para o cumprimento. Richard reagiu de maneira superficial.
—
Está pronto para se recolher ao seu chal
é?
—
indagou Meeta.
—
Vamos
—
disse Richard.
—
Mas há uma condição. Nada de comer nem
beber coisas da minha geladeira. Fechado?
—
Claro
—
disse Meeta.
—
Nem mesmo vamos nos sentir tenta
das.
Estamos com outra coisa na cabeça que não a comida.
—
Ela e as out
ras
moças deram risadinhas conspiradoras enquanto se penduravam nos
ombros de Richard.
O grupo começou a atravessar o gramado.
—
Estou falando sério
—
disse Richard.
—
Nós também
—
disse Meeta.
Perry olhou
-
os durante alguns momentos antes de voltar
-
se para
Luna.
—
O Richard é agressivo assim porque é jovem?
—
perguntou Luna.
Perry sentou
-
se ao lado dela.
—
Não. Ele é exatamente assim. Vai ser o mesmo daqui a dez anos,
até vinte anos.
—
E isso é por causa da família complicada que você disse que ele
tinha
—
disse Luna.
—
Acho que sim
—
disse Perry, vagamente. Não queria incentivar
outro debate sociológico. Não se sentia bem equipado nesse campo, como
havia dado para notar na última conversa.
—
É difícil para mim entender, uma vez que não temos famílias
—
diss
e Luna.
—
Mas e os amigos, conhecidos e os colegas da escola que os
humanos secundários freqüentam? Não podem superar a in
fluência
negativa da família?
Perry ficou olhando para longe e tentou organizar seus pensa
mentos.
—
A escola e os amigos podem ajuda
r
—
disse
—
mas os amigos
podem também exercer influência negativa. Dentro de algumas comu
-
nidades a pressão social evita que as crianças aproveitem muito a edu
-
cação recebida, e quase sempre é a falta de educação que dá origem à
estreiteza de mente e à in
tolerância.
—
Então, para alguém tão jovem como
Richard há uma chance de melhora.
—
Já lhe disse, Richard não vai mudar!
—
disse Perry com um tom
que beirava a irritação.
—
Olha, não sou sociólogo, portanto talvez a gente
devesse conversar sobre outra coisa
. Além disso, ele não é tão jo
vem assim.
Tem quase trinta anos.
—
Bom, então, é jovem
—
insistiu Luna.
—
Você deve entender disso
—
retrucou Perry. Luna riu e piscou os
olhos azuis
-
claros.
—
Perry, meu querido, que idade pensa que eu tenho?
—
Você disse q
ue tinha mais de vinte
—
disse Perry, nervoso.
—
Quantos anos tem? Vinte e um?
Luna sorriu e sacudiu a cabe
ça.
—
Não, tenho noventa e quatro, e só nesse corpo.
A boca de Perry se escancarou devagar enquanto ele soltava um dos
seus guinchos estridentes cara
cter
ísticos.
Depois de fazer muitas outras admoestações contra o uso do
conteúdo da geladeira, Richard permitiu que as três mulheres o deitassem
na cama com os braços abertos. Assim que o posicionaram, começaram a
massageá
-
lo com um óleo que fez sua pele
formigar e seus músculos
tensos relaxarem.
—
Uau!
—
Richard fechou os olhos e ronronou de prazer.
—
Vocês
são ótimas, gatas! Estou me sentindo um fio de espaguete molhado.
—
E isso é apenas o início
—
arrulhou Meeta. As três mulheres se
entreolharam, em to
rno do corpo deitado de Richard e tentaram repri
mir
o riso. Se Richard estivesse mais alerta, saberia que estavam apron
tando
alguma.
Depois de uns quinze minutos de massagem intensa, Palenque se
afastou do grupo, sem que Richard percebesse, e contornou
a piscina at
é a
margem do gramado. Depois acenou para que outros se juntassem a
ela.
Dentro de minutos, apareceram dois homens e, reprimindo o riso
tamb
ém, foram pé ante pé até a cama. Suavemente, começaram a
massagear Richard no lugar de Karena, de forma q
ue agora Meeta e os
dois homens é que estavam acariciando o corpo de Richard. Palenque e
Karena concentraram
-
se nos corpos dos dois homens. O objetivo era uma
orgia no estilo da Roma antiga.
—
Sabe
—
murmurou Richard, a voz abafada pela coberta
—
, se não
f
osse por vocês, meninas, esse lugar ia acabar me endoidando, na certa. E,
pensando bem, jamais fui massageado antes. Jamais soube o que estava
perdendo!
Os homens e as mulheres trocaram olhares ardentes. Estavam che
-
gando ao
ápice da excitação.
—
Simplesme
nte não posso evitar ser ativo
—
disse Richard, to
-
talmente inconsciente do que estava acontecendo em torno dele.
—
Preciso de competição. Só isso.
Um dos homens fez suas mãos masculinas e robustas deslizarem
pelos antebraços de Richard para massagear as p
almas das mãos dele.
Sentin
do uma discrepância na sensação em relação ao que esperava,
Richard abriu os olhos, piscando. Para sua consternação as mãos que o
massageavam eram tão grandes quanto as suas.
—
Mas que porra...?
—
gritou Richard. Bruscamente, e
pegando
todos de surpresa, Richard virou
-
se e viu
-
se olhando para cinco rostos
vermelhos, em vez de três, e, pior ainda, dois deles masculinos.
—
Mas que diabo é isso?
—
berrou Richard. Pulou da cama, der
-
rubando Palenque no chão sem querer. Os outros rapi
damente se er
-
gueram, deixando de estar ajoelhados.
—
Tudo bem, Richard
—
disse Meeta, mais que depressa, vendo a
súbita fúria refletida no rosto de Richard.
—
É uma orgia surpresa, para
seu prazer.
—
Prazer?
—
berrou Richard.
—
Quem são
esses
homens? Como
entraram aqui?
—
São amigos nossos
—
disse Meeta.
—
Cuseh e Uruh.
Nós os convidamos.
—
Mas que porra acham que eu sou?
—
urrou Richard.
—
Viemos fazer você feliz
—
disse o homem mais próximo de
Richard. Ele avançou e estendeu a palma da mão aberta.
Richard
reagiu acertando um murro poderoso na mandíbula do
rapaz, que o fez rodar e bater contra a parede. Todos ficaram boquia
bertos
diante daquela violência inesperada.
—
Saiam daqui!
—
berrou Richard. Para mostrar que não estava
brincando, derrubou de cima da
mesinha
-
de
-
cabeceira as taças doura
das
que colecionara. Elas caíram no chão causando um enorme estar
dalhaço.
Enquanto os convidados fugiam pelo lado aberto da sala, ele olhava em
torno, louco para achar alguma coisa para partir em mil pe
daços.
Suzanne
deixou escapar um grito de prazer quando ela e Garona
corre
ram de mãos dadas por uma pérgola através de um bosque de
samam
baias. Atingindo a margem de um lago de águas cristalinas,
pararam subitamente. Extasiada pela vista deslumbrante, e sem fôlego
dev
ido à corrida, Suzanne contemplou o cenário.
—
Mas esse lugar é lindíssimo!
—
conseguiu dizer.
Garona, que estava mais arquejante do que Suzanne, precisou des
-
cansar antes de conseguir falar.
—
É meu lugar preferido
—
disse, ofegante.
—
Venho sempre aqui.
Sempre o considerei muito romântico.
—
Concordo com você
—
comentou Suzanne. Podiam
-
se ver vá
rios
outros lagos a meia distância, aninhados em meio à vegetação lu
xuriante.
Ao longe, montanhas irregulares se erguiam e se fundiam com o teto
abobadado.
—
Est
amos voltados para que direção?
—
Oeste
—
disse Garona, entre duas respirações.
—
Aquelas mon
-
tanhas são as bases do que vocês chamam de Cadeia Meso
-
Atlântica.
Suzanne sacudiu a cabeça, espantada.
—
É tão lindo! Muito obrigada
por me mostrar.
—
O prazer é t
odo meu
—
disse Garona.
—
É ótimo vê
-
la mais
relaxada.
—
Acho que estou, sim
—
disse Suzanne.
—
Pelo menos agora sei
por que fomos trazidos para Interterra.
—
Você nos ajudou muito.
—
Não acho que fiz tanto assim.
—
Mas fez! Você trouxe alívio para nós, qu
e estávamos nervosos
com as perfurações em águas profundas.
—
Mas há muitos anos que essas perfurações são feitas
—
disse
Suzanne.
—
Por que só agora começaram a se preocupar com elas?
—
Eram perfurações para encontrar petróleo
—
disse Garona.
—
Não nos im
portamos com elas. Aliás, elas nos ajudam, porque o petróleo
nos causa problemas. Pode infiltrar
-
se nos nossos edifícios mais
profundos e causar danos terríveis. Foi a perfuração aleatória que nos
preocupou.
—
Bom, estou contente por tê
-
los ajudado.
—
Isso
pede uma comemoração
—
disse Garona.
—
Que tal vir a
minha casa durante algumas horas? Estamos muito perto dela. Podemos
absorver caldorfina para nosso prazer mútuo, e depois jantar.
—
Em pleno dia?
—
questionou Suzanne. Como mulher que traba
-
lhava arduam
ente, cheia de motivação, que nos tempos de escola tinha
pouco tempo para o prazer pessoal, a idéia de um encontro vespertino
parecia incomumente decadente. Porém provocadoramente erótica.
—
Por que não?
—
indagou Garona, sedutor.
—
Sua essência vai
vibrar
de êxtase.
—
Você faz isso parecer deliciosamente sensual
—
brincou Suzanne.
—
E será
—
disse Garona.
—
Venha.
—
Agarrou a mão dela e le
vou
-
a de volta pelo caminho pelo qual tinham vindo.
A casa de Garona ficava a apenas cinco minutos de táxi aéreo dali.
Quando desembarcaram, Suzanne mencionou que sua casa era seme
-
lhante à de Arak e Sufa, embora o bairro parecesse um pouco menos
congestionado.
—
A estrutura é exatamente a mesma
—
disse Garona.
—
Mas temos mais espaço, pois estamos mais distantes do centro
da
cidade.
—
Ele tornou a pegar a mão dela, e os dois correram pelo caminho
e entra
ram no chalé juntos.
Uma vez lá dentro, agiram como adolescentes impacientes, na
pressa de tirar os trajes de cetim e cair na piscina. Suzanne nadou de
forma exuberante em
direção à extremidade oposta. Deu braçadas
vigorosas, excitada por sentir Garona imediatamente atrás de si. Olharam
-
se fren
te a frente depois de Suzanne ter executado uma volta contra a
extremi
dade mais distante da piscina. Eles se abraçaram na água. Ga
rona
pressionou a palma dele contra a dela e sorriu radiante, de prazer.
Suzanne deu uma risada de alegria.
—
Isso aqui é um paraíso
—
proclamou Suzanne. Mergulhou a
cabeça na água para alisar os cabelos curtos para trás.
—
Vai além dos
meus sonhos mais lo
ucos.
—
Tenho tanta coisa para lhe mostrar
—
disse
-
lhe Garona.
—
Milhões de anos de progresso. Vou levá
-
la até as estrelas... a outras
galáxias.
—
Você já me levou
—
disse Suzanne, brincando.
—
Venha
—
disse Garona.
—
Vamos usar a caldorfina. Nadaram de
vo
lta, atravessando a piscina. Garona ajudou
-
a a sair
da água. Ela novamente se admirou por se sentir à vontade na
presença dele, apesar da nudez.
—
Por favor!
—
disse Garona, indicando um divã de cetim.
—
Estou encharcada
—
disse Suzanne.
—
Não tem problema
—
disse Garona. Curvou
-
se e pegou um
potinho, retirando
-
lhe a tampa.
—
Tem certeza?
—
indagou Suzanne. O sofá estofado era imaculado.
—
Absoluta
—
disse Garona. Segurou o pote para Suzanne retirar
um pouco de creme e passar na mão. Ele fez o mesmo, e quan
do se
reclinaram, pressionaram as mãos uma contra a outra.Suzanne desfaleceu
de prazer no mais íntimo de seu ser. Durante a meia hora seguinte ela e
Garona fizeram amor de uma forma sensível, entregan
do
-
se totalmente,
de um jeito abandonado que atingiu um
ritmo crescente de paixão antes
de se converter em um relaxamento sublime e íntimo.
Suzanne jamais se sentira tão próxima de outra pessoa. Jamais em
sua vida tinha agido com tal abandono, e mesmo assim não se sentindo
culpada. Nesse mundo subterrâneo utóp
ico, os constrangimentos cos
-
tumeiros simplesmente inexistiam.
O tempo pareceu parar enquanto Suzanne regalava
-
se com o arre
bol
de uma intimidade como jamais havia experimentado. Mas ent
ão,
subitamente, tudo mudou. Uma suave voz feminina vinda de perto es
-
tilhaçou seu repouso físico e mental.
—
Se vocês dois já terminaram seu terno e maravilhoso ato de amor,
que devo dizer que apreciei como se fosse eu mesma, acabei de pôr na
mesa um maravilhoso almoço.
Suzanne abriu os olhos. Chocada, viu
-
se olhando para
o rosto sor
-
ridente de uma mulher requintadamente atraente, com feições eston
-
teantes, olhos azuis da tonalidade do gelo e cabelos louro
-
palha. A
expressão da mulher era a de uma mãe orgulhosa contemplando seus
adoráveis filhos.
Suzanne sentou
-
se na mesma
hora e cobriu
-
se com a coberta. Seu
movimento s
úbito perturbou Garona, que rolou sobre si mesmo e abriu os
olhos.
—
O que você disse, Alita?
—
indagou.
—
Hora de vocês dois comerem
—
disse ela. Apontou para uma
mesa à beira da piscina, que estava sendo pos
ta por um clone operário.
—
Obrigado, minha querida
—
disse Garona. Sentou
-
se.
—
Acho
que estamos os dois bem famintos.
—
A refeição estará servida daqui a pouco
—
disse Alita. Ela se
virou e voltou até onde estava o clone operário para ajudar a preparar
a
mesa, colocando três espreguiçadeiras em torno da mesa.
Garona espreguiçou
-
se, bocejou e depois pegou as roupas.Suzanne
foi direto até as roupas dela. Embora não tivesse se sentido constrangida
antes, agora estava. Vestiu a túnica e as bermudas.
—
Quem é
essa mulher?
—
sussurrou.
—
Alita
—
disse Garona.
—
Vamos, é hora de se alimentar. Ainda
confusa, Suzanne se deixou conduzir para a mesa. Ocupou a
cadeira que Garona indicou e permitiu que o clone operário lhe
servis
se um pouco de comida. Enquanto Garona
e Alita atacavam seus
pra
tos com gosto, Suzanne ficou brincando com o alimento. Tendo sido
pega em flagrante delito, sentia
-
se extremamente envergonhada e emo
-
cionalmente frágil.
—
Suzanne se encontrou com o Conselho dos Anciãos hoje
—
disse
Garona a Ali
ta entre garfadas.
—
Foi muito prestativa e nos deu boas
notícias.
—
Maravilha
—
disse Alita.
Garona inclinou
-
se e apertou afetuosamente o ombro de Suzanne.
—
Ela nos garantiu que o segredo de Interterra continua seguro.
—
Que alívio
—
observou Alita, sinc
eramente.
—
Precisávamos
muito dessa tranqüilidade.
Suzanne só conseguiu concordar com a cabeça.
Garona e Alita principiaram um debate sobre as necessidades de
segurança de Interterra em relação ao mundo da superfície. Suzanne não
escutou; em vez disso fic
ou só olhando Alita, que estava concentrando
toda a atenção em Garona. Suzanne ficou pasma ao ver como a mulher
parecia calma. Suzanne ainda estava se sentindo sem graça demais para
poder comer ou falar.
Gradativamente, as emoções de Suzanne se acalmaram,
e ela come
-
çou a organizar os pensamentos. O que começou a incomodá
-
la era a
aparente familiaridade com a qual Garona e Alita se tratavam. A curio
-
sidade de Suzanne acabou tomando conta dela.
—
Com licença, Alita
—
disse, durante uma pausa na conversa entr
e
os seus companheiros de refeição.
—
Você e Garona já se conhe
cem há
muito tempo?Tanto Garona quanto Alita riram com vontade.
—
Desculpe
-
me
—
disse Alita, esforçando
-
se para se controlar.
—
É uma pergunta perfeitamente razoável, mas muito inesperada
aqui
em Interterra. Sabe, eu e Garona já nos conhecemos há muito, muito
tempo.
—
Anos, então
—
sugeriu Suzanne, lacônica. Apesar das descul
pas
de Alita, ela achou as risadas ofensivas.
Garona desatou a rir outra vez. Precisou cobrir o rosto com a m
ão.
—
Anos,
certamente
—
disse Alita.
—
Anos e anos.
—
Alita e eu passamos várias vidas juntos
—
explicou Garona en
-
quanto enxugava as lágrimas dos olhos.
—
Ah, entendi
—
disse Suzanne, fazendo tudo para manter a cal
-
ma.
—
Não é maravilhoso?
—
É, sim
—
disse Garona.
—
A Alita é... bom, acho que você a
chamaria de minha mulher permanente.
—
Ou podemos dizer que o Garona é o meu homem permanente
—
disse Alita.
—
Tanto faz
—
concordou Garona.
—
É ótimo que seja mútuo
—
comentou Suzanne,
sarcasticamente.
—
Mas talvez poss
a me dizer o que "permanente"
significa do ponto de vista social em Interterra.
—
É algo semelhante a sua instituição do casamento
—
disse Alita.
—
Só que transcende a vida de um corpo, durando de uma vida
para a outra.
Suzanne mordeu o lábio inferior para
evitar que suas emoções,
nova
mente turbulentas, se transformassem em lágrimas. Depois de sua
entre
ga incondicional a seus sentimentos em relação a Garona, resultante
da persistência e dos galanteios dele, ela se sentia violentada agora que
sabia que ele
tinha uma espécie de compromisso permanente que ela nem
mesmo podia avaliar. Também se sentiu estúpida e estarrecida por sua
intuição tê
-
la deixado assim na mão de uma forma tão arrasadora, e por
nem mesmo ter perguntado qual era o estado civil dele.
—
Bom
, tudo isso
é muito interessante
—
conseguiu dizer Suzanne. Deixou de lado os
talheres e o guardanapo e se ergueu.
—
Obrigada pela refeição e por uma
tarde assim tão instrutiva. Acho que é hora de eu voltar para o palácio dos
visitantes.
Garona se levantou
.
—
Tem certeza de que quer partir assim, tão rápido?
—
Absoluta
—
disse Suzanne. Em seguida, acrescentou, para
Alita:
—
Foi um prazer conhecê
-
la.
—
O prazer é todo meu
—
disse Alita.
—
Garona falou de você com
muita admiração.
—
Ah, falou, é?
—
espantou
-
s
e Suzanne.
—
Muito gentil da parte
dele.
—
Tenho certeza de que vamos nos ver bastante
—
disse Alita.
—
Talvez
—
disse Suzanne, vagamente. Despediu
-
se de Garona com
um meneio de cabeça e começou a se dirigir para a porta. Garona se
colocou imediatamente a
seu lado.
—
Vou levá
-
la até um táxi aéreo
—
disse Garona.
—
A menos que
prefira que a acompanhe até o palácio dos visitantes.
—
Tudo bem
—
disse Suzanne quando saiu da casa.
—
Tenho
certeza de que Alita e você precisam conversar.
—
Suzanne, você está agind
o de modo tão estranho
—
disse Garona.
Deu uma corrida para acompanhá
-
la enquanto usava o comunicador de
pulso para chamar um táxi aéreo.
—
Você acha?
—
indagou Suzanne.
—
Mas que sensibilidade a sua,
em notar isso.
—
Qual é o problema, Suzanne?
—
Garona p
rocurou segurar
-
lhe o
braço, mas ela evitou que ele o pegasse e continuou andando.
—
É só um detalhezinho cultural
—
disse ela, olhando rapidamente
para trás.
—
Ora, vamos
—
disse Garona. Alcançando
-
a, agarrou
-
a e dessa vez
conseguiu detê
-
la.
—
Desabafe. N
ão me deixe aqui assim tentando
adivinhar.
—
Seria interessante deixar você adivinhar. Mas do meu ponto
de vista, não seria um desafio tão emocionante assim.
—
Imagino que isso tenha algo a ver com Alita.
—
Muito perspicaz da sua parte
—
disse Suzanne.
—
Ag
ora, se me
largar, vou voltar ao palácio dos visitantes.
—
Suzanne, você está em Interterra. Temos costumes diferentes.
Precisa se adaptar.
Suzanne olhou fixamente os olhos escuros de Garona. Uma parte
dela queria que ele a deixasse em paz; o outro lado de
la queria lhe dar o
benef
ício da dúvida. Afinal, estavam em Interterra, não em Los Angeles.
—
Minha formação foi tão diferente...
—
explicou.
—
Sei disso
—
insistiu Garona.
—
Mas lhe peço que não me jul
gue
por seus padrões da superfície terrestre. Tente n
ão ser egoísta. Você não
tem que sentir que possui as coisas para desfrutar delas. Nós nos
dividimos com aqueles que amamos, e o amor é uma fonte eterna.
—
Fico contente por você
—
disse Suzanne.
—
Estou feliz por ter
todo
esse
amor para dar. Infelizmente,
estou acostumada a partilhar o
amor com apenas uma pessoa.
—
Não pode encarar isso do ponto de vista interterráqueo?
—
A essa altura, duvido muito.
—
Lembre
-
se, uma grande parte da sua moralidade da superfície da
Terra tende a ser autopiedosa, egoísta e a
té destrutiva.
—
Do seu ponto de vista
—
disse Suzanne.
—
Do nosso, é boa para
se ensinar às crianças.
—
Talvez
—
disse Garona.
—
Mas isso não é importante aqui.
—
Olhe, Garona
—
disse Suzanne. Ela pousou a mão no ombro
dele.
—
Você provavelmente é um mara
vilhoso homem interterráqueo.
Como estamos em Interterra, admito que
esse é
um problema meu, não seu.
Vou tentar entender.
O táxi aéreo subitamente apareceu do nada, e a lateral dele se abriu.
—
Precisa que eu dê o comando ao táxi aéreo?
—
perguntou
Garona
.
—
Prefiro dá
-
lo eu mesma
—
disse Suzanne.
—
Então irei ao seu chalé esta noite
—
disse Garona.
—
Posso?
—
Como os humanos secundários dizem, acho que preciso de um
tempo para pensar
—
disse Suzanne.
—
Vamos deixar as coisas rolar
durante um dia ou dois.
—
Subiu no táxi e sentou
-
se.
—
Irei de qualquer forma
—
insistiu Garona.
—
Você é quem sabe
—
disse Suzanne. Estava muito abalada para
começar qualquer tipo de discussão. Em vez disso, pousou a palma da
mão na mesa central e disse: "palácio dos visitantes".
Acenou para Garona
quando a porta da aeronave se fechou.
1
1
7
7
Tenho certeza de que todos vocês estão um pouco sobrecarrega
-
dos
—
disse Arak.
—
Posso ver por suas fisionomias.
À tarde, Arak e Sufa levaram o grupo de volta para a sala de confe
-
rência circula
r para uma avaliação. Os interterráqueos estavam de pé na
área central, olhando para os seus pupilos, cujos humores diferiam dras
-
ticamente uns dos outros, e não pelo motivo que Arak presumira.
Perry estava aborrecido com Richard. Logo quando havia consegu
i
-
do sentir
-
se à vontade com Luna, Meeta e os outros haviam aparecido,
aterrorizados, dizendo que Richard havia tido um acesso de fúria.
Temendo que o comportamento violento de Richard pudesse arruinar as
relações com os interterráqueos, Perry havia corrid
o até o chalé dele e
passado uma hora tentando acalmar o mergulhador
—
sem obter
resultados satisfatórios.
Richard estava mal
-
humorado e calado. Olhava furioso para Arak,
como se seus problemas ocorressem por culpa
única e exclusiva dele.
Suzanne estava se
ntada ao lado de Perry, examinando suas próprias
feridas emocionais. Também estava se sentindo responsável por todo o
sofrimento dos colegas. Assim que voltou, explicou que tinha sido ela o
motivo pelo qual eles foram abduzidos. Pediu desculpas, e todos lh
e
garantiram que não a consideravam responsável, mas, mesmo assim, ela
continuou se sentindo mal.Apenas Donald e Michael pareciam
descontraídos. Arak interpretou a disposição de espírito deles como
conseqüência da visita particularmente bem
-
sucedida que ha
viam feito à
Central de Informações. Procurando encontrar os olhos de Donald, Arak
dirigiu
-
se diretamente a ele:
—
Antes que encerremos este dia, há alguma pergunta ou algum
comentário que queiram formular sobre o que viram durante as ex
cursões?
—
Eu tenh
o uma pergunta na qual certamente todos estamos in
-
teressados
—
disse Donald.
—
Então, vá em frente, formule
-
a, por favor
—
disse Arak.
—
Seremos prisioneiros aqui para sempre?
Todos ficaram surpresos, principalmente Suzanne e Perry, os quais
se viram subi
tamente arrancados de suas meditações. A pergunta os
surpreendeu porque fora exatamente na noite anterior que Donald pro
-
pusera que a questão não fosse formulada, para que não lhes restringis
-
sem a liberdade.
Arak ficou mais decepcionado do que chocado. Le
vou um momento
para reorganizar os pensamentos.
—
Prisioneiros
não é a palavra certa
—
disse, afinal.
—
Preferimos
enfatizar que não serão forçados a sair de Interterra. Em vez disso, nós
lhes damos as boas
-
vindas ao nosso mundo, com plenos direitos a des
-
frutar toda a gama de avanços que apenas começamos a lhes mostrar.
—
Mas ninguém nos perguntou nada!
—
começou Perry.
—
Alto lá!
—
ordenou Donald, interrompendo Perry.
—
Deixem
-
me
terminar! Arak, só para deixar tudo bem claro, está dizendo que não
poderemo
s sair de Interterra, mesmo se quisermos? '
Arak remexeu
-
se, pouco à vontade. Sufa intercedeu.
—
Em geral, evitamos debater um tópico assim controverso logo no
início da introdução dos visitantes a Interterra. Pela nossa experiên
cia, os
v
isitantes têm mais condições de abordar o assunto depois que já se
acostumaram aos benefícios da vida neste mundo.
—
Por favor, limitem
-
se
a responder à pergunta
—
pediu Donald, curto e grosso.
—
Um simples sim ou não
é
suficiente
—
acrescentou Michael. Ara
k
e Sufa conferenciaram aos sussurros. Donald reclinou
-
se no
encosto do assento e cruzou os braços, altivo, enquanto os outros
visi
tantes assistiam, num silêncio nervoso, atordoados. O destino deles
estava na balança.
Finalmente Arak concordou com a cabeç
a. Ele e Sufa haviam che
-
gado a um acordo. Ele ergueu o olhar para o grupo e finalmente fitou
Donald.
—
Muito bem
—
disse.
—
Vamos falar francamente. A resposta à
sua pergunta é não. Vocês não poderão sair de Interterra.
—
Nunca?
—
indagou Perry, ofegante.
—
E não podemos nos comunicar com nossas famílias?
—
per
-
guntou Suzanne.
—
Precisamos dizer a eles que estamos vivos.
—
Para quê?
—
indagou Arak.
—
Uma mensagem dessas seria uma
crueldade para com pessoas destinadas a nunca mais revê
-
los, e que já
estão s
e adaptando a sua perda.
—
Mas temos filhos
—
gritou Perry.
—
Como pode esperar que não
entremos em contato com eles?
—
Está fora de cogitação
—
disse Arak com firmeza.
—
Sinto muito,
mas a segurança de Interterra suplanta os interesses pessoais.
—
Mas não
pedimos para vir até aqui
—
exclamou Perry, à beira das
lágrimas.
—
Vocês nos trouxeram para cá para ajudá
-
los, e Suzanne os
ajudou. Tenho família!
—
Não podemos ficar aqui
—
exclamou Richard.
—
De jeito nenhum
—
concordou Michael.
—
Todos nós temos víncu
los emocionais com nosso mundo
—
acrescentou Suzanne.
—
Como humanos sensíveis que também são, não é
possível que julguem que podemos simplesmente esquecê
-
los.
—
Entendemos que é difícil
—
disse Arak.
—
Solidarizamo
-
nos com
vocês, mas lembrem
-
se de que as
compensações serão
infinitas.Francamente, fico surpreso por nenhum de vocês se sentir
tentado, mesmo a essa altura. Mas isso vai mudar. Sempre muda.
Lembrem
-
se de que temos milhares de anos de experiência com visitantes
da super
fície terrestre.
—
A tentaç
ão não vem ao caso
—
disse Donald, altivamente.
—
No
nosso sistema de valores éticos, os fins não justificam os meios. O
problema é que estamos sendo forçados a ficar, e, especificamente devi
do
a nossa herança norte
-
americana, achamos essa cruz um pouco p
e
sada
para se carregar.
—
Ora, pelo amor de Deus!
—
berrou Perry, furioso, para Donald.
—
Pare com essa patriotada. O motivo não tem nada a ver com a nacio
-
nalidade norte
-
americana. O motivo é que somos humanos!
—
Acalmem
-
se!
—
ordenou Arak. Inspirou, dep
ois acrescentou:
—
Realmente, vocês estão, de certa forma, sendo obrigados a ficar devido às
necessidades de segurança de Interterra, mas
direcionados
seria um termo
melhor, porque nesse caso a analogia com os pais e filhos se aplica. Devi
-
do a sua inocênc
ia primitiva, estão confundindo interesses de curto pra
zo
com benefícios a longo prazo. Nós, que já vivemos vida após vida, temos
mais conhecimento e somos mais capazes de tomar uma decisão mais
racional. Tentem manter em mente o objetivo ao qual estamos
direcionando vocês: em outras palavras, a meta de todas as suas religiões.
Vocês foram trazidos para um paraíso bem real.
—
Paraíso ou não
—
explodiu Richard
—
, não vamos ficar aqui.
—
Sinto muito
—
disse Arak, com toda a sinceridade.
—
Vocês estão
aqui, e
aqui permanecerão.
Suzanne, Perry, Richard e Michael se entreolharam sentindo cada
um uma mistura diferente de nervosismo, desalento e rancor. Donald, por
outro lado, ainda conservava os bra
ços cruzados, numa atitude de
pedante convencimento.
—
Bom
—
diss
e Arak, com um suspiro.
—
Esta sessão não de
correu
conforme planejamos. Lamento que tenham insistido em falar desse
assunto tão no início de sua orientação. Mas, por favor, confiem em mim;
vocês todos mudarão de idéia à medida que o tempo for passando.
—
Qual
é
o plano geral para nós?
—
indagou Suzanne.
—
O período de orientação costuma durar um mês
—
disse Arak.
—
Dependendo das necessidades individuais de cada visitante.
Duran
te
esse
tempo, vocês terão a oportunidade de viajar para outras
cidades. Após
o término da orientação, serão transferidos para a cidade
que es
colherem.
—
Pode nos dizer onde ficam essas cidades?
—
perguntou Donald.
—
Claro
—
respondeu Arak. Aliviado por poder falar de outro
assunto que não a questão emocional da custódia deles. Sen
tando
-
se na
poltrona com o console, Arak reduziu a luminosidade da sala e li
gou a
tela do piso. Um momento depois um enorme mapa da parte atlântica de
Interterra apareceu, incluindo os oceanos que a recobriam e suas margens
continentais. As cidades eram c
or
-
de
-
laranja, azuis ou verdes. Sufa
afastou
-
se para o lado para não ficar na frente de nin
guém.
—
Tenho certeza de que localizarão Saranta
—
disse Arak. Tocou o
console, e o nome da cidade piscou em laranja. Depois a imagem in
teira
mudou para a parte de
Interterra situada sob o Oceano Pacífico.
—
Aqui vêem as cidades mais antigas, sob o Pacífico. Vão visitar
mui
tas delas. Todas têm suas características especiais, individuais, e pode
-
rão morar naquela que escolherem.
—
A cor laranja representa alguma coi
sa?
—
perguntou Donald.
—
São cidades com portas de saída interplanetárias
—
explicou
Arak.
—
Como aquela por onde vocês vieram. Mas a maioria delas já está
obsoleta, e não é mais utilizada. Aqui vocês vêem Calistral, no sul do
Oceano Índico. Provavelmente
é a única que ainda funciona, embo
ra
raramente seja usada. Hoje em dia utilizamos quase exclusivamente as
portas intergalácticas existentes sob o Pólo Sul.
—
Poderíamos rever o outro mapa?
—
pediu Donald. Inclinou o
tronco para a frente.
—
Sem dúvida
—
di
sse Arak. A imagem da parte
atlântica de Interterra reapareceu.
—
Então a cidade de Barsama a leste de Boston possui uma porta
interplanetária?
—
indagou Donald.
—
Sim
—
disse Arak.
—
Mas já não é usada há centenas de anos. A
cidade de Barsama, porém, é mu
ito agradável, embora seja bem pequena.
—
Quando diz que não é usada
—
prosseguiu Donald
—
signifi
ca
que foi vedada, como a porta aqui de Saranta?
—
Ainda não
—
disse Arak.
—
Mas logo será. Os acessos dessas
portas antigas já deviam ter sido vedados há er
as, como disse ontem. Só
hoje o Conselho de Anciãos sancionou um novo decreto para acelerar o
processo.
Donald fez sinal de haver compreendido. Voltou a recostar
-
se na
cadeira e a cruzar os bra
ços.
—
Mais alguma pergunta?
—
indagou Arak. Ninguém se moveu.
—
Acho que estamos atordoados demais para fazermos mais per
-
guntas
—
disse Perry.
—
Precisam passar algum tempo juntos para se ajudarem a se adap
-
tar
—
recomendou Sufa.
—
E os incentivamos a buscar o aconselhamento
de Ismael e Mary. Tenho certeza de que sa
berão tirar vantagem de sua
sabedoria e experiência.
Ninguém reagiu.
—
Bom, então ficamos por aqui
—
disse Arak.
—
Vamos retornar à
orientação de vocês pela manhã depois do seu merecido repouso. Lem
-
brem
-
se, acima de qualquer outra coisa, todos vocês ainda
estão se re
-
cuperando do processo de descontaminação. Sabemos que o estresse
causado por toda aquela provação acentua a instabilidade emocional.
Um quarto de hora depois, o grupo se viu voltando para o refeitó
rio,
depois da partida de Arak e Sufa. A noit
e estava começando a cair.
Ninguém falava enquanto atravessavam a custo o gramado espesso. Cada
qual estava absorto em seus próprios pensamentos.
—
Precisamos
conversar
—
disse Donald, quebrando o silêncio de repente.
—
Concordo
—
respondeu Perry.
—
Onde?
—
Acho melhor aqui fora
—
disse Donald.
—
Mas vamos esperar até
chegarmos ao refeitório, para deixarmos lá nossos comunicadores de
pulso. Não me surpreenderia se soubesse que eles servem de dispositivo
de vigilância entre suas múltiplas funções.
—
Ótima idé
ia
—
disse Perry. Já havia se recuperado o suficiente
para ficar zangado.
—
Gostaria de tornar a pedir desculpas a todos
—
disse Suzanne.
—
Estou me sentindo péssima por ter sido responsável pela
presença de todos aqui.
—
Você não é responsável
—
disse Per
ry, enfezado.
—
Não estamos culpando você
—
disse Michael.
—
Os culpados são
esses
miseráveis desses interterráqueos.
—
Vamos falar o mínimo possível até nos livrarmos dos
intercomunicadores
—
sugeriu Donald.
O grupo percorreu o restante do caminho em silê
ncio. Dentro do
refeitório, retiraram as unidades de pulso, depois, em fila, voltaram ao ar
livre.
—
Até que distância acha que devemos nos afastar?
—
perguntou
Perry. Olhou de relance para trás. Eles já estavam a trinta metros da
extremidade da piscina do
refeitório. A luz que vinha lá de dentro for
-
mava um círculo no gramado.
—
Aqui já está bom
—
disse Donald. Parou, e os outros se aglo
-
meraram ao seu redor.
—
Então, agora já sabemos
—
disse ele.
—
Não
estou gostando de ter que dizer que lhes avisei.
—
En
tão não diga
—
resmungou Perry.
—
Pelo menos sabemos nossa real situação
—
disse Donald.
—
Isso já é um tremendo consolo
—
disse Perry, sarcasticamente.
—
Fiquei surpresa por você fazer essa pergunta
—
disse Suzanne.
—
Por que resolveu perguntar assim dire
tamente em vez de
aguardar?
—
Porque precisaríamos saber, mais cedo ou mais tarde
—
disse
Donald.
—
Se temos que fugir daqui, o que agora sabemos que vamos ter
que fazer, precisamos agir rápido.
—
Acha que há algum modo?
—
indagou Suzanne.
—
Acho que é poss
ível
—
disse Donald.
—
A notícia mais pro
-
missora é o fato de vocês terem visto o
Oceanus
e ele estar intacto. Se nós
pudéssemos levá
-
lo até aquela porta de saída em Barsama e ima
ginar um
meio de inundar a câmara e abrir o acesso, teríamos potên
cia sufic
iente e
horas suficientes de suporte de vida para chegar a Boston.
—
Isso não vai dar certo
—
disse Suzanne.
—
Paranóicos como são
os interterráqueos, as portas de saída devem estar fortemente guar
dadas e
monitoradas. Mesmo se soubéssemos como funciona o
siste
ma, não
seríamos capazes de chegar ao fim.
—
Suzanne está certa
—
disse Richard.
—
Certamente deve haver
um bando desses clones operários rondando por perto.
—
Concordo
—
disse Donald.
—
Não podemos sair nos esguei
-
rando, nem fugir. Precisamos conven
cê
-
los a nos deixarem sair.
—
Cacete
—
lamentou
-
se Perry.
—
Eles não vão nos deixar sair.
Arak deixou isso bem claro.
—
Por bem, não
—
disse Donald.
—
Precisamos obrigá
-
los a nos
deixar sair.
—
E como propõe fazermos isso?
—
indagou Suzanne.
—
Estamos
fala
ndo de uma civilização extremamente avançada, com poderes e
tecnologia que não podemos sequer imaginar.
—
Chantagem
—
disse Donald.
—
Precisamos convencê
-
los de que
seria mais seguro deixar
-
nos ir embora do que nos deter aqui.
—
Continue
—
disse Perry, res
sabiado.
—
Eles morrem de medo de serem expostos
—
disse Donald.
—
Minha idéia é ameaçar transmitir imagens daqui para a televisão da
superfície e revelar a existência deste lugar.
—
Acha que as pessoas da
superfície acreditariam nisso?
—
inda
gou Suzanne.
—
O que importa é que os interterráqueos acreditem
—
disse
Donald.
—
Eles têm equipamentos para transmitir sinais de tevê?
—
inda
gou
Perry.
—
Não, mas têm receptores. Michael e eu encontramos um cara que
vai nos ajudar.
—
É, sim
—
confirmou Michael.
—
É u
m velho esquisito de Nova
York chamado Harvey Goldfarb. Ele já está aqui há anos, mas passa os
dias oculto na Central de Informações vendo reprises de programas de
tevê. Também quer sair daqui, de qualquer jeito.
—
O importante é que ele tenha familiaridad
e com o equipamen
to
de tevê deles
—
disse Donald.
—
Temos duas câmeras no
Oceanus
que
poderiam ser montadas de forma a poderem transmitir. Goldfarb disse
que há energia suficiente.
—
Humm. Sabe de uma coisa?
—
disse Perry.
—
Essa idéia não é
nada má.
—
Nã
o acho
—
disse Suzanne, sacudindo a cabeça.
—
Não vejo
como isso possa funcionar. Entendi a idéia da ameaça, mas como a usa
-
remos para pressionar os interterráqueos para fazer uma coisa que eles
obviamente não querem fazer?
—
Não sei exatamente
—
admitiu D
onald.
—
Precisamos pensar
juntos e arquitetar
esse
plano. Imaginei que Goldfarb poderia ficar com o
dedo sobre o botão, pronto para transmitir.
—
Só isso?
—
indagou Perry, desanimado.
—
Se é só isso que tem a
propor, Suzanne está certa. Não daria certo. Q
uero dizer, eles pode
riam
simplesmente enviar um clone operário, para nocautear o Goldfarb, ou,
ainda melhor, poderiam simplesmente desligar os geradores. Se for para a
chantagem funcionar, precisa ser mais complexa, de forma a criar uma
ameaça plausível.
—
Já é um começo
—
disse Donald.
—
Como já disse,
precisa
mos debater isso.
Suzanne olhou para Perry.
—
Como assim, "mais complexa"?
—
inquiriu ela.
—
Duas ameaças concomitantes, por exemplo
—
disse Perry.
—
Dessa forma, se eles bloquearem uma, será possív
el trabalhar com a outra.
Sabe o que estou querendo dizer? Para neutralizar a ameaça eles precisa
-
riam cobrir os dois flancos.
—
Não é má idéia
—
disse Donald.
—
Será que alguém aí pode
imaginar outra ameaça?
Ninguém deu qualquer idéia.
—
Não consigo pensa
r em nada assim, de imediato
—
disse Perry.
—
Nem eu
—
disse Suzanne.
—
Vamos começar com a idéia da câmera
—
disse Donald.
—
Enquanto aprontamos essa parte, certamente nos ocorrerá mais alguma
coisa.
—
Que tal as armas do museu?
—
sugeriu Michael.
—
Achar
am algumas armas?
—
perguntou Perry.
—
Uma sala inteira cheia delas
—
disse Donald.
—
Mas infeliz
mente
são na maioria material bélico antigo ultrapassado, danificado, recolhido
do fundo do mar, desde a época dos gregos antigos até a Se
gunda Guerra
Mundia
l. A peça mais promissora que vimos foi uma Luger alemã.
—
Acha que funcionaria?
—
perguntou Perry.
—
Talvez
—
disse Donald.
—
O pente está com munição. Meca
-
nicamente parecia ótima.
—
Bom, já é um começo
—
disse Perry.
—
Principalmente se fun
-
cionar.
—
Um
a coisa sabemos com certeza
—
disse Donald.
—
Não va
mos
conseguir levar isso adiante separados em cidades diferentes.
—
Certíssimo
—
concordou Perry.
—
Então temos menos de um mês.
—
Talvez tenhamos muito menos de um mês
—
disse Richard.
—
Por que diz isso
?
—
perguntou Suzanne.
—
Michael e eu tivemos um probleminha
—
disse Richard.
—
E
imagino que isso aqui vai pegar fogo um desses dias, quando desco
brirem.
—
Richard, não, não diga nada
—
gritou Michael.
—
O que é?
—
perguntou Perry.
—
O que aprontaram ago
ra?
—
Houve um acidente
—
disse Richard.
—
Que tipo de acidente?
—
inquiriu Donald.
—
Talvez fosse melhor eu lhes mostrar
—
disse Richard.
—
Talvez
enquanto isso tenham uma idéia quanto ao que fazer.
—
Onde?
—
urrou Donald.
—
No meu quarto ou no de Michael
—
disse Richard.
—
Tanto faz.
—
Vá na frente, marujo
—
grunhiu Donald.
Ninguém disse nada enquanto o grupo atravessava o gramado até a
extremidade aberta do chalé de Richard. Eles se enfileiraram em torno da
beira da piscina. Richard foi até o painel onde
ficava a geladeira e deu o
comando para que ela se abrisse. Depois se curvou diante da porta aberta
e afastou vários dos recipientes que ali se encontravam apertados uns
contra os outros, que caíram no piso de mármore. Emoldurado pelos
recipien
tes restan
tes, empilhados de qualquer maneira, viu
-
se o rosto
congelado e pálido de Mura. Os cabelos estavam grudados na testa, e a
espuma sanguinolenta havia se aderido ao rosto dela, formando uma
mancha de co
loração marrom.
Suzanne imediatamente cobriu os olhos c
om as m
ãos.
—
Agora, precisam entender que foi um acidente
—
explicou
Richard.
—
Michael não queria matá
-
la. Estava só querendo fazê
-
la parar
de gritar, mantendo
-
a debaixo d'água.
—
Ela pirou
—
explicou Michael, abruptamente.
—
Viu o corpo do
cara que o Ri
chard matou.
—
Que cara?
—
interrogou Perry.
—
Um veadinho que conhecemos
na festa de boas
-
vindas
—
disse Michael.
—
Um que andava com a Mura.
—
Cadê o corpo dele?
—
indagou Donald.
—
Está na minha geladeira
—
disse Michael.
—
Seus idiotas!
—
acusou
-
os Perr
y.
—
Como o garoto morreu?
—
Não importa
—
murmurou Donald.
—
O que está feito, está feito,
e o Richard tem razão: no momento em que
esses
corpos forem
descobertos a coisa pode ficar muito feia.
—
É claro que importa
—
exclamou Suzanne ao afastar as mãos d
o
rosto para fuzilar os mergulhadores com os olhos.
—
Não consigo
acreditar nisso! Vocês mataram duas dessas pessoas tão pacíficas e cor
-
teses, e qual foi o motivo?
—
Ele tentou passar a mão em mim
—
explicou Richard.
—
Eu lhe
dei um soco, ele caiu e bateu
com a cabeça. Eu estava de porre. Não queria
matá
-
lo.
—
Seus miseráveis, cabeças ocas, preconceituosos!
—
disse Suzanne,
com desdém.
—
Tá legal, tá legal
—
disse Perry, tentando ser paciente e acalmar
os ânimos.
—
Menos, gente, menos. Ainda temos que trab
alhar juntos, se
houver esperança de sairmos daqui.
—
Perry está certo
—
disse Donald.
—
Se vamos fugir, precisa ser
rápido. Aliás, é melhor que comecemos esta noite.
—
Concordo plenamente
—
disse Richard ao agachar
-
se para tor
nar
a socar os recipientes n
a geladeira de modo a cobrir de novo o rosto sem
vida de Mura.
—
O que podemos fazer esta noite?
—
indagou Perry.
—
Muita coisa, suspeito eu
—
respondeu Donald.
—
Bom, você é o milico por aqui
—
disse Perry.
—
Por que não
assume o comando?
—
O que acham os
outros?
—
perguntou Donald.
Richard ficou de pé e conseguiu fechar a porta da geladeira com a
ajuda dos quadris.
—
Por mim está bem
—
disse ele.
—
Quanto mais
rápido sairmos daqui, melhor.
—
Por mim também
—
concordou Michael.
—
E você, Suzanne?
—
indagou
Donald.
—
Não posso acreditar que isso tenha acontecido
—
murmurou
Suzanne. Estava olhando para um ponto distante.
—
Eles passaram um
mês nos descontaminando, mas conseguimos trazer doenças da mesma
forma.
—
Que diabo está dizendo?
—
perguntou Perry. Suzan
ne suspirou,
triste.
—
É como se fôssemos enviados de Satã invadindo o paraíso.
—
Suzanne, você está bem?
—
perguntou Perry. Agarrou
-
a pelos
ombros e olhou
-
a nos olhos. Estavam cheios de lágrimas.
—
Só estou arrasada
—
disse ela.
—
Vou levar três, de quatr
o, para que nossa missão tenha uma
chance razoável de êxito
—
disse Donald, ignorando Suzanne.
—
Eis o que
lhes proponho. Vamos pegar nossos comunicadores de pulso, chamar um
táxi aéreo e ir até o Museu da Superfície da Terra. Richard e eu
visitaremos o su
bmersível para verificar seu estado. Vamos ajudar a
remover uma das câmeras de tevê. Perry, você e o Michael vão até o
Museu pegar armas. Michael pode lhe mostrar onde estão. Levem
qualquer coisa que considerem mais adequada, mas não se esqueçam de
pegar a
Luger.
—
Parece bom
—
disse Perry.
—
E você, Suzanne? Quer vir?
Suzanne não respondeu. Em vez disso cobriu o rosto com ambas as mãos
e massageou os olhos molhados de lágrimas. Ela não estava con
seguindo
aceitar o fato de que eles haviam sido responsáveis
pela morte de dois
interterráqueos. Imaginou que tipo de lamentações um crime desses
poderia motivar em Saranta. Duas essências que haviam sobrevi
vido
durante éons haviam se perdido para sempre.
—
Tá legal
—
disse Perry, conciliador.
—
Você fica. Não vam
os
demorar.Suzanne concordou, mas nem mesmo ficou olhando enquanto o
grupo saía da sala em fila pela extremidade aberta do chalé. Em vez disso,
olhou para o painel que ocultava a geladeira e se permitiu chorar. O
confronto violento e terrível que ela temia
já estava para acontecer.
1
1
8
8
Donald tratou a operação como se ela fosse um exercício militar, as
-
sim como Richard e Michael, que haviam tido ainda mais experiência em
operações secretas até do que Donald. Para entrar no espírito da coisa, os
dois mergulh
adores escureceram os rostos e as vestimentas com lama.
Perry não era tão belicoso assim, mas ficou aliviado por estar decidindo
seu próprio destino.
—
Será que isso é necessário?
—
indagou Perry ao ver o que Richard
e Michael haviam feito com a lama.
—
Er
a o que fazíamos toda vez que íamos para alguma operação
noturna na marinha
—
explicou Richard.
A corrida de táxi aéreo foi, em alguns aspectos, até mais emocio
-
nante à noite do que durante o dia. Havia bem menos tráfego, mas os
veículos que havia se desvi
avam de modo brusco, surgindo inesperada
-
mente das trevas.
—
Isso aqui parece até coisa de uma porra de um parque de diver
-
sões
—
disse Richard depois de um fino particularmente assustador.
—
Gostaria muito de descobrir como funcionam essas coisas
—
coment
ou Perry.
—
Só havia clones operários na fábrica que Richard e eu
visitamos esta manhã.
—
Aquilo foi uma tremenda perda de tempo
—
disse Richard.
—
O
que acharam da Suzanne?
—
perguntou Donald a Perry.
—
Como assim?
—
respondeu Perry.
—
Acha que precisamos
nos preocupar com ela?
—
indagou
Donald.
—
Ela poderia estragar a operação inteira.
—
Está querendo dizer que ela pode alertar os interterráqueos?
—
disse Perry.
—
Alguma coisa do gênero
—
disse Donald.
—
Ela pareceu bas
tante
nervosa quando soube das duas
mortes.
—
Ficou nervosa, sim, mas não só por causa das mortes
—
disse
Perry.
—
Ela me contou que Garona a decepcionou de alguma forma. E se
sente responsável por nós estarmos aqui, como disse. Acho que não
precisamos nos preocupar com ela. Vai se recupera
r.
—
Espero que sim
—
disse Donald.
A aeronave desacelerou, pairou no ar um momento, depois desceu
rapidamente.
—
Fiquem de sobreaviso, soldados
—
disse Donald.
Como Donald ordenara, o táxi aéreo estacionou no pátio do mu
seu.
Acima da borda da aeronave er
a possível divisarem
-
se os contornos do
Oceanus,
contra o basalto negro do museu.
—
Lá está o alvo
—
disse Donald.
—
Assim que a lateral do táxi se
abrir, quero todos bem colados contra a parede do museu. Certo?
—
Positivo
—
confirmou Richard.
No momento e
m que apareceu a porta de saída, o grupo saiu
rapida
mente, correu para a parede e se achatou contra ela. Todos os olhos
perscrutaram a área adjacente. Estava escuro, especialmente nos locais
onde havia sombras, e reinava um silêncio absoluto, sem que houv
esse
nenhum sinal de vida. Atrás deles, a forma nitidamente geométrica do
Museu se erguia até as nuvens. A única luz no cenário vinha dos milhares
de estre
las artificiais bioluminescentes acima e um brilho fraco que
emanava das janelas do prédio. O vulto
escuro do submersível se
encontrava a cerca de 15 metros de distância, apoiado sobre picadeiros
sobre a plataforma de um cargueiro antigravitacional. A lateral do táxi
aéreo vedou
-
se sem deixar vestígio de descontinuidade e a nave
silenciosamente se ergueu
antes de sumir nas trevas.
—
Não estou vendo vivalma
—
murmurou Richard.
—
Acho que aqui não é um lugar lá muito freqüentado à noite
—
sussurrou Michael, em resposta.
—
Tratem de falar o mínimo possível
—
ordenou Donald.
—
Esse lugar está deserto
—
disse
Perry. Procurou relaxar.
—
Isso
vai facilitar muito as coisas.
—
Vamos esperar que continue assim
—
disse Donald. Apontou
para uma janela à esquerda deles.
—
Perry, você e o Michael entram por
ali e voltam pela mesma janela. Vamos estar trabalhando no
Ocea
nus
ou
esperando aqui nas sombras.
—
Acha que há algum sistema de alarme?
—
indagou Perry.
—
Nada!
—
disse Richard.
—
Não há trancas, nem alarmes, nem
nada disso. Aparentemente ninguém aqui rouba nada.
—
Então tudo bem
—
disse Perry.
—
Estamos indo.
—
Boa
busca
—
disse Donald. Acenou quando Perry e Michael
correram curvados logo abaixo do nível das janelas. Resmungando e
gemendo, Perry ajudou Michael a subir de forma que ele pudesse agar
rar
o parapeito. Uma vez dentro do prédio, Michael debruçou
-
se e pu
xo
u
Perry. Um momento depois os dois já haviam desaparecido dentro do
edifício.
Donald voltou a aten
ção para o submarino.
—
Bom, vamos lá ou não?
—
indagou Richard.
—
Vamos!
—
disse Donald.
Eles foram se deslocando rente ao chão até chegarem ao
minissubmarin
o. Donald acariciou carinhosamente o casco de aço HY
-
140
dele. Na escuridão a cor escarlate da embarcação era de um cinza opaco,
embora as letras brancas na torreta se destacassem nitidamente. Donald
fez uma inspeção vagarosa da embarcação, tendo Richard l
ogo atrás de si.
Ficou impressionado com os consertos feitos pelos interterráqueos; as
luzes externas e o braço manipulador que haviam sido destruídos no
mergulho pela chaminé do vulcão pareciam com
pletamente normais.
—
Parece
-
me perfeito
—
disse Donald.
—
Só precisamos levá
-
lo até
o oceano e ir para casa, que estaremos livres.
—
Quanto antes melhor
—
disse Richard.
Donald foi até uma caixa de ferramentas, abriu
-
a, e tirou várias
chaves. Entregou
-
as a Richard.
—
Comece com a câmera de boreste
—
instruiu.
—
Simplesmen
te
destaque
-
a da carcaça. Eu vou lá embaixo verificar o nível da bateria. Se
não tivermos energia, não chegaremos a lugar algum.
—
Positivo
—
disse Richard.
Donald subiu os degraus familiares, indo depressa até a escotilha do
submarino. Ficou l
igeiramente surpreso ao encontrá
-
la destrancada e li
-
geiramente entreaberta. Agarrando
-
a com as duas mãos, ergueu
-
a total
-
mente. Depois de uma última inspeção visual em torno, entrou na
abertura e penetrou na escuridão absoluta.
Depois de chegar ao convés,
movimentou
-
se pelo tato. Conhecia tão
bem o submarino que podia literalmente deslocar
-
se em seu inte
rior de
olhos fechados, ou pelo menos pensava assim até tropeçar nos dois livros
que Suzanne havia trazido para impressionar Perry. Donald soltou um
palav
rão, não tanto pelo tropeção, mas por ter batido com a mão nas
costas de um dos assentos dos passageiros enquanto tentava se equilibrar.
Pelo menos não caiu, o que poderia ter sido letal naquele espaço apertado.
Depois de esfregar a mão para aliviar a dor,
avançou
cuidadosamente, pé ante pé. Quando chegou perto da estação de imersão,
viu que uma réstia de luz infiltrava
-
se pelas quatro vigias, tornando seu
progresso mais fácil. Com cuidado, para não bater com a cabeça em
nenhum dos ins
trumentos salientes,
Donald sentou na cadeira do piloto.
Ouvia Richard trabalhando no casco da embarcação com a chave, pelo
lado de fora.
A primeira coisa que Donald fez foi ligar as luzes dos instrumentos.
Depois, apreensivo, baixou os olhos para verificar o indicador do n
íve
l
da
bateria. Havia for
ça suficiente. Então, quando estava para verificar as
pressões de gás, ele gelou. Um ruído vindo de trás dele avisou
-
o que não
estava só. Alguém às suas costas estava dentro do submarino.
A princípio Donald prendeu a respiração, proc
urando prestar aten
-
ção. Um suor frio apareceu rente às raízes dos cabelos. Segundos se passa
-
ram, embora parecessem horas, mas o ruído não se repetiu. Exatamente
quando Donald começava a imaginar se sua imaginação não havia inter
-
pretado erroneamente os s
ons de Richard removendo a câmera, ouviu
-
se
uma voz vinda das trevas:
—
É o senhor, Sr. Fuller?
Donald virou
-
se de repente. Seus olhos tentaram em v
ão penetrar na
escuridão.
—
Sim
—
disse, com a voz tensa.
—
Quem está aí?
—
Harv Goldfarb. Lembra
-
se de mim,
da Central de Informações?
Donald acalmou
-
se e respirou fundo.
—
É claro
—
disse ele, irritado.
—
Que diabo está fazendo aqui
dentro?
Harvey avançou devagar. As luzes dos instrumentos iluminaram
-
lhe o rosto bastante enrugado.
—
Hoje você me deixou pensand
o
—
disse Harvey.
—
Vocês são a
primeira esperança que tenho de voltar. Tinha medo de que se esque
-
cessem de mim, então resolvi dormir aqui dentro.
—
Sr. Goldfarb, não poderíamos esquecê
-
lo
—
disse Donald.
—
Precisamos do senhor. Viu as câmeras de tevê na
parte externa do
submarino.
—
Vi, sim
—
disse Harvey.
—
Acho que não haverá problema. O
que planeja transmitir?
—
Não sabemos ainda
—
disse Donald.
—
Talvez o senhor, ou até
todos nós.
—
Eu?
—
indagou Harvey.
—
Na verdade, só queremos a possibilidade da tr
ansmissão
—
disse
Donald.
—
A ameaça é que importa.
—
Estou entendendo
—
disse
Harvey.
—
Eles vão deixar vocês irem por terem medo de que eu exponha
Interterra via transmissão televisiva.
—
Qualquer coisa assim
—
disse Donald.
—
Não vai funcionar
—
disse Ha
rvey, secamente.
—
Por que não?
—
Dois motivos
—
disse Harvey.
—
Em primeiro lugar, eles cor
-
tariam minha energia antes de deixarem vocês saírem, e em segundo lugar,
não vou fazer isso.
—
Mas disse que ia ajudar.
—
É, e vocês disseram que me levariam para
Nova York.
—
É verdade
—
admitiu Donald.
—
Só que ainda não detalha
mos
nada.
—
Detalhes, ah!
—
zombou Harvey.
—
Mas escute. Eu moro aqui.
Posso lhes dizer como sair. Já passei muitas noites sonhando em fugir da
monotonia de todos esses intermináveis dias
agradáveis.
—
Estamos abertos a sugestões
—
disse Donald.
—
Preciso ter certeza de que vão me levar
—
disse Harvey.
—
Incluiremos o senhor com todo o prazer
—
disse Donald.
—
Qual
é a sua idéia?
—
Esse submarino funciona?
—
indagou Harvey.
—
É isso que est
ou verificando
—
disse Donald.
—
Temos força
suficiente, então se conseguirmos levá
-
lo até a água, vai funcionar.
—
Certo, então me escute
—
disse Harvey.
—
Na sua orientação
chegaram a lhe dizer que os interterráqueos vivem para sempre? Não no
mesmo corpo
, mas em múltiplos corpos?
—
Sim
—
disse Donald.
—
Já visitamos o centro de falecimentos e
testemunhamos uma extração.
—
Estou impressionado
—
disse Harvey.
—
Eles estão dizendo tudo
a vocês. Então entendem que o processo funciona só quando são extraídos
a
ntes da morte. Em outras palavras, tudo precisa ser planeja
do. Está
entendendo o que estou dizendo?
—
Não sei bem
—
admitiu Donald.
—
Eles precisam estar vivos
quando a memória for extraída
—
disse Harvey.
—
Ou, mais
propriamente, o cérebro deles precisa e
star fun
cionando normalmente. Se
morrerem por meios violentos, acabou
-
se. É por isso que vivem com medo
da violência, e é por isso que não há violência em Interterra há milhões e
milhões de anos. São incapazes de cometê
-
la, a não ser que mandem
alguém em
seu lugar.
—
Então os ameaçaremos com violência
—
disse Donald.
—
Já
pensamos nisso.
—
Estou falando de algo mais específico do que apenas a violência
—
disse Harvey.
—
Ameacem especificamente com a morte. A
morte sem aquela besteira toda de extração deles
, a menos que façam o
que vocês querem.
—
Ahá!
—
exclamou Donald.
—
Agora entendi. Está pensando em
levarmos reféns.
—
Exato!
—
disse Harvey.
—
Dois, quatro, tantos quantos pos
sam
conseguir, e não usem clones, porque eles não têm importância. E cuidado:
o
s clones não se importam com a violência. Fazem tudo que lhes é
ordenado.
—
Beleza pura!
—
comentou Donald.
—
São várias ameaças numa
só.
—
Exato
—
disse Harvey, orgulhoso.
—
E não vai precisar ficar
fazendo papel de palhaço com essa bobagem de câmera.
—
G
ostei
—
disse Donald.
—
Que tal sair e dizer ao Richard para
parar com a remoção da câmera? Eu só quero verificar as pressões de gás,
e saio também.
—
Prometa que vai me levar
—
disse Harvey.
—
O senhor vai junto
—
disse Donald.
—
Nem pense mais nisso.
—
Tá legal, pode parar!
—
ordenou Perry.
—
Ou você sabe onde vai,
ou não. Já estamos dando voltas aqui dentro feito uma dupla de zumbis
há vinte minutos. Onde é que estão as porcarias das armas?
Michael sacudiu a cabeça.
—
Me desculpe, mas me perco dentro de
museus até durante o dia.
—
Tente se lembrar de algum detalhe da galeria
—
disse Perry.
—
Me lembro que era comprida e estreita
—
informou Michael.
—
Ficava perto de quê? Pode se lembrar desse tipo de coisa?
—
Espere aí um segundo
—
disse Michael.
—
Agora
estou me lem
-
brando. Ficava atrás de uma porta onde se lia que devíamos pedir per
-
missão ao Conselho de Anciãos para entrar.
—
Não vi muitas portas
—
disse Perry enquanto seus olhos esqua
-
drinhavam a área em torno deles.
—
E não há nenhuma por aqui, por
ta
nto
é óbvio que não estamos no lugar certo.
—
Lembro
-
me também de que havíamos parado em uma galeria
cheia de tapetes persas
—
disse Michael.
—
Agora estou me lembran
do.
Os
tapetes ficavam depois daquela sala cheia de coisas renascentistas.
—
Já é um come
ço
—
disse Perry.
—
Sei onde fica essa galeria.
Venha! Siga
-
me, para variar.
Alguns minutos depois os dois estavam diante da porta com o avi
so
de entrada restrita. Ficava perto da janela por onde haviam entrado.
—
É essa aqui?
—
indagou Perry.
—
Se for, d
emos uma volta in
teira.
—
Acho que sim
—
Estendendo o braço além de Perry, empurrou a
porta, para abri
-
la, e deu uma espiada no interior da sala.
—
Aí, nosso
esforço valeu a pena!
—
exclamou.
—
Já era tempo
—
resmungou Perry ao entrar.
—
Os outros vão
com
eçar a pensar que nos perdemos, então é melhor nos apressarmos.
—
O que devemos levar?
—
indagou Michael.
Os dois pararam logo depois de passarem pela porta enquanto Perry
olhava toda a extens
ão da sala e a área subseqüente que as prateleiras
comportavam.
—
Isso é mais do que eu esperava!
—
comentou ele.
—
Temos uma
coleção e tanto aqui.
—
As coisas mais antigas estão à direita, as mais recentes à esquer
-
da
—
informou Michael.
—
Acho que não importa, contanto que levemos
alguma coisa que funcione
—
disse Per
ry
—
e que eu encontre a Luger.
—
Sei de uma coisa que eu vou levar
—
disse Michael. Pegou a besta
e a aljava. Ao fazê
-
lo, espetou o dedo.
—
Rapaz, essas pontas de flecha são
afiadíssimas!
—
São quadrelos ou dardos, não flechas
—
corrigiu Perry.
—
Que seja
—
disse Michael.
—
São pontiagudas pra burro!
—
Lembra
-
se de onde estava a Luger?
—
À esquerda, devagar
—
disse Michael.
—
Não me chame de devagar
—
protestou Perry.
—
Porra, o que eu acabei de lhe dizer é que as modernas estão à
esquerda.
Perry se afasto
u sem responder ao último comentário de Michael.
Ficava irritado por ser obrigado a aturar aqueles mergulhadores. Jamais
havia sido forçado a perder tempo com caras mais burros e imaturos na
vida.
Michael virou
-
se e seguiu no sentido contrário. Como tudo e
sta
va
corroído pela água do mar e coberto de cracas, achava que as armas
antigas estariam em melhor estado, pois elas, simples como eram, con
-
tinham menos partes móveis para a água salgada enferrujar. Ele logo se
viu em uma área na qual havia uma soberba
coleção de armas gre
gas
antigas. Reuniu uma braçada de espadas curtas, punhais e escu
dos,
juntamente com vários capacetes, grevas
—
armaduras para as pernas
—
e
um par de peitorais. O que o impressionou foi o ouro lavrado e as jóias
incrustadas que conse
guia ver apesar da escuridão. Assim carregado,
voltou ruidosamente até a porta por onde haviam entrado.
—
Como é, já achou?
—
bradou Michael para Perry.
—
Ainda não
—
respondeu Perry.
—
Só encontrei um monte de
fuzis enferrujados.
—
Vou levar essas coisas
que eu peguei até a janela.
—
Está bem, vou para lá assim que encontrar a pistola.Michael
acrescentou a besta a sua carga e depois abriu a porta, com muita
dificuldade. Assim que pôs o pé no corredor, deu um encontrão em
Richard.
Michael, lamuriando
-
se, de
ixou cair tudo que estava trazendo. Os
pesados implementos de ouro e bronze produziram um tremendo es
-
tardalha
ço ao caírem no piso de mármore.
—
Silêncio, seu imbecil!
—
disse Richard entre os dentes. Aque
la
barulheira, explodindo em meio ao silêncio do e
difício escuro e de
serto, o
assustara tanto quanto o encontro inesperado assustara Michael.
—
O que pretende, entrando aqui assim pé ante pé para me assus
tar
desse jeito?
—
indagou Michael.
—
Por que estão demorando tanto?
—
exigiu saber Richard.
—
Não c
onseguíamos encontrar a sala certa, tá legal? Perry surgiu
na porta.
—
Meu Deus do céu, o que vocês dois estão aprontando? Tentan
do
acordar a cidade inteira?
—
Não foi culpa minha
—
disse Michael ao curvar
-
se para recu
perar
o produto da sua pilhagem.
—
E
ncontraram a Luger?
—
indagou Richard.
—
Ainda não
—
disse Perry.
—
Onde está o Donald?
—
Já está a caminho do palácio dos visitantes
—
disse Richard.
—
Houve uma mudança nos planos. Aquele bode velho do Harvey Goldfarb
estava escondido no submarino, e nos
apresentou um plano de fuga muito
melhor.
—
É mesmo?
—
perguntou Perry.
—
Qual é?
—
Vamos tomar reféns
—
disse Richard.
—
Ele disse que os
interterráqueos têm tanto medo da morte violenta que farão qualquer
coisa, inclusive nos deixar levar o submarino at
é o oceano, se levarmos
uns dois interterráqueos e ameaçarmos acabar com a raça deles.
—
Gostei
—
disse Perry.
—
Mas por que o Donald voltou antes de
nós?
—
Ficou preocupado com a Suzanne, principalmente agora que as
coisas parecem bem mais promissoras. Mas
me pediu para lhe dizer que
prossiga; assim que estiverem prontos, vou chamar um táxi aéreo para
voltarmos.
—
Perfeito
—
respondeu Perry.
—
Entrem aqui, vocês dois. Se todos
nós procurarmos aquela maldita pistola, vamos encontrá
-
la bem mais
depressa.
O t
áxi aéreo parou e se abriu. Pairava diretamente na frente do
refeitó
rio do palácio dos visitantes. Richard e Michael desembarcaram
com uma certa dificuldade, ambos sobrecarregados com quilos de
armamen
tos antigos. Perry só trazia a Luger, que havia final
mente
encontrado.
Os três subiram a rampa até a porta. Ambos os mergulhadores ha
-
viam vestido os peitorais, colocado os capacetes e grevas em vez de tra
zer
as peças nos braços. Já era suficiente carregarem os escudos, espadas,
punhais e a besta. Perry hav
ia tentado convencê
-
los a tirarem as arma
-
duras, mas eles teimaram, e ele desistiu de tentar argumentar com os dois.
Michael e Richard estavam convencidos, em suas próprias pala
vras, de
que aquilo tudo iria render uma nota preta lá em cima.
Para surpresa
deles o refeit
ório estava vazio.
—
Estranho
—
disse Richard.
—
Ele me disse para encontrá
-
lo aqui.
—
Não acha que ele está planejando dar o fora daqui sem nós, acha?
—
perguntou Michael.
—
Não sei
—
respondeu Richard.
—
Essa idéia jamais me ocorreu.
—
Ele
não vai sem nós
—
garantiu Perry aos dois mergulhadores.
—
Acabamos de ver o
Oceanus
estacionado onde sempre esteve, e
ele não vai a parte alguma sem o submarino.
—
E o quarto de Suzanne?
—
sugeriu Michael.
—
Diria que
esse é
um bom palpite
—
comentou Perr
y.
A longa caminhada através do gramado foi significativamente ba
-
rulhenta, graças ao barulho contínuo da armadura antiga.
—
Vocês dois
estão ridículos
—
comentou Perry.
—
Não pedimos sua opinião
—
disse Richard.
Quando eles contornaram a extremidade aberta
do chalé de Suzanne
viram Donald, Suzanne e Harvey sentados em cadeiras anatômicas per
to
da beirada da piscina. Era óbvio que o clima estava tenso.
—
O que há de errado?
—
indagou Perry.
—
Temos um problema
—
disse Donald.
—
A Suzanne não tem
muita certe
za de que devemos fazer o que pretendemos fazer.
—
Por que não, Suzanne?
—
indagou Perry.
—
Porque não se deve assassinar ninguém
—
disse Suzanne.
—
Se
levarmos reféns para a superfície, sem adaptação, eles vão simples
mente
morrer. Trouxemos a violência e
a morte para cá, e agora que
remos
escapar por meio delas. Acho isso abominável do ponto de vista ético.
—
Sim, mas eu não pedi para vir para cá
—
disse Perry, irritado.
—
Não quero parecer um disco quebrado, mas estamos sendo manti
dos aqui
contra a noss
a vontade. Acho que isso justifica a violência.
—
Mas isso é confundir os fins com os meios
—
disse Suzanne.
—
É
exatamente a isso que deveríamos nos opor.
—
Só sei que sinto saudades da minha família
—
disse Perry.
—
Vou
revê
-
la outra vez, haja lá o que h
ouver!
—
Sinto empatia por você
—
disse Suzanne.
—
De verdade! E me
sinto responsável por toda essa situação. E fomos mesmo abduzidos. Mas
não quero ver nenhuma outra morte, nem quero que Interterra seja
destruída de uma forma irracional. Somos eticamente
obrigados a nego
-
ciar. Essas pessoas são muito pacíficas.
—
Pacíficas?
—
indagou Richard.
—
Eu diria monótonas!
—
Eu que o diga
—
disse Harvey.
—
Perry, esse é o Harvey Goldfarb
—
disse Donald. Perry e Harvey
apertaram as mãos um do outro.
—
Não sei o que
devemos negociar
—
retrucou Donald.
—
Arak
deixou bem claro que vamos ficar aqui para sempre, sem a menor sombra
de dúvida. Uma afirmação como essa elimina qualquer possibilida
de de
negociação.
—
Acho que devíamos deixar passar um pouco mais de tempo
—
di
sse Suzanne.
—
O que há de errado nisso? Talvez mudássemos de idéia,
ou talvez fôssemos capazes de convencê
-
los a mudarem de idéia. Preci
-
samos nos lembrar que nós trouxemos para cá nossas personalidades e
nossa bagagem psicológica adaptada ao mundo lá de
cima, e além disso
estamos tão acostumados a nos considerarmos "os mocinhos", que é difícil
perceber quando somos os monstros.
—
Eu não me sinto um monstro
—
disse Perry.
—
Este aqui não é o
meu lugar.
—
Nem o meu
—
disse Michael.
—
Vou lhes dizer mais uma
coisa
—
acrescentou Suzanne.
—
Só
para continuar a conversa, digamos que a gente consiga sair daqui. E aí, o
que acontece? Revelamos a existência de Interterra?
—
Vai ser difícil não revelar
—
disse Donald.
—
Onde nós di
ríamos
que estivemos durante o últ
imo mês, ou seja lá qual foi o período?
—
E eu?
—
disse Harvey.
—
Já estou aqui há quase noventa anos.
—
Isso é ainda mais difícil de explicar
—
concordou Donald.
—
Também teríamos que ter alguma explicação sobre onde encon
-
tramos todo o ouro e as armadura
s
—
disse Richard.
—
Porque vou levar
tudo isso...
—
E quanto às possibilidades econômicas de servirmos como in
-
termediários?
—
sugeriu Perry.
—
Poderíamos ajudar os dois lados e
acabar multimilionários. Só os comunicadores de pulso vão causar uma
verdadei
ra comoção tecnológica.
—
Então não direi mais nada
—
disse Suzanne.
—
De uma forma ou
de outra, estaríamos expondo Interterra. Pare e pense em nossa civi
lização
e na sua cobiça exploradora. Não gostamos de nos ver sob
esse
prisma,
mas é verdade. Somos eg
oístas, tanto indivíduos como países. Sem dúvida
haveria um confronto, e avançada como é a civilização de Interterra, com
poder e armas que não podemos sequer imaginar, será uma catástrofe,
talvez o fim do mundo dos humanos secundários. Durante vários minu
tos,
todos ficaram calados.
—
Não estou nem aí para essa baboseira toda
—
disse Richard, de
repente, rompendo o silêncio.
—
Quero é sair daqui.
—
Sem dúvida
—
concordou Michael.
—
Eu também
—
disse Perry.
—
Idem
—
disse Donald.
—
Depois que sairmos podemos
nego
ciar
com esses interterráqueos. Pelo menos, a essa altura, vai ser uma
negociação no duro, sem
esse
negócio deles ficarem nos obrigando a fazer
as coisas.
—
E você, Harvey?
—
indagou Perry.
—
Já estou sonhando com isso há anos
—
disse Harvey.
—
Então
, está decidido
—
disse Donald.
—
Nós vamos!
—
Eu não
—
disse Suzanne.
—
Não quero saber de mais mortes
pesando na minha consciência. Talvez seja porque não tenho minha
própria família, mas estou querendo dar uma chance a Interterra. Sei que
vou precisar m
e adaptar um bocado, mas gosto de viver no paraíso. E
acho que ele vale um pouco de exame de consciência.
—
Sinto muito, Suzanne
—
disse Donald, olhando
-
a nos olhos.
—
Se
nós formos, você irá junto. Seus altos padrões morais não vão estragar
nosso plano.
—
O que vão fazer, me obrigar a ir?
—
perguntou Suzanne, indig
-
nada.
—
Pode contar com isso
—
disse Donald.
—
Deixe
-
me recordar
-
lhe
que os comandantes de campo costumam executar seus próprios
comandados se o comportamento deles ameaçar comprometer uma
opera
ção.
Suzanne não respondeu. Em vez disso, olhou vagarosamente para
os outros presentes. Seu rosto estava inexpressivo. Ninguém a defendeu.
—
Vamos voltar ao trabalho
—
disse Donald, afinal.
—
Pegaram a
Luger?
—
Sim
—
confirmou Perry.
—
Foi difícil encontrá
-
la, mas conse
-
guimos.
—
Deixem
-
me vê
-
la
—
disse Donald.
Quando Perry tirou a arma do bolso da túnica, Suzanne saiu cor
-
rendo da sala. Richard foi o primeiro a reagir. Deixando cair tudo que
tinha nas mãos, sem nem se lembrar da armadura que estava vestindo
,
correu atrás dela, na escuridão da noite. Graças a sua soberba forma fí
sica,
conseguiu aproximar
-
se da moça rapidamente e agarrou Suzanne pelo
pulso. Puxou
-
a até obrigá
-
la a parar. Ambos estavam ofegantes.
—
É melhor fazer o jogo do Donald
—
conseguiu d
izer
-
lhe Richard
entre uma respiração e outra.
—
Não estou nem aí
—
replicou Suzanne.
—
Me solte!
—
Ele vai te matar
—
disse Richard.
—
Ele adora planejar essas
manobras militares. Estou lhe avisando.
Suzanne contorceu
-
se um momento, procurando libertar
-
se
, mas
logo ficou óbvio que Richard não pretendia deixá
-
la escapar. Os outros
chegaram e se agruparam em torno dos dois. Donald vinha empunhan
do
a Luger.
—
Está me obrigando a tomar uma atitude
—
disse Donald, amea
-
çador.
—
Espero que esteja percebendo iss
o.
—
Quem está obrigando quem?
—
perguntou Suzanne, num tom de
escárnio.
—
Tragam
-
na de volta para dentro!
—
disse Donald.
—
Precisa
mos
resolver isso de uma vez por todas.
—
Ele começou a voltar para o chalé.
Os outros o seguiram, sendo que Richard puxava
Suzanne com toda a
força pelo pulso. Ela tentou libertar
-
se durante certo tempo, mas logo
desistiu, conformando
-
se em ser arrastada para seu quarto.
—
Traga
-
a e faça
-
a sentar
-
se
—
ordenou Donald, enquanto o gru
po
circundava a piscina.
Ao voltarem para a
luz, Richard percebeu como a mão de Suzanne
ficara azulada. Preocupado com a circulação dela, ele afrouxou o aper
to.
No instante em que fez isso, ela se soltou com um puxão e acertou
-
lhe um
retumbante golpe no meio do peito. Pego de surpresa, Richard caiu
na
parte mais funda da piscina. Suzanne voltou a sumir em meio às trevas
noturnas.
Como a pesada armadura o arrastou para baixo da superfície,
Richard debateu
-
se, apesar de ser um nadador vigoroso e hábil. Donald
jogou a pistola sobre uma das cadeiras e m
ergulhou. Perry e Michael
fizeram o possível da beira da piscina até perceberem que Suzanne ha
via
escapado outra vez.
—
Pegue
-
a!
—
Perry gritou.
—
Eu vou ajudar aqui.
Michael partiu em disparada, e o esforço feito o fez sentir um
grande respeito pelos fam
osos soldados da Grécia antiga, e ele imaginou
como aqueles guerreiros haviam conseguido lutar, considerando
-
se o peso
das armaduras. Achou a placa peitoral particularmente difícil de suportar
na corrida, embora o capacete e as grevas pesadas também não o
ajudassem. Uma vez fora do cone da luz emitida pelo interior do chalé, ele
parou, rangendo todo. Sem estar adaptado à escuridão, ficou cego nas
trevas. Não via Suzanne em parte alguma, embora ela estivesse com
apenas um minuto de vantagem, aproximadamente.
À medida que os minutos iam passando e os olhos dele iam se acos
-
tumando, detalhes do cenário emergiram da obscuridade, mas mesmo
assim ele não conseguia ainda ver Suzanne. Então, captou um movi
mento
súbito, e um ofuscante clarão de luz brilhante à sua d
ireita lhe chamou a
atenção. Ao olhar, seu coração deu um pulo. Era um táxi aéreo que havia
chegado e se aberto a cerca de cinqüenta metros de distância dele, nas
proximidades do refeitório.
Michael pôs
-
se a correr outra vez, as pernas musculosas a impul
-
s
ionarem
-
lhe o corpo. A medida que ia se aproximando rapidamente da
aeronave, viu que ia ter de ser rápido. Enxergou Suzanne lá adiante,
subindo no táxi com dificuldade, e jogando
-
se no assento, com a pal
ma da
mão direita virada para baixo sobre a mesa cen
tral.
—
Não!
—
berrou Michael, quando se jogou na direção da porta do
táxi. Mas era tarde demais. O que havia sido uma abertura momentos
antes era agora a carenagem inconsútil do táxi aéreo. Michael coli
diu
outra vez contra ele e ricocheteou, ao som do im
pacto entre os metais. A
colisão o derrubou no chão e arrancou
-
lhe o capacete da cabeça. No
instante seguinte o táxi aéreo subiu com um ruído de deslocamento de ar,
deixando Michael momentaneamente sem peso atrás dele. Como um
balão de hélio, ele flutuou a
cima do chão quase trinta centímetros an
tes de
cair para trás como um peso morto.
A segunda colisão tirou
-
lhe o fôlego. Ele se contorceu no chão.
Quando conseguiu recuperar
-
se, ergueu
-
se e voltou para o chalé. A essa
altura, os outros já haviam conseguido
retirar o ensopado Richard da
piscina e colocá
-
lo em uma das cadeiras, onde estava tossindo com toda a
força.
Donald ergueu os olhos quando Michael entrou.
—
Onde, diabo, ela foi?
—
Fugiu num táxi aéreo!
—
anunciou Michael, ofegante.
—
Você a deixou fugir
?
—
berrou Donald. Levantou
-
se do lugar
onde estava agachado ao lado de Richard. Estava furibundo.
—
Não deu para detê
-
la
—
disse Michael.
—
Ela deve ter chama
do
aquela porcaria daquele táxi no segundo em que saiu daqui.
—
Meu Jesus Cristo!
—
exclamou Don
ald. Levou a mão à testa e sa
-
cudiu a cabeça.
—
Mas que incompetência! Não consigo acreditar nisso.
—
Epa, eu fiz o que pude
—
queixou
-
se Michael.
—
Não vamos discutir
—
recomendou Perry.
—
Merda!
—
berrou Donald, enquanto andava furiosamente em
círculos.
—
Eu devia ter acabado com ela
—
disse Richard, em voz sufocada.
Donald parou de andar para lá e para cá.
—
Mal começamos esta operação, e já temos uma crise. Não te
mos
como prever o que ela fará. Precisamos nos mexer e rápido! Michael, trate
de voltar ao
Oceanus
e não deixe ninguém chegar perto dele!
—
Entendido!
—
disse Michael. Agarrou a besta e a aljava e desa
-
pareceu na escuridão.
—
Precisamos de reféns, e rápido
—
disse Donald.
—
Que tal o Arak e a Sufa?
—
indagou Perry.
—
Seriam perfeitos
—
disse Don
ald.
—
Vamos chamá
-
los aqui e
torcer para a Suzanne não ter falado com eles primeiro. Vamos precisar
que venham até o refeitório.
—
E o Ismael e a Mary Black?
—
sugeriu Perry.
—
Quanto mais, melhor
—
disse Harvey.
—
Beleza
—
disse Donald.
—
Vamos chamá
-
los
também. Só que não
cabe mais ninguém no
Oceanus.
O pulso de Suzanne estava a mil por hora. Ela jamais havia se
sentido tão nervosa. Sabia que tivera sorte de ter fugido do grupo e não
podia deixar de imaginar o que teria acontecido se ela não conseguisse
fugir. Estremeceu. Eles pareciam ter se tornado estranhos, até inimigos,
na
quela obsessão de escapar, e na concomitante disposição para matar.
Apesar do que dissera no impulso do momento lá no chalé, não
sabia como se sentia a respeito de nada, a não ser
seu asco pela idéia de
participar de planos que trouxessem mais mortes. Mesmo assim, apesar
da sua confusão, para fugir por táxi aéreo ela havia precisado dar um
destino depressa para que a aeronave se fechasse. O primeiro lugar que
lhe veio à mente foi a
pirâmide negra do Conselho dos Anciãos.
Quando o táxi aéreo deixou Suzanne no seu destino, ela já havia se
recuperado. O tempo de viagem havia lhe dado uma oportunidade de
pensar mais racionalmente. Raciocinou que o Conselho dos Anciãos, mais
do que ningu
ém, saberia como debelar rapidamente aquela crise, sem que
ninguém saísse ferido.
Enquanto ela percorria a calçada que levava à pirâmide, notou que a
área inteira estava deserta. Como aquele era o principal centro gover
-
namental de Interterra, ela havia pr
esumido que havia gente disponível
ali 24 horas por dia. Mas essa estava longe de ser a realidade, mesmo
depois de ela haver entrado na gigantesca construção.Suzanne percorreu o
corredor de cintilante mármore branco. Não viu ninguém. Ao aproximar
-
se das en
ormes portas de bronze almofadadas, começou a perguntar
-
se o
que faria. Bater lhe pareceu ri
dículo, dada a escala do ambiente. Mas ela
não precisava se preocupar. As portas se abriram automaticamente justo
como ocorrera naquela manhã.
Entrando na sala cir
cular cercada de colunas, além da porta,
Suzanne avançou até o centro e parou no mesmo lugar em que havia
estado de manhã. Olhou em torno, para o aposento vazio, imaginando o
que fa
zer em seguida.
O silêncio era completo.
—
Alô!
—
chamou Suzanne. Quando v
iu que ninguém respon
dia,
chamou outra vez, mais alto. Depois chamou mais uma vez, dessa vez
com toda a força dos pulmões. Graças à abóbada, ouviu a voz ecoar
claramente.
—
Posso ajudá
-
la?
—
indagou a voz de uma menininha, com toda a
calma.
Suzanne virou
-
se. Atrás dela, emoldurada pelo portal, estava Ala.
Seus finos cabelos louros estavam em desalinho, como se ela tivesse
acabado de ser acordada.
—
Desculpe incomodá
-
la
—
disse Suzanne.
—
Vim por causa de
uma emergência. Precisam deter meus amigos, os human
os secundá
rios.
Eles vão tentar escapar, e, se fizerem isso, o segredo de Interterra será
revelado.
—
É difícil fugir de Interterra
—
disse Ala. Esfregou os olhos com as
costas da mão. O gesto foi tão infantil que Suzanne precisou se lem
brar
que estava f
alando com um indivíduo de extraordinária inteligên
cia e
experiência.
—
Eles planejam usar o submersível no qual chegamos
—
disse
Suzanne.
—
Ele está no Museu da Superfície da Terra.
—
Entendi
—
disse Ala.
—
Ainda continua difícil, porém, seria
melhor env
iar alguns clones operários para avariar a embarcação.
Também vou convocar o Conselho para uma sessão de emergência. Acho
que você estaria disposta a ficar e a conferenciar conosco.
—
Claro
—
disse Suzanne.
—
Quero muito ajudar.
—
Ela pensou em
falar nas m
ortes trágicas que já haviam ocorrido, mas resolveu que
haveria oportunidade para isso depois.
—
Esse é um acontecimento inesperado e perturbador
—
disse
Ala.
—
Por que seus amigos resolveram tentar escapar?
—
Dizem que é por causa das famílias deles, e po
rque não tiveram
escolha. Mas são um grupo muito diversificado, de forma que também há
outros motivos.
—
Parece que eles ainda não perceberam a sorte que tiveram.
—
Acho que é justo dizer isso
—
concordou Suzanne.
Um táxi aéreo pousou e se abriu no escuro
pátio do museu, envolto
em sombras. Dois clones operários extremamente musculosos desembar
-
caram. Ambos traziam marretas, mas apenas um se dirigiu ao submari
no
da Benthic Marine. O outro evitou que o táxi partisse agarrando a beirada
da porta dele.
O pri
meiro clone operário não perdeu tempo. Ao chegar ao
submersível foi diretamente até a carcaça da bateria principal. Com habili
-
dade, abriu o painel de acesso de fibra de vidro, expondo o conector
principal de alimentação de energia. Em seguida, recuando, e
rgueu a
marreta acima da cabeça, preparando
-
se para inutilizar a unidade.
Mas a pesada marreta não desceu descrevendo seu arco normal. Em
vez disso, escorregou das mãos do clone e caiu no chão com um baque no
momento em que um dardo disparado por uma besta
atravessou a
garganta do clone. Com um som abafado, ele recuou, cambaleando,
agarrado ao míssil cravado em si. Uma mistura de sangue e um fluido
transparente, semelhante a um óleo mineral, esguichou da ferida,
empapando
-
lhe o macacão preto. Depois de dar
alguns passos incertos, o
clone caiu de barriga para cima. Depois de se contorcer várias vezes,
parou.Michael puxou para trás o cordel da besta e encaixou nele outro
quadrelo. Armado dessa forma, ergueu
-
se do lugar onde se escondia,
rente à parede do museu
, e cuidadosamente se aproximou do clone
abatido. Michael não havia visto nem ouvido o táxi aéreo; ele havia
pousado exatamente fora do limite de seu campo de visão. Ele se consi
-
derou sortudo por ter resolvido dar uma olhada no submarino naquele
momento,
porque andara cochilando, apesar de seus esforços por se
manter alerta.
Mantendo a besta apontada para o clone, Michael esticou o pé di
-
reito e deu um chute no corpo. O clone não reagiu, embora saísse novo
jato de sangue e fluido da ferida do pescoço.
Afas
tando uma das mãos da besta para se equilibrar melhor,
Michael deu no corpo um último pontapé, bem forte, para eliminar todas
as dú
vidas sobre seu estado. Para surpresa sua, arrancaram
-
lhe a besta da
mão.
Assustado, Michael girou e deu de cara com um segu
ndo clone, que
havia jogado a besta para um lado e estava erguendo uma marreta aci
ma
da cabe
ça. Michael instintivamente ergueu as mãos embora soubes
se que
não adiantaria se defender assim do golpe que estava para ser desfechado.
Ao recuar, tropeçou no cl
one caído e caiu sobre ele, per
dendo o capacete
durante a queda.
Michael rolou desesperado para o lado quando a marreta desceu
com uma força assassina, esmagando o clone já inutilizado. Quando o
segundo clone recuperou o equilíbrio e reergueu a arma para
novo gol
pe,
Michael conseguiu se apoiar num joelho e sacar a espada grega. Quando o
clone tornou a erguer a marreta acima da cabeça, expondo o abdome,
Michael atacou. Com todo o peso de Michael aplicado no golpe, a espada
se enterrou até o punho. Uma mist
ura de sangue e óleo transparente
jorrou no peito de Michael.
O clone, surpreendido, deixou cair a marreta e agarrou a cabeça de
Michael com as duas mãos. Michael sentiu que ele o estava erguendo do
chão. Mas aquilo não durou muito. A força desordenada do
clone se
amainou, e ele caiu de cara no chão, arrastando Michael consigo.Levou
quase cinco minutos para que o aperto do clone operário na cabeça de
Michael se afrouxasse o suficiente para ele se livrar. Quando ficou de pé,
estremeceu, em meio a uma onda de
náusea, por causa do cheiro do fluido
que estava vazando dos dois clones abatidos. Era como uma combinação
de matadouro com oficina de automóveis.
Michael resgatou a besta. Sentia um respeito renovado pelo perigo
representado pelos clones. Ficou surpreso
pelo segundo clone t
ê
-
lo ata
-
cado, e refletiu que eles deviam ter recebido alguma ordem coletiva. O
episódio também serviu para mostrar que os clones não tinham o me
nor
escrúpulo em usar de violência, tal como Harv havia alertado.
1
1
9
9
Talvez nós devêssemo
s ter adiado isso para depois do jantar
—
disse
Richard.
—
Estou faminto.
—
Agora não é hora de fazer graça
—
disse Perry.
—
Quem é que está fazendo graça?
—
indagou Richard.
—
Devem ser eles
—
gritou Harvey da porta, onde Donald havia lhe
pedido que ficas
se como sentinela.
—
Um táxi aéreo acabou de parar aí na
frente.
O grupo estava no refeitório esperando Arak, Sufa e os Blacks.
—
Muito bem, pelotão
—
disse Donald.
—
Já chega. Vamos nos
preparar.
Richard pegou uma das espadas gregas. Depois do mergulho na
piscina, tinha resolvido deixar a armadura para lá. Donald tirou o pen
te
de munição da Luger pela vigésima vez, verificou
-
o e recolocou
-
o no
lugar. Certificou
-
se de que havia um cartucho na câmara de disparo.
Arak, Sufa, os Blacks e quatro imensos clones
oper
ários entraram
impetuosamente na sala.
—
Tudo bem
—
disse Arak, meio sem fôlego.
—
Tudo vai dar cer
to,
então, por favor, acalmem
-
se.
De acordo com o plano, Harvey fechou a porta, que produziu uma
pancada sonora. Arak ignorou o ruído. Harvey contornou
todo o
perímetro da sala. Junto com Perry e Richard, ele ficou de pé atrás de
Donald.
—
Em primeiro lugar
—
disse Arak
—
devem entender que não
podem fugir. Não podemos permitir isso.
—
As notícias se espalham rápido, mesmo, hein?
—
disse Donald.
—
Então,
Suzanne já lhes contou?
—
O Conselho de Anciãos nos informou
—
disse Arak.
—
Eles se
comunicaram conosco logo depois de vocês solicitarem nossa presença.
Agora que estamos aqui, gostaríamos de lhes pedir que voltem cada um
ao seu chalé. E vou repetir: não
têm como escapar.
—
Veremos
—
disse Donald.
—
Por enquanto, somos nós que vamos
dar as ordens.
—
Isso está totalmente fora de cogitação
—
alertou Arak. Depois, di
-
rigindo
-
se aos clones, ordenou:
—
Por favor, contenham
-
nos, sem feri
-
los.
Obedientes, os clo
nes avan
çaram.
Donald empunhou a pistola e recuou vários passos. Os seus com
-
panheiros de conspiração fizeram o mesmo.
—
Não dêem nem mais um passo!
—
ordenou Donald.
—
Acho que eles não sabem o que é um revólver
—
disse Perry,
nervoso.
—
Vão aprender, já,
já
—
disse Donald. Enquanto continuava re
-
cuando, ergueu a arma e mirou o rosto do clone que avançava direta
-
mente na sua direção.
—
Arak!
—
gritou Ismael.
—
Ele está armado. Arak...
—
Parem, por favor!
—
ordenou Donald aos clones.
Tendo recebido ordem de
um interterráqueo, os clones ignoraram
Donald e continuaram se aproximando dos humanos secundários que
recuavam. Donald pressionou o gatilho da Luger, e ela disparou, com
estrépito. A bala pegou bem na cabeça do clone que vinha na frente. Ele
oscilou, dep
ois caiu de costas no chão. Um líquido transparente e vis
coso
escorreu da ferida e espalhou
-
se sobre o mármore. Curiosamente, suas
pernas continuaram a se mover, como se ele ainda avançasse. Arak e Sufa
ofegaram.
Impávidos, os outros clones continuaram a
se aproximar. Donald
girou sobre si mesmo e mirou o clone que se aproximava de Perry,
disparando outra vez. A bala atingiu a têmpora do segundo clone. Ele
também caiu, embora suas pernas também continuassem a se mover.
—
Parem, por favor
—
bradou Arak, a v
oz trêmula, para os dois
clones restantes. Os clones obedeceram instantaneamente. O rosto de Arak
havia ficado pálido, e ele estava tremendo. Enquanto isso, o mo
vimento
de tesoura das pernas dos dois clones que se encontravam no chão foi
ficando mais lent
o, depois parou.
Donald estava agora segurando a pistola com ambas as mãos. Gi
rou
sobre si mesmo outra vez, apontando a arma para Arak.
—
Assim é melhor
—
disse ao aterrorizado interterráqueo.
—
Então,
já que agora você entende o que eu quis dizer, você é
o pró
ximo.
—
Por favor
—
gritou Sufa.
—
Chega de violência. Por favor!
—
Teremos prazer em atender ao seu pedido
—
disse Donald, sem
baixar o revólver.
—
Basta fazer o que eu digo, que tudo vai dar certo.
Arak, quero que faça alguns contatos com sua uni
dade de pulso, depois
vamos sair daqui.
Suzanne ficou impressionada com a equanimidade que os anciãos
de
monstraram apesar da grave crise. Por outro lado, estava ficando cada
vez mais aflita; as informações que chegavam ao Conselho indicavam que
seus ex
-
co
mpanheiros estavam levando vantagem.
Enquanto o Conselho se reunia, serviram uma refeição a Suzanne,
que depois retornou ao salão das colunas. Como naquela manhã, ela tor
-
nou a receber a solicitação para ficar no centro, embora, na oportunida
de,
houvesse
recebido uma cadeira de estilo semelhante, porém menor do que
as ocupadas pelos anciãos. Ficou de frente para Ala, tendo as por
tas de
bronze atrás de si.
—
O problema parece estar ficando pior
—
disse Ala
depois de prestar atenção um momento ao comunicador
de pulso. Sua voz
clara e aguda não demonstrava urgência nem aflição.
—
O grupo de re
-
beldes juntamente com quatro reféns humanos agora está se aproxi
mando
de Barsama com seu submarino intacto. Arak aguarda nossas ordens.
—
Eu nunca enfrentei uma situaçã
o dessas em nenhuma de mi
nhas
vidas
—
disse Ponu.
—
Quatro clones operários prematuramente
despachados. Isso é realmente perturbador, sem dúvida nenhuma.
—
Vocês vão conseguir detê
-
los, não?
—
deixou escapar Suzanne.
Estava começando a achar a calma do Co
nselho enervante.
—
E vão fa
zer
isso sem feri
-
los, não vão?
Ala inclinou
-
se para Suzanne, ignorando suas perguntas.
—
Há uma coisa da qual estamos absolutamente seguros
—
disse
tranqüilamente.
—
Testemunhamos a surpreendente falta de escrúpu
los
de seus c
olegas em avariar os clones operários. E os humanos? Eles seriam
realmente capazes de ferir um ser humano?
—
Sim, temo que sim
—
disse Suzanne.
—
Estão desesperados.
—
É difícil crer que fariam isso depois de terem a oportunidade de
conhecer nossa cultura
—
disse Ponu.
—
Todos os visitantes, sem exce
ção,
se adaptaram a nossos costumes pacíficos.
—
Talvez eles também se adaptassem, se recebessem nova oportu
-
nidade
—
disse Suzanne.
—
Mas a essa altura são perigosos para qual
quer
pessoa que tente detê
-
los.
—
Não sei se posso crer nisso
—
disse outro ancião.
—
Vai total
-
mente contra nossas experiências anteriores, como mencionou Ponu.
Suzanne sentiu
-
se frustrada a ponto de ficar com raiva.
—
Posso provar o tipo de iniqüidade de que são capazes
—
redargüiu ela.
—
Deixaram provas mais do que suficientes em dois dos
chalés.
—
E que provas poderiam ser essas?
—
indagou Ala, serena, como
se estivesse debatendo um tema de jardinagem.
—
Já causaram as mortes
de dois seres humanos primários.
As palavras de Suzanne choca
ram claramente o Conselho. Ficaram
mudos de espanto.
—
Tem certeza disso?
—
perguntou Ala. Pela primeira vez, a voz
dela deixou transparecer um certo temor.
—
Vi os corpos há algumas horas
—
disse Suzanne.
—
Um levou
uma pancada na cabeça e a outra foi afo
gada.
—
Temo que essa notícia trágica vá mudar a forma de encararmos a
situação atual
—
informou Ala.
Espero que sim, pensou Suzanne.
—
Recomendo que vedemos a porta de Barsama imediatamente
—
disse Ponu.
Um murmúrio de concordância ressoou pela sala. Ala
ergueu o
comunicador de pulso e falou ao microfone rapida
mente, depois baixou o
braço.
—
Assim será feito
—
disse.
—
Quanto tempo vai levar para conectarmos a saída ao centro da
Terra?
—
indagou Ponu.
—
Algumas horas
—
respondeu Ala.
As portas eram imens
as, cerca de dois pavimentos de altura, e dois
metros e meio de espessura. Arak estava no comando da operação, com
sua unidade de pulso. Estava em contato direto com a Central de Informa
-
ções. Donald estava de pé atrás de Arak, com o cano da pistola encost
a
do
nas costas dele.
Perry, Richard e Michael estavam mais para um dos lados,
mantendo Sufa, Ismael e Mary sob vigilância. Michael ainda estava de
armadura grega, recusando
-
se terminantemente a tirá
-
la. Harvey estava
na cabine de passageiros do cargueiro
antigravitacional, que levava o
Oceanus.
Esta
va pronto para introduzir a embarcação na câmara de
descontaminação atrás das grandes portas.
—
Isso me parece familiar
—
disse Donald, quando enxergou o interior de aço inox.
—
Me faz lembrar a
sala onde recebe
mos aquele banho compulsório ao chegarmos a Interterra.
Um súbito tremor sacudiu o chão, fazendo todos procurarem man
-
ter o equilíbrio. Durou uns quatro ou cinco segundos.
—
Que diabo foi isso?
—
estranhou Perry. Harvey meteu a cabeça
para fora do cargueir
o.
—
É melhor nos apressarmos
—
gritou.
—
Eles devem estar abrindo
um acesso geotérmico.
—
O que isso faz?
—
berrou Donald.
—
Veda a porta de saída
—
gritou Harvey.
—
Vamos, Arak!
—
urrou Donald.
—
Vá tratando de agilizar o
processo!
—
Não posso fazer mais
do que já estou fazendo
—
disse Arak.
—
Além disso o Harvey está certo, não vai dar tempo. A porta vai ser
desativada.
—
Não vamos desistir agora que estamos aqui
—
avisou Donald.
—
Dentro de quinze minutos vamos atirar na Sufa se não tivermos saído
daqui
.
Outra vibração curta fez o solo tremer, significando que as mons
-
truosas portas de pressão estavam inteiramente abertas.
—
Agora é com vocês
—
disse Arak. Acenou para Harvey trazer o
cargueiro.
—
Quando a porta interna se abrir, entrem na câmara de
lança
mento e recuperação. Quando ela se inundar e as portas de lança
-
mento se abrirem, poderão subir pelo acesso.
—
Não é bem assim que a banda toca
—
disse Donald.
—
Você vem
com a gente, Arak. Você e a Sufa.
—
Não!
—
gritou Arak.
—
Não, por favor! Não podemos
. Já fiz o
que me pediram, e não podemos nos expor à atmosfera sem adaptação.
Vamos morrer!
—
Não é um pedido
—
disse Donald.
—
É uma ordem. Arak
começou a protestar. Donald reagiu com uma coronhada no rosto dele.
Arak gritou e levou as mãos ao rosto. Esco
rreu sangue entre seus dedos.
Donald empurrou
-
o para dentro da sala de aço inox.
O cargueiro reagiu aos comandos de Harvey, deslizando sem esfor
-
ço para a câmara de descontaminação.
—
Vamos, rapazes
—
gritou Donald, para Perry e Richard.
—
Tra
-
gam Sufa, mas
deixem os outros.
Assim que todos entraram, Donald puxou Arak para longe de Sufa,
que tentava consol
á
-
lo. O olho direito do homem estava roxo
-
escuro e
inchado.
—
Feche essa porta externa e abra a interna, Arak
—
ordenou
Donald.
Arak resmungou uma ordem no
comunicador de pulso, e as gran
-
des portas começaram a se fechar. Mais um tremor, indicando um se
-
gundo terremoto, ecoou pelo recinto; durou um pouco mais do que o
primeiro.
—
Vamos, Arak
—
alertou Donald.
—
Ande logo com isso!
—
Eu já lhe disse que não p
osso fazer mais
—
gritou Arak.
—
Richard
—
gritou Donald.
—
Traga uma das suas facas aqui e
corte um dedo da Sufa.
—
Não, espere!
—
disse Arak, aos soluços.
—
Vou fazer o que puder.
Arak disse alguma coisa no comunicador de pulso e as grandes por
tas
passa
ram a movimentar
-
se mais depressa.
—
Assim é bem melhor
—
disse Donald.
—
Muito melhor mesmo. A
sala inteira tremeu um momento devido ao impacto das portas que se
fechavam. Quase ao mesmo tempo, portas internas de igual ta
manho
começaram a se abrir. Além
delas se viu uma imensa caverna negra
semelhante àquela na qual os humanos secundários haviam aportado na
chegada a Interterra. Tinha o mesmo cheiro de maresia, sem dúvida por
ter estado repleta de água muito tempo antes.
Assim que a porta interna se abriu
totalmente, Harvey direcionou o
cargueiro para que colocasse o submersível no interior da câmara. Os
outros correram atrás dele, mas a lama os atrapalhou.
—
Porcaria
—
disse
Perry.
—
Eu já havia esquecido desse detalhe.
—
Feche essas portas internas!
—
ber
rou Donald para Arak quan
do
alcançaram o cargueiro. A voz dele ecoou. Ele entregou a arma a Perry.
—
Precisamos de luz. Vou entrar no submersível.
—
Tá legal
—
disse Perry. Deslizou o dedo indicador por sobre o
gatilho. Sentiu algo estranho. Jamais havia
empunhado uma arma, muito
menos disparado uma.
Quando Donald subia os degraus do submersível, ocorreu mais um
terremoto. Ele precisou se agarrar à escada para não ser jogado longe. A
distância, um som borbulhante anunciou um jorro de lava.
—
Merda!
—
excla
mou Richard.
—
Estamos numa porra de um
vulcão!
Assim que o último tremor cessou, Donald galgou o restante dos
degraus da escada e desapareceu dentro do
Oceanus.
Um momento de
pois
as luzes externas se acenderam. Já era tempo: as portas internas estavam
at
ingindo os umbrais. Depois que se fechassem, as únicas fon
tes
luminosas seriam o submersível e a fonte de lava à distância. Estava
crescendo a cada segundo.
A cabeça de Donald emergiu de dentro do submarino.
—
Vamos lá, todo mundo
—
disse.
—
Já liguei as
luzes e o sistema
de sustentação da vida. Estamos prontos para subir.
Arak e Sufa receberam ordens de subir no submersível, seguidos por
Harvey, Perry e Michael. Michael finalmente foi obrigado a retirar o
peitoral da armadura para descer pela escotilha. R
ichard foi o último a
entrar. Quando fechou a escotilha, viu um jorro de água começar a encher
a caverna. Também ouviu estalidos da água que colidia com a lava,
formando vapor.
Quando Richard desceu a escada, entrando no submarino, Donald
lhe disse que se
sentasse: não fazia a menor idéia do impacto que
sentiriam quando a caverna se enchesse. Alguns minutos depois,o
Oceanus
já estava oscilando como uma rolha. Todos se seguraram como puderam.
—
O que devemos fazer agora?
—
berrou Donald para Arak.
—
Nada
—
d
isse Arak.
—
A água levará o submarino para cima.
—
Então, conseguimos?
—
indagou Donald.
—
Acho que conseguiram
—
respondeu Arak, taciturno. Esten
dendo
a mão, agarrou a mão de Sufa.
Ala vagarosamente abaixou o braço. Estava com um dos ouvidos
cola
do ao
comunicador de pulso. Embora houvesse ficado visivelmente
perturbada ao saber dos assassinatos de Sart e Mura, sua expressão vol
-
tara a ficar imperturbável. Em uma voz calma, anunciou:
—
A saída de Barsama não se vedou a tempo. O submarino saiu da
comport
a e agora se encontra em mar aberto, seguindo para oeste.
—
E os reféns?
—
indagou Ponu.
—
Há apenas dois a bordo
—
disse Ala.
—
Arak e Sufa ainda estão
com os humanos secundários. Ismael e Mary ficaram, e estão bem.
—
Com licença
—
intrometeu
-
se Suzanne,
tentando atrair a aten
ção
de Ala. O que estava ouvindo lhe parecia impossível. Com todos os
poderes e a tecnologia que ela imaginava que os interterráqueos tinham à
sua disposição, seus ex
-
companheiros haviam aparentemen
te escapado!
—
Creio que agora dev
emos cuidar dessa gente de forma direta
—
disse Ala, continuando a ignorar Suzanne.
—
Há coisas demais em jogo.
—
Acho que devíamos mandá
-
los de volta e acabar com
esse
pro
-
blema
—
disse um dos anciãos à esquerda de Suzanne. Suzanne virou
-
se
para encarar a
mulher. Ao contrário da oradora do Conselho, esta anciã
parecia ter vinte e poucos anos.
—
Como assim, mandá
-
los de volta?
—
indagou Suzanne, incré
dula.
Parecia
-
lhe que, se havia uma solução simples, não admirava que os
anciãos parecessem particularmente
indiferentes aos acontecimentos.
—
Concordo que devamos mandá
-
los de volta
—
disse um ancião do lado
oposto da sala, sem ligar para Suzanne. Suzanne virou
-
se para olhar quem
falava, um menino de cinco ou seis anos.
—
Todos concordam?
—
indagou Ala.
Um murm
úrio de assentimento ergueu
-
se de todos os anciãos.
—
Então que seja
—
disse Ala.
—
Vamos enviar um clone em uma
pequena nave intergaláctica.
—
Diga
-
lhe para usar o mínimo de energia disponível na rede
—
disse Ponu, enquanto Ala falava brevemente no comuni
cador de pulso.
—
Que episódio mais infeliz
—
comentou um dos anciãos.
—
Uma
verdadeira tragédia.
—
Eles não vão sair feridos, vão?
—
indagou Suzanne. Recusava
-
se
a desistir, e, para sua surpresa, Ala finalmente respondeu a sua pergunta.
—
Está perguntando
sobre seus amigos?
—
perguntou Ala.
—
Sim!
—
respondeu Suzanne, envergonhada.
—
Não, não sofrerão nada
—
disse Ala.
—
Só ficarão muito sur
-
presos.
—
Acho que Arak e Sufa merecem ser homenageados em praça
pública por seu sacrifício
—
disse Ponu.
—
Com toda
s as honras
—
disse o menino. Ouviu
-
se outro mur
-
múrio geral de concordância.
—
Arak e Sufa não irão ser mandados de volta também?
—
inda
gou
Suzanne.
—
É claro
—
disse Ala.
—
Todos serão mandados de volta. Suzanne
olhou de um ancião para outro. Estava com
pletamente confusa.
—
Estou vendo luz pela vigia!
—
disse Perry, entusiasmado.
Eles já estavam navegando havia várias horas sem nada dizerem,
tendo as luzes dos instrumentos por única fonte de iluminação. Todos
estavam exaustos.
—
Eu também
—
disse Richar
d, do lado oposto do
Oceanus.
—
É
melhor haver luz
—
disse Donald.
—
De acordo com o ins
trumento,
estamos em uma profundidade de trinta metros, e lá em cima deve estar
amanhecendo.
—
Parece promissor
—
disse Perry.
—
Quanto tempo mais acha que
vamos navega
r?
Donald espiou o mostrador do sonar.
—
Andei examinando o perfil do fundo. Diria que no máximo em
duas horas estaremos avistando as ilhas da enseada ao largo de Boston.
—
Beleza!
—
gritaram Richard e Michael ao mesmo tempo. Cum
-
primentaram
-
se batendo nas
mãos abertas um do outro, onde estavam, de
um lado e outro do corredor estreito.
—
Quanto tempo a bateria ainda agüenta?
—
perguntou Perry.
—
Esse é o único problema
—
disse Donald.
—
Vai acabar em cima
da risca. Talvez tenhamos que nadar os últimos cem m
etros.
—
Por mim, tudo bem
—
disse Harvey.
—
Eu nadaria até Nova York,
se fosse preciso.
—
E a minha armadura?
—
indagou Michael, repentinamente
preocupado com o produto de suas pilhagens.
—
Problema seu, marujo
—
disse Donald.
—
Foi você quem in
sistiu
em
trazer tudo isso.
—
Vou lhe dar uma mãozinha se dividir comigo
—
ofereceu Richard.
—
Vá se danar
—
disse Michael.
—
Chega de briga!
—
disse Perry, enfaticamente. Viajaram em
silêncio durante vários minutos até Arak falar.
—
Vocês se libertaram de Interter
ra. Por que nos trouxeram, sa
-
bendo o que aconteceria conosco?
—
Por segurança
—
disse Donald.
—
Queria ter certeza de que não
haveria interferência do seu Conselho de Anciãos depois que saís
semos
pela porta de Barsama.
—
Vocês também podem servir de prov
a para
quem duvidar da nossa história
—
disse Richard.
Michael bufou.
—
Mas nós pereceremos
—
disse Arak.
—
Vamos levá
-
los para o Hospital Geral de Massachusetts
—
dis
se
Donald. Sorriu, zombeteiro.
—
Já ouvi dizer que lá eles adoram de
safios.
—
Seria em
vão
—
disse Arak, melancólico.
—
Sua medicina é
primitiva demais para nos salvar.
—
Bom, é o máximo que podemos fazer
—
disse Donald. Come
çou a
dizer outra coisa, mas parou. Seu sorriso desapareceu.
—
O que houve?
—
indagou Perry, espantado. Tenso como es
ta
va,
percebia de forma especialmente minuciosa as mudanças na fisionomia de
Donald.
—
Temos uma coisa esquisita acontecendo aqui
—
disse Donald. Ele
estendeu o braço para regular a tela do sonar.
—
O que é?
—
Veja só o sonar
—
disse Donald.
—
Parece que
alguém está nos
perseguindo, e a grande velocidade.
—
A que velocidade?
—
perguntou Perry.
—
Não pode ser
—
disse Donald, cada vez mais assustado.
—
Os
instrumentos me dizem que vem a mais de cem nós sob a água!
—
Virou
-
se bruscamente para encarar Arak.
—
Esse negócio é verdade mes
mo, e, se
for, que diabo é?
—
Provavelmente uma nave interplanetária interterráquea
—
dis
se
Arak, inclinando
-
se para examinar a tela.
—
Eles sabem que você ainda está a bordo, não?
—
inquiriu Donald.
—
Claro
—
disse Arak.
Donald
girou para olhar os controles de novo.
—
Não estou gostando nada disso
—
exclamou.
—
Vou emergir.
—
Acho que não dá
—
disse Perry.
—
Acabou de ficar tudo escuro lá fora.
Ela deve estar pairando por cima de nós.
O submarino começou a tremer devido a uma vib
ração de baixa
freqüência.
—
Arak, que diabo eles estão fazendo?
—
Não sei
—
disse Arak.
—
Talvez estejam para nos puxar para nos
prender com a trava pneumática deles.
—
Harvey, tem alguma idéia do que está acontecendo?
—
inda
gou
Donald.
—
Não faço a míni
ma idéia
—
disse Harvey. Como os outros, ele
estava se segurando nas laterais do assento para não cair dele. A vibra
ção
estava aumentando.
Donald passou a mão na Luger e apontou
-
a para Arak.
—
Fale com esses miseráveis e mande
-
os parar com o que quer que
seja que estão fazendo! Senão, você já era.
—
Olhe
—
gritou Perry, apontando para o mostrador do sonar de
varredura lateral.
—
Dá para ver uma imagem da nave. Parece um disco
de duas camadas.
—
Ah, não!
—
exclamou Arak quando viu a nova imagem.
—
Não é
uma
nave interplanetária! É um cruzador intergaláctico!
—
Que diferença isso faz?
—
berrou Donald. A vibração havia au
-
mentado a ponto de ficar realmente difícil permanecer sentado. O pesa
do
casco de aço do submersível rangia e gemia devido à fadiga sofrida.
—
Eles vão nos mandar de volta!
—
gritou Arak.
—
Sufa, eles vão
nos mandar de volta!
—
Só tinham essa alternativa
—
soluçou Sufa.
—
Só podiam fazer
isso.
A vibração parou subitamente, mas antes que qualquer um pudesse
reagir, houve uma tremenda aceleração
para cima. Todos os ocupantes
foram comprimidos nos assentos com tal força que, durante alguns ins
-
tantes, não puderam se mover nem respirar, e foram rapidamente leva
dos
à beira da inconsciência. A força inercial se fez acompanhar por uma
estranha luz qu
e envolveu o interior do submersível. No instante se
guinte,
tudo voltou ao normal, exceto por uma guinada, que sugeria a presença
de uma ondulação inexistente antes.
—
Meu Deus!
—
gemeu Donald.
—
Que diabo aconteceu?
—
Moveu
-
se, porém seus membros parecia
m pesados e morosos, como se o
ar houvesse se tornado viscoso. Esse efeito, porém, durou apenas até ele
flexionar as articulações diversas vezes. Depois se sentiu normal.
Instintivamente, seus olhos examinaram os instrumentos. Surpreendeu
-
se
ao constatar q
ue as leituras eram normais. Mas aí conferiu o nível da
bateria. Para seu desalento, o mostrador dizia que as baterias estavam
praticamente esgotadas, indicando que o submersível estava a ponto de
perder potência. Depois viu algo ainda mais assombroso: est
avam numa
profundidade de apenas quinze metros! Não admirava que as ondas
estivessem fazendo o submarino jogar.
Os olhos de Donald voltaram
-
se para a tela do sonar. A nave
interterráquea, ou seja lá o que fosse, havia desaparecido. No lugar dela,
Donald vi
a que o fundo do mar ascendia. Aparentemente, a terra firme
estava a apenas uns cinqüenta metros à frente.
Os outros ocupantes do submarino estavam se recobrando depois
do bizarro ord
álio sofrido.
—
Será que é isso que os astronautas sentem na hora do lanç
amen
-
to?
—
gemeu Perry.
—
Se for, não estou nem um pouco a fim de ir ao espaço
—
disse
Richard.
—
É parecido
—
disse Arak.
—
Mas não igual. Naturalmente, a
sofisticação de vocês não chega ao ponto de poderem perceber a dife
rença.
—
Cale a boca, Arak
—
dis
se Donald.
—
Já não te agüento mais.
—
Não agüenta mesmo
—
disse Arak.
—
E merece seu destino.
—
Preparar para emergir
—
ordenou Donald.
—
Estamos ficando
sem bateria.
—
Ah, não!
—
exclamou Perry.
—
Tudo vai dar certo
—
garantiu
Donald a todos enquanto usav
a gás comprimido para expulsar a água do
lastro.
—
A terra firme está logo aí adiante.
A oscilação do submarino aumentou consideravelmente enquanto
eles subiam e emergiam. Enquanto ainda havia um pouco de energia,
Donald tentou freneticamente conseguir um
fixo de LORAN. Ao ver que
nada conseguia, tentou o Geosat. Também não conseguiu nada.
—
Não estou entendendo
—
disse. Coçou a cabeça. Não fazia sen
-
tido.
—
Alguém, suba pela torreta, abra a escotilha e veja se reconhece
onde estamos. Devíamos estar em algu
m ponto da enseada de Boston.
—
Deixe que eu vou
—
disse Michael.
—
Essa área aqui eu conhe
ço
como a palma da mão.
—
Cuidado com as ondas
—
avisou Donald.
—
Como se eu não tivesse passado metade da vida no mar
—
zom
-
bou Michael.
Enquanto Michael subia a e
scada até a escotilha, Donald desligou
to
dos os instrumentos não
-
essenciais para preservar a pouca energia que
as baterias ainda tinham. Mas foi em vão. As baterias já estavam
esgotadas, e um momento depois as luzes se apagaram, e eles pararam de
avançar.
Ouviram Michael abrir a escotilha lá em cima, na torreta. A fraca luz
matinal penetrou no submersível. Eles sentiram a maresia e ouvi
ram o
piado áspero porém bem
-
vindo das gaivotas.
—
Isso é música aos meus ouvidos
—
disse Richard.
—
Estamos no litoral d
e uma das ilhas da enseada
—
gritou Michael
lá de cima.
—
Não sei qual.
Naquele momento, o submersível colidiu com o fundo arenoso,
dando um solavanco, e começou a virar de lado, na arrebentação.
—
Precisamos sair daqui!
—
gritou Donald.
—
Isso aqui vai a
pi
que
já, já.
Enquanto os humanos secundários deixavam desajeitadamente os
assentos, Arak e Sufa ergueram as mãos e pressionaram as palmas uma
contra a outra, com amor.
—
Por Interterra
—
disse Arak.
—
Por Interterra
—
repetiu Sufa.
—
Venham, vocês dois
—
berrou Donald para os dois humanos
primários.
—
Esse submarino vai emborcar, e quando isso acontecer, vai
se encher de água.
Arak e Sufa o ignoraram, e continuaram a pressionar as palmas,
sonhadores.
—
Façam como quiserem
—
disse Donald.
—
Alguém, traga mi
nha armadura
—
gritou Michael, lá da es
cotilha.
Ouviu
-
se uma agitação danada na escada, principalmente depois
que o submarino adernou e uma torrente de água começou a escachoar
pela escotilha. Lá na parte de cima todos, exceto Michael, pularam na
arrebent
ação e nadaram para a praia próxima. Michael tentou voltar pela
escada, mas mudou de idéia quando o submarino se virou totalmente. Foi
com certa dificuldade que ele conseguiu nadar para longe da em
barcação.
Harvey precisou receber ajuda na arrebentação fo
rte, mas todos, a
não ser os interterráqueos, conseguiram chegar até a praia íngreme, onde
se jogaram na areia morna. Michael foi o último a se livrar do mar que o
puxava. Richard o sacaneou impiedosamente por ter deixado para tr
ás
a
armadura grega, agora
no fundo do mar.
O tempo estava soberbo. Era uma manhã de verão, tépida e nebu
-
losa. A luz morna do sol cintilava pela água, dando uma pista de qual
seria sua força ao meio
-
dia. Depois do esforço na arrebentação, o grupo
contentou
-
se em descansar, respirar
o ar fresco, ver as gaivotas planan
do,
e permitir que o sol secasse as finas vestimentas de cetim que ade
riam a
seus corpos.
—
Até que sinto pena do Arak e da Sufa
—
disse Perry, tristonho. O
Oceanus
havia adernado lateralmente, e estava cheio de água.
Já esta
va
mais longe da praia do que quando eles haviam desembarcado. As ondas
estavam arrastando o submarino de volta para o mar.
—
Eu não
—
disse
Richard.
—
Por mim, já foram tarde.
—
Mas é uma pena não termos podido salvar o submarino
—
co
-
mentou Donald
.
—
Não vai durar muito assim. Provavelmente vai aca
bar
no fundo do mar, fora da plataforma continental. Porcaria! Eu esperava
poder levá
-
lo até a enseada de Boston.
Logo depois, uma série particularmente grande de ondas surgiu.
Depois que arrebentaram, e
a espuma se dispersou, já não conseguiram
mais avistar o submersível.
—
Bom, lá se foi ele
—
disse Perry.
—
Depois que contarmos nossa história tenho certeza de que vai
haver um bocado de pressão no sentido de resgatá
-
lo
—
disse Michael.
—
Provavelmente v
ai acabar no Smithsonian.
—
Onde estamos?
—
indagou Harvey. Apoiou
-
se em um cotovelo e
olhou para a ilha baixa e fustigada pelo vento. Parecia ser apenas areia,
conchas e capim queimado pelo sol.
—
Nós lhe dissemos
—
disse Donald.
—
É uma das várias ilhas
da
enseada de Boston.
—
Como é que a gente vai chegar à cidade?
—
indagou Perry.
—
Daqui a algumas horas vão começar a aparecer vários iates
—
disse Michael.
—
Depois que as pessoas ouvirem nossa história, vão brigar
pela honra de nos dar uma carona.
—
Est
ou ansioso para saborear um bom jantar onde saiba o que
estou comendo
—
disse Perry.
—
E por um telefone! Quero ligar para a
minha mulher e para minhas filhas. Depois quero dormir mais ou menos
umas quarenta e oito horas.
—
Faço minhas as suas palavras
—
d
isse Donald.
—
Vamos! Ca
-
minhemos na direção do vento. Até a distância olhar para a velha Boston
vai me fazer bem.
—
Estou com você e não abro
—
concordou Perry.
O grupo se ergueu, espreguiçou
-
se e começou a caminhar ao longo
da praia na areia socada da be
ira
-
mar. Apesar do cansaço, começaram a
cantar. Até Donald tomou parte na diversão.Ao contornarem um pontal
que formava a lateral de uma peque
na baía, o grupo parou e ficou mudo.
Não mais de sessenta metros adiante a sotavento deles se encontrava um
velho
de cabelos grisalhos que catava mariscos nas sombras. Havia
abicado na praia um esquife de tamanho moderado. Sua vela triangular
drapejava na brisa cons
tante.
—
Será esta uma feliz coincidência?
—
disse Perry.
—
Até já posso sentir o gosto do café e a te
xtura daqueles lençóis
limpos
—
disse Michael.
—
Vamos, façamos desse senhor um herói.
Provavelmente a CNN virá entrevistá
-
lo.
Com um brado de alegria, o grupo desatou a correr. O pescador se
apavorou ao ver aquele bando de homens berrando e correndo na di
re
ção
dele através das dunas. Disparando para o barco, ele jogou dentro dele o
balde e tentou fugir.
Richard foi o primeiro a chegar, e entrou na água até a cintura para
agarrar no gio do barco e detê
-
lo.
—
Ei, meu velho, para que a pressa?
—
indagou Rich
ard.
O pescador reagiu desfraldando a vela. Com um remo tentou afas
tar
Richard. Richard agarrou o remo, arrancou
-
o das m
ãos do pescador e
jogou
-
o para um lado. Os outros correram para a água e se agarraram ao
barco.
—
Não é um sujeito lá muito amistoso
—
comentou Richard. O
pescador estava de pé a meia nau, olhando furioso para o grupo.
Harvey pegou o remo e trouxe
-
o de volta.
—
Não admira
—
disse Perry. Olhou para si e depois para os ou
-
tros.
—
Olha só como estamos! O que
você
pensaria se quatro caras
ves
tidos com roupas de baixo parecendo femininas aparecessem correndo
do seio da névoa matinal?
O grupo inteiro irrompeu em gargalhadas levianas alimentadas pela
exaustão e pela tensão. Levaram vários minutos para readquirir um apa
-
rente controle.
—
Desculpe
-
n
os, meu velho
—
disse Perry entre ataques de
riso.
—
Perdoe nossa aparência e nosso comportamento. Mas tivemos uma
noite dos infernos.
—
Uma senhora carraspana desconfio
—
disse o pescador.
A resposta do pescador causou
-
lhes novo ataque de riso. Mas aca
-
ba
ram se recuperando o suficiente para convencer o homem de que n
ão
eram perigosos e que ele seria generosamente recompensado se lhes desse
uma carona até Boston. Depois de resolvido isso, os homens entraram no
barco.
Foi uma viagem agradável, principalmente
em comparação com as
horas tensas no submarino apertado e claustrofóbico. Entre o sol cálido, o
suave murmúrio do vento na vela e o suave jogo do barco, todos, menos o
pescador, caíram no sono antes que o barco contor
nasse a ilha.
Com a brisa constante,
o pescador habilmente levou o barco até o
porto em pouco tempo. Sem saber onde os passageiros queriam desem
-
barcar, sacudiu o mais próximo pelo ombro. Perry reagiu sonolento ao
cutucão, e por um momento teve dificuldade de abrir os olhos. Quan
do
acordou,
o pescador fez
-
lhe a pergunta necessária.
—
Acho que não faz diferença
—
disse Perry. Com um esforço
supremo, ele se sentou. A boca estava seca, como se estivesse cheia de
algodão. Depois esfregou os olhos, piscou outra vez e olhou em torno.
—
Onde diabos
nós viemos parar?
—
inquiriu. Ficou confuso.
—
Pensei que vínhamos para Boston.
—
Aqui é Boston
—
respondeu o pescador. Apontou para a direi
-
ta.
—
Ali é o Long Wharf.
Perry tornou a esfregar os olhos. Por um momento achou que esta
va
tendo alucinações. Est
ava olhando um cenário de porto repleto de
redondos, escunas e carroças tiradas a cavalos enfileirados ao longo de um
cais de granito. Os edifícios mais altos eram de madeira e com ape
nas
quatro ou cinco andares.Lutando para se livrar de uma onda de descr
ença
que beirava o ter
ror, Perry sacudiu Donald, para acordá
-
lo, em pânico,
gritando que havia alguma coisa horrivelmente errada. A comoção
também acordou os outros. Quando tomaram conhecimento daquela
visão, ficaram igual
mente aturdidos.
Perry virou
-
se
para o pescador, que estava baixando a vela.
—
Em que ano estamos?
—
indagou, hesitante.
—
Ano da graça de Nosso Senhor de mil setecentos e noventa e
um
—
informou o pescador.
A boca de Perry se escancarou. Olhou para os redondos.
—
Meu Deus do céu! Eles n
os mandaram de volta no tempo!
—
Ah, qual é
—
protestou Richard.
—
Isso aqui só pode ser algu
ma
piada.
—
Talvez seja algum cenário de filme
—
sugeriu Michael.
—
Acho que não
—
disse Donald, devagar.
—
Foi isso que o Arak
quis dizer quando afirmou que eles
iam nos mandar de volta. Quis di
zer
de volta no tempo, não de volta a Interterra.
—
As naves intergalácticas devem empregar a tecnologia do tem
-
po
—
disse Perry.
—
Acho que é a única forma de viajar para outra galáxia.
—
Meu Deus
—
murmurou Donald.
—
Est
amos perdidos. Nin
guém
vai crer na nossa história sobre Interterra, e não existe ainda a tecnologia
que nos permita prová
-
la ou sair daqui.
Perry concordou enquanto olhava para tudo sem nada ver.
—
As pessoas vão pensar que somos loucos.
—
E o submersível
?
—
gritou Richard.
—
Vamos voltar!
—
E fazer o quê?
—
indagou Donald.
—
Jamais tornaremos a achá
-
lo,
muito menos resgatá
-
lo.
—
Não vou mais ver minha família, afinal
—
lamentou
-
se Perry.
—
Trocamos o paraíso pela América colonial? Não acredito nisso.
—
Sa
bem, finalmente entendi de onde sois, marujos de água doce
—
disse o pescador, enquanto preparava as velas.
—
É mesmo?
—
disse Perry,
desinteressado.
—
Não resta a menor dúvida
—
continuou o pescador.
—
Deveis ser
daquela escola que fica lá pras bandas do r
io Charles. Vós, lá de Harvard,
viveis fazendo papel de bobos.
***
G
G
L
L
O
O
S
S
S
S
Á
Á
R
R
I
I
O
O
astenosfera:
zona no interior da Terra que vai de uma profundidade de 50
a 200km; é a parte superior do
manto
(ver adiante), situada diretamente
abaixo da
litosfera
(ver adiante
). Segundo as teorias, esta é uma área onde
as rochas se encontram derretidas e podem se deslocar num fluxo plástico.
basalto:
rocha escura, quase negra, que se forma a partir de silicatos
minerais derretidos, resfriados e solidificados. Forma uma grande
parte
da crosta oce
ânica.
batipelágico:
adjetivo referente a profundidades oceânicas moderadas
(600 a 3.600 metros).
caldeirão:
cratera formada pelo colapso do pico de um vulcão.
circadiano:
adjetivo referente a um ciclo de 24 horas.
descontinuidade de Moh
orovicic:
área no interior da Terra onde há uma
grande mudança na transmissão de ondas sísmicas. Fica entre 5 e 10km
abaixo do fundo do oceano, e cerca de 35km abaixo dos continentes.
dinoflagelados:
tipo de
plâncton
(ver adiante), que inclui muitas
varied
ades luminescentes.
Os
dinoflagelados também causam a maré
vermelha.
dique:
formação rochosa tabular que se origina de rochas derretidas
forçadas através de uma fenda ou fissura e depois solidificadas.
ectogênese:
desenvolvimento embrionário fora do útero.
epipelágico:
adjetivo referente à parte do oceano logo abaixo da superfície,
na qual penetra luz suficiente para que os vegetais façam a fotossíntese.
escala Richter:
método de expressar a magnitude dos terremotos.
foraminíferos:
minúsculos protozoários m
arinhos cujas conchas calcárias
for
mam giz, ou cré, e os calcários mais freqüentemente encontrados.
fossa, falha tectônica:
bloco de falha que caiu abaixo da altura da rocha
que o circunda.
gabro:
rocha escura, às vezes verde, que forma uma parte signific
ativa da
por
ção inferior da crosta oceânica.
gameta: célula germinativa masculina ou feminina.
guyot, ou mesa submarina: monte submarino (ver abaixo) com a parte
superior achatada.
lama de globigerina: depósito mole, cor-de-creme, que recobre uma boa
parte do fundo do oceano em águas profundas, e se compõe basicamente
dos minúsculos esqueletos de foraminíferos (ver acima).
litosfera: crosta rígida da Terra; inclui o fundo do oceano, bem como os
continentes.
manto: camada interna da Terra, entre a litosfera (ver acima) e o núcleo
central.
microssomo: qualquer das várias diminutas estruturas subcelulares.
monte submarino: montanha submarina em geral formada por atividade
vulcânica.
Pangéia: continente único que começou a se romper na Era Mesozóica em
conseqüência da ação da tectônica de placas que formou os atuais conti-
nentes.
peridotito: rocha escura que fica nas profundezas do manto.
plâncton: plantas (fitoplâncton) e animais (zooplâncton) microscópicos,
existentes em quantidade tão prodigiosa que formam a base da cadeia
alimentar oceânica.
radar de penetração no solo (Ground-Penetrating Radar ou GPR):
técnica de levantamento geológico que não exige perfuração.
termoclínio: mudança de temperatura relativamente estável e abrupta em
um meio aquático.
zigoto: célula formada pela união de dois gametas (ver acima), que tem
potencial para formar um novo indivíduo.
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