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fantasmas
alfredo jose dias



FANTASMAS
Que força seria capaz de fazer desaparecer quase toda a
população de uma cidade? O que poderia atacar tão sorrateiramente e
deixar tĂŁo desfigurados os corpos daqueles que foram encontrados?
O que seria capaz de secar o cérebro de um homem e sugar-lhe
todo o sangue em apenas doze segundos? Que esperança os
sobreviventes poderiam nutrir?
Snowfield, uma pequena estação de esqui nas Montanhas
Rochosas, era uma cidadezinha aprazĂ­vel. Mas isso fora no passado;
hoje, Snowfield Ă© um pesadelo, um retrato do Inferno!
Hoje, mais de duzentos dos quinhentos moradores da pequena
cidade desapareceram sem deixar vestĂ­gios, e pelo menos outros cento e
cinqĂĽenta

morreram

—

repentinamente,

de

um

mal

terrĂ­vel

e

misterioso... Algo de muito estranho e apavorante estava acontecendo
em Snowfield, e o pior ainda estava por vir.
Fantasmas é também povoado de personagens delineados com
tanta vividez que nĂłs leitores nĂŁo podemos deixar de nos envolver e nos
preocupar com seu destino: a Dra. Jennifer Paige, de trinta e dois anos,
que passou grande parte de sua vida se atormentando por um erro que
cometera quando tinha apenas dezenove. Agora, ali em Snowfield,
justamente quando está aprendendo a esquecer o passado, justamente
quando está começando a amar a vida, se vê envolvida numa terrível
luta pela sobrevivĂŞncia; Lisa Paige, quatorze anos, idolatra a irmĂŁ mais
velha, mas descobre que sua sobrevivência dependerá exclusivamente
de sua própria força e coragem interior; o xerife Bryce Hammond, que
perdera a família em um trágico acidente um ano antes, quando
encontra Jenny Paige em Snowfield encontra também uma nova
esperança, uma nova chance de reconstruir sua vida... se conseguir
sobreviver...
Fantasmas Ă© uma emocionante histĂłria de suspense e terror

armada por um verdadeiro mestre, criador inigualável de tramas cujo
ritmo mescla perseguição e terror com suspense e expectativa,
arrepiando o leitor por sua assustadora plausibilidade.





_____________________________________________________________________


Este livro Ă© dedicado
àquela que está sempre presente,
Ă quela que sempre se importa,
Ă quela que sempre compreende,
Ă quela que nĂŁo tem igual:

Gerda,

minha mulher e minha melhor amiga.

PRIMEIRA PARTE

V ĂŤT IM A S
Sobrevieram-me o medo e o tremor.
— Livro de Jó, 4:14

O espĂ­rito humano civilizado ... nĂŁo
consegue se livrar de uma sensação do
fantástico.

— Dr. Fausto, Thomas Mann

1

A cadeia municipal
O grito foi longĂ­nquo e breve. Um grito de mulher.
O delegado Paul Henderson ergueu os olhos do seu exemplar de
Time. Inclinou a cabeça, ouvido atento.
Os grãos de poeira vagavam preguiçosos num raio de sol
brilhante que penetrava por uma das janelas com mainel. No relĂłgio da
parede,

o

ponteiro

dos

minutos,

fino

e

vermelho,

movia-se

silenciosamente pelo mostrador.
O Ăşnico ruĂ­do era o ranger da cadeira de escritĂłrio de
Henderson, quando ele mudou de posição.
Através das grandes janelas da frente, ele podia enxergar um
trecho da rua principal de Snowfield, a Skyline Road, que estava
perfeitamente calma e serena ao sol dourado da tarde. Apenas as
árvores se moviam, as folhas adejando ao vento suave.
Depois de escutar atentamente por vários segundos, Henderson
ficou sem ter certeza se realmente ouvira alguma coisa.
Imaginação, falou consigo mesmo. Apenas a racionalização de
um desejo.
Quase estava preferindo que alguém tivesse gritado. Estava se
sentindo inquieto.
Durante a baixa temporada, de abril a setembro, ele era o Ăşnico
auxiliar de xerife em tempo integral designado para a subdelegacia de
Snowfield, e o trabalho era tedioso. No inverno, quando a cidade recebia
vários milhares de esquiadores, havia bêbados para atender, brigas
para apartar e roubos para investigar nos quartos das estalagens,
pousadas e motéis onde os esquiadores se hospedavam. Mas agora, no
começo de setembro, somente estavam funcionando a Candleglow Inn,
um hotel e dois pequenos motéis; os nativos eram tranqüilos, e

Henderson — que tinha apenas 24 anos e estava concluindo o seu
primeiro ano como delegado — sentia-se entediado.
Ele soltou um suspiro, voltou o olhar para a revista sobre a
mesa... e ouviu um outro grito. Como anteriormente, era longĂ­nquo e
breve, mas desta feita parecia voz de homem. NĂŁo era um mero gritinho
excitado ou mesmo um grito de alarme; era o som do terror.
Franzindo o cenho, Henderson se levantou e se dirigiu para a
porta, ajeitando o revĂłlver no coldre sobre o quadril direito. Passou pelo
portão de vaivém na grade que separava a área pública da cadeia
propriamente dita e já estava a meio caminho da porta, quando
percebeu um movimento na sala Ă s suas costas.
Isso era impossĂ­vel. Estivera sozinho na cadeia o dia todo e
desde o começo da semana passada não havia prisioneiro algum nas
três celas de detenção. A porta dos fundos estava trancada e era o único
outro meio de entrada na prisĂŁo.
Quando se virou, contudo, descobriu que nĂŁo estava mais
sozinho. E de repente nĂŁo estava nem mais um pouquinho entediado.

2

Voltando para casa

Durante o crepúsculo daquele domingo no começo de setembro,
as montanhas estavam pintadas somente de duas cores: verde e azul.
As árvores — pinheiros, abetos, espruces — pareciam ter sido feitas do
mesmo feltro que cobria as mesas de bilhar. Havia sombras frescas e
azuis por toda a parte, ficando maiores e mais profundas e mais
escuras a cada minuto.
Ao volante do seu Pontiac Trans Am, Jennifer Paige sorriu,

animada pela beleza das montanhas e pela sensação de volta ao lar. Ali
era o seu lugar.
Saiu da estrada estadual de trĂŞs faixas e entrou na estrada
municipal asfaltada de duas faixas que serpenteava e subia os seis
quilômetros e meio que levavam a Snowfield, através do desfiladeiro.
Sentada ao seu lado, a sua irmĂŁ de quatorze anos, Lisa, falou:
— Adoro isto aqui.
— Eu também.
— Quando vamos ter um pouco de neve?
— Dentro de um mês, talvez antes.
As árvores se amontoavam bem junto à estrada. O Trans Am
entrou num tĂşnel formado pelos ramos pendentes e Jenny ligou os
farĂłis.
— Nunca vi neve, a não ser em fotografia — falou Lisa.
— Na primavera que vem já estará farta dela.
— Nunca. Eu não. Sempre sonhei em viver num lugar com neve,
igual a vocĂŞ.
Jenny lançou um olhar à mocinha. Mesmo para irmãs,
pareciam-se muitĂ­ssimo: os mesmos olhos verdes, o mesmo cabelo
avermelhado, as mesmas maçãs do rosto altas.
— Você me ensina a esquiar? — pediu Lisa.
—

Bem, querida, quando os esquiadores chegarem haverá os

costumeiros ossos quebrados, tornozelos torcidos, costas estropiadas,
ligamentos estirados... Eu vou estar bem ocupada.
— Ah — exclamou Lisa, sem conseguir disfarçar a decepção.
— Além disso, por que aprender comigo, quando pode tomar
aulas com um profissional de verdade?
— Um profissional? — falou Lisa, animando-se um pouco.
— Claro. Hank Sanderson lhe dará aulas, se eu pedir.
— Quem é ele?
— É o dono da Pine Knoll Lodge e ensina a esquiar, mas tem
somente um punhado de alunos privilegiados.
— É seu namorado?

Jenny sorriu, lembrando-se de como era ter quatorze anos.
Nesta idade, a maioria das garotas preocupava-se obsessivamente com
garotos, garotos acima de todo o resto.
— Não, Hank não é meu namorado. Eu o conheço há dois anos,
desde que vim para Snowfield, mas somos apenas bons amigos.
Passaram por um cartaz verde com letras brancas:

SNOWFIELD

—

5KM.
— Aposto que haverá muitos garotos legais da minha idade.
— Snowfield não é uma cidade muito grande — advertiu Jenny.
— Mas suponho que dê para encontrar um ou dois garotos bem legais.
— Ah, mas durante a temporada de esqui vai haver dúzias!
— Calma, garota! Você não vai sair com gente de fora — pelo
menos durante alguns anos.
— E por que não?
— Por que eu estou dizendo que não.
— Mas por que não?
— Antes de sair com um rapaz, você tem que saber de onde ele
vem, como ele Ă©, como Ă© a famĂ­lia dele.
— Ah, mas eu sou fantástica para julgar caráter — falou Lisa.
— Minhas primeiras impressões são totalmente confiáveis. Não precisa
se preocupar comigo. NĂŁo vou me envolver com um assassino da
machadinha ou um estuprador maluco.
— Tenho certeza disso — disse Jenny, reduzindo a marcha do
Trans Am quando a estrada fez uma curva fechada —, porque vai sair
apenas com a rapaziada do local.
Lisa soltou um suspiro e balançou a cabeça numa exibição
teatral de frustração.
Caso ainda nĂŁo tenha reparado, Jenny, atravessei a puberdade
enquanto vocĂŞ estava fora.
Ah, isso não escapou à minha atenção.
Fizeram a curva. Havia outra reta Ă  frente, e Jenny acelerou de
novo.
Lisa falou:

— Tenho até peitos.
— Também reparei nisso — retrucou Jenny, recusando-se a ficar
chocada com a maneira desabusada da garota.
— Não sou mais criança.
— Mas também não é uma adulta. É uma adolescente.
— Sou uma moça.
— Digamos, uma mocinha.
— Pombas...
—

Escute, sou sua guardiã legal. Sou responsável por você.

Além disso, sou sua irmã e a amo. Vou fazer o que acho — o que sei —
que é o melhor para você. — Lisa soltou um suspiro ruidoso. — Porque
a amo — enfatizou Jenny.
De cara feia, Lisa falou:
— Você vai ser tão severa quanto a mamãe. Jenny assentiu.
— Talvez mais ainda.
— Pombas...
Jenny lançou um olhar para Lisa. A garota olhava pela janela do
banco direito do carro, o rosto apenas parcialmente visĂ­vel, mas nĂŁo
parecia estar zangada. Não estava fazendo bico. Na verdade, os lábios
pareciam estar suavemente curvados num vago sorriso.
Quer se dĂŞem conta, quer nĂŁo, pensou Jenny, todos esses jovens
querem ter regras a seguir. A disciplina Ă© uma expressĂŁo de
preocupação e amor. O negócio é não forçar demais a barra.
Olhando de novo para a estrada, flexionando as mĂŁos no
volante, Jenny falou:
— Vou lhe dizer o que vou deixar que você faça.
— O quê?
— Vou deixar que amarre os seus sapatos. Lisa piscou.
— Hã?
— E vou deixar que vá ao banheiro quando tiver vontade.
Sem conseguir mais manter a pose de dignidade ofendida, Lisa
soltou uma risadinha.
— Vai me deixar comer quando estiver com fome?

— Ora, claro. — Jenny abriu um sorriso. Von deixar até mesmo
que arrume a sua cama de manhĂŁ cedo.
— Puxa, mas quanta permissividade!
Naquele momento, a menina parecia ainda mais jovem do que
era. De tĂŞnis, jeans e blusa em estilo caubĂłi, sem conseguir abafar as
risadinhas, Lisa parecia doce, meiga e terrivelmente vulnerável.
— Amigas? — perguntou Jenny.
— Amigas.
Jenny ficou surpresa e satisfeita com a facilidade com que ela e
Lisa estavam se relacionando durante a longa viagem para o norte,
desde Newport Beach. Afinal de contas, a despeito

dos laços

sangĂĽĂ­neos, eram virtualmente estranhas. Aos 31 anos, Jenny era 17
anos mais velha do que Lisa. SaĂ­ra de casa antes do segundo
aniversário de Lisa, seis meses antes da morte do pai de ambas.
Durante os anos de estudo na faculdade de medicina e a sua residĂŞncia
no Columbia Presbyterian Hospital de Nova York, Jenny estivera
ocupada demais e longe de casa demais para visitar a mĂŁe e Lisa com
regularidade. EntĂŁo, depois de completar a residĂŞncia, voltara para a
CalifĂłrnia a fim de abrir um consultĂłrio no Snowfield. Nos dois Ăşltimos
anos, trabalhara exaustivamente para estabelecer uma clínica médica
viável que servisse a Snowfield e a mais algumas cidadezinhas nas
montanhas. Recentemente a mĂŁe delas morrera e sĂł entĂŁo Jenny
sentira nĂŁo ter tido um relacionamento mais chegado com Lisa. Talvez
pudessem começar a compensar todos os anos perdidos — agora que só
restavam elas duas.
A estrada municipal continuava a subir regularmente, e o
crepĂşsculo ficou temporariamente mais claro quando o Trans Am saiu
das sombras do vale da montanha.
—

Meus ouvidos parece que estão cheios de algodão — falou

Lisa, bocejando para igualar a pressĂŁo.
Dobraram uma curva fechada e Jenny diminuiu a marcha do
carro. À sua frente via-se uma reta longa e ascendente, e a estrada
municipal se transformou na Skyline Road, a rua principal de

Snowfield.
Lisa espiou atentamente pelo pára-brisa manchado, examinando
a cidade com um deleite evidente.
— Não é nada do que eu imaginava!
— E o que estava esperando?
—

Ah, sabe como Ă©, um bocado de moteizinhos feios com

letreiros luminosos, postos de gasolina demais, coisas desse tipo. Mas
este lugar Ă© legal demais!
— Temos normas de construção rígidas — explicou Jenny. — O
gás neon não é aceitável. Não se permitem cartazes de plástico. Nada de
coros extravagantes, nada de cafés com formato de cafeteiras.
—

É um barato — exclamou Lisa, boquiaberta, enquanto

rodavam lentamente cidade adentro.
A propaganda externa se resumia a cartazes rĂşsticos de madeira
com
O nome de cada loja e o ramo de negĂłcios a que se destinava. A
arquitetura era um tanto eclética — norueguesa, suíça, bávara, francoalpina, ítalo alpina —, mas todos os prédios eram projetados num ou
noutro estilo montanhĂŞs, fazendo uso liberal de pedras, ardĂłsia, tijolos,
madeiras, vigas aparentes, janelas com mainel, vitrais e caixilhos de
chumbo. As residĂŞncias particulares ao longo da extremidade superior
da Skyline Road também eram enfeitadas com jardineiras cheias de
flores nos peitoris das janelas, sacadas e varandas com grades
rebuscadas.
— É bonito de verdade — comentou Lisa, enquanto subiam a
longa ladeira que levava ao teleférico na extremidade alta da cidade.
Mas Ă© sempre assim tĂŁo quieto?
Ali, não — falou Jenny. — Durante o inverno o local ganha vida
de verdade e...
Deixou a frase por terminar ao se dar conta de que a cidade nĂŁo
estava meramente quieta, Parecia morta.
Em qualquer outra tarde agradável de domingo em setembro,
pelo menos alguns residentes estariam passeando pelas calçadas de

pedras e sentados nas varandas e sacadas que davam para a Skyline
Road. O inverno estava chegando e esses Ăşltimos dias de tempo bom
eram preciosos. Mas hoje, com a tarde se transformando em noitinha,
as calçadas, varandas e sacadas estavam desertas. Ate mesmo nas lojas
e casas em que havia luzes acesas, nĂŁo se via sinal de vida. O Trans Am
de Jenny era o Ăşnico cano que se movia na rua comprida.
Ela freou num sinal de "pare" no primeiro cruzamento. A St.
Moritz Way cruzava a Skyline Road, estendendo-se por trĂŞs quadras a
leste e quatro a oeste. Ela olhou nas duas direções, sem enxergar
ninguém.
A quadra seguinte da Skyline Road também estava deserta. E
mais a quadra depois dela.
— Estranho — comentou Jenny.
— Deve estar passando um programa formidável na TV — falou
Lisa.
— Acho que sim.
Passaram pelo Restaurante Mountainview, na esquina de Vail
Lane com Skyline. As luzes estavam acesas e a maior parte do interior
era visível através das grandes janelas de canto, mas não havia
ninguém à vista. Mountainview era um ponto de encontro popular para
os nativos, tanto no inverno quanto na baixa temporada, e era incomum
que o restaurante estivesse completamente deserto a esta hora. NĂŁo
havia nem garçonetes lá dentro.
Lisa já parecia ter perdido o interesse pela estranha quietude,
embora tivesse sido a primeira a reparar nela. Estava de novo fitando
boquiaberta e encantada a arquitetura pitoresca.
Mas Jenny nĂŁo conseguia acreditar que todo mundo estivesse
grudado ao aparelho de TV, como Lisa sugerira. Cenho franzido,
perplexa, ela olhava para cada janela enquanto continuava a subir a
ladeira. NĂŁo enxergou um Ăşnico indĂ­cio de vida.
Snowfield tinha seis quadras de comprimento de alto a baixo de
sua rua principal inclinada, e a casa de Jenny ficava no meio da Ăşltima
quadra, no lado oeste da rua, próximo ao sopé do teleférico. Era um

chalé de pedra e madeira, de dois andares, com três águas-furtadas no
lado do sĂłtĂŁo que dava para a rua. O telhado de ardĂłsia multianguloso
era uma mistura de cinza, azul e preto. A casa ficava afastada uns seis
metros da calçada de pedras, por trás de uma cerca viva que chegava à
cintura. Num dos cantos da varanda via-se um cartaz que dizia
JENNIFER

PAIGE,

DRA.

juntamente com o horário de funcionamento do

consultĂłrio.
Jenny estacionou o Trans Am na entrada curta para carros.
— Que barato de casa! — exclamou Lisa.
Era a primeira casa que Jenny possuĂ­a; ela a amava e sentia
orgulho dela. Bastava ver a casa para sentir-se relaxada e contente, e
por um momento ela se esqueceu da estranha quietude que envolvia
Snowfield.
— ..... Bem, é um pouco pequena, especialmente porque metade
do andar de baixo está ocupado pelo meu consultório e sala de espera.
E Ă© mais do banco do que minha. Mas tem personalidade, nĂŁo tem?
— De montão — concordou Lisa.
Saltaram do carro e Jenny descobriu que o sol poente dera
origem a um vento frio. Ela estava usando uma suéter verde de mangas
compridas com os jeans, mas se arrepiou mesmo assim. O outono nas
Sierras

era

uma

sucessĂŁo

de

dias

agradáveis

e

noites

contrastantemente frias. — espreguiçou-se, libertando os músculos que
tinham ficado tensos durante a longa viagem, depois fechou a porta do
carro. O som ecoou pelas montanhas acima e pela cidade abaixo. Era o
Ăşnico som na quietude do crepĂşsculo.
Junto Ă  traseira do Trans Am ela parou por um momento,
fitando a Skyline Road até o centro de Snowfield. Nada se movia.
—

Eu poderia ficar aqui para sempre — declarou Lisa,

abraçando o próprio corpo enquanto examinava, toda feliz, a cidade lá
embaixo.
Jenny prestou atenção. O eco da porta do carro batida sumiu —
e nĂŁo foi substituĂ­do por outro som qualquer, exceto o zunir suave do
vento.

Há silêncios e silêncios. Nenhum deles é igual ao outro. Há o
silĂŞncio da dor no salĂŁo ricamente atapetado e drapejado de veludo de
uma casa funerária, que é bem diferente do silêncio árido e terrível da
dor no quarto solitário de um viúvo. Para Jenny, parecia, curiosamente,
haver um motivo para dor no silĂŞncio de Snowfield. Contudo, nĂŁo sabia
por que se sentia daquele jeito, ou por que um pensamento tĂŁo
esquisito fora lhe ocorrer, para início de conversa. Pensou também no
silĂŞncio de uma noite suave de verĂŁo, que nĂŁo Ă© verdadeiramente um
silĂŞncio, mas um coro sutil de asas de mariposa batendo nas janelas, de
grilos movendo-se

HK

grama, e de balanços de varanda suspirando e

rangendo muito de leve. O sono sem sons de Snowfield também
continha um pouco dessa qualidade, uma sugestĂŁo de atividade febril
— vozes, movimento, luta — que ficava logo além do alcance dos
sentidos. Mas era mais do que isso. Havia ainda o silĂŞncio de uma noite
de inverno, profunda, fria e sem coração, mas contendo uma
expectativa dos ruĂ­dos explosivos e crescentes da primavera. Este
silêncio também estava pleno de expectativa, e aquilo deixava Jenny
nervosa.
Tinha vontade de gritar perguntando se havia alguém ali. Não o
fez, porém, porque os vizinhos poderiam aparecer, assustados com o
seu grilo, iodos sĂŁos e salvos, e confusos com sua apreensĂŁo, e entĂŁo
ela ficaria com cara de boba. Uma médica que bancava a tola em
público na segunda-feira era uma médica sem pacientes na terça.
—...ficar aqui para sempre e sempre e sempre — dizia Lisa,
ainda encantada com a beleza da aldeia montanhesa.
— Não está deixando você... inquieta? — perguntou Jenny.
— O que?
— O silêncio.
—

Ah, estou adorando. É tão sereno. Era sereno. Não havia

sinais de encrenca.
EntĂŁo por que estou nervosa desse jeito? indagou-se Jenny.
Abriu a mala do carro, tirou uma das valises de Lisa, depois a outra.
Lisa pegou a segunda valise e estendeu a mĂŁo para a mala do carro

para pegar uma sacola com livros.
— Não pegue peso demais — advertiu Jenny. — Vamos ter que
fazer mais umas duas viagens, de qualquer maneira.
Cruzaram o relvado até um caminho de pedras que levava até a
varanda da frente, onde, em resposta ao pôr-do-sol âmbar-púrpura, as
sombras se erguiam e abriam pétalas como se fossem flores que
vicejassem Ă  noite.
Jenny abriu a porta da frente e entrou no VestĂ­bulo escuro.
— Hilda, chegamos! Não houve resposta.
A Ăşnica luz na casa vinha da extremidade oposta do corredor,
para além da porta aberta da cozinha.
Jenny largou a valise no chĂŁo e acendeu a luz do corredor.
— Hilda?
— Quem é Hilda? — perguntou Lisa, largando a sua valise e a
sacola com livros.
— Minha governanta. Ela sabia a que horas devíamos chegar.
Pensei que, a essa altura, já estivesse cuidando do jantar.
— Puxa, uma governanta! Ela dorme no emprego?
—

Ela usa o apartamento que fica em cima da garagem —

explicou Jenny, pousando a bolsa e as chaves do carro na mesinha do
VestĂ­bulo que ficava sob um grande espelho de moldura de metal.
Lisa ficou impressionada.
— Ei, você é rica, ou coisa parecida? Jenny achou graça.
— Antes fosse. Na verdade, não posso me dar ao luxo de ficar
com Hilda... mas também mio posso me dar ao luxo de ficar sem ela. —
Perguntando-se por que a luz da cozinha estaria acesa se Hilda nĂŁo
estava em casa, Jenny começou a descer o corredor, com Lisa logo
atrás. — Trabalhando em horário integral no consultório e ainda
fazendo visitas de emergĂŞncia a domicĂ­lio em trĂŞs outras cidades nas
montanhas, eu jamais comeria outra coisa além de sanduíches de
queijo e rosquinhas, se nĂŁo fosse Hilda.
— Ela cozinha bem?
—

Maravilhosamente. Bem até demais, quando se trata de

sobremesas.
A cozinha era um aposento grande e de tolo alto. Panelas,
frigideiras, conchas e outros utensĂ­lios pendiam de um suporte
brilhante de aço inoxidável, acima de uma ilhota central para o fogão de
quatro bocas, uma grelha e uma área de trabalho. Os balcões da
cozinha eram de ladrilhos de cerâmica e os armários de carvalho
escuro. Na extremidade oposta do aposento ficavam pias duplas, fornos
duplos e um forno do microondas, além da geladeira.
Jenny virou Ă  esquerda logo que transpĂ´s a porta e foi direto Ă 
secretária embutida onde Hilda planejava cardápios e organizava listas
de compras, Seria aquele o local onde deixaria um bilhete. Mas nĂŁo
havia bilhete algum, e Jenny estava se afastando da escrivaninha
quando escutou Lisa ofegar.
A mocinha rodeara a extremidade oposta da ilhota central.
Estava parada junto Ă  geladeira, fitando algo no chĂŁo, em frente Ă s pias.
O rosto estava sem cor alguma, e ela tremia.
Tomada de um pavor repentino, Jenny rodeou rapidamente a
ilhota.
Hilda Beck estava deitada de costas no chĂŁo, morta. Fitava o
teto com olhos que nĂŁo enxergavam, e a sua lĂ­ngua descolorida e dura
aparecia por entre os lábios inchados.
Lisa ergueu os olhos da mulher morta, fitou Jenny, tentou falar,
mas nĂŁo conseguiu emitir um Ăşnico som.
Jenny tomou a irmã pelo braço e conduziu-a até o outro lado da
cozinha, de onde não poderia enxergar o cadáver. Abraçou-a.
A mocinha abraçou-a também. Com força. Ferozmente.
— Tudo bem, querida?
Lisa nĂŁo disse nada. Tremia incontrolavelmente.
Há apenas seis semanas, chegando em casa depois de uma
vesperal no cinema, Lisa encontrara a mĂŁe deitada no chĂŁo da cozinha
de sua casa em Newport Beach. Morrera de uma hemorragia cerebral
maciça. Ficara in i asada. Sem ter conhecido o pai, que morrera quando
tinha apenas dois mios, Lisa era especialmente apegada Ă  mĂŁe. Durante

algum tempo a perda a deixara profundamente abalada, confusa,
deprimida. Aos poucos, aceitou a morte da mĂŁe, descobrira de novo
como sorrir e achar graça. Nos últimos dias, estava parecendo de novo
uma garota normal. E agora isso.
Jenny levou a garota até a secretária, fez com que se sentasse,
depois agachou-se na sua frente. Tirou um lenço de papel de uma caixa
sobre a escrivaninha e enxugou a testa Ăşmida de Lisa. A mocinha nĂŁo
apenas estava mortalmente pálida, estava também gelada.
— Em que posso ajudar, mana?
— T-t-tudo bem — falou Lisa, com a voz trêmula.
Ficaram de mĂŁos dadas. A garota agarrava a mĂŁo da irmĂŁ com
tanta força que quase chegava a doer.
Igualmente, ela falou:
Pensei... logo que a vi ali... no chĂŁo daquele jeito... pensei... Ă©
loucura, mas pensei... que era a mamãe. — As lágrimas brilhavam nos
seus olhos, mas ela se controlava. — S-sei que mamãe morreu. E essa
mulher nem se parece com ela. Mas foi... a surpresa... o choque... uma
coisa tĂŁo confusa.
Elas continuaram de mĂŁos dadas e, aos poucos, Lisa foi
relaxando o aperto.
Dali a um pouco, Jenny perguntou:
— Está se sentindo melhor?
— Estou. Um pouquinho.
— Quer se deitar?
—

Não. — Soltou a mão de Jenny para pegar outro lenço de

papel da caixa. Enxugou o nariz. Olhou para a ilhota, atrás da qual
jazia o corpo. — Aquela é Hilda?
— É.
— Sinto muito.
Jenny sempre gostara imensamente de Hilda Beck. Estava
abaladĂ­ssima com a morte da mulher, mas neste momento estava mais
preocupada com Lisa do que com qualquer outra coisa.
— Mana, acho melhor você sair daqui. Que tal esperar no meu

consultĂłrio enquanto eu examino direito o corpo? Depois tenho que
ligar para o gabinete do xerife e para o legista municipal.
— Espero aqui com você.
— Seria melhor se...
— Não! — exclamou Lisa, começando a tremer de novo. — Não
quero ficar sozinha.
—

Tudo bem — tranqüilizou-a Jenny. — Pode ficar sentada

aqui.
— Ah, pombas — falou Lisa, infeliz. — O jeito que ela estava...
toda inchada... toda roxa. E a expressão no rosto dela... — Enxugou os
olhos com as costas das mãos. — Por que ela está toda escura e
inchada daquele jeito?
— Bem, obviamente já morreu faz alguns dias — falou Jenny. —
Mas, ouça, tem que tentar não pensar sobre essas coisas...
— Se ela já morreu faz alguns dias — objetou Lisa, com a voz
trêmula —, por que não está cheirando mal aqui? Não devia estar?
Jenny franziu o cenho. Claro que devia estar cheirando mal, se
Hilda Beck estava morta há tempo suficiente para a sua carne
empretecer e os tecidos do seu corpo incharem do jeito que incharam.
Devia estar. Mas nĂŁo estava.
— Jenny, o que aconteceu com ela?
— Ainda não sei.
— Estou com medo.
— Não tenha medo. Não há motivo para ter medo.
— Aquela expressão no rosto dela — falou Lisa. — É horrível.
— Não importa como tenha morrido, deve ter sido rápido. Ela
nĂŁo parece ter estado doente ou ter lutado. NĂŁo pode ter sentido muita
dor.
— Mas... parece que ela morreu no meio de um grito.

3

A mulher morta

Jenny Paige jamais vira um corpo como aquele. Nada na
faculdade ou na sua própria prática de medicina a tinha preparado para
a condição estranha do cadáver de Hilda Beck. Agachou-se junto ao
corpo e examinou-o com tristeza e desprazer — mas também com uma
curiosidade considerável e com uma perplexidade cada vez maior.
O rosto da mulher estava intumescido; era agora uma caricatura
redonda, macia e um tanto lustrosa da fisionomia que ela tivera em
vida. O corpo também estava inchado, e em alguns lugares fazia
pressĂŁo contra as costuras do vestido de andar em casa, cinza e
amarelo. Onde a carne era visível — pescoço, braços e mãos,
panturrilhas, tornozelos —, ela tinha um ar macio, de coisa madura
demais. Contudo, o inchaço não parecia ser aquele formado pelos gases,
que era uma conseqüência natural da decomposição. Por exemplo, o
estĂ´mago devia estar imensamente distendido pelos gases, muito mais
inchado do que qualquer outra parte do corpo, mas estava apenas
moderadamente

dilatado.

Além

disso,

nĂŁo

havia

cheiro

de

decomposição.
Vista de perto, a pele escura e manchada nĂŁo parecia ser o
resultado de deterioração dos tecidos. Jenny não conseguia localizar
nenhum sinal visível da decomposição em progresso; nenhuma lesão,
nenhuma bolha, nenhuma pústula purgando. Como se compõem de
tecidos comparativamente macios, os olhos de um cadáver, em geral,
dão mostras de degeneração física antes da maior parte das outras
porções do corpo. Os olhos de Hilda Beck, porém — arregalados, fixos
—, eram espécimes perfeitos. Os brancos dos olhos eram límpidos, nem
amarelados nem descoloridos por vasos sangĂĽĂ­neos estourados. As Ă­ris

também eram límpidas. Nem sequer havia as cataratas leitosas pósmorte para obscurecer a cor azul e cálida.
Em vida, geralmente havia alegria e bondade nos olhos de Hilda.
Ela estava com 62 anos, uma mulher grisalha de rosto meigo e jeito de
vovĂł.

Falava

com

ligeiro

sotaque

alemĂŁo

e

tinha

uma

voz

surpreendentemente linda. Cantava com freqĂĽĂŞncia enquanto limpava a
casa ou cozinhava, e encontrava alegria nas coisas mais simples.
Jenny sentiu uma pontada aguda de dor ao dar-se conta do
quanto sentia a falta de Hilda. Fechou os olhos por um momento, sem
conseguir olhar para o cadáver. Controlou-se, prendeu as lágrimas.
Finalmente,

quando

tinha

readquirido

o

seu

distanciamento

profissional, abriu os olhos e prosseguiu com o exame.
Quanto mais olhava para o corpo, mais a pele parecia
machucada. O colorido indicava machucaduras severas: preto, azul e
um amarelo profundo, as cores se misturando umas com as outras.
Mas nada se parecia nem remotamente com qualquer outra contusĂŁo
que Jenny já vira. Pelo que podia perceber, a contusão era universal:
nĂŁo havia uma Ăşnica polegada quadrada de pele visĂ­vel que estivesse
livre dela. Segurou com cuidado a manga do vestido da governanta e
empurrou-o para cima até onde permitia o braço inchado. Sob a manga,
a pele também estava escura, e Jenny desconfiou que o corpo inteiro
estava coberto com uma série incrível de pisaduras contíguas.
Olhou de novo para o rosto da sra. Beck. Cada centĂ­metro de
pele apresentava sinais de contusão. Às vezes, a vítima de um sério
acidente de carro sofria ferimentos que lhe causavam pisaduras na
maior parte do rosto, mas uma condição tão severa era sempre
acompanhada de um trauma pior, tal como um nariz quebrado, lábios
partidos, maxilar quebrado... Como Ă© que a sra. Beck poderia ter
adquirido

pisaduras

tĂŁo

grotescas

quanto

aquelas

sem

sofrer

igualmente outros ferimentos mais sérios?
— Jenny? — falou Lisa. — Por que está demorando tanto?
— Só mais um minutinho. Continue aí mesmo.
Bem... talvez as contusões que cobriam o corpo da sra. Beck não

fossem resultantes de golpes administrados externamente. Seria
possível que a descoloração da pele fosse causada, em vez disso, por
pressão interna, pelo intumescimento do tecido subcutâneo? Esse
intumescimento estava, afinal de contas, vividamente presente. Para ter
causado pisaduras tão completas, porém, sem dúvida, o inchaço teria
que ter ocorrido repentinamente, com uma violĂŞncia incrĂ­vel. Mas isso
nĂŁo fazia sentido, droga. O tecido vivo nĂŁo podia inchar assim tĂŁo
depressa. O inchaço abrupto era sintomático de certas alergias, é claro.
Um dos piores era uma severa reação alérgica à penicilina. Mas Jenny
não tinha ciência de nada que pudesse causar um inchaço crítico com
tal rapidez que resultasse naquelas machucaduras horrendas e
universais.
E mesmo que o intumescimento nĂŁo fosse simplesmente o
inchaço clássico pós-morte — e ela tinha certeza que não era —, ainda
que fosse a causa das pisaduras, em nome de Deus, o que teria
causado o intumescimento, para início de conversa? Ela já eliminara a
reação alérgica.
Se um veneno fosse o responsável, era de uma variedade
extremamente exĂłtica. Mas onde Hilda teria entrado em contato com
um veneno exótico? Ela não tinha inimigos. A simples idéia de
assassinato era absurda. E conquanto uma criança fosse capaz de
colocar uma substância estranha na boca apenas para descobrir o
gosto, Hilda nĂŁo faria uma coisa tĂŁo idiota. NĂŁo, veneno nĂŁo.
Moléstia?
Se fosse moléstia, causada por bactéria ou vírus, não era nada
parecido com as coisas que ensinaram Jenny a reconhecer. E se
provasse ser contagioso?
— Jenny? — chamou Lisa. Moléstia.
Aliviada por nĂŁo ter tocado diretamente no corpo, desejando nem
mesmo ter tocado na manga do vestido, Jenny se pĂ´s rapidamente em
pé, oscilou e se afastou do cadáver.
Sentiu um calafrio.
Pela primeira vez, reparou no que estava sobre a tábua de carne

ao lado da pia. Havia quatro batatas grandes, um repolho, um pacote de
cenouras, uma faca comprida e um descascador de legumes. Hilda
estivera preparando a refeição quando caíra morta. Sem mais nem
menos. Hum. Aparentemente nĂŁo estava doente, nĂŁo tinha tido nenhum
sinal. Que diabo, uma morte tĂŁo repentina nĂŁo era indicativa de
moléstia.
Que moléstia resultava em morte sem primeiro passar pelos
estágios mais debilitantes de doença, desconforto e deterioração física?
Nenhuma. Nenhuma que fosse do conhecimento da medicina moderna.
— Jenny, podemos sair daqui? — pediu Lisa.
— Shhh. Num minuto. Deixe-me pensar — falou Jenny,
apoiando-se na ilhota, olhando para a mulher morta.
Um pensamento vago e assustador estava começando a acossála: a peste. A peste — tanto bubônica quanto sob outras formas — não
era desconhecida em partes da CalifĂłrnia e do Sudoeste. Nos Ăşltimos
anos, umas duas dĂşzias de casos haviam sido registradas. Contudo, era
raro alguém morrer de peste hoje em dia, pois ela podia ser curada pela
administração de estreptomicina, cloranfenicol ou qualquer uma das
tetraciclinas.

Algumas

formas

de

peste

se

caracterizavam

pelo

aparecimento na pele de manchas pequenas, arroxeadas, hemorrágicas.
Em casos extremos, as manchas se tornavam quase negras e se
espalhavam até que grandes porções do corpo fossem tomadas por elas.
Na Idade MĂ©dia, essa peste se tornara conhecida simplesmente como a
Morte Negra. Mas será que as manchas podiam nascer com tal
abundância a ponto de o corpo da vítima ficar tão completamente preto
como o de Hilda?
Além disso, Hilda

morrera subitamente, enquanto estava

cozinhando, sem primeiro sofrer de vômitos, incontinência, febre — o
que eliminava a peste. E o que, na verdade, eliminava também todas as
outras moléstias contagiosas conhecidas.
No entanto, nĂŁo havia sinais visĂ­veis de violĂŞncia. NĂŁo havia
ferimentos sangrentos de arma de fogo, nem de facadas. NĂŁo havia
indicação alguma de que a governanta tivesse sido espancada ou

estrangulada.
Jenny rodeou o corpo e foi até o balcão junto à pia. Tocou o
repolho e ficou espantada ao notar que ainda estava frio. NĂŁo estivera
aqui na tábua de carne mais do que uma hora, aproximadamente.
Afastou-se da pia e olhou de novo para Hilda, mas com pavor
ainda maior do que antes.
A mulher morrera nesta Ăşltima hora. O corpo ainda podia estar
quente,
Mas o que a matara!
Jenny nĂŁo estava mais perto da resposta agora do que estivera
antes de examinar o corpo. E embora a moléstia parecesse não ser a
culpada aqui, ela não podia eliminá-la. A possibilidade de contágio,
embora remota, era assustadora.
Ocultando de Lisa a sua preocupação, Jenny falou:
— Vamos indo, meu bem, posso usar o telefone do consultório.
— Já estou me sentindo melhor — disse Lisa, mas se levantou
prontamente, e era evidente que estava ansiosa para ir embora.
Jenny abraçou a garota e deixaram a cozinha.
Um silĂŞncio irreal parecia encher a casa. O silĂŞncio era tĂŁo
profundo que o sussurro dos passos delas no tapete do corredor, em
contraste, parecia estrondoso.
A despeito das luzes fluorescentes do teto, o consultĂłrio de
Jenny não era uma sala árida e impessoal como as que a maioria dos
médicos de hoje em dia prefere. Ao contrário, era um consultório
antiquado de médico do interior, como se fosse uma das ilustrações de
Norman Rockwell para o Saturday Evening Post. As prateleiras estavam
lotadas de livros e revistas médicas. Havia seis arquivos de madeira
antigos que Jenny comprara por um precinho bom num leilĂŁo. Nas
paredes estavam pendurados diplomas, quadros de anatomia e duas
grandes aquarelas de Snowfield. Ao lado do armário de remédios
trancado havia uma balança, e ao lado desta, numa mesinha, uma
caixa de brinquedos baratos — carrinhos de plástico, soldadinhos,
bonecas em miniatura — e pacotes de goma de mascar sem açúcar que

eram dados como recompensa (ou suborno) para as crianças que não
choravam durante os exames.
Uma escrivaninha de pinho, grande, riscada, escura, era a peça
central da sala, e Jenny levou Lisa até a grande cadeira de couro que
ficava por trás dela.
— Desculpe — disse a mocinha.
—

Por quê? — perguntou Jenny, sentando-se na beirada da

escrivaninha e puxando o telefone para junto de si.
—

Desculpe a minha fraqueza. Quando vi... o corpo... bem...

fiquei histérica.
— Não ficou nada histérica. Só chocada e assustada, o que é
compreensĂ­vel.
— Mas você não ficou chocada nem assustada.
— Ah, fiquei — disse Jenny. — Não apenas chocada: atordoada.
— Mas não ficou assustada, como eu fiquei.
— Fiquei assustada, e ainda estou assustada. — Jenny hesitou,
depois concluiu que, afinal de contas, nĂŁo devia esconder a verdade da
garota. Falou-lhe da possibilidade perturbadora de contágio. — Não
creio que seja uma moléstia isso que estamos enfrentando, mas posso
estar errada. E se estiver...
A garota fitou Jenny espantada, de olhos arregalados.
—

VocĂŞ estava assustada, como eu, mas ainda assim passou

todo aquele tempo examinando o corpo. Pombas, eu nĂŁo poderia fazer
isso. Eu nĂŁo. Nunca.
— Bem, querida, mas é que eu sou médica. Fui treinada para
isso.
— Mesmo assim...
— Você não fraquejou, pode estar certa — tranqüilizou-a Jenny.
Lisa assentiu, aparentemente sem ter se convencido.
Jenny tirou o fone do gancho, pretendendo chamar o xerife em
Snowfield, antes de ligar para o legista em Santa Mira, a sede do
condado. NĂŁo houve ruĂ­do de discar, apenas um sibilar suave. Ela
mexeu no aparelho, apertando e soltando as traves de desligar, mas

nenhum sinal de linha.
Havia algo de sinistro no fato de um telefone estar enguiçado
quando uma mulher jazia morta na cozinha. Talvez a sra. Beck tivesse
sido assassinada. Se alguém cortara a linha do telefone e entrara na
casa, e se esgueirara por trás de Hilda com cuidado e astúcia... bem...
poderia tê-la apunhalado nas costas com uma faca de lâmina comprida
que afundara o bastante para penetrar no coração, matando-a
instantaneamente. Nesse caso, o ferimento estaria onde Jenny nĂŁo
podia vĂŞ-lo, a nĂŁo ser que tivesse virado o corpo completamente, de
bruços. Isso não explicava por que não havia sangue algum. E nem
explicava as pisaduras universais, o inchaço. Apesar disso, a ferida
podia estar nas costas da governanta, e como ela morrera nesta Ăşltima
hora, também era concebível que o assassino — se houvesse um
assassino — ainda pudesse estar aqui, dentro da casa.
Estou dando asas demais à imaginação, pensou Jenny.
Mas decidiu que seria uma atitude sensata ela e Lisa saĂ­rem da
casa imediatamente.
— Vamos ter que dar um pulo no vizinho e pedir a Vince ou
Angie Santini que dêem os telefonemas para nós — explicou Jenny
suavemente, levantando-se da beirada da mesa. — Nosso telefone está
enguiçado.
Lisa piscou os olhos.
— Isso tem algo a ver com... o que aconteceu?
— Não sei — falou Jenny.
Seu coração batia com força enquanto ela cruzava o consultório
em direção à porta semicerrada. Ficou imaginando se haveria alguém à
espera do outro lado.
Acompanhando Jenny, Lisa falou:
— Mas o telefone estar enguiçado agora... é um pouco estranho,
nĂŁo acha?
— Um pouco.
Jenny estava quase esperando encontrar um estranho imenso e
sorridente com uma faca. Um desses sociopatas que parecem proliferar

hoje em dia. Um desses imitadores de Jack, o Estripador, cujo trabalho
sangrento mantém os repórteres de TV bem supridos de filmes
repulsivos para O noticiário das seis.
Espiou para o corredor antes de se aventurar a sair, preparada
para dar um salto para trás e bater a porta se visse qualquer pessoa. O
corredor estava deserto.
Lançando um olhar para Lisa, Jenny viu que a garota se
apercebera rapidamente da situação.
Atravessaram rapidamente o corredor em direção à parte da
frente da casa: ao se acercarem das escadas que levavam ao segundo
andar, que ficavam juntinho do VestĂ­bulo, os nervos de Jenny estavam
mais tensos do que nunca. O assassino — se é que existe um assassino,
lembrou a si mesma, cheia de exasperação — podia estar nas escadas,
escutando enquanto elas passavam na direção da porta da frente. Podia
saltar degraus abaixo enquanto elas passavam por ele, a faca erguida
bem no alto...
Mas ninguém esperava nas escadas.
Ou no VestĂ­bulo. Ou na varanda.
Do lado de fora, o crepĂşsculo rapidamente se transformava em
noite. A luz remanescente era arroxeada, e as sombras — um exército
zumbi de sombras — se erguiam de dezenas de milhares de locais nos
quais se tinham ocultado da luz do sol. Dentro de dez minutos estaria
escuro.

4

A casa vizinha
A casa de pedra e sequĂłia dos Santinis era de um estilo mais

moderno do que a residĂŞncia de Jenny, toda cheia de quinas
arredondadas

e

ângulos

suaves.

Erguia-se

do

solo

pedregoso,

adaptando-se aos contornos da encosta, tendo como pano de fundo
maciços pinheiros; quase parecia ser uma formação natural. As luzes
estavam acesas em dois dos cĂ´modos do andar inferior.
A porta da frente estava entreaberta. Lá dentro tocava-se música
clássica.
Jenny tocou a campainha e deu alguns passos para trás, para
onde Lisa estava esperando. Acreditava que ambas deviam se manter a
uma certa distância dos Santinis; era possível que tivessem sido
contaminadas pelo simples fato de terem estado na cozinha com o
cadáver da sra. Beck.
— Não se poderia querer vizinhos melhores — falou para Lisa,
desejando que aquele bolo duro e frio no seu estômago se derretesse. —
Gente Ăłtima.
Ninguém atendeu à campainha.
Jenny se adiantou, apertou de novo o botĂŁo e voltou para o lado
de Lisa. Continuou:
—

SĂŁo donos de uma loja de artigos de esqui e outra de

presentes na cidade.
A mĂşsica cresceu, diminuiu, cresceu. Beethoven.
— Pode ser que não haja ninguém em casa — falou Lisa.
— Tem que haver alguém. A música, as luzes...
Um vento repentino e forte se agitou por sob o telhado da
varanda, e as rajadas de ar interferiram com os acordes de Beethoven,
transformando brevemente aquela mĂşsica doce num ruĂ­do irritante e
dissonante.
Jenny escancarou a porta. Havia uma luz acesa no escritĂłrio
que ficava Ă  esquerda do VestĂ­bulo. Uma luminosidade leitosa saĂ­a
pelas portas abertas do escritĂłrio e se espalhava pelo VestĂ­bulo de piso
de carvalho até o limiar da sala de estar escura.
— Angie? Vince? — chamou Jenny Não houve resposta.
Somente Beethoven. O vento arrefecera, e a mĂşsica rasgada fora

costurada na tranqĂĽilidade sem ventos. A Terceira Sinfonia, Eroica.
— Oi? Tem alguém em casa?
A sinfonia atingiu a sua conclusĂŁo emocionante, e quando a
Ăşltima

nota

sumiu,

nĂŁo

começou

nenhuma

mĂşsica

nova.

Aparentemente, a vitrola se desligara sozinha.
— Oi?
Nada. A noite por trás de Jenny estava silenciosa, assim como
ficara a casa Ă  sua frente agora.
—

Você não vai entrar aí, vai? — perguntou Lisa, ansiosa.

Jenny lançou um olhar para a garota.
— O que foi?
Lisa mordeu o lábio.
— Tem alguma coisa errada aí. Você também está sentindo, não
está?
Jenny hesitou. Relutantemente, falou:
— É, estou.
— É como se... se estivéssemos sozinhas aqui... só você e eu... e
ao mesmo tempo... não estivéssemos.
Jenny tinha a estranha sensação de que estavam sendo
observadas. Virou-se e examinou a relva e os arbustos que tinham sido
quase completamente engolidos pela escuridĂŁo. Olhou para cada uma
das janelas que davam para a varanda. Havia luz no escritĂłrio, mas as
outras janelas estavam às escuras, negras e lustrosas. Alguém podia
estar parado por detrás de qualquer uma daquelas vidraças, envolto
nas sombras, vendo sem ser visto.
— Vamos embora, por favor — pediu Lisa. — Vamos chamar a
polĂ­cia ou qualquer outra pessoa. Vamos embora agora. Por favor.
Jenny balançou a cabeça.
—

listamos esgotadas. Nossa imaginação está nos pregando

peças. Do qualquer forma, tenho que dar uma olhada lá dentro, para o
caso de haver alguém ferido... Angie, Vince, quem sabe uma das
crianças...
— Não.

Lisa agarrou o braço de Jenny, retendo-a. Sou médica. Tenho a
obrigação de ajudar. Mas se você pegou um germe ou coisa parecida da
sra. Beck, pode contaminar os Santinis. Foi vocĂŞ mesma quem disse.
— É, mas pode ser que já estejam morrendo da mesma coisa
que matou Hilda. E entĂŁo? Podem "estar precisando de cuidados
médicos.
—

Não creio que seja uma moléstia — falou Lisa, desolada,

fazendo eco aos pensamentos de Jenny. — É uma coisa pior
— O que poderia ser pior?
— Não sei. Mas eu... eu sinto. É uma coisa pior.
O vento soprou de novo e agitou os arbustos junto da varanda.
— Está bem — falou Jenny. — Você fica esperando aqui
enquanto eu vou dar uma olhada em...
— Não — replicou Lisa rapidamente. — Se você vai entrar ali, eu
também vou.
— Meu bem, você não estaria fraquejando se...
—

Eu vou — insistiu a jovem, soltando o braço de Jenny. —

Vamos terminar logo com isso.
Entraram na casa.
Parada no VestĂ­bulo, Jenny espiou pela porta aberta Ă  esquerda.
— Vince? — Dois abajures lançavam uma luz dourada e cálida
em todos os cantos do escritĂłrio de Vince Santini, mas a sala estava
deserta. — Angie? Vince? Tem alguém aí?
Nenhum som perturbava o silĂŞncio sobrenatural, embora a
escuridĂŁo em si parecesse de certa forma alerta, atenta... como se fosse
um animal imenso e agachado.
Ă€ direita de Jenny, a sala de estar estava envolta em sombras
tĂŁo espessas como estamenha preta densamente tecida. Na extremidade
oposta, alguns fiapos de luz rebrilhavam nas beiradas e no pé de um
par de portas que isolavam a sala de jantar, mas o brilho fraco nada
fazia para dispersar as sombras do lado de cá.
Ela encontrou e acionou o interruptor de parede que acendeu
uma luz, revelando a sala de estar desocupada.

— Está vendo? — falou Lisa. — Não tem ninguém em casa.
— Vamos dar uma olhada na sala de jantar.
Cruzaram a sala de estar, que era mobiliada com confortáveis
sofás em bege e elegantes poltronas Rainha Anne em verde-esmeralda.
O som e o gravador estéreo estavam instalados discretamente num
móvel de canto. Era de lá que vinha a música. Os Santinis tinham saído
e deixado os aparelhos ligados.
Na extremidade da sala, Jenny abriu as portas duplas, que
rangeram ligeiramente.
Também não havia ninguém na sala de jantar, mas o lustre
iluminava uma cena curiosa. A mesa estava posta para um ajantarado
de domingo: quatro jogos americanos; quatro pratos de jantar limpos;
quatro pratos de salada combinando, trĂŞs deles limpinhos, o quarto
com um porção de salada; quatro jogos de talheres de aço inoxidável;
quatro copos — dois cheios de leite, um de água e um quarto de um
líquido cor de âmbar que bem podia ser suco de maçã. Cubos de gelo,
apenas parcialmente derretidos, flutuavam tanto no suco quanto na
água. No centro da mesa estavam as travessas: um prato de salada,
uma travessa com presunto, batatas ao forno, um prato grande com
ervilhas e cenouras. Excetuando a salada, de onde fora tirada uma
porção, a comida não fora tocada. O presunto esfriara. Todavia, a crosta
gratinada do prato de batatas estava perfeita, e quando Jenny encostou
a mĂŁo no prato, percebeu que ainda estava quente. A comida fora posta
na mesa nesta última hora, talvez, apenas há uns trinta minutos.
— Parece que tiveram que ir a algum lugar com muita pressa —
comentou Lisa.
Franzindo o cenho, Jenny falou:
— Chega a parecer que foram levados à força.
Havia alguns detalhes perturbadores. Como a cadeira virada.
Estava deitada de lado, a curta distância da mesa. As outras cadeiras
estavam em pé, mas no chão, ao lado de uma delas, estava uma colher
de servir e um garfo de carne de dois dentes. Um guardanapo amassado
também estava no chão, num canto da sala, não como se tivesse sido

largado ali, mas arremessado. Na mesa, o saleiro estava virado.
Pequenas coisas. Nada de dramático. Nada de conclusivo.
Apesar disso, Jenny ficou preocupada.
— Levados à força? — indagou Lisa, atônita.
— Talvez.
Jenny continuava a falar baixinho, como a irmĂŁ. Ainda tinha a
sensação inquietante de que alguém estava por perto, oculto, à espreita
— pelo menos na escuta. Paranóia, advertiu a si mesma.
— Nunca ouvi falar de alguém raptando uma família inteira —
disse Lisa.
— Bem... pode ser que eu esteja errada. Provavelmente uma das
crianças passou mal de repente e eles tiveram que correr para o
hospital em Santa Mira. Alguma coisa no gĂŞnero.
Lisa examinou a sala de novo, inclinou a cabeça para escutar o
silĂŞncio sepulcral da casa.
— Não, acho que não.
— Nem eu — admitiu Jenny.
Rodeando lentamente a mesa, examinando-a como se esperasse
descobrir uma mensagem secreta deixada pelos Santinis, o medo
cedendo lugar u curiosidade, Lisa falou:
— Isso me faz lembrar de uma coisa que li certa vez num livro
sobre fatos estranhos. Sabe... O Triângulo das Bermudas ou um livro
parecido. Havia um grande navio, o Mary Celeste... lá por 1870, mais ou
menos...Bem, o caso Ă© que o Mary Celeste foi encontrado Ă  deriva no
meio do Atlântico, com a mesa posta para o jantar, mas com toda a
tripulação desaparecida. O navio não fora danificado numa tempestade,
não estava fazendo água nem nada. Não havia motivo para a tripulação
tê-lo abandonado. Além disso, os botes salva-vidas ainda estavam no
navio. Os lampiões estavam acesos, as velas envergadas, e a comida na
mesa, como eu disse,. Tudo estava exatamente como devia estar, exceto
que até o último homem no navio havia sumido. É um dos grandes
mistérios do mar.
—

Mas estou certa de que, não há nenhum grande mistério

nisto — retrucou Jenny, inquieta. — Estou certa de que os Santinis não
sumiram para sempre.
Lisa parou na metade do caminho, ergueu os olhos, pestanejou
olhando para Jenny.
— Se eles foram levados à força, será que isso tem algo a ver
com a morte da sua governanta?
— Talvez. Ainda não podemos ter certeza. Falando ainda mais
baixo do que antes, Lisa indagou:
— Acha que devemos arranjar uma arma, ou coisa parecida?
—

Não, não. — Olhou para a comida intacta esfriando nas

travessas. O sal derramado. A cadeira virada. Afastou-se da mesa. —
Vamos, meu bem.
— Para onde?
— Vamos ver se o telefone está funcionando.
Cruzaram a porta que ligava a sala de jantar Ă  cozinha e Jenny
acendeu a luz.
O telefone ficava na parede junto Ă  pia. Jenny tirou o fone do
gancho, escutou, mexeu nas traves de desligar, mas nĂŁo conseguia
linha.
Desta vez, contudo, nĂŁo era como realmente se nĂŁo houvesse
linha, como acontecera na sua casa. Era uma linha aberta, cheia do
sibilar suave da estática eletrônica. Os números do corpo de bombeiros
e da subdelegacia estavam num adesivo na base do aparelho. Apesar de
nĂŁo escutar o sinal de discar, Jenny apertou as teclas com os sete
dígitos do gabinete do xerife, mas não conseguiu completar a ligação.
EntĂŁo, quando Jenny voltava a mexer nas traves de desligar,
começou a desconfiar de que havia alguém na linha, escutando.
Falou ao aparelho:
— Alô? — Um sibilar distante. Como ovos frigindo numa chapa.
— Alô? — repetiu.
Apenas a estática distante. O que chamavam de "ruído branco".
Ela disse a si mesma que nĂŁo havia nada a nĂŁo ser os sons
comuns de uma linha telefĂ´nica aberta. Mas o que ela achava que

estava ouvindo era alguém que a escutava atentamente enquanto ela o
escutava.
Bobagem.
Sentiu um arrepio na nuca e, bobagem ou nĂŁo, desligou
rapidamente.
— O gabinete do xerife não pode ficar longe, numa cidade tão
pequena — falou Lisa.
— Uns dois quarteirões.
— Por que não andamos até lá?
Jenny tinha a intenção de revistar o restante da casa, para o
caso dos Santinis estarem em algum outro cĂ´modo, feridos ou doentes.
Agora, estava se perguntando se alguém estivera na linha telefônica
com ela, escutando na extensĂŁo em outra parte da casa. Essa
possibilidade modificava tudo. Ela nĂŁo fazia pouco-caso do seu
juramento de Hipocrates; na verdade, apreciava as responsabilidades
especiais que faziam parte do seu trabalho, pois era do tipo de pessoa
que precisava ter testadas regular mente as suas opiniões, a sua
inteligĂŞncia e a sua energia. Adorava um desafio. Neste exato momento,
porém, a sua responsabilidade principal era para com Lisa e para
consigo mesma. Talvez o mais sensato a fazer fosse ir buscar o
delegado, Paul Henderson, voltar para cá com ele e então revistar o
resto da casa.
Embora ela quisesse crer que era apenas a sua imaginação,
ainda sentia olhares inquisitivos; alguém à espreita... à espera.
—

Vamos embora — falou para Lisa. — Venha. Nitidamente

aliviada a jovem foi andando depressa na frente, passando pela sala de
jantar e de estar até a porta da frente.
Lá fora, caíra a noite. O ar agora estava mais fresco do que
estivera ao entardecer, e logo ficaria frio de verdade — uns sete ou cinco
graus, talvez até mais frio — um lembrete de que o outono nas Sierras
era sempre breve e que o inverno estava ansioso para chegar e se
instalar.
Ao longo da Skyline Road, as luzes das ruas se acenderam

automaticamente com a chegada da noite. Nas vitrines de diversas lojas
também se haviam acendido as luzes noturnas, ativadas pelos diodos
sensĂ­veis Ă  luz que tinham reagido ao mundo exterior em fase de
escurecimento.
Na calçada diante da casa dos Santinis, Jenny e Lisa se
detiveram, impressionados com a vista que se lhes descortinava.
Descendo pelo lado da montanhas, os telhados pontudos e
bicudos destacando-se no céu noturno, a cidade era ainda mais bela do
que fora ao crepúsculo. Algumas chaminés deixavam escapar plumas
fantasmagóricas de fumaça de madeira. Algumas janelas brilhavam com
as luzes que vinham de dentro, mas a maioria, como espelhos escuros,
refletia os raios dos postes de luz. O vento brando fazia com que as
árvores se agitassem suavemente, em ritmo de canção de ninar, e os
sussurros resultantes eram como os suspiros meigos e os murmĂşrios
sonhadores de mil crianças serenamente adormecidas.
Contudo,

nĂŁo

somente

a

beleza

era

impressionante.

A

imobilidade absoluta, o silêncio — foi isso que fez com que Jenny se
detivesse. Ao chegarem Ă  cidade, achara-o estranho. Agora, estava
achando-o agourento.
— A subdelegacia do xerife fica na rua principal — disse para
Lisa. — Daqui a duas quadras e meia.
Apressaram-se a entrar no coração silencioso da cidade.

5

TrĂŞs balas

Uma única lâmpada fluorescente brilhava na penumbra da
cadeia municipal, mas o seu pescoço flexível estava dobrado vivamente,

focalizando a luz no alto de uma escrivaninha, revelando pouca coisa
mais da grande sala principal. Uma revista aberta jazia sobre o
mataborrĂŁo da escrivaninha, diretamente sob o facho de luz dura e
branca. Tirando isso, o local estava escuro, exceto pela luminosidade
pálida que se filtrava pelas janelas com mainel, vinda dos postes de luz.
Jenny abriu a porta e entrou, com Lisa logo atrás.
— Alô? Paul? Você está aí?
Ela localizou um interruptor de parede, acendeu as luzes do teto
— e crispou-se toda ao ver o que jazia no chão à sua frente. Paul
Henderson. Carne escura, pisada. Inchado. Morto!
— Ah, Jesus! — exclamou Lisa, afastando-se rapidamente. Foi
aos tropeções até a porta aberta, apoiou-se contra o umbral e inspirou
em grandes haustos o ar fresco da noite.
Com esforço considerável, Jenny abafou o medo primitivo que
começara a surgir dentro de si e se dirigiu para junto de Lisa. Pondo a
mĂŁo no ombro esguio da garota, perguntou:
— Você está bem? Quer vomitar?
Lisa estava fazendo força para não ter engulhos. Finalmente,
balançou a cabeça.
—

Não. N-não vou vomitar. Já vou ficar bem. V-vamos sair

—

Daqui a um minuto — falou Jenny. — Primeiro quero dar

daqui.

uma olhada no corpo.
— Você não pode querer olhar para aquilo.
— Tem razão. Não quero, mas talvez cú possa ter alguma idéia
do que estamos enfrentando. VocĂŞ pode esperar aqui junto Ă  porta.
A moça suspirou, resignada.
Jenny dirigiu-se para o cadáver que estava esparramado no
chĂŁo, ajoelhou-se ao lado dele.
Paul Henderson estava nas mesmas condições de Hilda Beck.
Cada centĂ­metro visĂ­vel da carne do delegado estava pisado. O corpo
estava intumescido: um rosto inchado e distorcido; o pescoço quase do
mesmo tamanho da cabeça; dedos que pareciam pedaços de lingüiça;

um abdome dilatado. No entanto, Jenny nĂŁo conseguia detectar nem o
mais leve sinal de decomposição.
Olhos que nĂŁo enxergavam saltavam de um rosto manchado e
preto. Aqueles olhos, justamente com a boca escancarada e retorcida,
demonstravam uma emoção inconfundível: o medo. Como Hilda, Paul
Hender.
— Você está bem? Quer vomitar?
Lisa estava fazendo força para não ter engulhos. Finalmente,
balançou a cabeça.
—

Não. N-não vou vomitar. Já vou ficar bem. V-vamos sair

—

Daqui a um minuto — falou Jenny. — Primeiro quero dar

daqui.

uma olhada no corpo.
— Você não pode querer olhar para aquilo.
— Tem razão. Não quero, mas talvez eu possa ter alguma idéia
do que estamos enfrentando. VocĂŞ pode esperar aqui junto Ă  porta.
A moça suspirou, resignada.
Jenny dirigiu-se para o cadáver que estava esparramado no
chĂŁo, ajoelhou-se ao lado dele.
Paul Henderson estava nas mesmas condições de Hilda Beck.
Cada centĂ­metro visĂ­vel da carne do delegado estava pisado. O corpo
estava intumescido: um rosto inchado e distorcido; o pescoço quase do
mesmo tamanho da cabeça; dedos que pareciam pedaços de lingüiça;
um abdome dilatado. No entanto, Jenny nĂŁo conseguia detectar nem o
mais leve sinal de decomposição.
Olhos que nĂŁo enxergavam saltavam de um rosto manchado e
preto. Aqueles olhos, justamente com a boca escancarada e retorcida,
demonstravam uma emoção inconfundível: o medo. Como Hilda, Paul
Henderson parecia ter morrido subitamente... e nas garras gélidas e
potentes do terror.
Jenny nĂŁo fora amiga Ă­ntima do morto. Conhecia-o, Ă© claro, pois
todos conheciam uns aos outros numa cidade tĂŁo pequena quanto
Snowfield. Ele parecia bastante agradável, um bom policial. Sentiu-se

desolada com o que acontecera a ele. Ao fitar-lhe o rosto contorcido, um
fio de náusea formou um nó de dor seca no seu estômago, e ela teve que
desviar os olhos.
A arma do delegado nĂŁo estava no coldre. Estava no chĂŁo, junto
ao corpo. Um revĂłlver calibre 45.
Ela fitou a arma, considerando as implicações. Talvez tivesse
escorregado do coldre quando o delegado caĂ­ra ao chĂŁo. Talvez. Mas ela
duvidava. A conclusĂŁo mais Ăłbvia era que Henderson puxara o revĂłlver
para se defender de um atacante.
Se fosse assim, então não fora morto por veneno ou moléstia.
Jenny olhou atrás de si. Lisa ainda estava parada junto à porta
aberta, apoiada contra o umbral, fitando a Skyline Road.
Levantando-se um pouco, afastando-se do corpo, Jenny ficou
agachada junto ao revĂłlver por longos segundos, examinando-o,
tentando decidir se devia ou não tocá-lo. Não estava tão preocupada
com o contágio quanto estivera imediatamente após a descoberta do
corpo da sra. Beck. Aquilo estava parecendo cada vez menos com um
caso de peste estranha. Além disso, se havia uma moléstia exótica
acossando Snowfidd, era assustadoramente virulenta, e Jenny, a esta
altura, certamente estaria contaminada. Nada tinha a perder se pegasse
o revĂłlver e o examinasse mais atentamente. O que mais a preocupava
era que podia estar apagando impressões digitais incriminadoras ou
outras provas importantes.
Mas mesmo que Henderson tivesse sido assassinado, nĂŁo era
provável que o criminoso tivesse usado a arma da própria vítima,
deixando nela, convenientemente, suas impressões digitais. Além do
mais, Paul não parecia ter sido baleado; ao contrário, se é que houvera
algum disparo, provavelmente fora ele quem puxara o gatilho.
Ela pegou o revĂłlver e o examinou. O cilindro tinha capacidade
para seis balas, mas três das câmaras estavam vazias. O cheiro acre de
pĂłlvora queimada revelava que a arma fora disparada recentemente; no
dia de hoje; quem sabe, nesta Ăşltima hora.
Carregando o 45, examinando o chão de cerâmica, ela se pôs de

pé e caminhou primeiro até uma ponta da área de recepção, depois até
a outra. Percebeu um brilho de metal, depois outro, e ainda outro: trĂŞs
cartuchos usados.
Nenhum dos tiros fora disparado para baixo, para o chĂŁo. A
cerâmica, muito bem polida, não apresentava marcas.
Jenny empurrou a porta de vaivém na grade de madeira e entrou
na área da cadeia propriamente dita. Desceu um corredor formado por
pares de escrivaninhas fronteiras, arquivos e mesas de trabalho. Parou
no centro do aposento e olhou lentamente para as paredes em verdeclaro e o teto branco de tijolo acĂşstico, procurando buracos de bala.
NĂŁo achou nenhum.
Ficou surpresa. Se a arma nĂŁo tinha sido disparada no chĂŁo,
nem apontada para as janelas da frente — e não o fora, pois não havia
um só vidro quebrado —, então tinha que ter sido disparada com o cano
apontado para dentro da sala, Ă  altura da cintura ou mais alto. Nesse
caso, para onde tinham ido as balas? NĂŁo via nenhum mĂłvel
danificado, nenhuma madeira lascada ou melai laminado destruĂ­do ou
plástico arrebentado, embora soubesse que uma bala de calibre 45
causaria estragos consideráveis no ponto de impacto.
Se as balas usadas nĂŁo estavam nesta sala, entĂŁo havia apenas
um outro lugar em que poderiam estar: no corpo do homem ou homens
para quem Paul Henderson apontara a arma.
Mas se o delegado houvesse ferido um assaltante — ou dois ou
três — com três tiros de um revólver calibre 45, três tiros colocados tão
certeiramente no tronco do assaltante que as balas tinham sido detidas
sem atravessá-lo, então haveria sangue por toda parte. Mas não havia
uma sĂł gota.
Confusa, voltou-se para a escrivaninha onde a lâmpada
fluorescente de haste flexível lançava a sua luz sobre um exemplar
aberto da revista Time. Ao lado, uma placa de metal onde se lia
SARGENTO PAUL J. HENDERSON. Fora aĂ­ que ele estivera sentado,
passando uma tarde aparentemente enfadonha, quando o que quer que
tenha acontecido... acontecera.

Com plena certeza do que ia escutar, Jenny tirou o fone do
gancho do aparelho sobre a mesa de Henderson. Nada de sinal de
discar. Apenas o sibilar eletrĂ´nico, de asa de inseto, de uma linha
aberta.
Como acontecera antes, quando tentara usar o telefone na
cozinha dos Santinis, teve a sensação de que não era a única que estava
na linha. Desligou o aparelho... com força demais, abruptamente
demais.
As mĂŁos lhe tremiam.
Na parede dos fundos da sala havia dois quadros de avisos, uma
fotoeopiadora, um armário de armas trancado, um rádio de polícia e um
teletipo. Jenny não sabia como operar o teletipo. Além disso, ele estava
mudo e parecia enguiçado. Não conseguiu fazer o rádio funcionar.
Embora a força estivesse ligada, a lâmpada indicadora não acendia. O
microfone continuava mudo. Quem quer que tivesse acabado com o
delegado acabara também com o teletipo e o rádio.
Voltando para a área de recepção na frente da sala, Jenny
reparou que Lisa nĂŁo estava mais parada no umbral da porta, e, por um
instante, seu coração ficou gelado. Depois viu a garota acocorada junto
ao corpo de Paul Henderson, espiando-o atentamente.
Lisa ergueu os olhos quando Jenny atravessou a porta na grade.
Apontando para o cadáver muito inchado, a garota falou:
— Não sabia que a pele podia esticar deste jeito sem rachar.
A sua pose — curiosidade científica, distanciamento, indiferença
estudada para com o horror da cena — era tão transparente quanto
uma vidraça. Os seus olhos dardejantes a traíam. Fingindo que não
estava achando aquilo desgastante, Lisa desviou o olhar do delegado e
se pôs de pé.
— Meu bem, por que não fica perto da porta?
— Fiquei enjoada comigo mesma por ser tão covarde.
— Ouça, mana, já lhe disse...
— Quero dizer, acho que vai acontecer algo com a gente, algo
ruim, aqui mesmo em Snowfield, hoje, a qualquer minuto, algo ruim de

verdade. Mas nĂŁo tenho vergonha desse medo, porque faz sentido ter
medo, depois de tudo que a gente viu. Mas tive medo até mesmo do
corpo do delegado, e isso foi muito infantil.
Quando Lisa fez uma pausa, Jenny ficou calada. A jovem tinha
mais coisas a dizer, e precisava botar tudo para fora.
— Ele está morto — continuou Lisa. — Não pode me fazer mal.
Não há motivo para ter medo dele. É errado ceder aos medos
irracionais, li errado, Ă© fraqueza e Ă© burrice. Uma pessoa deve enfrentar
esse tipo de medo — insistiu. — Enfrentá-lo é a única forma de vencêlo. Certo? Então resolvi enfrentar isto.
Inclinando a cabeça, indicou o homem morto a seus pés.
Há uma angústia tão grande nos seus olhos, pensou Jenny.
Não era meramente a situação em Snowfield que estava
mexendo com a garota. Era a lembrança de ter encontrado a mãe morta
de derrame numa tarde clara e quente de julho. De repente, por causa
de tudo isso, tudo aquilo lhe estava voltando, e voltando com força.
— Agora estou bem — dizia Lisa. — Ainda estou com medo do
que possa acontecer com a gente, mas não estou com medo dele. —
Lançou um olhar ao cadáver para comprovar o que dizia, depois ergueu
os olhos e fitou os de Jenny. — Está vendo? Pode contar comigo agora.
NĂŁo vou fraquejar mais.
Pela primeira vez, Jenny percebeu que era um modelo para Lisa.
Com os olhos, o rosto, a voz e as mĂŁos, Lisa revelava, de inĂşmeras
maneiras sutis, um respeito e uma admiração por Jenny que eram bem
maiores do que esta imaginara. Sem recorrer a palavras, a moça estava
dizendo algo que emocionava Jenny profundamente: Eu a amo, porém,
ainda mais do que isso, eu gosto de vocĂŞ; tenho orgulho de vocĂŞ, acho
que é fantástica, e se for paciente comigo, eu afarei orgulhosa e feliz de
me ter como irmã caçula.
A percepção de que ocupava uma posição tão elevada no
panteĂŁo pessoal de Lisa foi uma surpresa para Jenny. Por causa da
diferença de idades e porque Jenny estivera longe de casa quase
constantemente desde que Lisa tinha dois anos, ela imaginara ser

virtualmente uma estranha para a garota. Ficou a um sĂł tempo
lisonjeada e comovida com essa nova visĂŁo do relacionamento de
ambas.
—

Sei que posso contar com você — assegurou à garota. —

Nunca me ocorreu o contrário.
Lisa sorriu, constrangida. Jenny abraçou-a. Por um momento,
Lisa se agarrou a ela com força, e quando se afastaram, perguntou:
— Como é... encontrou alguma pista do que aconteceu aqui?
— Nada que faça sentido.
— O telefone não funciona, não é?
— Não.
— Quer dizer que estão todos enguiçados na cidade.
— Provavelmente.
Foram até a porta e depois saíram para a calçada de pedras
redondas. Olhando para a rua silenciosa, Lisa falou:
— Está todo mundo morto.
— Não se pode ter certeza.
— Todo mundo — insistiu a mocinha, suave e desoladamente.
— A cidade inteira. Todos eles. Dá para se sentir.
— Os Santinis estavam desaparecidos, não mortos — lembroulhe Jenny.
Uma lua crescente se erguera acima das montanhas enquanto
ela e Lisa estavam na subdelegacia do xerife. Nos lugares cobertos pela
noite que os postes de rua e as luzes das lojas não alcançavam, a luz
prateada da lua delineava os contornos das formas obscurecidas. O
luar, porém, nada revelava. Ao contrário, caía como um véu, agarrandose mais a alguns objetos do que a outros, oferecendo apenas vagos
indícios de suas formas, e, como todos os véus, dando um jeito de
tornar todas as coisas debaixo de si ainda mais misteriosas e obscuras
do que teriam sido em total escuridĂŁo.
— Um cemitério — falou Lisa. — A cidade inteira é um cemitério,
NĂŁo podemos pegar o carro e ir buscar ajuda?
— Sabe que não. Se foi uma moléstia que...

— Não foi moléstia.
— Não podemos ter certeza absoluta.
— Eu tenho. Tenho certeza. Além disso, você falou que também
quase a havia eliminado.
— Mas enquanto houver a mais leve chance, embora remota,
temos que nos considerar em quarentena.
Lisa pareceu notar a arma pela primeira vez.
— Isso era do delegado?
— Era.
— Está carregada?
—

Ele disparou trĂŞs vezes, restando, portanto, trĂŞs balas no

cilindro.
— Disparou contra o quê?
— Quem me dera saber.
— Você vai ficar com ela? — perguntou Lisa, tremendo. Jenny
fitou o revĂłlver na sua mĂŁo direita e assentiu.
— Acho que talvez eu deva.
— É. Mas, pensando bem... não adiantou para salvá-lo, não é?

6

Novidades e noções

Elas seguiram pela Skyline Road, movendo-se alternadamente
por sombras, luz amarelada dos postes de rua, escuridĂŁo e luar
fosfĂłrico. Ărvores regularmente espaçadas cresciam em jardineiras
junto ao meio-fio, à esquerda. À direita, passaram por uma loja de
presentes, um pequeno café e a loja de artigos de esqui dos Santinis.

Em cada um dos estabelecimentos, fizeram uma pausa para espiar
pelas janelas e vitrines, buscando sinais de vida, sem nada encontrar.
Também passaram por residências que davam diretamente para
a calçada. Jenny subiu os degraus de cada uma das casas e tocou a
campainha da frente. Ninguém veio atender, nem mesmo naquelas
casas em que havia luzes acesas no interior. Ela chegou a pensar em
experimentar

para

ver

se

algumas

daquelas

portas

estavam

destrancadas e depois entrar. Mas nĂŁo o fez, porque desconfiava, a
exemplo de Lisa, que os ocupantes (se Ă© que haveria algum) estariam
nas mesmas condições grotescas de Hilda Beck e Paul Henderson. Ela
precisava localizar pessoas vivas, sobreviventes, testemunhas. NĂŁo
podia saber de mais nada por meio de cadáveres.
— Existe alguma usina nuclear aqui por perto? — perguntou
Lisa.
— Não. Por quê?
— Alguma grande base militar?
— Não.
— É que pensei... quem sabe, radiação.
— Radiação não mata assim tão de repente.
— Uma explosão bem forte de radiação?
— Não deixaria as vítimas com essa aparência.
— Não?
— Haveria queimaduras, bolhas, lesões.
Chegaram ao SalĂŁo de Beleza Linda Dama, onde Jenny sempre
cortava o cabelo. A loja estava deserta, como era normal num domingo
comum. Jenny ficou imaginando o que teria acontecido com Madge e
Dani, as esteticistas proprietárias do salão. Gostava delas. Torcia para
que tivessem passado o dia fora da cidade, visitando os namorados em
Mount Larson.
— Veneno? — indagou Lisa, ao se afastarem do salão de beleza.
—

Como

Ă©

que a

cidade

toda

simultaneamente?
— Algum tipo de comida estragada.

poderia

ser

envenenada

— É, talvez todos estivessem num mesmo piquenique, comendo
a mesma salada de batata estragada ou porco contaminado, ou
qualquer coisa no gĂŞnero. Mas nĂŁo estavam. SĂł existe um piquenique
comunitário aqui, no Quatro de Julho.
— Ăgua envenenada?
— Só se todos resolvessem beber água exatamente no mesmo
momento, para que nĂŁo houvesse tempo de avisar uns aos outros.
— O que é praticamente impossível.
— Além disso, isso não se parece com nenhum tipo de reação a
veneno de que eu tenha conhecimento,
A padaria dos Liebermanns. Lira um prédio limpo e branco com
toldo de listras azuis e brancas. Durante a temporada de esqui, os
turistas faziam fila até o meio do quarteirão, o dia todo, sete dias por
semana, sĂł para comprar as grandes roscas de canela, os bolinhos
pegajosos, os biscoitos com pedacinhos de chocolate, os bolos de
amĂŞndoas recheados com chocolate mole e outras guloseimas que
Jakob e Aida Liebermann produziam com tremendo orgulho e raro
talento artĂ­stico. Os Liebermanns gostavam tanto do seu trabalho que
até optaram por morar perto dele, num apartamento por cima da
padaria (nĂŁo havia luz visĂ­vel ali no momento), e embora nĂŁo houvesse
tanto lucro nas atividades de abril a outubro quanto havia no resto do
ano, ainda assim eles permaneciam abertos de segunda a sábado, na
baixa temporada. As pessoas vinham de todas as cidades montanhesas
próximas — Mount Larson, Shady Roost e Pineville — para comprar
sacos e caixas cheios das gulodices dos Liebermanns.
Jenny se aproximou da grande vitrine e Lisa encostou a testa no
vidro. Na parte de trás do prédio, lá onde ficavam os fornos, a luz
jorrava vivamente por uma porta aberta, inundando uma ponta do
salão de vendas e iluminando indiretamente o resto do lugar. À
esquerda ficavam pequenas mesas de café, cada uma delas com um par
de cadeiras. Os mostruários de esmalte branco e frente de vidro
estavam vazios.
Jenny rezou para que Jakob e Aida tivessem escapado do

destino que parecia ter sido reservado ao restante de Snowfield. Eles
eram duas das pessoas mais meigas e bondosas que ela já conhecera.
Gente como os Liebermanns fazia de Snowfield um bom lugar para se
viver, um refĂşgio cio mundo rude onde a violĂŞncia e a maldade eram
desconcertantemente comuns.
Afastando-se da vitrine da padaria, Lisa falou:
— E quanto a resíduos tóxicos? Um vazamento químico. Algo
que tivesse levantado uma nuvem de gás mortífero.
—

Aqui não — explicou Jenny. — Aqui não existe nenhum

vazadouro de resíduos químicos. Nem fábricas. Nada no gênero.
—

Ă€s vezes isso acontece quando um trem descarrila e um

vagão cheio de substâncias químicas se arrebenta.
— A ferrovia mais próxima fica a 32 quilômetros.
O cenho franzido, pensando, Lisa começou a se afastar da
padaria.
— Espere, quero dar uma olhada aqui dentro — falou Jenny,
aproximando-se da porta da frente da loja.
— Por quê? Não tem ninguém aí.
—

Não podemos ter certeza. — Forçou a maçaneta da porta,

mas não conseguiu abri-la. — As luzes estão acesas nos fundos, na
cozinha. Eles podem estar lá, preparando as coisas para assar amanhã,
sem saber o que aconteceu no resto da cidade. Esta porta está
trancada. Vamos dar a volta pelo outro lado.
Por trás de um portão sólido de madeira, um corredor de serviço
estreito e coberto atendia tanto Ă  padaria dos Liebermanns quanto ao
SalĂŁo de Beleza Linda Dama. O portĂŁo se fechava com um trinco de
correr, que logo cedeu aos dedos trĂŞmulos de Jenny. Abriu-se com um
guincho e um ranger das dobradiças sem óleo. O túnel entre os dois
prédios era assustadoramente escuro; a única luz ficava na extremidade
oposta, uma mancha cinzenta e apagada em forma de arco, onde o
corredor terminava num beco.
— Não estou gostando disso — falou Lisa.
—

Tudo bem, querida. Venha atrás de mim e fique bem

juntinho. Se ficar desorientada, vá passando a mão pela parede.
Embora Jenny nĂŁo quisesse contribuir para o medo da irmĂŁ,
revelando as suas próprias dúvidas, o corredor às escuras também a
deixava nervosa. A cada passo, a passagem parecia ficar mais estreita,
espremendo-as.
Quando já estavam a cerca de um quarto do caminho, dentro do
túnel, Jenny sentiu-se tomada da estranha sensação de que ela e Lisa
nĂŁo estavam sozinhas. Dali a um instante, percebeu algo que se movia
no espaço mais escuro, sob o telhado, a uns três metros da sua cabeça.
NĂŁo soube dizer exatamente como o percebeu. NĂŁo ouvia nada que nĂŁo
fosse o eco de seus passos e dos de Lisa; também não enxergava grande
coisa. Só que, de repente, pressentiu uma presença hostil, e ao fitar
atentamente o teto escuro como breu do corredor, teve certeza de que a
escuridĂŁo estava... mudando.
Mexendo-se. Movendo-se. Movendo-se lá em cima nos caibros do
telhado.
Disse a si mesma que estava imaginando coisas, mas quando
chegou Ă  metade do tĂşnel os seus instintos animais estavam berrando
para que fugisse dali, para que corresse. Os médicos não deviam entrar
em pânico; a serenidade fazia parte do treinamento. Apertou o passo
um pouco, mas só um pouquinho, não muito, não em pânico. Depois de
alguns passos, andou ainda mais depressa, e mais, até que se pegou
correndo, mesmo a contragosto.
Irrompeu beco adentro. Estava sombrio aqui, mas nĂŁo tĂŁo
escuro quanto no tĂşnel.
Lisa saiu da passagem correndo, aos tropeções, escorregou num
trecho de asfalto molhado e quase caiu.
Jenny agarrou-a e impediu-a de ir ao chĂŁo.
Elas foram andando de costas, espiando a saĂ­da do corredor
coberto e sem luz. Jenny ergueu o revĂłlver que trouxera da
subdelegacia.
— Você sentiu? — indagou Lisa, sem fôlego.
— Qualquer coisa debaixo do telhado. Provavelmente pássaros,

ou quem sabe, na pior das hipóteses, vários morcegos.
Lisa sacudiu a cabeça.
— Não, não. Debaixo do telhado, não. Estava agachado contra a
parede.
Continuaram fitando a boca do tĂşnel.
— Eu vi alguma coisa nos caibros do telhado — falou Jenny.
— Não - insistiu a jovem, sacudindo vigorosamente a cabeça.
— O que foi que você viu então?
— Estava contra a parede. À esquerda. Mais ou menos na
metade do tĂşnel. Quase tropecei nele.
— O que era?
— Eu... não sei exatamente. Não pude ver direito.
— Escutou alguma coisa?
— Não — falou Lisa, os olhos grudados no corredor.
— Sentiu algum cheiro?
— Não. Mas a escuridão era... bem, houve um lugar em que a
escuridĂŁo ficou... diferente. Pude sentir alguma coisa se movendo... sei
lá... se mexendo...
— Foi isso que eu pensei que vi... mas lá em cima nos caibros
do telhado.
Elas esperaram. Nada saiu do corredor.
Aos poucos, os batimentos do coração de Jenny baixaram de um
galope desenfreado para um trote rápido. Ela baixou o revólver.
A respiração delas ficou calma. O silêncio noturno voltou a se
derramar como Ăłleo grosso.
As dúvidas vieram à tona. Jenny começou a desconfiar de que
ela e Lisa simplesmente haviam sucumbido Ă  histeria. NĂŁo gostava nem
um pouquinho dessa explicação, pois não combinava com a imagem
que fazia de si prĂłpria. Mas era suficientemente honesta consigo mesma
para enfrentar o fato desagradável de que, pelo menos desta vez,
entrara em pânico.
— Estamos apenas nervosas — falou para Lisa. — Se houvesse
alguma coisa ou alguém perigoso aí dentro, já teria vindo atrás de nós a

essa altura... nĂŁo acha?
— Talvez.
— Ei, sabe o que pode ter sido?
— O quê? — quis saber Lisa.
O vento frio soprou de novo e sussurrou baixinho no beco.
— Gatos — falou Jenny. — Alguns gatos. Eles gostam de ficar
nesses corredores cobertos.
— Não acho que fossem gatos.
— Podia ser. Uns dois gatos lá em cima nos caibros. E um ou
dois aqui no chĂŁo, junto da parede, onde vocĂŞ viu alguma coisa.
— Parecia maior do que um gato. Parecia bem maior do que um
gato — falou Lisa, nervosamente.
— Está certo, então não eram gatos. O mais provável é que não
fosse nada. Estamos muito excitadas. Nossos nervos estĂŁo Ă  flor da
pele. — Soltou um suspiro. — Vamos ver se a porta dos fundos da
padaria está aberta. Foi isso que viemos aqui verificar — está lembrada?
Elas se dirigiam para os fundos da padaria dos Liebermanns,
mas olhando repetidamente para trás, para a boca da passagem
coberta.
A porta de serviço da padaria estava destrancada, e havia luz e
calor por detrás dela. Jenny e Lisa entraram num depósito comprido e
estreito.
A porta interna levava do depósito até a imensa cozinha, que
tinha uni cheiro gostoso de canela, farinha, nogueira-preta e extrato de
laranja. Jenny inspirou profundamente. As fragrâncias apetitosas que
inundavam a cozinha eram tĂŁo caseiras, tĂŁo naturais, tĂŁo pungentes e
tranquilizadoramente reminiscentes de Ă©pocas normais e lugares
normais, que ela sentiu um pouco da sua tensĂŁo se esvair.
A padaria era bem equipada com pias duplas, um enorme
frigorífico, diversos fornos, vários armários imensos de esmalte branco
para armazenagem, uma máquina de amassar farinha, e mais uma
grande variedade de outros utensĂ­lios. O meio do aposento era ocupado
por um balcão comprido e largo, a principal área de trabalho; uma das

pontas do balcão tinha um tampo de aço inoxidável brilhante, e a outra
uma superfície de cepo de açougueiro. A parte de aço inoxidável, que
ficava mais perto da porta do depĂłsito, pela qual Jenny e Lisa tinham
entrado, estava cheia de panelas, fĂ´rmas de bolo, fĂ´rmas de abrir,
tabuleiros, tudo empilhado, limpo e brilhando. A cozinha inteira
brilhava.
— Não tem ninguém aqui — falou Lisa.
— É o que parece — falou Jenny, ficando mais animada ao se
adiantar mais para dentro da cozinha.
Se a famĂ­lia Santini tinha escapado, e se Jakob e Aida tinham
sido poupados, entĂŁo quem sabe a maioria da cidade nĂŁo estava morta.
Quem sabe...
Oh, Deus.
Do outro lado dos utensĂ­lios empilhados, no meio do cepo de
açougueiro, estava um grande disco de massa de torta. Um rolo de
macarrĂŁo de madeira apoiava-se na massa. Duas mĂŁos agarravam as
pontas do rolo de macarrĂŁo. Duas mĂŁos humanas cortadas.
Lisa se encostou a um armário de metal com tanta força que as
coisas que estavam dentro chacoalharam ruidosamente.
— Que diabo está acontecendo? Que diabo!
Atraída por uma fascinação mórbida e pela necessidade urgente
de compreender o que estava acontecendo ali, Jenny se aproximou mais
do balcĂŁo e fitou as mĂŁos sem corpo, encarando-as com igual medida de
repulsa e descrença — e com um medo afiado como lâminas. As mãos
nĂŁo estavam machucadas nem inchadas; tinham a cor de carne normal,
embora muito pálidas. O sangue — o primeiro sangue que via até então
— escorrera dos pulsos cortados irregularmente e brilhava em gotas e
borrões, em meio a uma nuvem fina de farinha. As mãos eram fortes;
ou mais precisamente — tinham sido fortes. Dedos rombudos. Nós dos
dedos grandes. Indubitavelmente mĂŁos de homem, com pĂŞlos brancos e
crespos nas costas. As mĂŁos de Jakob Liebermann.
— Jenny!
Jenny ergueu os olhos, espantada.

O braço de Lisa estava erguido, estendido; apontava para o outro
lado da cozinha.
Por trás do balcão de cepo de açougueiro, instalados na
comprida parede do lado oposto da cozinha, ficavam trĂŞs fornos. Um
deles era imenso, com um par de portas sólidas de aço inoxidável. Os
outros dois fornos eram menores do que o primeiro, embora ainda
maiores do que os modelos convencionais usados na maioria dos lares;
havia uma porta em cada um deles, e cada uma delas tinha uma parte
de vidro no centro. Nenhum dos fornos estava ligado no momento, o que
era uma felicidade, pois se os menores estivessem funcionando, a
cozinha teria estado tomada de um fedor nauseante.
Cada um deles continha uma cabeça cortada.
Jesus.
Rostos mortos e pavorosos olhavam sem ver para dentro da
cozinha, os narizes apertados de encontro ao vidro do forno.
Jakob Liebermann. O cabelo branco manchado de sangue. Um
dos olhos pluvialmente fechado, o outro olhando fixo. Os lábios
apertados numa careta de dor.
Ainda Liermann. Os dois olhos abertos. A boca escancarada
como se maxilares se tivessem deslocado.
Por um momento, Jenny não conseguiu acreditar que as cabeças
fossem reais. Era demais, chocante demais. Pensou em máscaras do
Dia das Bruxas, dispendiosas e naturais, espiando através das janelas
de celofane nas caixas de fantasia, e pensou nas novidades pavorosas
vendidas nas lojas de artigos de mágicas e brincadeiras — aquelas
cabeças de cera com cabelo de náilon e olhos de vidros, aquelas coisas
assustadoras que os meninos Ă s vezes achavam divertidĂ­ssimas (e sem
dúvida era isso o que estas eram) —, e, absurdamente, pensou numa
fala de um comercial de misturas de bolo para a TV: Nada Ă© tĂŁo
carinhoso quanto o que sai de um forno!
O coração dela batia com força.
Estava febril, tonta.
No balcão de cepo de açougueiro, as mãos ainda estavam

segurando o rolo de macarrĂŁo. Jenny quase esperava que elas saĂ­ssem
andando de repente sobre o balcĂŁo, como se fossem dois caranguejos.
Onde estavam os corpos decapitados dos Liebermanns? Enfiados
no grande forno, por trás das portas de aço sem janelas? Rígidos e
congelados no imenso frigorĂ­fico?
A bile subiu Ă  sua garganta, mas ela a sufocou.
O revĂłlver 45 agora parecia uma defesa ineficaz contra este
inimigo desconhecido e terrivelmente violento.
Outra vez, Jenny teve a sensação de estar sendo observada, e a
batida de seu coração não era mais um tambor de parada, mas sim
tĂ­mpanos.
Ela se voltou para Lisa.
— Vamos dar o fora daqui. — A garota se dirigiu para a porta do
depósito. — Por aí não! — exclamou Jenny vivamente. Lisa se virou,
pestanejando, confusa. — O beco não — falou Jenny. — E aquele
corredor escuro de novo, nĂŁo.
— Santo Deus, não — concordou Lisa.
Atravessaram rapidamente a cozinha e a outra porta, e entraram
no salão de vendas da padaria. Passaram pelos mostruários vazios,
pelas mesinhas de café e as cadeiras.
Jenny teve problemas com a tranca da porta da frente. Estava
emperrada. Ela pensou que teriam que sair pelo beco, afinal de contas.
E então se deu conta de que estava tentando girar o trinco ao contrário.
Girando-o na direção certa, a tranca correu com um claque e Jenny
escancarou a porta.
SaĂ­ram para o ar fresco da noite.
Lisa atravessou a calçada até um pinheiro alto. Parecia ter
necessidade ele se encostar em alguma coisa.
Jenny foi se juntar à irmã, lançando um olhar apreensivo à
padaria. NĂŁo ficaria surpresa de ver os dois corpos decapitados vindo
em sua direção com intenções demoníacas. Mas nada se movia na
regiĂŁo da padaria, exceto a beira recortada do toldo listrado de azul e
branco que ondulava Ă  brisa inconstante.

A noite permanecia silenciosa.
A lua estava um tanto mais alta no céu, desde a hora em que
Jenny e Lisa tinham entrado na passagem coberta.
Dali a um pouco, a garota falou:
— Radiação, moléstia, veneno, gás tóxico — puxa vida,
estávamos

completamente

enganadas.

Somente

outras

pessoas,

pessoas doentes, fazem esse tipo de barbaridade. Certo? Algum
psicopata tarado fez tudo isso.
Jenny sacudiu a cabeça.
— Um homem sozinho não podia ter feito tudo isso. Para
dominar uma cidade de quase quinhentas pessoas, teria sido preciso
um exército de assassinos psicopatas.
— Então foi isso o que aconteceu — disse Lisa, toda trêmula.
Jenny correu os olhos nervosamente pela rua deserta. Parecia
imprudente, até mesmo inconseqüente, estar parada ali, à vista de tudo
e todos, mas ela nĂŁo conseguia pensar em outro lugar que fosse mais
seguro.
— Os psicopatas não entram para clubes nem planejam
assassinatos em massa como se fossem rotarianos planejando um baile
de caridade. Quase sempre agem sozinhos.
Dardejando olhares de sombra em sombra, como se esperasse
que uma delas tivesse substância e intenções malévolas, Lisa falou:
— E quanto ao grupo de Charles Manson, nos anos 60, aquelas
pessoas que mataram aquela artista de cinema — como era o nome
dela?
— Sharon Tate.
— É. Não podia ser um grupo de pirados como eles?
—

No máximo, havia meia dúzia de pessoas no núcleo da

famĂ­lia Manson, e aquele foi um desvio muito raro do padrĂŁo do lobo
solitário. De qualquer modo, meia dúzia não poderia fazer isso com
Snowfield. Teriam que ser cinqĂĽenta, cem, quem sabe mais. Um
número tão grande de psicopatas não poderia agir junto. — Ficaram
ambas caladas por algum tempo. Depois, Jenny falou: — Tem outra

coisa que nĂŁo faz sentido. Por que nĂŁo havia mais sangue na cozinha?
— Havia um pouco.
—

Praticamente nenhum. Umas poucas manchas no balcĂŁo.

Devia haver sangue por toda parte.
Lisa esfregou os braços vivamente, para cima e para baixo,
tentando gerar um pouco de calor. O seu rosto era como cera Ă  luz
amarelada do poste de rua mais prĂłximo. Parecia ter bem mais do que
quatorze anos. O terror a amadurecera.
A mocinha falou:
— Também não havia sinais de luta. Jenny franziu o cenho.
— É mesmo, não havia.
—
Parece

Reparei logo nisso — falou Lisa. — Parecia tão esquisito.

que

eles

nĂŁo

ofereceram

nenhuma

resistĂŞncia.

Nada

arremessado. Nada quebrado. O rolo de macarrĂŁo teria dado uma boa
arma, não é? Mus de não o usou. Também não havia nada derrubado.
— É como se eles não houvessem resistido, como se... tivessem
posto o pescoço na guilhotina de bom grado.
— Mas por que fariam uma coisa dessas? Por que fariam uma
coisa dessas?
Jenny ficou olhando para a Skyline Road na direção da sua
casa, que ficava a menos de três quadras de distância, depois desviou o
olhar para a Taverna Ye Olde Towne, a Loja de Variedades Big Nickle, a
Sorveteria Patterson, a Pizzaria Mario.
Há silêncios e silêncios. Um nunca é igual ao outro. Há o silêncio
da morte, encontrado em túmulos e cemitérios desertos, na geladeira do
necrotério de uma cidade e, em certas ocasiões, em quartos de hospital;
é um silêncio sem mácula, não simplesmente uma quietude, mas um
vácuo. Como médica que já tivera o seu quinhão de pacientes com
moléstias terminais, Jenny conhecia bem esse silêncio sombrio e
especial.
Era isso. Era o silĂŞncio da morte.
Ela nĂŁo quisera admiti-lo. Fora por isso que ainda nĂŁo gritara
um "Alô" nas ruas funéreas. Tivera medo de que ninguém respondesse.

Agora

nĂŁo

gritava

porque

tinha

medo

de

que

alguém

respondesse. Alguém ou alguma coisa. Alguém ou alguma coisa
perigosa.
Finalmente, nĂŁo tinha outra escolha senĂŁo aceitar os fatos.
Snowfield estava indisputavelmente morta. NĂŁo era mais uma cidade:
era um cemitério, uma coleção primorosa de túmulos de pedramadeira-tijolo-telha-empena-sacada, um campo-santo construído à
moda de uma pitoresca aldeia alpina.
O vento recomeçou a soprar, assobiando debaixo dos beirais dos
prédios. Soava como a eternidade.

7

O xerife do condado

As autoridades do condado, com sede em Santa Mira, ainda nĂŁo
tinham tomado ciĂŞncia da crise de Snowfield. Tinham seus prĂłprios
problemas.

O

tenente

Talbert

Whitman

entrou

na

sala

de

interrogatĂłrios justo na hora em que o xerife Bryce Hammond ligava o
gravador

e

começava

a

informar

o

suspeito

de

seus

direitos

constitucionais. Tal fechou a porta sem fazer ruĂ­do. Sem querer
interromper, agora que o interrogatório estava começando, ele não se
sentou Ă  mesa em que os trĂŞs outros homens se achavam sentados. Em
vez disso, dirigiu-se Ă  grande janela, a Ăşnica janela, no aposento
oblongo.
O departamento policial do Condado de Santa Mira ocupava
uma estrutura em estilo espanhol que fora erigida no final da década de
30. As portas eram sĂłlidas e tinham um som sĂłlido quando eram

fechadas, e as paredes eram grossas o bastante para acomodar peitoris
de janela de 45cm de profundidade, como aquele em que Tal Whitman
se instalara.
Do outro lado da janela ficava Santa Mira, a sede do condado,
com uma população de 18 mil almas. Pela manhã, quando o sol
finalmente chegava ao alto das Sierras e acabava com as sombras das
montanhas, Tal Ă s vezes se pegava olhando, espantado e encantado,
para os contra-fortes suaves e arborizados onde se erguia Santa Mira,
pois ela era uma cidade excepcionalmente limpa e jeitosa que lançara
suas raĂ­zes de concreto e ferro com um certo respeito pelas belezas
naturais em que crescera. Agora, a noite já se instalara. Milhares de
luzes brilhavam nas colinas suaves abaixo das montanhas, e parecia
que as estrelas tinham caido aqui.
Para um filho do Harlem, negro como uma sombra nĂ­tida de
inverno, nascido na pobreza e na ignorância, Tal Whitman linha
acabado, aos trinta anos, num lugar bem inesperado. Inesperado, mas
maravilhoso.
Do lado de cá da janela, todavia, a cena não era assim tão
especial. A sala de interrogatĂłrios se parecia com inĂşmeras outras em
delegacias de polĂ­cia por todo o paĂ­s. Um piso barato de linĂłleo.
Arquivos muito castigados. Uma mesa redonda de reuniĂŁo e cimo
cadeiras. Paredes verdes. Lâmpadas fluorescentes nuas.
Na mesa de reuniões no centro da sala, o ocupante atual da
cadeira de suspeitos era um corretor imobiliário de 26 anos, alto e bemapessoado, chamado Fletcher Kale. Ele estava ficando num estado
impressionante de indignação justificada.
— Escute, xerife — dizia Kale —, vamos acabar logo com essa
merda? O senhor nĂŁo precisa ler para mim os meus direitos outra vez,
pelo amor de Deus. Já não passamos por tudo isso unia dúzias de
vezes, nos trĂŞs Ăşltimos dias?
Bob Robine, o advogado de Kale, bateu rapidamente no braço do
cliente para fazer com que ele ficasse quieto. Robine era gorducho, de
rosto redondo, com um sorriso doce mas com os olhos duros de um

segurança de cassino.
— Fletch — disse Robine —, o xerife Hammond sabe que deteve
você sob suspeita o máximo de tempo que a lei permite, e sabe que eu
sei disso também. Então, tudo que ele vai fazer é resolver isso de um
jeito ou de outro dentro da prĂłxima hora.
Kale pestanejou, assentiu e mudou de tática. Desabou na
cadeira como se um grande fardo de dor repousasse sobre seus ombros.
Quando falou, havia um leve tremor na sua voz.
— Desculpe se perdi a cabeça por um minuto, xerife. Não devia
ter estourado com o senhor daquele jeito. Mas Ă© tĂŁo duro para mim...
tão duro. — O rosto dele pareceu afundar, e o tremor na sua voz ficou
ainda mais pronunciado. — Quero dizer, pelo amor de Deus, perdi a
minha famĂ­lia. Minha mulher... meu filho... os dois mortos. Bryce
Hammond falou:
— Sinto muito que o senhor ache que eu o tratei injustamente,
Sr. Kale. Apenas tento fazer o que acho ser melhor. Às vezes estou
certo. Quem sabe esteja errado desta vez.
Aparentemente decidindo que nĂŁo estava assim tĂŁo encrencado,
afinal de contas, e que podia se dar ao luxo de ser magnânimo agora,
Fletcher Kale enxugou as lágrimas do rosto, sentou-se mais ereto na
cadeira e falou:
— Bem... é, bem... acho que dá para eu entender a sua posição,
xerife.
Kale estava subestimando Bryce Hammond.
Bob Robine conhecia o xerife melhor do que o seu cliente.
Franziu o cenho, lançou um olhar para Tal, depois fitou Bryce
insistentemente.
Pela experiĂŞncia de Tal, a maioria das pessoas que lidava com o
xerife subestimava-o, assim como Fletcher Kale o fizera. Era fácil fazêlo. Bryce não parecia impressionante. Tinha 39 anos, mas aparentava
bem menos. O cabelo avermelhado e espesso lhe caĂ­a por sobre a testa,
dando-lhe um ar juvenil e desarrumado. Tinha o nariz achatado, com
um punhado de sardas espalhadas por ele e por ambas as faces. Os

olhos azuis eram claros e vivos, embora cobertos por pálpebras pesadas
que davam a impressĂŁo de que ele estava entediado, sonolento, ou
mesmo que era meio lerdo de raciocínio. A sua voz também enganava.
Era suave, melódica, gentil. Além do mais, ele falava lentamente às
vezes, e sempre com deliberação calculada, e algumas pessoas achavam
que falava daquele jeito porque tinha dificuldade em formular os
pensamentos. Nada podia estar mais longe da verdade. Bryce Hammond
tinha consciĂŞncia perfeita de como os outros o viam e, quando podia
tirar vantagem disso, reforçava essas opiniões errôneas com um modo
de ser insinuante, com um sorriso quase boçal e com uma fala ainda
mais arrastada que faziam com que parecesse o clássico tira do interior.
Apenas uma coisa impedia Tal de apreciar plenamente esse
confronto: ele sabia que a investigação Kale afetara Bryce Hammond
num nĂ­vel profundo e pessoal. Bryce estava magoado, arrasado com as
mortes sem sentido de Joanna e Danny Kale, porque, de uma forma
curiosa, este caso fazia eco aos acontecimentos ocorridos na sua
prĂłpria vida. Assim como Fletcher Kale, o xerife perdera mulher e filho,
embora as circunstâncias de sua perda fossem consideravelmente
distintas das de Kale.
Um ano atrás, Ellen Hammond tivera morte instantânea num
desastre de carro. Timmy, de sete anos, sentado no banco da frente ao
lado da mãe, sofrera sérios ferimentos na cabeça e estava em coma há
doze meses. Os médicos não davam a Timmy muita chance de recobrar
a consciĂŞncia.
Bryce quase fora destruído pela tragédia. Apenas recentemente é
que Tal Whitman começara a sentir que o amigo estava se afastando do
abismo do desespero.
O caso Kale reabrira as feridas de Bryce Hammond, mas ele nĂŁo
permitira que a dor lhe embotasse os sentidos; ele nĂŁo fizera com que
ele se descuidasse de coisa alguma. Tal Whitman sabia qual o momento
preciso, na quinta à noite, em que Bryce começara a suspeitar de que
Fletcher Kale era culpado de dois assassinatos premeditados, pois
subitamente algo frio e implacável surgira nos olhos encobertos do

xerife.
Agora, enquanto rabiscava num bloquinho amarelo como se
estivesse apenas parcialmente interessado no interrogatĂłrio, o xerife
falou:
— Sr. Kale, em vez de fazer uma série de perguntas às quais o
senhor já respondeu uma dúzia de vezes, por que não faço um resumo
daquilo que o senhor nos contou? Se o meu resumo parecer correto
para o senhor, entĂŁo poderemos prosseguir com esses itens sobre os
quais gostaria que me esclarecesse.
— Claro. Vamos terminar logo com isso e sair daqui — disse
Kale.
— Tudo bem então — falou Bryce. — Sr. Kale, segundo o seu
testemunho, sua esposa, Joanna, sentia-se aprisionada no casamento e
na maternidade, achava que era jovem demais para ter tanta
responsabilidade. Achava que tinha cometido um grande erro e que iria
ter que pagar por ele o resto da vida. Queria curtir um pouco, queria
fugir, entĂŁo se voltou para as drogas. O senhor diria que foi assim que
nos descreveu o estado de espĂ­rito dela.
— Foi — concordou Kale. — Exatamente.
— Ótimo — falou Bryce. — Então ela começou a fumar
maconha. NĂŁo demorou muito para ela viver drogada quase o tempo
todo. Durante dois anos e meio o senhor viveu com uma viciada, o
tempo todo esperando poder modificá-la. Então, h;i uma semana, ela
pirou de vez, quebrou um bocado de pratos e jogou comida pela
cozinha, e o senhor teve uma trabalheira para conseguir acalmá-la. Foi
então que descobriu que ela começara a usar recentemente o PCP —
que Ăł chamado de "pĂł de anjo" nas ruas. O senhor ficou chocado. Sabia
que algumas pessoas ficam maniacamente violentas quando estĂŁo sob a
influĂŞncia do PCP; entĂŁo fez com que ela lhe mostrasse onde guardava o
seu suprimento e o destruiu. Depois, disse a ela que se voltasse a usar
drogas perto de Danny novamente, o senhor lhe daria uma surra que
poderia matá-la.
Kale pigarreou.

— Mas ela ficou rindo de mim. Disse que eu não era espancador
de mulheres e que nĂŁo devia fingir que era um machĂŁo. E mais: "Porra,
Fletch, seu eu te desse um chute no saco, vocĂŞ me agradeceria por estar
animando o seu dia."
— E foi aí que o senhor se descontrolou e começou a chorar? —
perguntou Bryce.
Kale respondeu:
—

Bem.., Ă© que eu me dei conta de que nĂŁo tinha nenhuma

influĂŞncia sobre ela.
Sentado no peitoril da janela, Tal viu o rosto de Kale se retorcer
de dor... ou de uma imitação razoável de dor. O filho da mãe era bom.
— E quando o viu chorar — disse Bryce —, ela caiu em si.
— Certo. Acho que... aquilo mexeu com ela... um homenzarrão
como eu chorando feito um bebê. Ela também chorou e prometeu não
tomar mais PCP. Conversamos sobre o passado, sobre o que tĂ­nhamos
esperado do casamento, dissemos um bocado de coisas que talvez
devĂŞssemos ter dito antes e nos sentimos mais prĂłximos do que nos
Ăşltimos dois anos. Pelo menos eu me senti assim. Pensei que ela
também. Ela jurou que começaria a diminuir o consumo de maconha.
Ainda rabiscando, Bryce falou:
—

EntĂŁo, na quinta-feira passada, o senhor chegou cedo do

trabalho e encontrou o seu filho, Danny, morto no quarto de casal.
Escutou um barulho Ă s suas costas. Era Joanna, segurando um cutelo
de açougueiro, o mesmo que usara para matar Danny.
— Ela estava drogada — disse Kale. — PCP. Pude perceber logo.
Aquela loucura nos olhos dela, o ar animalesco.
—

Ela berrou um bocado de baboseiras sobre cobras que

moravam dentro da cabeça das pessoas, sobre as pessoas sendo
controladas por cobras perversas. O senhor foi se afastando dela, e ela
veio atrás. O senhor não tentou tirar o cutelo de suas mãos...
— Imaginei que seria morto. Tentei argumentar com ela.
—

Então o senhor continuou se afastando em círculos até

chegar à mesinha-de-cabeceira onde guardava um 38 automático.

— Eu avisei a ela que largasse o cutelo. Eu avisei.
— Em vez disso, ela correu para cima do senhor com o cutelo
levantado. EntĂŁo o senhor atirou nela. Uma vez. No peito.
Kale agora estava inclinado para a frente, com o rosto nas mĂŁos.
O xerife largou a caneta. Pousou as mĂŁos sobre o estĂ´mago, com os
dedos entrelaçados.
—

Agora, sr. Kale, espero que o senhor possa ter mais um

pouquinho de paciĂŞncia comigo. SĂł mais umas perguntinhas e depois
todos poderemos sair daqui e continuar vivendo as nossas vidas.
Kale tirou as mĂŁos do rosto. Estava claro para Tal Whitman que
Kale achava que "continuar vivendo as nossas vidas" queria dizer que
ele seria finalmente libertado.
—

Estou bem, xerife. Pode prosseguir. Bob Robine nĂŁo disse

uma palavra.
Esparramado na cadeira, parecendo frouxo e sem ossos, Bryce
Hammond disse:
—

Enquanto o estivemos detendo sob suspeita, sr. Kale,

surgiram algumas perguntas para as quais precisamos de respostas, a
fim de podermos ficar tranqüilos com relação a essa coisa terrível. Bem,
algumas dessas perguntas podem parecer muito corriqueiras para o
senhor, muito indignas de gastarmos o meu ou o seu tempo com elas.
SĂŁo pequenas coisas, lenho que admitir. O motivo pelo qual estou
continuando a incomodá-lo... bem, é porque quero ser reeleito no ano
que vem, sr. Kale. Se os meus oponentes me pegarem em qualquer falha
técnica, em qualquer coisinha, por menor que seja, vão fazer de tudo
para transformar a coisa num escândalo. Vão dizer que sou preguiçoso,
que nĂŁo sou mais o mesmo, ou algo parecido.
Bryce abriu um sorriso para Kale — um largo sorriso. Tal nem
podia acreditar.
— Compreendo, xerife — falou Kale.
Do seu assento no vĂŁo da janela, Talbert Whitman se retesou e
se inclinou para diante.
E Bryce Hammond falou:

— Bem, a primeira coisa é... eu estava me perguntando por que
motivo o senhor atirou na sua mulher e depois lavou um bocado de
roupa antes de nos ligar para comunicar o que acontecera.

8

Barricadas

Mãos cortadas. Cabeças cortadas.
Jenny nĂŁo conseguia tirar do pensamento aquelas imagens
horrendas enquanto andava rapidamente pela calçada, junto com Lisa.
A dois quarteirões para leste da Skyline Road, na Vail Lane, a
noite era tão quieta e discretamente ameaçadora quanto no restante de
Snowfield. As árvores aqui eram maiores do que aquelas na rua
principal; bloqueavam a maior parte do luar. As luzes das mas também
eram mais espaçadas, e as pequenas poças de luz âmbar eram
separadas por lagos agourentos de escuridĂŁo.
Jenny cruzou dois mourões e pisou num caminho de tijolos que
levava a um chalé estilo inglês de um só pavimento que ocupava um
terreno bem fundo. Uma luz suave se irradiava pelas janelas de vidro de
chumbo com as vidraças em forma de losango.
Tom e Karen Oxley moravam no chalé enganadoramente
pequeno. Na verdade, ele tinha sete cĂ´modos e dois banheiros. Tom era
o contador da maioria de pousadas e motéis da cidade. Karen dirigia
um encantador café francês na alta temporada. Os dois eram
radioamadores e tinham um aparelho de ondas curtas, e fora por esse
motivo que Jenny viera até aqui.
— Se alguém sabotou o rádio do gabinete do xerife — falou Lisa

—, o que a faz pensar que também não sabotaram este?
—

Talvez nĂŁo soubessem da existĂŞncia dele. Vale a pena dar

uma olhada.
Ela tocou a campainha, e quando nĂŁo houve resposta,
experimentou abrir a porta. Estava trancada.
Dirigiram-se aos fundos da propriedade, onde uma luz tom de
conhaque se filtrava pelas janelas. Jenny olhou, desconfiada, para o
gramado dos fundos, que estava envolto nas sombras das árvores. Os
passos delas ecoavam com som cavo no piso de madeira da varanda dos
fundos. Ela tentou abrir a porta da cozinha e encontrou-a trancada
também.
Na janela mais prĂłxima, as cortinas estavam abertas. Jenny
olhou para dentro e viu apenas uma cozinha comum: balcões verdes,
paredes de cor creme, armários de carvalho, utensílios que brilhavam,
nenhum sinal de violĂŞncia.
Outras janelas davam para a varanda, e uma delas, Jenny sabia,
era de um gabinete de leitura. As luzes estavam acesas, mas as cortinas
se achavam cerradas, Jenny bateu no vidro, mas ninguém respondeu.
Tentou abrir a janela, viu que estava trancada. Agarrando o revĂłlver
pelo cano, ela estilhaçou a vidraça mais próxima do batente central. O
ruĂ­do do vidro que se partia foi alto e dissonante. Embora isso fosse
uma emergĂŞncia, ela se sentia como uma ladra. Meteu a mĂŁo pela
vidraça quebrada, soltou o trinco, abriu as duas metades da janela e
subiu pelo peitoril para dentro da casa. Atrapalhou-se um pouco com
as cortinas, depois descerrou-as para Lisa poder entrar com mais
facilidade.
Havia dois corpos no pequeno gabinete de leitura. Tom e Karen
Oxley.
Karen estava deitada no chĂŁo, de lado, as pernas puxadas para
junto da barriga, os ombros curvados para diante, os braços cruzados
sobre os seios — uma posição fetal. Estava pisada e inchada. Tinha os
olhos arregalados de terror. A boca estava escancarada, congelada para
sempre num grito.

— Os rostos deles são o pior — falou Lisa.
—

NĂŁo consigo entender por que os mĂşsculos faciais nĂŁo se

relaxaram com a morte. NĂŁo entendo como podem permanecer tensos
deste jeito.
— O que será que viram! — perguntou Lisa.
Tom Oxley se achava sentado diante do rádio de ondas curtas.
Estava caído por cima do rádio, a cabeça voltada para o lado. Coberto
de machucaduras e horrendamente inchado, igual a Karen. A mĂŁo
direita se agarrava a um microfone de mesa, como se ele tivesse
perecido enquanto se recusava a largá-lo. Era evidente que não
conseguira mandar um pedido de socorro. Se tivesse conseguido enviar
a mensagem, a polícia sem dúvida já teria chegado a Snowfield.
O rádio estava mudo.
Era o que Jenny imaginara tĂŁo logo vira os corpos.
Todavia, nem o estado do rádio nem o estado dos corpos eram
tĂŁo interessantes quanto a barricada. A porta do gabinete estava
fechada c, presumivelmente, trancada. Karen e Tom tinham arrastado
um armário pesado até a frente da porta. Depois tinham empurrado um
par de poltronas contra o armário, depois encostado um aparelho de
televisĂŁo contra as poltronas.
— Estavam resolvidos a não deixar alguma coisa entrar aqui —
falou Lisa.
— Mas ela entrou, de qualquer maneira.
— Como?
Ambas olharam para a janela pela qual haviam entrado.
— Estava trancada pelo lado de dentro — falou Jenny. A sala
tinha apenas uma outra janela.
Elas foram até ela e afastaram as cortinas.
Também estavam trancadas por dentro, com toda a segurança.
Jenny ficou olhando para a noite lá fora até que sentiu que algo
oculto na escuridão também a fitava, dando uma boa olhada nela
enquanto estava ali, desprotegida, na janela iluminada. Ela fechou
depressa as cortinas.

— Um quarto trancado — falou Lisa.
Jenny virou-se lentamente e examinou o gabinete de leitura.
Havia uma pequena saĂ­da de um duto de aquecimento, coberta com
uma placa de metal cheia de fendas estreitas, e ainda cerca de um
centímetro e meio de espaço sob porta com barricada. Mas não havia
jeito de alguém ter obtido acesso ao aposento.
Ela falou:
— Pelo que estou vendo, somente bactérias, gás tóxico ou algum
tipo de radiação poderiam ter entrado aqui para matá-los.
— Mas nenhuma dessas coisas matou os Liebermanns. Jenny
concordou.
— Além disso, ninguém armaria uma barricada para impedir a
entrada de radiação, gás ou germes.
Quantos dos habitantes de Snow field tinham se trancado em
casa, pensando que tinham encontrado refúgios defensáveis — e
acabaram morrendo tĂŁo sĂşbita e misteriosamente quanto aqueles que
nĂŁo tinham tido tempo de correr? E o que era aquilo que podia entrar
em quartos trancados sem abrir portas ou janelas? O que passara por
essa barricada sem mexer nela?
A casa dos Oxleys estava tĂŁo silenciosa quanto a superfĂ­cie da
lua.
Finalmente, Lisa falou:
— E agora?
—

Acho que talvez vamos ter que nos arriscar a apanhar o

contágio. Vamos sair da cidade e ir até o telefone público mais próximo
ligar para o xerife em Santa Mira, contar a ele a situação e deixar que
ele resolva como lidar com ela. Depois voltaremos para cá e
esperaremos. NĂŁo teremos contato direto com pessoa alguma, e eles
poderão esterilizar a cabine telefônica, se acharem necessário.
— Detesto a idéia de voltar para cá, depois de ter saído — falou
Lisa, ansiosa.
—

Eu também. Mas temos que agir de modo responsável.

Vamos indo — disse Jenny, virando-se para a janela aberta pela qual

tinham entrado.
O telefone tocou.
Espantada, Jenny se voltou para o som estridente. O telefone
estava na mesa do rádio. Tocou de novo. Ela agarrou o fone e retirou-o
do gancho.
— Alô? — Não houve resposta. — Alô? Um silêncio gélido.
A mão de Jenny segurou com mais força o fone.
Alguém estava prestando atenção, permanecendo em silêncio
completo, esperando que ela falasse. Ela estava resolvida a nĂŁo lhe dar
essa satisfação. Simplesmente apertou o fone de encontro ao ouvido e
fez força para escutar alguma coisa, qualquer coisa, nem que fosse o
débil fluxo da respiração da misteriosa figura. Não foi emitido o mais
leve som, mas ela podia sentir, na outra extremidade da linha, a
presença que sentira ao pegar no telefone na casa dos Santinis e na
subdelegacia do xerife.
Parada naquele aposento com barricada, naquela casa silenciosa
onde a Morte penetrara de modo impossivelmente furtivo, Jenny Paige
sentiu uma estranha transformação ocorrendo na sua pessoa. Era uma
mulher instruĂ­da, de raciocĂ­nio e lĂłgica, nem ao menos ligeiramente
supersticiosa. Até o momento, tentara resolver o mistério de Snowfield
aplicando as ferramentas da lĂłgica e da razĂŁo. Pela primeira vez na
vida, porém, elas lhe haviam falhado totalmente. Agora, no fundo da
sua mente, algo... se deslocou, como se uma cobertura de ferro
imensamente pesada estivesse sendo tirada de uma cova escura no seu
subconsciente. Nessa cova, dentro de câmaras antigas da sua mente,
jazia uma legião de sensações e percepções primitivas, um espanto
supersticioso que era novo para ela. Virtualmente ao nĂ­vel da memĂłria
da raça armazenada nos genes, ela pressentia o que estava acontecendo
em Snowfield. Esse conhecimento estava dentro dela; todavia, era tĂŁo
estranho, tĂŁo fundamentalmente ilĂłgico, que ela lhe opĂ´s resistĂŞncia,
lutando com força para suprimir o terror supersticioso que fervia dentro
de si.
Agarrando o fone, ela escutou a presença silenciosa na linha e

discutiu consigo mesma:
— Não é um homem; é uma coisa.
— Besteira.
— Não é humano, mas é consciente.
— Você está histérica.
— Indizivelmente malévolo; perfeita e puramente perverso.
— Pare com isso, pare com isso, parei
Teve vontade de bater o telefone. NĂŁo pĂ´de fazĂŞ-lo. A coisa do
outro lado da linha a hipnotizara. Lisa se acercou.
— O que foi? O que está acontecendo?
TrĂŞmula, ensopada de suor, sentindo-se maculada pelo simples
fato de estar escutando aquela presença desprezível, Jenny já ia
arrancar o telefone do ouvido quando ouviu um sibilar, um clique — e
depois o sinal de linha.
Por um momento, atônita, não teve reação.
EntĂŁo, com um gemido, apertou o botĂŁo da telefonista no
aparelho.

Ele

começou

a

tocar.

Que

som

doce,

maravilhoso,

reconfortante.
— Telefonista.
— Telefonista, é uma emergência — disse Jenny. — Quero falar
com o gabinete do xerife do condado, em Santa Mira.

9

Um pedido de ajuda

— Roupa? — indagou Kale. — Que roupa?
Bryce podia ver que Kale ficara sobressaltado com a pergunta e

que estava apenas fingindo que nĂŁo entendia.
— Xerife, aonde quer chegar com isso? — perguntou Bob
Robine. Os olhos encobertos de Bryce permaneceram assim, e ele
manteve a voz baixa, lenta.
—

Ora, Bob, sĂł estou tentando resolver tudo, para podermos

todos sair daqui. Juro que nĂŁo gosto de trabalhar aos domingos, e este
já está praticamente perdido. Tenho essas perguntas a fazer, e o sr.
Kale nĂŁo precisa responder a nenhuma delas, mas vou fazĂŞ-las, para
poder ir para casa e botar os pés para cima e tomar uma cerveja.
Robine soltou um suspiro. Olhou para Kale.
— Só responda se eu disser que pode. Agora preocupado, Kale
assentiu. Franzindo o cenho para Bryce, Robine disse:
— Continue.
—

Quando chegamos na casa do sr. Kale na quinta-feira

passada — continuou Bryce —, depois que ele ligou para comunicar as
mortes, eu notei que a ponta de uma das pernas das calças dele e a
extremidade grossa inferior da sua suéter estavam ambas ligeiramente
Ăşmidas, tĂŁo ligeiramente que mal dava para se reparar. Fiquei achando
que ele lavara tudo que estava usando e que nĂŁo deixara as roupas no
secador o tempo suficiente. EntĂŁo, dei uma espiada na lavanderia e
encontrei uma coisa interessante. No armário ao lado da máquina de
lavar, onde a sra. Kale guardava os seus sabões, detergentes e
amaciantes de tecidos, havia duas impressões digitais sangrentas na
caixa grande de Cheer. Uma estava borrada, mas a outra estava nĂ­tida.
O laboratĂłrio diz que a digital Ă© do sr. Kale.
—

De quem era o sangue que estava na caixa? — indagou

vivamente Tobine.
—

Tanto a sra. Kale quanto Danny eram tipo O. O Sr. Kale

também. Isso torna um pouco mais difícil para nós...
— O sangue na caixa de detergente? — interrompeu Robine.
— Tipo O.
—

EntĂŁo poderia ser o sangue do meu prĂłprio cliente! Ele

poderia tĂŞ-lo deixado na caixa numa ocasiĂŁo anterior, quem sabe depois

de ter se cortado na semana passada, quando mexia no jardim.
Bryce sacudiu a cabeça.
— Como você sabe, Bob, esse negócio de tipo de sangue está
ficando altamente sofisticado hoje em dia. Ora, podem dividir uma
amostra em várias enzimas e identidades de proteínas, mas o sangue de
uma pessoa é quase tão único quanto as suas impressões digitais.
Portanto, eles puderam nos dizer, inequivocamente, que o sangue na
caixa de Cheer — o sangue na mão do sr. Kale quando deixou aquelas
duas digitais — era do pequeno Danny Kale.
Os olhos cinzentos de Fletcher Kale continuaram parados e
inexpressivos, mas ele ficou bem pálido.
— Posso explicar — falou.
— Espere aí! — disse Robie. — Explique primeiro a mim — em
particular.
O advogado levou o seu cliente para o canto mais afastado da
sala.
Bryce estava largado na sua cadeira. Sentia-se cinzento,
esgotado. Estava daquele jeito desde a quinta-feira, desde que vira o
corpo patético e amassado de Danny Kale.
Esperava sentir um prazer considerável ao ver Kale passar por
maus pedaços. Mas não havia prazer naquilo.
Robine e Kale retornaram.
—

Xerife, infelizmente o meu cliente fez uma burrice. — Kale

tentava parecer adequadamente constrangido. — Fez uma coisa que
poderia ser mal interpretada — como aconteceu até com o senhor. O sr.
Kale estava assustado, confuso, arrasado de dor. NĂŁo conseguia pensar
com clareza. Tenho certeza de que qualquer jĂşri o compreenderia. Sabe,
quando ele achou o corpinho do filho, pegou-o no colo...
— Ele nos disse que não tocou nele.
Kale enfrentou com firmeza o olhar de Bryce e falou:
— Logo que vi Danny deitado no chão... eu não podia realmente
acreditar que ele estava... morto. Peguei-o no colo... achando que devia
levá-lo ao hospital... Mais tarde, depois que atirei em Joanna, olhei para

baixo e vi que estava coberto com... o sangue de Danny. Eu tinha
atirado na minha mulher, mas de repente me dei conta de que podia
parecer que também tinha matado o meu próprio filho.
— Ainda havia o cutelo de açougueiro na mão da sua mulher —
falou Bryce. — E ela também estava toda coberta com o sangue de
Danny. E o senhor podia ter concluĂ­do que o legista encontraria o pĂł de
anjo na corrente sangĂĽĂ­nea dela.
Agora estou percebendo tudo isso — disse Kale, tirando um
lenço do bolso e enxugando os olhos. — Mas, na hora, fiquei com medo
de ser acusado de uma coisa que nĂŁo fizera.
A palavra "psicopata" nĂŁo era exatamente correta para Fletcher
Kale, concluiu Bryce. Ele nĂŁo era maluco. Tampouco era exatamente
um

sociopata.

NĂŁo

havia

uma

palavra

que

o

descrevesse

adequadamente. Todavia, um bom tira reconheceria o tipo e enxergaria
o potencial para atividades criminosas e, talvez, igualmente, o talento
para violĂŞncia bruta. Existe um certo tipo de homem que tem muita
vitalidade e gosta de muita ação, um homem que tem uma boa dose de
encanto superficial, cujas roupas sĂŁo mais caras do que o seu padrĂŁo
financeiro permite, que nĂŁo possui um Ăşnico livro (como Kale nĂŁo
possuĂ­a), que parece nĂŁo ter opiniĂŁo definida sobre polĂ­tica ou arte ou
economia ou qualquer outro assunto de importância real, que não é
religioso, exceto quando lhe acontece alguma desgraça ou quando quer
impressionar alguém com sua devoção (como Kale, que não freqüentava
igreja alguma, e que agora lia a BĂ­blia na sua cela pelos menos durante
quatro horas diárias), que tem um corpo atlético mas que parece
abominar uma atividade sadia como o exercĂ­cio fĂ­sico, que passa as
horas de lazer em bares e boates, que engana a mulher por força do
hábito (como Kale o fazia, segundo todos os informes), que é impulsivo,
não é digno de confiança, está sempre atrasado para todos os
compromissos (como Kale), cujos objetivos sĂŁo vagos ou irrealĂ­sticos
("Fletcher Kale? É um sonhador."), que saca no vermelho com
freqĂĽĂŞncia e mente sobre dinheiro, que toma emprestado com facilidade
mas custa a pagar, que exagera, que sabe que vai ficar rico algum dia,

mas que nĂŁo tem nenhum plano especĂ­fico para adquirir essa fortuna,
que nunca duvida nem pensa no ano que vem, que se preocupa apenas
consigo mesmo, e somente quando já é tarde demais. Havia um tal
homem, um tal tipo, e Fletcher Kale era um exemplo excelente do
animal em questĂŁo.
Bryce já vira outros como ele. Seus olhos eram sempre
inexpressivos; nĂŁo se podia ler nada neles. Os rostos exprimiam a
emoção adequada para o momento, embora cada expressão fosse um
pouquinho certa demais. Quando expressavam preocupação por outra
pessoa além de si mesmos, dava para se perceber um toque nítido de
insinceridade. NĂŁo se vergavam ao peso do remorso, da moralidade, do
amor ou da empatia. Em geral, levavam vidas de destruição aceitável,
arruinando e amargurando aqueles que os amavam, destruindo as
vidas de amigos que acreditavam e confiavam neles, traindo a confiança
depositada neles, mas sem jamais cruzar diretamente a linha que os
separava de um comportamento declaradamente criminoso. De vez em
quando, todavia, um homem desses ia longe demais. E como era do tipo
que nunca fazia as coisas pela metade, sempre ia longe demais mesmo.
O corpinho ensangüentado e destroçado de Danny Kale, caído
num canto.
O acinzentado que envolvia a mente de Bryce ficou mais
espesso, até parecer uma fumaça fria e oleosa. Ele disse para Kale:
—

O senhor nos contou que sua mulher fumava maconha

constantemente há dois anos e meio.
— É verdade.
— Seguindo ordens minhas, o legista procurou algumas coisas
que, normalmente, não lhe interessariam. Como o estado dos pulmões
de Joanna. Ela não era nem fumante, que dirá toxicômana. Os pulmões
estavam limpos.
— Eu disse que ela fumava maconha, não tabaco — falou Kale.
—

Tanto a fumaça da maconha quanto a do tabaco comum

danificam os pulmões — continuou Bryce. — No caso de Joanna, não
havia dano absolutamente nenhum.

— Mas eu...
— Quieto — aconselhou Bob Robine a seu cliente. Apontou um
dedo longo e esguio na direção de Bryce, agitou-o e falou:
— O importante é: havia PCP no sangue dela ou não?
— Havia — concordou Bryce. — Estava no sangue dela, mas ela
nĂŁo o fumou. Joanna tomou o PCP oralmente. Ainda havia um bocado
dele no seu estĂ´mago.
Robine pestanejou, surpreso, mas se recobrou rapidamente.
— Lá vem você — disse. — Ela o tomou. Que importância tem?
—

Na verdade — retrucou Bryce —, havia mais PCP no seu

estĂ´mago do que na sua corrente sangĂĽĂ­nea.
Kale tentou parecer curioso, preocupado e inocente — tudo aura
só tempo; até mesmo as suas feições elásticas estavam forçadas por
essa expressĂŁo.
De cara fechada, Bob Robine falou:
— Com que então havia mais no estômago dela do que na sua
corrente sangĂĽĂ­nea. E daĂ­?
— O pó de anjo é altamente absorvível. Tomado oralmente, não
fica no estĂ´mago por muito tempo. Ora, conquanto Joanna tenha
engolido droga suficiente para ficar pirada, nĂŁo houve tempo para que
fosse afetada. Sabe, Ă© que tomou o PCP com sorvete. Que formou uma
camada protetora no seu estômago e retardou a absorção da droga.
Durante a autĂłpsia, o legista encontrou sorvete de calda de chocolate
parcialmente digerido. Portanto, nĂŁo houve tempo para o pĂł de anjo
causar alucinações ou deixá-la louca furiosa. — Bryce fez uma pausa,
depois inspirou fundo. — Também havia sorvete de calda de chocolate
no estĂ´mago de Danny, mas nenhum PCP. Quando o sr. Kale nos
contou que chegara cedo do trabalho na quinta-feira, nĂŁo falou que
trouxera uma surpresa para a famĂ­lia. Meio galĂŁo de sorvete de calda de
chocolate.
O rosto de Fletcher Kale estava inexpressivo. Finalmente, ele
parecia ter esgotado toda a sua coleção de expressões humanas. Bryce
falou:

—

Encontramos uma lata de sorvete parcialmente vazia no

congelador de Kale. De calda de chocolate. O que eu acho que
aconteceu, sr. Kale, Ă© que o senhor serviu um pouco de sorvete para
todo mundo. Acho que temperou secretamente a porção da sua mulher
com PCP, para mais tarde poder alegar que ela estava alucinada pela
droga. NĂŁo pensou que o legista descobriria a sua manobra.
— Espere aí um minuto, pombas! — gritou Robine.
—

Então, enquanto lavava na máquina as suas roupas

ensangüentadas — dizia Bryce a Kale —, o senhor lavou a louça suja de
sorvete e a guardou, porque a sua histĂłria era que tinha chegado em
casa e encontrado o pequeno Danny já morto e a mãe dele já piradona
com PCP.
Robine disse:
— Isso são só suposições. Esqueceu-se do motivo? Em nome de
Deus, por que o meu cliente faria uma monstruosidade dessas?
Observando os olhos de Kale, Bryce falou:
— Investimentos High Country.
O rosto de Kale permaneceu impassĂ­vel, mas os olhos vacilaram.
— Investimentos High Country? — indagou Robine. — O que é
isso? Bryce fitou Kale.
— O senhor comprou sorvete antes de ir para casa na quintafeira?
— Não — disse Kale, secamente.
— O gerente da loja 7-Eleven na rua Calder diz que comprou.
Os mĂşsculos dos maxilares de Kale ficaram saltados quando ele cerrou
os dentes, com raiva.
—

E quanto à Investimentos High Country? — perguntou

Robine. Bryce disparou outra pergunta para Kale.
— Conhece um homem chamado Gene Terr? — Kale apenas o
fitava. — Às vezes chamado de "Jeeter".
— Quem é ele? — quis saber Robine.
— O líder da Demon Chrome — falou Bryce, sem desfitar Kale.
— É uma gangue de motoqueiros. Jeeter é traficante de drogas. Na

verdade,

nunca

conseguimos

pegá-lo

com

a

boca

na

botija;

conseguimos apenas engaiolar parte do seu pessoal. Pressionamos
Jeeter e ele nos levou a alguém que admitiu fornecer erva regularmente
ao sr. Kale. NĂŁo Ă  sra. Kale. Ela jamais comprou.
— E quem afirma isso? — perguntou Robine com veemência. —
Esse motoqueiro selvagem? Esse refugo social? Esse traficante de
drogas? Ele não é uma testemunha de confiança!
— De acordo com nossas fontes, o sr. Kale não comprou apenas
erva na terça-feira passada. Comprou também pó de anjo. O homem
que lhe vendeu as drogas testemunhará em troca de .imunidade.
Com presteza e astĂşcia animais, Kale se levantou de um salto,
agarrou a cadeira vazia ao seu lado, arremessou-a por sobre a mesa, em
cima de Bryce Hammond, e correu para a porta da sala de
interrogatĂłrios.
Quando a cadeira saiu das mĂŁos de Kale e voou pelos ares,
Bryce já se movimentara, e ela passou por cima da sua cabeça,
inofensivamente. Ele já estava do outro lado da mesa quando a cadeira
caiu ruidosamente ao chĂŁo, Ă s suas costas.
Kale abriu a porta e lançou-se para o corredor.
Bryce estava quatro passos atrás dele.
Tal Whitman saltara do peitoril da janela como se tivesse sido
arremessado para fora com uma carga de explosivos, e estava um passo
atrás de Bryce, gritando.
Chegando no corredor, Bryce viu Fletcher Kale se dirigindo para
uma porta de saída amarela a cerca de seis metros de distância. Correu
no encalço do filho da puta.
Kale se jogou em cima da trava e escancarou a porta de metal.
Bryce alcançou-o uma fração de segundo mais tarde, quando
Kale estava pondo o pé no estacionamento de macadame.
Pressentindo Bryce logo atrás de si, Kale se virou com uma
fluidez felina e desferiu um soco com a mĂŁo enorme.
Bryce se desviou e revidou com outro soco, atingindo a barriga
dura e plana de Kale. Deu mais um golpe, atingindo-o no pescoço.

Kale cambaleou para trás, levando as mãos à garganta, tossindo
e se engasgando.
Bryce avançou.
Kale, porém, não estava tão atordoado quanto fingia estar.
Saltou para diante quando Bryce se aproximou e se atracou com ele.
— Canalha — disse Kale, espumando.
Seus

olhos

cinzentos

estavam

arregalados.

Os

lábios se

mostravam repuxados, deixando os dentes Ă  mostra, como se ele
estivesse rosnando. Parecia um lobo.
Os braços de Bryce estavam presos, e embora ele fosse também
um homem forte, não conseguia se livrar do abraço de ferro de Kale.
Deram alguns passos cambaleantes para trás, tropeçaram e caíram,
com Kale por cima. A cabeça de Bryce bateu com força no chão e ele
pensou que ia desmaiar.
Kale deu-lhe um Ăşnico soco, ineficaz, depois saiu de cima dele e
rastejou rapidamente para longe.
Afastando a escuridão que crescia por trás de seus olhos,
surpreso por Kale ter aberto mĂŁo da vantagem, Bryce ficou de quatro.
Sacudiu a cabeça... e então viu o que o outro fora pegar.
Um revĂłlver.
Jazia no macadame, a alguns metros de distância, brilhando
sombriamente à luz amarelada das lâmpadas de vapor de sódio.
Bryce buscou o seu coldre. Vazio. O revĂłlver no chĂŁo era o seu
prĂłprio. Aparentemente, caĂ­ra do coldre e rolara pelo piso quando ele
fora ao chĂŁo.
A mĂŁo do assassino se fechou sobre a arma.
Tal Whitman se aproximou e desceu o cassetete, atingindo Kale
na nuca. O homenzarrĂŁo desabou em cima da arma, inconsciente.
Agachando-se, Tal virou Kale de barriga para cima e tomou o
seu pulso.
Segurando a base do seu próprio crânio latejante, Bryce foi
mancando até eles.
— Ele está bem, Tal?

—

Está. Vai voltar a si dentro de alguns minutos. Pegou o

revólver de Bryce e se pôs de pé. Aceitando a arma, Bryce falou:
— Fico lhe devendo essa.
— Nem por isso. Que tal a sua cabeça?
— Quem me dera ser dono de uma companhia de aspirina.
— Eu não esperava que ele fosse correr.
— Nem eu — concordou Bryce. — Quando as coisas ficam cada
vez piores para um homem assim, geralmente ele fica mais calmo, mais
controlado, mais cuidadoso.
— Bem, acho que esse aí viu as paredes se fechando sobre si.
Bob Robine estava parado no vão da porta, fitando-os, balançando
a cabeça, consternado.
Dali a alguns minutos, quando Bryce Hammond estava sentado
à sua mesa, preenchendo os formulários que acusavam Fletcher Kale de
dois homicĂ­dios, Bob Robine bateu na porta aberta. Bryce ergueu os
olhos.
— E então, advogado, como vai o seu cliente?
— Está bem. Mas não é mais meu cliente.
— É? Decisão sua ou dele?
— Minha. Não posso aceitar um cliente que mente para mim a
respeito de tudo. NĂŁo gosto de ser feito de bobo.
— Ele quer chamar outro advogado ainda esta noite?
— Não. Quando for citado, vai pedir ao juiz um defensor público.
— Isso vai ser logo de manhãzinha.
— Não está perdendo tempo, não é?
— Com esse aí, não.
— Ótimo — assentiu Robine. — Ele não presta mesmo, Bryce.
Sabe, há 15 anos que sou um católico apóstata — disse ele,
suavemente.
— Concluí há muito tempo que não existia nada disso de anjos,
demônios, milagres. Achava que tinha instrução demais para pensar
que o Mal — com M maiúsculo — caminha pelo mundo com pés de
cabra. Lá na cela, porém, Kale se virou para mim e disse: "Eles não vão

me pegar. Não vão me destruir. Ninguém pode. Eu vou escapar desse."
Robine continuou:
—

Quando o adverti contra o excesso de otimismo, ele disse:

"Não tenho medo de gente como você. Além disso, não cometi nenhum
assassinato. Apenas me livrei de um lixo que estava empestando a
minha vida."
— Jesus — exclamou Bryce.
Ambos ficaram calados. Depois, Robine soltou um suspiro.
— E quanto aos Investimentos High Country. Como é que isso
forneceu o motivo?
Antes

que

Bryce

pudesse

explicar,

Tal

Whitman

entrou

apressadamente, vindo do corredor.
— Bryce, posso dar uma palavrinha com você? — Lançou um
olhar para Robine. — É melhor que seja em particular.
— Claro — falou Robine.
Tal fechou a porta Ă s costas do advogado.
— Bryce, conhece a sra. Jennifer Paige?
— Faz algum tempo que começou a clinicar em Snowfield.
— Sei. Mas que tipo de pessoa diria que ela é?
— Não a conheço. Ouvi dizer que é boa médica. E o pessoal
daquelas cidadezinhas das montanhas está bem contente por não ter
mais que vir até Santa Mira para se consultar.
— Também não a conheço. Só queria saber se você tinha ouvido
algum comentário sobre... se ela é chegada à bebida. Quero dizer... se
toma uns pileques.
—

Não, nunca ouvi nada no gênero. Por quê? O que está

acontecendo?
— Ela ligou faz alguns minutos. Disse que houve um desastre lá
em Snowfield.
— Desastre? O quer ela que dizer com isso?
— Bem, ela diz que não sabe. Bryce pestanejou.
— Ela parecia histérica?
— Assustada, mas não histérica. Não quer falar com outra

pessoa, só com você. Está na linha três. — Bryce estendeu a mão para o
telefone.
— Mais uma coisa — disse Tal, linhas de preocupação
vincando-lhe a testa. — Ela me disse uma coisa, mas não faz sentido.
Ela disse...
— Sim?
— Disse que todo mundo por lá está morto. Todo mundo em
Snowfield. Disse que ela e a irmĂŁ sĂŁo as Ăşnicas pessoas vivas.

10

IrmĂŁs e tiras

Jenny e Lisa saĂ­ram da casa dos Oxleys pelo mesmo caminho
por onde entraram: a janela.
A noite estava ficando cada vez mais fria. O vento soprava de
novo.
Voltaram para a casa de Jenny no alto da Skyline Road a fim de
buscar agasalhos para protegĂŞ-las do frio.
Depois desceram a ladeira de novo e foram para a subdelegacia
do xerife. Havia um banco de madeira preso Ă s pedras redondas junto
ao meio-fio, em frente Ă  cadeia municipal, e elas se sentaram ali para
esperar a ajuda vinda de Santa Mira.
—

Quanto tempo vai levar até eles chegarem? — perguntou

Lisa.
— Bem, Santa Mira fica a quase cinqüenta quilômetros daqui, e
as estradas são bem sinuosas. E eles têm que tomar umas precauções
incomuns. — Jenny olhou para o relógio de pulso. — Acho que devem

chegar dentro de uns 45 minutos, no máximo uma hora.
— Pombas.
— Não ó tanto tempo assim, meu bem.
A garota levantou a gola da jaqueta de brim forrada de pele.
— Jenny, quando o telefone tocou na casa dos Oxleys e você
atendeu...
— Sim?
— Quem estava ligando?
— Ninguém.
— O que você ouviu?
— Nada — mentiu Jenny.
— Pela expressão do seu rosto, achei que havia alguém
ameaçando você, ou coisa parecida.
— Bem, eu estava perturbada, é claro. Quando o telefone tocou,
eu pensei que os telefones estivessem funcionando de novo, mas
quando atendi e ele ficou mudo, fiquei... arrasada. Foi sĂł isso.
— Depois deu linha?
— Deu.
Ela provavelmente nĂŁo acredita em mim, pensou Jenny. Acha
que estou tentando protegĂŞ-la de alguma coisa. E Ă© claro que estou.
Como posso explicar a sensação de que alguma coisa malévola estava
ao telefone comigo? Eu mesma nem consigo entender. Quem ou o quĂŞ
estava ao telefone? Por que ele... ou a coisa... finalmente liberou a
linha?
Um pedaço de papel passou voando pela rua. Nada mais se
movia.
Uma nesga fina de nuvem passou sobre um dos cantos da lua.
Dali a um pouco, Lisa falou:
— Jenny, caso alguma coisa me aconteça hoje...
— Nada vai lhe acontecer, meu bem.
— Mas caso alguma coisa me aconteça hoje — insistiu Lisa —,
quero que saiba que... bem... tenho muito... orgulho de vocĂŞ.
Jenny envolveu com o braço os ombros da irmã, e ficaram ainda

mais juntinhas.
—

Mana, lamento nĂŁo termos passado muito tempo juntas

nesses anos.
— Você ia para casa sempre que podia — falou Lisa. — Sei que
não foi fácil. Acho que li umas dúzias de livros sobre o que uma pessoa
tem que enfrentar para poder ser médica. Sempre soube que havia um
fardo grande para você carregar, muitas preocupações.
Surpresa, Jenny falou:
— Bem, mesmo assim eu devia ter ido em casa mais vezes.
Ficara longe de casa em algumas ocasiões porque não fora capaz
de enfrentar a acusação nos olhos tristes da mãe, uma acusação que
era ainda mais poderosa e tocante porque jamais fora verbalizada: VocĂŞ
matou o seu pai, Jenny; partiu-lhe o coração e isso o matou.
— E mamãe também tinha muito orgulho de você.
A frase de Lisa nĂŁo apenas surpreendeu Jenny, como a abalou,
— Mamãe estava sempre falando para todo mundo da sua filha,
a médica — continuou Lisa, sorridente, recordando. — Acho que havia
horas em que as amigas estavam prestes a riscá-la do clube de bridge,
se ela dissesse mais uma sĂł palavra sobre a sua bolsa de estudos ou as
suas boas notas.
Jenny pestanejou:
— Está falando sério?
— Claro que estou.
— Mas mamãe nunca...
— Nunca o quê? — indagou Lisa.
— Bem... nunca falou nada sobre... papai? Ele morreu há doze
anos.
— Pombas, sei disso. Ele morreu quando eu tinha dois anos e
meio. — Lisa franziu o cenho. — Mas do que é você que está falando?
— Quer dizer que nunca ouviu mamãe me culpar?
— Culpá-la por quê?
Antes que Jenny pudesse responder, a tranqĂĽilidade sepulcral
de Snowfield foi extinta. Todas as luzes se apagaram.

TrĂŞs carros-patrulha saĂ­ram de Santa Mira, entraram nas
colinas envoltas na noite, na direção das encostas altas e banhadas pelo
luar das Sierras, na direção de Snowfield, as luzes vermelhas de
emergĂŞncia faiscando.
Tal Whitman guiava o carro que encabeçava a procissão, e o
xerife Hammond sentava-se ao seu lado. Gordy Brogan estava no banco
de trás com outro delegado, Jake Johnson.
Gordy estava com medo.
Sabia que seu medo nĂŁo era visĂ­vel, e sentia-se grato por isso.
Na verdade, ele parecia unia pessoa que nĂŁo saberia como ter medo. Era
alto, graĂşdo, musculoso. Tinha as mĂŁos fortes e grandes de um jogador
de basquete profissional; parecia capaz de acabar com a folga de quem
quer que lhe causasse encrencas. Sabia que tinha um rosto atraente; as
mulheres já lhe tinham dito isso. Mas também era um rosto sombrio, de
aspecto rude. Os lábios eram finos, dando-lhe à boca um ar cruel. Jake
Johnson fora quem se exprimira melhor: Gordy, quando vocĂŞ fecha a
cara, parece um homem que come galinhas vivas no café da manhã.
A despeito de sua aparĂŞncia feroz, contudo, Gordy Brogan estava
com medo. Não era a possibilidade de moléstia ou veneno que lhe
causava medo. O xerife dissera que havia indĂ­cios de que as pessoas em
Snowfield tinham sido mortas não por germes ou substâncias tóxicas,
mas por outras pessoas. Gordy temia ter que usar a arma pela primeira
vez desde que se tornara delegado, há dezoito meses. Temia ser forçado
a atirar em alguém, quer para salvar a própria vida, a vida de outro
delegado, ou a de uma vĂ­tima.
Ele nĂŁo achava que seria capaz de fazĂŞ-lo.
Há cinco meses descobrira uma fraqueza perigosa em si mesmo,
ao atender a um chamado de emergĂŞncia da Loja de Artigos Esportivos
Donner. Um antigo empregado descontente, um homem corpulento
chamado Leo Sipes, voltara Ă  loja duas semanas depois de ter sido
despedido, espancara o gerente e quebrara o braço do vendedor
contratado para substituĂ­-lo. Quando Gordy chegara ao local, Leo Sipes
— grande, burro e bêbado — estava usando uma machadinha para

destruir toda a mercadoria. Gordy nĂŁo conseguira convencĂŞ-lo a se
render. Quando Sipes viera atrás dele, brandindo a machadinha, Gordy
sacara o revólver. E então descobrira que não podia usá-lo. O dedo no
gatilho ficara frágil e inflexível como gelo. Ele tivera que guardar a arma
e arriscar um confronto fĂ­sico com Sipes. Dera um jeito e conseguira
tirar a machadinha de Sipes.
Agora, cinco meses mais tarde, sentado no banco de trás do
carro-patrulha e escutando Jake Johnson falar com o xerife Hammond,
seu estĂ´mago se retesou e ficou embrulhado ao pensar no que uma bala
calibre 45 de ponta oca faria a um homem. Ela literalmente arrancaria a
sua cabeça. Transformaria um ombro em fiapos de carne e agulhas
partidas de osso. Abriria um peito, destroçando o coração e.tudo mais
no seu caminho. Poderia arrancar fora uma perna, se atingisse a rĂłtula,
transformaria um rosto numa pasta sangrenta. E Gordy Brogan, Deus
tivesse piedade dele, nĂŁo era capaz de fazer uma coisa dessas a
ninguém.
Esta era a sua terrĂ­vel fraqueza. Sabia que havia gente que diria
que a sua incapacidade de atirar em outro ser humano nĂŁo era uma
fraqueza, mas sim um sinal de superioridade moral. Contudo, ele sabia
que isso nem sempre era verdade. Havia horas em que atirar era um ato
moral. Um policial fazia o juramento de proteger o pĂşblico. Para um
tira, a incapacidade de atirar (quando atirar era claramente justificado)
não era somente uma fraqueza, mas uma loucura, talvez até um
pecado.
Durante os Ăşltimos cinco meses, depois do episĂłdio desalentador
na Loja de Artigos Esportivos Donner, Gordy tivera sorte. Atendera
apenas alguns chamados envolvendo suspeitos violentos. E, felizmente,
conseguira dominar os adversários usando os punhos, ou o cassetete,
ou ameaças — ou disparando tiros de advertência para o alto. Certa
vez, quando parecia que atirar em alguém seria inevitável, o outro
guarda, Frank Autry, atirara primeiro, ferindo o pistoleiro antes que
Gordy tivesse que se defrontar com a tarefa impossĂ­vel de puxar o
gatilho.

Agora, porém, algo inimaginavelmente violento tinha transpirado
lá

em

Snowfield.

E

Gordy

sabia

muito

bem

que

violĂŞncia

freqĂĽentemente tinha que ser enfrentada com violĂŞncia.
A arma no seu quadril parecia pesar quinhentos quilos.
Ficou pensando se estaria chegando a hora em que a sua
fraqueza seria revelada. Ficou pensando se morreria esta noite... ou se
causaria, graças à sua fraqueza, a morte desnecessária de outrem.
Orou ardentemente para poder vencer essa coisa. Sem duvida
possĂ­vel um homem ser pacĂ­fico por natureza e, ainda assim, ter a
coragem de se salvar, salvar seus amigos, sua gente.
Com as luzes vermelhas de emergĂŞncia faiscando no teto, os trĂŞs
carros-patrulha branco e verde subiram a estrada sinuosa, adentrando
as montanhas cobertas pela noite, na direção dos picos onde o luar
criava a ilusão de que já tinha caído a primeira neve da temporada.
Gordy Brogan estava com medo.

Os postes de rua e todas as outras luzes se apagaram, lançando
a cidade na escuridĂŁo.
Jenny e Lisa se levantaram de um salto do banco de madeira.
— O que aconteceu?
— Shhh — fez Jenny. — Escute!
Mas houve apenas um silĂŞncio contĂ­nuo.
O vento parara de soprar, como se espantado com o blecaute
abrupto da cidade. As árvores esperaram, os ramos imóveis como
roupas velhas num armário.
Graças a Deus pela lua, pensou Jenny.
O coração batendo com força, Jenny se virou e examinou os
prédios às suas costas. A cadeia municipal. Um pequeno café. As lojas.
As residĂŞncias.
Todas as entradas se achavam tĂŁo coalhadas de sombras que
era difícil dizer se as portas estavam abertas ou fechadas — ou se, neste
instante, estavam se abrindo lenta, muito lentamente, para libertar os
mortos horrendos, inchados, demoniacamente reanimados, nas ruas

escuras.
Pare com isso, pensou Jenny. Os mortos nĂŁo voltam Ă  vida.
Seus olhos pousaram no portão em frente à passagem de serviço
coberta que ficava entre a subdelegacia do xerife e a loja de presentes ao
lado. Era exatamente como o corredor sombrio e apertado ao lado da
padaria dos Liebermanns.
Será que também havia algo escondido neste túnel? E, com as
luzes apagadas, vinha se arrastando inexoravelmente na direção desta
extremidade do corredor, ansioso para passar para a calçada escura?
Aquele medo primitivo de novo.
Aquela sensação de mal.
Aquele terror supersticioso.
— Vamos — disse para Lisa.
— Para onde?
— Para a rua. Nada poderá nos pegar ali...
—

...sem que a gente o veja chegando — concluiu Lisa,

compreendendo.
Foram para o meio da rua iluminada pelo luar.
Quanto tempo até o xerife chegar? — indagou Lisa.
Pelo menos mais uns quinze ou vinte minutos.
As luzes da cidade se acenderam todas de uma vez. Uma
explosão brilhante de fulgor elétrico atingiu-lhe os olhos surpresos —
depois novamente a escuridĂŁo.
Jenny ergueu o revĂłlver, sem saber ao certo para onde apontar.
A sua garganta estava ressequida pelo medo, a boca seca.
Uma explosão de som — um lamento pavoroso — percorreu
Snowfield.
Jenny e Lisa soltaram um grito, chocadas, e se viraram,
esbarrando uma na outra, olhando com olhos apertados para a
escuridĂŁo tingida pelo luar.
Depois o silĂŞncio.
Novo grito estridente.
SilĂŞncio.

— O quê? — perguntou Lisa.
— O posto do corpo de bombeiros!
Ela soou de novo: a sirene estridente vinda do lado leste da St.
Moritz Way, do posto do Corpo de Bombeiros Voluntários de Snowfield.
Bong!
Jenny sobressaltou-se de novo, girou o corpo.
Bong! Bong!
— Um sino de igreja — falou Lisa.
— A igreja católica, a oeste na Vail.
O sino tocou mais uma vez — um som alto, profundo,
lamentoso, que retumbou nas janelas vazias ao longo da escuridĂŁo da
Skyline Road, e em outras janelas invisĂ­veis por toda a cidade morta.
— Alguém tem que puxar uma corda para tocar o sino — falou
Lisa. — Ou apertar um botão para disparar uma sirene. Portanto, tem
que haver mais alguém aqui, além de nós.
Jenny ficou calada.
A sirene tocou de novo, soou e depois se calou, soou e se calou,
e o sino da igreja começou a tocar outra vez, e o sino e a sirene gritaram
juntos, ao mesmo tempo, repetidas vezes, como se estivessem
anunciando a chegada de alguém de tremenda importância.
Nas montanhas, a um quilĂ´metro e meio da entrada para
Snowfield, a paisagem noturna era pintada somente em tons de negro e
prata. As árvores grandes não eram verdes; eram formas lúgubres, na
sua maioria sombras, com beiradas alvacentas de folhas e agulhas
vagamente definidas.
Contrastantemente, o acostamento da auto-estrada era cor de
sangue, tingido pelas luzes giratĂłrias no alto dos trĂŞs sedas Ford que
exibiam o emblema do departamento policial do condado de Santa Mira
nas suas portas dianteiras.
O delegado Frank Autry dirigia o segundo carro, e o delegado Stu
Wargle estava derreado no banco ao lado do motorista.
Frank Autry era esguio, musculoso, com cabelos grisalhos bem
cortados. Tinha as feições nítidas e econômicas, como se Deus não

estivesse com disposição de desperdiçar coisa alguma no dia em que
criara a sua ficha genética: olhos cor de avelã sob uma testa bem
cinzelada; um nariz estreito e nobre; boca nem parcimoniosa nem
generosa demais; orelhas pequenas, quase sem lĂłbulos, grudadas Ă 
cabeça. Usava um bigode muitíssimo bem tratado.
Trajava a sua farda exatamente do jeito que o manual de
instruções mandava; botas pretas lustradas até parecerem espelhos,
calças marrons com vinco perfeito, cinto e coldre de couro brilhantes e
flexíveis graças à lanolina, camisa marrom extremamente bem passada.
— Porra, não foi justo — disse Stu Wargle.
— Os comandantes não têm que ser justos, têm que estar com a
razão — replicou Frank.
— Que comandante? — indagou Wargle, lamuriosamente.
— O xerife Hammond. Não era a ele que se referia?
— Não penso nele como meu comandante.
— Bem, mas é o que ele é.
— Ele quer é me sacanear — falou Wargle. — O safado. Frank
ficou calado.
Antes de ingressar na polĂ­cia do condado, Frank Autry fora um
oficial militar de carreira. Reformara-se do Exército dos Estados Unidos
aos 44 anos, depois de 25 anos de serviço notável, e se mudara para
Santa Mira, a cidade em que nascera e fora criado. Sua intenção era
abrir um pequeno negĂłcio qualquer para completar a sua pensĂŁo e se
manter ocupado, mas nĂŁo achou nada que lhe parecesse interessante.
Aos poucos foi percebendo que, ao menos para ele, um emprego sem
farda, sem uma cadeia de comando, sem um elemento de risco fĂ­sico e
sem um sentido de serviço público era um emprego que não valia a
pena ter. Há três anos, com 46 anos de idade, ingressara no
departamento policial e, a despeito de ter sido rebaixado de major, que
era o posto que tinha no Exército, estava muito feliz desde então.
Isto é, estava muito feliz exceto nas ocasiões (em geral durante
uma semana por mĂŞs) em que tinha Stu Wargle como parceiro. Wargle
era insuportável. Frank tolerava o sujeito apenas para testar a sua

prĂłpria autodisciplina.
Wargle era um relaxado. O cabelo estava sempre precisando ser
lavado. Quando fazia a barba, deixava sempre uns fios espetados. O seu
uniforme vivia amassado, as botas jamais eram engraxadas. Era grande
demais na barriga, grande demais nos quadris, grande demais no
traseiro.
Wargle era um chato. NĂŁo tinha absolutamente nenhum senso
de humor. Não lia nada, não sabia de nada... mas tinha opiniões
definidas sobre Iodos os assuntos sociais e polĂ­ticos do momento.
Wargle era um nojento. Tinha 45 anos de idade e ainda limpava
o nariz em pĂşblico. Arrotava e peidava descaradamente.
Ainda largado de encontro Ă  porta do lado direito do carro,
Wargle falou:
— Eu devia largar o serviço às dez horas. Dez horas, porra! Não é
justo o Hammond me destacar para esta merda em Snowfield. E eu com
programa marcado com uma gatona.
Frank nĂŁo se deu por achado. NĂŁo perguntou com quem Wargle
tinha marcado para sair. Continuou dirigindo o carro, os olhos fixos na
estrada, esperando que Wargle nĂŁo lhe contasse quem era a "gatona".
— Ela é garçonete no Spanky's Diner — falou Wargle. — Talvez
você a conheça. Uma dona loura. O nome dela é Beatrice, mas é
conhecida por Bea.
— É raro eu ir ao Spanky's — disse Frank.
—

Ah. A cara dela nĂŁo Ă© ruim, sabe. Um par de mamas de

respeito. Tem uns quilinhos sobrando, nĂŁo muitos, mas ela se acha pior
do que realmente é. Insegurança, sabe como é. Então, se você fizer o
jogo direito, se explorar as dúvidas que ela tem com relação a si mesma,
se disser que a quer assim mesmo, embora ela tenha se deixado ficar
um pouco gorducha... porra, ela fará qualquer coisa que você quiser.
Qualquer coisa.
O nojento riu como se tivesse dito algo insuportavelmente
engraçado.
Frank teve vontade de dar-lhe um soco na cara. NĂŁo o fez.

Wargle era um misĂłgino. Falava das mulheres como se fossem
membros de outra espécie, uma espécie inferior. A idéia de um homem
partilhar a sua vida e pensamentos mais Ă­ntimos com uma mulher, a
idéia de que uma mulher pudesse ser amada, querida, admirada,
respeitada, valorizada por sua sabedoria, percepção e humor... isso era
um conceito totalmente estranho para Stu Wargle.
Frank Autry, por outro lado, estava casado há 26 anos com sua
linda Ruth. Adorava-a. Embora soubesse que era um pensamento
egoĂ­sta, Ă s vezes rezava para ser o primeiro a morrer, evitando ter que
enfrentar a vida sem Ruth.
— Aquele nojento do Hammond quer ver a minha caveira. Está
sempre enchendo o meu saco.
— Sobre o quê?
— Tudo. Não gosta do jeito como eu uso o uniforme. Não gosta
do jeito como eu escrevo os relatĂłrios. Disse que eu preciso melhorar a
minha atitude. Puta merda, a minha atitude! Ele quer me sacanear,
mas eu nĂŁo deixo. Vou agĂĽentar mais cinco anos, sabe, para poder
receber a minha aposentadoria de trinta anos. Aquele safado nĂŁo vai me
arrancar a minha aposentadoria.
Quase dois anos antes, os eleitores da cidade de Santa Mira
aprovaram um projeto que dissolvia a polĂ­cia metropolitana, colocando
a manutenção da lei nas mãos do departamento policial do condado.
Era um voto de confiança em Bryce Hammond, que criara o
departamento do condado, mas um dispositivo do projeto dispunha que
nenhum policial da cidade perderia o emprego ou a aposentadoria por
causa da transferĂŞncia de poder. Desse modo, Bryce Hammond tinha
que agĂĽentar Stewart Wargle.
Chegaram Ă  entrada para Snowfield.
Frank deu uma olhada no espelho retrovisor e viu o terceiro
carro patrulha sair da posição de três carros. Como fora planejado, ele
se postou Ă  entrada da estrada para Snowfield, formando um bloqueio.
O carro do xerife Hammond continuou o caminho para Snowfield
e Frank foi atrás.

—

Para que diabo tivemos que trazer água? — quis saber

Wargle.
Havia três garrafas de cinco galões de água no chão da parte
traseira do carro.
— A água em Snowfield pode estar contaminada — disse Frank.
— E toda aquela comida que botamos na mala?
— Também não podemos confiar na comida por lá.
— Não creio que estejam todos mortos.
— O xerife não conseguiu contato com Paul Henderson, na
subdelegacia.
— É daí? O Henderson é um babaca.
—

A doutora falou que Henderson está morto, juntamente

—

Porra, a doutora é biruta ou está de porre. Além do mais,

com...

quem no seu juízo perfeito iria se consultar com uma médica?
Provavelmente ela deu pra passar durante todo o curso da faculdade.
— O quê?
— Nenhuma dona tem capacidade pra se formar em medicina
sem abrir as pernas!
— Wargle, você nunca deixa de me espantar.
— Qual é o problema? — indagou Wargle.
— Nenhum. Esqueça. Wargle arrotou.
— Bem, não creio que estejam todos mortos. — Outro problema
com Stu Wargle era que ele não tinha imaginação alguma. — Que
monte de merda. E eu de programa marcado com uma gatona.
Franky Autry, por outro lado, tinha uma imaginação muito boa.
Talvez boa demais. Enquanto guiava montanha acima, enquanto
passava por um cartaz que dizia

SNOWFIELD

—

SKM,

sua imaginação

funcionava como uma máquina bem lubrificada. Tinha a sensação
perturbadora — premonição? palpite? — de que estavam se dirigindo
diretamente para o Inferno.

A sirene do posto de bombeiros berrava.

O sino da igreja tocava cada vez mais depressa.
Uma cacofonia ensurdecedora percorria a cidade.
-— Jenny! — gritou Lisa.
Fique de olhos abertos! Atenção aos movimentos!
A rua era uma colcha de retalhos de dez mil sombras; havia
lugares escutou em demasia para vigiar.
A aliene gemia, o sino tocava, e agora as luzes começaram a
piscar de novo — luzes das casas, luzes das lojas, luzes das ruas —,
acendendo e apagando, acendendo e apagando tĂŁo rapidamente que
criaram um efeito estroboscópico. A Skyline Road tremeluzia; os prédios
pareciam saltar na direção da rua, depois voltar para trás, depois saltar
para diante; as sombras dançavam espasmodicamente.
Jenny fez uma volta completa, o revĂłlver esticado na frente do
corpo.
Se havia algo se aproximando, encoberto pelo espetáculo de luz
estroboscĂłpica, ela nĂŁo podia vĂŞ-lo.
Pensou: Pode ser que, ao chegar, o xerife encontre duas cabeças
cortadas no meio da rua. A minha e a de Lisa.
O sino da igreja estava mais alto do que nunca e soava contĂ­nua
e furiosamente.
A sirene se transformou num guincho de balançar os dentes e
furar os ossos. Parecia um milagre que as janelas nĂŁo estivessem se
estilhaçando.
Lisa tapava os ouvidos com as mĂŁos.
A anua tremia na mĂŁo de Jenny, Lia nĂŁo conseguia mantĂŞ-la
imĂłvel.
Então, tão abruptamente quanto começara, o pandemônio
cessou. A sirene se calou. O sino da igreja parou de soar. As luzes
permaneceram acesas.
Jenny correu os olhos pela rua, esperando alguma coisa
acontecer, alguma coisa pior.
Nada, porém, aconteceu.
Mais uma vez a cidade ficou tranqüila feito um cemitério.

Um vento surgiu vindo do nada e fez com que as árvores
oscilassem, como se respondendo a uma música etérea além do alcance
do ouvido humano.
Lisa saiu do transe em que estava e falou:
—

Foi quase como se... como se estivessem tentando nos

amedrontar... nos provocando.
— Provocando — concordou Jenny. — É, era exatamente isso o
que parecia.
— Brincando com a gente.
— Como o gato com os ratos — disse Jenny, baixinho. Ficaram
paradas no meio da rua silenciosa, com medo de voltar ao banco diante
da cadeia municipal, com medo de que o movimento de ambas pudesse
fazer recomeçar a sirene e o sino.
De repente, escutaram um ronco baixo. Por um instante, o
estĂ´mago de Jenny se retesou. Ela levantou a arma mais uma vez,
embora nĂŁo pudesse enxergar nada em que atirar. Depois, reconheceu o
som: eram motores de automóvel subindo com esforço a estrada
Ă­ngreme da montanha.
Ela se voltou e olhou para o começo da rua. O ronco dos motores
ficou mais alto. Um carro dobrou a curva, no comecinho da cidade.
Luzes de teto vermelhas faiscantes. Um carro de polĂ­cia. Dois
carros de polĂ­cia.
— Graças a Deus — exclamou Lisa.
Jenny acompanhou a irmã rapidamente até a calçada de pedras
redondas em frente Ă  subdelegacia.
Os

dois

carros-patrulha

verde

e

branco

vieram

subindo

lentamente a rua deserta e estacionaram junto ao meio-fio, em frente ao
banco de madeira. Os dois motores foram desligados simultaneamente,
O silĂŞncio mortal de Snowfield tomou posse da noite mais uma vez.
Um negro atraente fardado de delegado saltou do primeiro carro,
deixando a porta aberta. Olhou para Jenny e Lisa, mas nĂŁo falou
imediatamente. A sua atenção se deteve na rua sobrenaturalmente
silenciosa e deserta.

Um segundo homem saltou do banco dianteiro do mesmo
veículo. Tinha cabelos avermelhados e rebeldes. Suas pálpebras eram
tĂŁo pesadas que ele parecia prestes a pegar no sono. Estava vestido Ă 
paisana — calças cinzentas, uma camisa azul-clara, uma jaqueta de
náilon azul-escura —, mas tinha um distintivo preso à jaqueta.
Quatro outros homens saltaram das patrulhas. Todos os seis
recém-chegados ficaram parados ali por um longo momento, sem falar,
os olhos percorrendo as lojas e casas silenciosas.
Naquela bolha de tempo suspensa e estranha, Jenny teve uma
premonição gélida em que não queria acreditar. Teve certeza...
pressentiu... soube... que nem todos eles sairiam vivos daquele lugar.

11

Explorando

Bryce curvou-se sobre um dos joelhos ao lado de Paul
Henderson.
As outras sete pessoas — seus próprios homens, a dra. Paige e
Lisa — ficaram na área de recepção, do lado de fora da grade de
madeira, na subdelegacia de Snowfield. Estavam quietas na presença
da Morte.
Paul Henderson fora um bom homem com instintos decentes.
Sua morte era um terrĂ­vel desperdĂ­cio.
Bryce chamou:
— Dra. Paige?
Ela se agachou do outro lado do corpo.
— Sim?

A senhora nĂŁo mudou o corpo de lugar? Nem mesmo toquei
nele, xerife. NĂŁo havia sangue?
É como o senhor está vendo agora. Nada de sangue. O ferimento
poderia ser nas costas — falou Bryce. Mesmo que fosse, ainda haveria
um pouco de sangue no chão. Pode ser. — Ele fitou-lhe os olhos
impressionantes — verdes pontilhados de dourado. — Normalmente eu
não mexeria num corpo até que o legista o tivesse examinado. Mas esta
não é uma situação normal, Terei que virar este homem de barriga para
baixo.
— Não sei se é seguro tocar nele.
— Alguém tem que fazê-lo — disse Bryce.
A dra. Paige se levantou e todos recuaram um ou dois passos.
Bryce levou a mĂŁo ao rosto distorcido e enegrecido de Henderson.
— A pele ainda está ligeiramente quente — exclamou, surpreso.
A dra. Paige falou:
— Não creio que tenham morrido há muito tempo.
— Mas um corpo não fica descolorido e inchado em duas horas
— falou Tal Whitman.
— Estes corpos ficaram — replicou a doutora.
Bryce virou o corpo de bruços, deixando as costas à mostra.
Nenhum ferimento.
Esperando encontrar uma depressão anormal no crânio, Bryce
meteu os dedos pela cabeleira espessa do morto, tateando os ossos. Se
o delegado tivesse sido atingido com força na parte de trás da cabeça...
Mas tampouco fora isso o que acontecera. O crânio estava intacto.
Bryce se pôs de pé.
— Doutora, essas duas decapitações que a senhora mencionou...
acho melhor darmos uma olhada nelas.
— Será que um dos seus homens poderia ficar aqui com a
minha irmĂŁ?
— Compreendo como se sente — falou Bryce. — Mas não creio
que seja sensato dividir os homens. Pode ser que não haja segurança
em ficarmos todos juntos; mas, por outro lado, pode ser que haja.

— Tudo bem — assegurou Lisa a Jenny. — Eu não quero ficar
para trás, de qualquer maneira.
Era uma garota de coragem. Tanto ela quanto a irmĂŁ intrigavam
Bryce Hammond. Estavam pálidas e seus olhos se achavam cheios de
sombras roxas de choque e horror, mas enfrentavam este pesadelo vivo
e bizarro muito melhor do que a maioria das pessoas o faria.
As Paiges foram guiando o grupo todo para fora da subdelegacia
e na direção da padaria.
Bryce estava achando difĂ­cil acreditar que Snowfield tivesse sido
uma aldeia normal e movimentada há pouco tempo. A cidade parecia
seca, extinta e morta, como uma antiga cidade perdida num deserto
longínquo, num canto do mundo onde até o vento, às vezes, se esquecia
de ir. A quietude que envolvia a cidade parecia um silĂŞncio de inĂşmeros
anos, de décadas, de séculos, um silêncio de épocas inimaginavelmente
longas, empilhadas umas sobre as outras.
Pouco depois de chegar em Snowfield, Bryce utilizara um
megafone elétrico para tentar obter uma resposta das casas silenciosas.
Agora parecia tolice ter sequer esperado uma resposta.
Entraram na padaria dos Liebermanns pela porta da frente e
foram para a cozinha nos fundos do prédio.
Na mesa de cepo de açougueiro, duas mãos cortadas agarravam
as pontas de um rolo de macarrĂŁo.
Duas cabeças cortadas espiavam por duas portas de forno.
— Oh, meu Deus — exclamou Tal, baixinho.
Bryce estremeceu.
Jake Johnson se encostou num armário branco e alto,
necessitando evidentemente de um apoio. Wargle falou:
— Cristo, eles foram abatidos como se fossem duas vacas... E
logo estavam todos falando a uma voz.
— ...por que diabo alguém faria...
— ...doente, pervertido...
— ...e onde estão os corpos?
—

Sim — disse Bryce, erguendo a voz para se sobrepujar ao

vozerio —, onde estão os corpos! Vamos procurá-los.
Durante dois segundos ninguém se mexeu, todos petrificados
pela idéia do que poderiam encontrar.
— Dra. Paige, Lisa... não há necessidade de vocês nos ajudarem
— continuou Bryce. — Basta se afastarem.
A médica assentiu. A mocinha sorriu, agradecida.
Trepidantemente, revistaram todos os armários, abriram todas
as gavetas e portas. Gordy Brogan olhou dentro do grande forno, que
nĂŁo era equipado com visor, e Frank Autry examinou o frigorĂ­fico. Bryce
inspecionou o banheiro pequeno e impecável num dos cantos da
cozinha. Mas não puderam achar os corpos (ou qualquer pedaço dos
corpos) do casal idoso.
— Por que o assassino levaria os corpos? — perguntou Frank.
— Talvez estejamos lidando com gente de algum culto — falou
Jake Johnson. Provavelmente queriam os corpos para algum ritual
macabro.
— Se houver algum ritual — falou Frank —, parece-me que foi
realizado aqui mesmo.
Gordy Brogan se precipitou para o lavatório, tropeçando e
oscilando, um garotĂŁo desajeitado que parecia formado apenas de
pernas compridas e braços compridos, cotovelos e joelhos. Sons de
ânsias de vômitos atravessaram a porta que ele fechara atrás de si.
Stu Wargle achou graça e falou:
— Jesus, que maricas.
Bryce se voltou para ele, de cara fechada.
—

Em nome de Deus, o que está achando tão engraçado,

Wargle? Tem gente morta aqui. Acho que a reação de Gordy é bem mais
natural do que qualquer uma das nossas.
O rosto pesado de Wargle, de olhinhos pequenos, toldou-se de
raiva. Ele nĂŁo tinha nem espĂ­rito para ficar encabulado. Deus, como
desprezo este homem, pensou Bryce. Quando Gordy voltou do banheiro,
estava sem jeito.
— Desculpe, xerife.

— Não tem do quê, Gordy.
Eles saĂ­ram juntos da cozinha, passando pelo salĂŁo de Vendas e
se dirigiram para a calçada.
Bryce foi imediatamente até o portão de madeira entre a padaria
e a loja vizinha. Olhou sobre o topo do portĂŁo para o corredor coberto e
sem luz. A dia. Paige se acercou dele e Bryce perguntou:
— Foi aqui que a senhora pensou ter visto alguma coisa nos
caibros do telhado?
— Bem, lisa achou que a coisa estava agachada junto à parede.
— Mas do corredor era este!
— Era.
O tĂşnel estava totalmente Ă s escuras.
Ele pegou a lanterna elétrica de cabo comprido de Tal, abriu o
portĂŁo que rangia, sacou o revolver e entrou no corredor. Havia ali um
odor vago de umidade desagradável. O guincho das dobradiças
enferrujadas do portĂŁo e depois o som de seus prĂłprios passos ecoaram
tĂşnel abaixo, precedendo-o.
A luz da lanterna era potente; cobria mais da metade da
passagem. Todavia ele a manteve prĂłximo de si, movendo-a para diante
e para trás, cobrindo a área mais imediata, examinando as paredes de
concreto, depois olhando para o teto, que ficava uns trĂŞs metros acima
da sua cabeça. Pelo menos nesta parte do corredor, os caibros do
telhado estavam desertos.
A cada passo que dava, Bryce se sentia mais certo de que sacar
o revólver fora desnecessário — até que chegou mais ou menos no meio
do tĂşnel. EntĂŁo, de repente, sentiu... algo estranho... um tinir, um
tremor frio e agoureiro na espinha. Sentiu que nĂŁo estava mais sozinho.
Era um homem que confiava nos seus palpites, e nĂŁo ignorou
este. Parou de andar, ergueu a arma, prestou mais atenção do que
antes ao silĂŞncio, passou rapidamente a luz da lanterna pelas paredes e
teto, olhou pára os caibros com especial atenção, fitou a escuridão
adiante quase até a entrada do beco, e chegou até a olhar para trás
para ver se algo havia surgido magicamente Ă s suas costas. Nada

esperava na escuridĂŁo. No entanto, ele continuava a sentir que estava
sendo observado por olhos inamistosos.
Adiantou-se de novo, e a sua luz iluminou qualquer coisa.
Coberto por uma grade de metal, um ralo de trinta centĂ­metros
quadrados se encontrava no chĂŁo da passagem. Dentro do ralo, algo
indefinĂ­vel cintilou, refletindo a luz da lanterna; mexeu-se.
Cautelosamente, Bryce se aproximou mais e dirigiu o facho
diretamente para dentro do ralo. O que quer que cintilara já tinha
sumido.
Ele se agachou junto ao ralo e espiou pelas fendas da grade. O
facho de luz revelou apenas as paredes de um cano. Era um cano de
escoamento, de cerca de 45 centímetros de diâmetro, e estava seco, o
que significava que ele não vira apenas água.
Um rato? Snowfield era uma estação de esportes que recebia
turistas relativamente afluentes. Portanto, a cidade tomava medidas
invulgarmente rĂ­gidas para se manter livre de todo o tipo de animais
nocivos. É claro que, a despeito de todas as precauções de Snowfield
neste sentido, a existĂŞncia de um ou dois ratos nĂŁo era de todo
impossĂ­vel. Podia ter sido um rato. Mas Bryce nĂŁo acreditava que
tivesse sido.
Ele caminhou até o fundo do beco, depois voltou para o portão
onde Tal e os outros estavam Ă  espera.
— Viu alguma coisa? — perguntou Tal.
—

Não vi grande coisa — respondeu Bryce, passando para a

calçada e fechando o portão atrás de si. Contou-lhes da sensação que
tivera de estar sendo observado e do movimento no cano.
—

Os Liebermanns foram mortos por gente — falou Frank

Autry. — Não por algo pequeno o bastante para se enfiar por um cano.
— Sem dúvida é o que parece — concordou Bryce.
—

Mas o senhor sentiu alguma coisa lá? — perguntou Lisa,

ansiosa.
— Senti alguma coisa — disse Bryce à garota. — Aparentemente
nĂŁo me afetou com a mesma intensidade com que vocĂŞ disse que a

afetou. Mas era definitivamente... estranho.
—

Que bom — falou Lisa. — Ainda bem que não acha que

somos apenas mulheres histéricas.
—

Considerando o que passaram, vocês são o mais “anti-

histéricas " que se possa desejar.
— Bem — falou a mocinha —, Jenny é médica, e eu acho que
também gostaria de ser médica algum dia, e os médicos simplesmente
não podem se dar ao luxo de serem histéricos.
Ela era uma garota engraçadinha — embora Bryce não pudesse
ter deixado de notar que a irmĂŁ mais velha era ainda mais bonita. Tanto
a garota quanto a doutora tinham o mesmo tom de cabelo: um
castanho-avermelhado de cerejeira bem encerada, grosso e lustroso.
Ambas também tinham a mesma pele dourada. Como, porém, as feições
da dra. Paige eram mais maduras do que as de Lisa, eram também mais
interessantes e atraentes, na opiniĂŁo de Bryce. Os olhos da doutora
eram ainda de um tom mais verde do que os da irmĂŁ.
Bryce falou:
—

Dra. Paige, gostaria de ver aquela casa onde os corpos

estavam dentro do gabinete de leitura com barricada.
— É — falou Tal. — Os assassinatos do quarto trancado.
— É na casa dos Oxleys, lá na Vail.
Ela os conduziu rua abaixo na direção da esquina da Vail Lane
com a Skyline Road.
O arrastar seco dos passos deles era o Ăşnico som, e fez Bryce
pensar novamente em locais desertos, com escaravelhos pulando em
pilhas de pergaminhos de papiro frágeis e antigos, em túmulos do
deserto.
Dobrando a esquina na Vail Lane, a dra. Paige parou e disse:
— Tom e Karen Oxley... hã... moravam a duas quadras daqui,
descendo a rua.
Bryce examinou a rua. Falou:
— Em vez de irmos direto para a casa dos Oxleys, vamos dar
uma olhada em todas as casas e lojas daqui até a casa deles... pelo

menos neste lado da rua. Acho que Ă© seguro nos dividirmos em dois
grupos de quatro. Não vamos tomar direções inteiramente diferentes.
Estaremos perto o bastante para nos ajudarmos uns aos outros, se
houver encrenca. Dra. Paige, Lisa... vocĂŞs ficam comigo e com Tal.
Frank, você fica encarregado da segunda equipe. — Frank assentiu. —
Vocês quatro fiquem bem juntos — advertiu Bryce. — E quero dizer
juntos mesmo. Cada um de vocĂŞs tem que ficar Ă  vista dos outros trĂŞs o
tempo todo. Compreenderam?
— Compreendemos, xerife — respondeu Frank Autry.
— Tudo bem, então vocês quatro examinem o primeiro prédio
depois deste restaurante e nós examinaremos o prédio vizinho a ele.
Vamos alternando os prédios até o fim do quarteirão, depois paramos e
trocamos

impressões.

Se

vocĂŞs

encontrarem

algo

de

realmente

interessante, algo mais do que simples corpos adicionais, venham me
buscar. Se precisarem de ajuda, disparem dois ou trĂŞs tiros.
Escutaremos os tiros mesmo que estejamos dentro de outro prédio, li
vocês também fiquem atentos a tiros disparados por nós.
— Posso fazer uma sugestão? — indagou a dra. Paige.
— Claro — retrucou Bryce. Voltando-se para Frank Autry, ela
falou:
— Se depararem com qualquer cadáver que apresente sinais de
hemorragia

nos

olhos,

ouvidos,

nariz

ou

boca,

avisem-me

imediatamente. E também se houver quaisquer indícios de vômito ou
diarréia.
— Porque essas coisas podem indicar uma moléstia? —
perguntou Bryce.
— É — respondeu ela. — Ou envenenamento.
— Mas já eliminamos essas possibilidades, não foi? — perguntou
Gordy Brogan.
Jake Johnson, aparentando mais idade que seus 57 anos, falou:
—

Não foi uma moléstia que cortou Fora a cabeça daquelas

pessoas.
—

Estive pensando nisso — replicou a dra. Paige. — E se se

tratar de uma moléstia ou uma toxina química que jamais encontramos
antes — uma forma mutante de raiva, digamos —, que mata algumas
pessoas mas simplesmente deixa as outras loucas furiosas'? E se as
mutilações foram feitas por aqueles que ficaram alucinados?
— Isso seria provável? — quis saber Tal Whitman.
— Não. Mas, pensando bem, talvez não seja impossível. Além
disso, quem é capaz de dizer o que é provável ou improvável, agora?
Seria provável que uma coisa dessas acontecesse a Snowfield, para
começo de conversa?
Frank Autry puxou o bigode e falou:
— Mas se há bandos de maníacos raivosos correndo soltos por
aĂ­... onde estĂŁo eles?
Todos olharam para a rua tranqüila. Para as poças de sombra
mais fundas que se derramavam por relvados, calçadas e carros
estacionados. Para as janelas de sĂłtĂŁo apagadas. Para as janelas de
porĂŁo Ă s escuras.
— Se escondendo — falou Wargle.
— Esperando — falou Gordy Brogan.
— Não, isso não faz sentido — falou Bryce. — Maníacos raivosos
nĂŁo ficariam escondidos, esperando e planejando. Eles nos,atacariam.
—

Além disso — disse Lisa suavemente —, não é gente com

raiva. É alguma coisa bem mais estranha.
— Ela provavelmente tem razão — falou a dra. Paige.
— O que não me faz sentir nem um pouquinho melhor — disse
Tal.
— Bem, se encontrarmos sinais de vômitos, diarréia ou
hemorragia

—

falou

Bryce

—,

entĂŁo

saberemos.

E

se

nĂŁo

encontrarmos...
— Terei que apresentar uma nova hipótese — concluiu a dra.
Paige. Ficaram calados, sem animação para começar a busca porque
não sabiam o que podiam encontrar — ou o que poderia encontrá-los.
O tempo parecia ter parado.
O alvorecer, pensou Bryce Hammond, jamais chegará se não nos

mexermos.
— Vamos indo — falou.

O primeiro prédio era estreito e fundo, com uma combinação de
galeria de arte e loja de artesanato no primeiro andar. Frank Autry
quebrou uma vidraça na porta da frente, meteu a mão para dentro e
destrancou a porta. Entrou e acendeu as luzes.
Fazendo sinal para os outros entrarem, falou:
—

Espalhem-se. NĂŁo fiquem junto demais. NĂŁo queremos

oferecer um alvo fácil.
Enquanto falava, Frank se lembrava do seu tempo de serviço no
Vietnã, há quase vinte anos. Esta operação tinha a qualidade
angustiante de uma missão de busca-e-destruição em território dos
guerrilheiros.
Percorreram cautelosamente o salão de exposição da galeria,
mas não acharam ninguém. Tampouco havia pessoa alguma no
pequeno escritĂłrio nos fundos do salĂŁo. Todavia, uma porta no
escritĂłrio abria para uma escada que levava ao segundo andar.
Subiram a escada ao estilo militar. Frank subiu sozinho até o
alto, arma na mĂŁo, enquanto os outros esperavam. Localizou o
interruptor no alto da escada, acendeu-o e viu que estava no canto da
sala de estar do apartamento do dono da galeria. Quando teve certeza
de que a sala estava vazia, fez sinal aos seus homens para subirem.
Enquanto os outros subiam a escada, Frank penetrou na sala de estar,
sempre grudado Ă  parede, atento.
Eles revistaram o resto do apartamento, tratando cada porta
como ponto potencial de emboscada. Tanto o gabinete de leitura quanto
a sala de jantar estavam desertos. Não havia ninguém escondido nos
armários.
No chĂŁo da cozinha, contudo, encontraram um homem morto.
Ele estava usando apenas calças de pijama azuis, mantendo aberta a
poria da geladeira com o corpo pisado e inchado. NĂŁo havia ferimentos
visĂ­veis. NĂŁo havia expressĂŁo de horror no seu rosto. Aparentemente,

morrera tĂŁo de repente que nem pudera ver o seu atacante... e sem o
menor sinal de advertĂŞncia de que a morte estivesse prĂłxima. No chĂŁo
ao seu redor via-se material para preparar um sanduĂ­che: um vidro
partido de mostarda, um pacote de salame, um tomate parcialmente
amassado, um pacote de queijo suíço.
— Não foi doença alguma que o matou — disse Jake Johnson,
enfaticamente. — Como é que podia estar doente se ia comer salame?
—

E tudo aconteceu depressa mesmo — falou Gordy. — Ele

estava com as mĂŁos cheias das coisas que tirou da geladeira, e quando
se virou... a coisa aconteceu. Bum: sem mais nem menos.
Descobriram outro cadáver no quarto. Ela estava na cama, nua.
NĂŁo tinha menos de vinte anos, nem mais de quarenta. Era difĂ­cil
adivinhar a sua idade por causa das pisaduras e do inchaço globais.
Seu rosto estava contorcido de terror, precisamente como o de Paul
Henderson, Ela havia morrido no meio de um grito.
Jake Johnson tirou uma caneta do bolso da camisa e enfiou-a
pelo gatilho de uma automática 22 que jazia nos lençóis amassados, ao
lado do corpo.
— Não creio que seja preciso tomar cuidado com isso — falou
Frank. — Ela não foi baleada. Não há nenhum ferimento; nada de
sangue. Se alguém usou a arma, esse alguém foi ela mesma. Deixe-me
vĂŞ-la.
Ele tirou a automática das mãos de Jake e ejetou o pente.
Estava vazio. Ele mexeu no cursor, apontou a boca da arma para a
mesinha-de-cabeceira e examinou o cano, não havia bala na câmara.
Levou a boca da arma ao nariz, farejou, sentiu o cheiro de pĂłlvora.
— Foi disparada recentemente? — perguntou Jake.
— Muito recentemente. Supondo-se que o pente estivesse cheio
quando ela o usou, isso quer dizer que deu dez tiros.
— Olhe isto aqui — dizia Wargle.
Frank se virou e viu que Wargle apontava para um buraco de
bala na parede em frente ao pé da cama; ficava mais ou menos na
altura de dois metros.

— E aqui — falou Gordy Brogan, chamando a sua atenção para
outra bala localizada na madeira lascada da cĂ´moda escura de pinho.
Encontraram todos os dez invĂłlucros de metal na cama ou ao
redor dela, mas nĂŁo conseguiram descobrir onde as outras oito balas
estavam localizadas.
— Você acha que ela acertou oito vezes? — perguntou Gordy a
Frank.
— Besteira, isso seria impossível! — exclamou Wargle, ajeitando
o cinturão nos quadris gordos. — Se tivesse acertado em alguém oito
vezes, não seria o único cadáver no quarto, porra.
—

Certo — disse Frank, embora lhe desagradasse ter que

concordar com Stu Wargle sobre qualquer coisa. — Além disso, não há
sangue. Se tivesse acertado oito vezes, haveria um bocado de sangue.
Wargle foi até o pé da cama e fitou a mulher morta. Ela estava
recostada em dois travesseiros fofos, e tinha as pernas abertas numa
parĂłdia grotesca de desejo.
— O cara na cozinha devia estar aqui, trepando com essa dona
— falou Wargle. — Quando acabou com ela, foi para a cozinha preparar
alguma coisa para comerem. Enquanto estavam separados, alguém
entrou aqui e a matou.
— Mataram primeiro o homem na cozinha — falou Frank. — Ele
nĂŁo podia ter sido apanhado de surpresa se tivesse sido atacado depois
que ela atirou dez vezes.
Wargle falou:
— Cara, eu bem que gostaria de ter passado o dia todo na cama
com uma gata dessas.
Frank olhou para ele, de boca aberta.
— Wargle, você é revoltante. Fica ouriçado até com um cadáver
inchado... só porque está nu?
O rosto de Wargle ficou vermelho, e ele afastou os olhos do
cadáver.
— Que diabo está havendo com você, Frank? O que acha que
sou — algum tarado? Hein? Porra, não. Eu vi aquela foto ali na

mesinha-de-cabeceira. — Apontou para uma fotografia emoldurada em
prata ao lado do abajur. — Está vendo, ela está de biquíni. Dá para se
ver

que

ela

era

uma

gata

bonitona.

Mamas

grandes.

Pernas

espetaculares. Foi isso que me ouriçou, meu chapa.
Frank balançou a cabeça.
—

O que me espanta é que você consiga ficar ouriçado com

qualquer coisa no meio disto, no meio de tanta morte.
Wargle achou que aquilo era um elogio. Piscou o olho.
Se eu sair disto aqui com vida, pensou Frank, nĂŁo vou deixar
nunca mais que Bryce Hammond destaque o Wargle para meu parceiro.
Prefiro me demitir.
Gordy Brogan perguntou:
— Como é que ela pode ter acertado oito vezes e não ter detido
alguma coisa? Como é que não há uma só gota de sangue?
Jake Johnson voltou a correr a mĂŁo pela cabeleira branca.
— Não sei, Gordy. Mas uma coisa eu sei... gostaria que Bryce
não tivesse me escolhido para vir para cá.

Ao lado da galeria de arte, o cartaz na frente do prédio pitoresco
de dois andares dizia:

BROOKHART'S
_______________________________________________________________
CERVEJA — VINHO — BEBIDAS ALCOÓLICAS
FUMO — REVISTAS — JORNAIS — LIVROS

As luzes estavam acesas, e a porta destrancada. O Brookhart's
ficava aberto até as nove, mesmo nas noites de domingo durante a
baixa temporada.
Bryce entrou primeiro, seguido por Jennifer e Lisa Paige. Tal
entrou por Ăşltimo. Ao escolher um homem para protegei a sua
retaguarda numa situação de perigo, Bryce sempre preferia Tal

Whitman. Não confiava em mais ninguém como confiava em Tal, nem
mesmo em Frank Autry.
Brookhart

era

um

lugar

atravancado,

mas

curiosamente

simpático e agradável. Havia refrigeradores altos de porta de vidro
cheios de latas e garrafas de cerveja, prateleiras, suportes e caixas
cheios de garrafas de vinho e bebidas alcoĂłlicas, e outras prateleiras
atopetadas de livros, revistas e jornais. Charutos e cigarros estavam
empilhados em caixas e caixotes, e latas de fumo para cachimbo
ficavam expostas em montes, ao acaso, sobre diversos balcões. Uma
variedade de guloseimas se encaixava em qualquer canto que houvesse
espaço: barras de chocolate, dropes, goma de mascar, amendoim,
pipoca, batatinhas fritas e mais outros salgadinhos.
Bryce foi na frente, procurando corpos nos corredores da loja
deserta. Mas nĂŁo havia nenhum.
Havia, contudo, uma imensa poça d'água, com cerca de dois
centĂ­metros de profundidade, que cobria metade do chĂŁo. Eles a
rodearam cuidadosamente.
— De onde veio essa água toda? — indagou Lisa.
— Deve haver um vazamento no tanque de condensação debaixo
de um dos refrigeradores de cerveja — falou Tal Whitman.
Passaram por uma caixa de vinho e deram uma boa olhada em
todos os refrigeradores. Não havia água alguma nas proximidades
daqueles aparelhos elétricos, que roncavam baixinho.
—

Quem sabe é um cano furado — falou Jennifer Paige.

Continuaram a exploração, descendo para a adega, que era usada
para a armazenagem de vinho e outras bebidas em caixotes de
papelĂŁo, subindo depois para o Ăşltimo andar, acima da loja, onde havia
um escritĂłrio. NĂŁo encontraram nada de anormal.
Novamente dentro da loja, dirigiram-se para a porta da frente,
Bruce parou e se agachou para olhar mais de perto a poça no chão.
Umedeceu a ponta do dedo no líquido; parecia ser água, e não tinha
cheiro.
— O que foi? — perguntou Tal. Novamente de pé, Bryce

respondeu:
— É estranho... toda esta água aqui.
— Vai ver que é o que a dra. Paige falou... só um cano furado.
Bryce assentiu. Todavia, embora não soubesse dizer por que, a poça
grande lhe parecia significativa.
A Farmácia Tayton era um local pequeno que atendia Snowfield
e todas as cidades montanhesas vizinhas. Um apartamento ocupava
dois andares acima da farmácia; era decorado em tons de creme e
pêssego, com peças de realce verde-esmeralda, e com diversas
antigĂĽidades de boa qualidade.
Frank Autry conduziu os seus homens por todo o prédio, mas
não acharam nada de extraordinário — a não ser o carpete ensopado da
sala

de

visitas.

Estava

realmente

encharcado;

praticamente

chapinharam nele.

A Candleglow Inn positivamente irradiava encanto e classe: os
beirais fundos e as cornijas primorosamente entalhadas, as janelas com
mainel flanqueadas por persianas brancas entalhadas. Duas lâmpadas
de carruagem afixavam-se em pilastras de pedra, uma de cada lado do
curto caminho de pedra. TrĂŞs holofotes pequenos espalhavam leques de
luz, dramaticamente, na fachada da estalagem.
Jenny, Lisa, o xerife e o tenente Whitman pararam na calçada
diante da Candleglow, e Hammond perguntou:
— Estão funcionando nesta época do ano?
—

Sim — respondeu Jenny. — Conseguem ter metade dos

quartos ocupados durante a baixa temporada. Sua reputação é
fantástica entre viajantes exigentes... e têm apenas dezesseis quartos.
— Bem... vamos dar uma olhada.
As portas da frente davam para um saguĂŁo pequeno e
confortavelmente mobiliado: piso de carvalho, tapete oriental escuro,
sofás em bege-claro, um par de cadeiras Rainha Anne estofadas num
tecido cor-de-rosa, mesinhas laterais de cerejeira, abajures de latĂŁo.
A mesa da recepção ficava à direita. Havia uma campainha no

balcĂŁo de madeira e Jenny a apertou diversas vezes, rapidamente, sem
esperar resposta, e nĂŁo obtendo nenhuma.
— Dan e Sylvia têm um apartamento por trás do escritório —
disse ela, apontando para o escritoriozinho apertado do outro lado do
balcĂŁo.
— São os donos disto aqui? — indagou o xerife.
— São. Dan e Sylvia Kanarsky.
O xerife fitou-a por um momento.
— Amigos?
— É. Amigos íntimos.
— Então é melhor não irmos olhar no apartamento deles.
CompreensĂŁo e compaixĂŁo brilhavam nos seus olhos azuis de
pálpebras

pesadas.

Jenny

ficou

surpresa

ao

se

dar

conta,

repentinamente, da bondade e inteligĂŞncia que havia no rosto dele.
Durante esta última hora, vendo-o trabalhar, ela aos poucos começara
a perceber que ele era consideravelmente mais alerta e eficiente do que
aparentava ser a princĂ­pio. Agora, fitando aqueles olhos sensĂ­veis,
compassivos, ela se deu conta de que ele era perceptivo, interessante,
digno de respeito.
— Não podemos simplesmente ir embora — falou ela. — Este
lugar vai ter que ser revistado, mais cedo ou mais tarde. A cidade
inteira tem que ser revistada. É melhor nos livrarmos logo desta parte.
Ela levantou uma parte do balcĂŁo de madeira que tinha
dobradiças e começou a cruzar a portinha para o escritório além dele.
— Por favor, doutora — falou o xerife —, deixe sempre que um
de nós, eu ou o tenente Whitman, vá na frente.
Ela recuou obedientemente e ele a precedeu ao entrarem no
apartamento de Dan e Sylvia, mas não acharam ninguém. Nenhum
cadáver.
Graças a Deus.
De volta à recepção, o tenente Whitman folheou o livro de
registros.
— Há somente seis quartos alugados no momento, e ficam todos

no segundo andar.
O xerife localizou uma chave mestra num porta-chaves junto Ă s
caixas de correspondĂŞncia.
Com cautela quase monĂłtona, eles subiram e revistaram os seis
quartos.

Nos

cinco

primeiros

encontraram

bagagem,

máquinas

fotográficas, postais parcialmente escritos e outros indícios de que
realmente havia hĂłspedes na estalagem, mas nĂŁo encontraram os
hĂłspedes propriamente ditos.
No sexto quarto, quando o tenente Whitman tentou abrir a porta
do banheiro conjugado, viu que estava trancada. Bateu com força na
porta e gritou:
— Polícia! Tem alguém aí? Ninguém respondeu.
Whitman olhou para a maçaneta, depois para o xerife.
— Não tem trinco deste lado, então deve ter alguém aí dentro.
Arrombo a porta?
— Parece madeira sólida — falou Hammond. — Não vale a pena
deslocar o seu ombro. Arrebente a fechadura com um tiro.
Jenny pegou o braço de Lisa e puxou a garota para o lado, para
fora do caminho de qualquer lasca que pudesse voar.
O tenente Whitman gritou uma advertĂŞncia para quem quer que
estivesse no banheiro, depois disparou um Ăşnico tiro. Abriu a porta com
um pontapé e entrou rapidamente.
— Não tem ninguém aqui.
— Quem sabe saíram pela janela — disse o xerife.
— Aqui não tem nenhuma janela — falou Whitman, franzindo o
cenho.
— Tem certeza de que a porta estava trancada?
— Absoluta. E só podia ser trancada por dentro.
—

Mas como... se não havia ninguém aí? Whitman deu de

ombros.
— Além do mais, tem uma coisa aqui que acho que você deve vir
ver.
Todos foram ver, na verdade, pois o banheiro era grande o

bastante para acomodar quatro pessoas. No espelho que encimava a
pia, uma mensagem fora escrita Ă s pressas em letras grandes, pretas,
gordurosas:

Timothy Flyte o inimigo antigo

Noutro apartamento, em cima de outra loja, Frank Autry e seus
homens encontraram outro carpete ensopado e chapinharam nele
também. Na sala de visitas, sala de jantar e quartos, o carpete estava
seco, mas no corredor que levava Ă  cozinha estava encharcado. E na
prĂłpria cozinha, trĂŞs quartos do piso ladrilhado estavam cobertos de
água, com poças que, em alguns lugares, chegavam a ter cerca de dois
centĂ­metros de profundidade. Parado no corredor, olhando para a
cozinha, Jake Johnson falou:
— Deve ser um cano furado.
— Foi isso que você disse na outra casa — lembrou-lhe Frank.
— Parece muita coincidência, não acha?
Gordy Brogan comentou:
—

É só água. Não sei o que possa ter a ver com... todos os

assassinatos.
— Merda — falou Stu Wargle —, estamos perdendo tempo. Não
tem nada aqui. Vamos embora.
Ignorando-os, Frank entrou na cozinha, pisando com cuidado
numa das extremidades do laguinho, dirigindo-se para uma zona seca
perto de uma fileira de armários. Abriu diversos armários antes de
encontrar um pequeno recipiente de plástico usado para guardar sobras
de comida. Estava limpo e seco, e tinha uma tampa de pressĂŁo que o

vedava completamente. Numa gaveta encontrou uma colher de medida,
e usou-a para colocar água no recipiente.
— O que está fazendo? — perguntou Jake, parado junto à porta.
— Coletando uma amostra.
— Amostra? Por quê? Não passa de água.
—

É — replicou Frank. — Mas há alguma coisa de esquisito

nela.
O banheiro. O espelho. As letras grandes, pretas, gordurosas.
Jenny fitou as cinco palavras em letras de fĂ´rma.
— Quem é Timothy Flyte? — perguntou Lisa.
—

Pode ser o cara que escreveu isto — respondeu o tenente

Whitman.
— O quarto está alugado a Flyte? — perguntou o xerife.
— Tenho certeza de que não vi o nome dele no livro de registro
— disse o tenente. — Podemos verificar quando descermos, mas tenho
absoluta certeza.
— Talvez Timothy Flyte seja urn dos assassinos — falou Lisa. —
Provavelmente o sujeito que alugou este quarto reconheceu-o e deixou
esta mensagem.
O xerife balançou a cabeça.
— Não. Se Flyte tem alguma coisa a ver com o que aconteceu
nesta cidade, nĂŁo deixaria o nome no espelho deste jeito. Trataria de
apagá-lo.
— A não ser que não soubesse que estava ali — falou Jenny.
— Ou talvez soubesse que estava ali, mas, sendo um daqueles
manĂ­acos raivosos de que a senhora falou, nĂŁo se importasse com o fato
de ser ou não apanhado — disse o tenente.
Bryce Hammond olhou para Jenny.
— Há alguém na cidade chamado Flyte?
— Não que eu saiba.
— Conhece todo mundo em Snowfield?
— Conheço.
— Todos os quinhentos habitantes?

— Praticamente todo mundo — retrucou ela.
—

Praticamente todo mundo, nĂŁo Ă©? EntĂŁo poderia haver um

Timothy Flyte aqui?
—

Mesmo que nĂŁo o conhecesse pessoalmente, ainda assim

teria ouvido alguém falar nele. É uma cidade pequena, xerife, pelo
menos durante a baixa temporada.
—

Poderia ser alguém de Mount Larson, Shady Roost ou

Pineville — sugeriu o tenente.
Ela desejou que eles pudessem passar a outro lugar para
discutir a mensagem no espelho. Do lado de fora. Ao ar livre. Onde nada
pudesse se esgueirar na direção deles sem se revelar. Tinha a sensação
fantástica, sem base, mas inegável, de que alguma coisa — alguma
coisa muito estranha — estava se movimentando noutra parte da
estalagem neste exato minuto, cumprindo sorrateiramente alguma
tarefa pavorosa que ela, o xerife, Lisa e o delegado ignoravam, para mal
deles.
— E quanto à segunda parte da mensagem? — indagou Lisa,
apontando para o
—

INIMIGO ANTIGO.

Bem, voltamos ao que Lisa falou primeiro — disse Jenny,

finalmente. — Parece que o homem que escreveu isto estava nos
dizendo que Timothy Flyte era seu inimigo. Nosso também, acho eu.
—

Talvez — retrucou Bryce Hammond, com ar de dúvida. —

Mas parece um jeito estranho de colocar a coisa — "o inimigo antigo".
Meio esquisito, quase arcaico. Se ele se trancou no banheiro para fugir
de Flyte e depois escreveu uma advertĂŞncia apressada, nĂŁo teria dito
"Timothy Flyte, meu velho inimigo", ou outra coisa mais direta? O
tenente Whitman concordou.
— Na verdade, se ele quisesse deixar uma mensagem acusando
Flyte, teria escrito "Foi Timothy Flyte", ou talvez "Timothy Flyte matou
todos eles". A Ăşltima coisa que ele ia querer era ser obscuro.
O xerife começou a mexer nos artigos na prateleira funda que
ficava acima da pia, logo abaixo do espelho: um frasco de creme para a
pele, loção pós-barba com cheiro de limão, um barbeador elétrico de

homem, um par de escovas de dentes, pasta de dente, pentes, escovas
de cabelo, um estojo de maquiagem para mulher.
— Ao que parece, havia duas pessoas neste quarto. Admitindose

que

elas

se

trancaram

no

banheiro,

entĂŁo

duas

pessoas

desapareceram como que por encanto. Mas com que escreveram no
espelho?
— Parece que foi com lápis de sobrancelha — falou Lisa.
— Eu também acho — concordou Jenny.
Revistaram o banheiro procurando um lápis de sobrancelha
preto. Não conseguiram achá-lo.
— Formidável — falou o xerife, exasperado. — Quer dizer que o
lápis de sobrancelha sumiu, juntamente com duas pessoas que se
trancaram aqui. Duas pessoas raptadas de um quarto trancado.
Desceram e foram até a recepção. Segundo o registro dos
hĂłspedes, o quarto em que a mensagem fora encontrada era ocupado
pelo sr. e sra. Harold Ordnay, de SĂŁo Francisco.
—

Nenhum dos outros hóspedes se chama Timothy Flyte —

disse o xerife Hammond, fechando o livro de registro.
—

Bem — falou o tenente Whitman —, acho que é só o que

podemos fazer por aqui, no momento.
Jenny ficou aliviada ao ouvi-lo dizer aquilo.
—

Está bem — concordou Bryce Hammond. — Vamos nos

encontrar com Frank e os outros. Talvez eles tenham achado algo que
nĂłs nĂŁo achamos.
Começaram a cruzar o saguão. Depois de darem dois passos,
Lisa os deteve com um grito.
Todos a viram um segundo depois que chamou a atenção da
garota. Estava numa mesinha lateral, diretamente no facho de luz de
um abajur de cĂşpula cor-de-rosa, tĂŁo lindamente iluminada que quase
parecia um objeto de arte em exposição. Uma mão de homem. Uma mão
cortada.
Lisa desviou o olhar da visĂŁo macabra.
Jenny abraçou a irmã, olhando por sobre o ombro de Lisa com

uma fascinação apavorada. A mão. A mão maldita, zombeteira,
impossĂ­vel.
Segurava com firmeza um lápis de sobrancelha entre o polegar e
os dois primeiros dedos. O lápis de sobrancelha. O mesmo. Tinha que
ser.
O horror de Jenny foi tĂŁo grande quanto o de Lisa, mas ela
mordeu o lábio e conteve um grito. Não foi meramente a visão da mão
que a enjoou e aterrorizou. O que a fez prender a respiração até o peito
arder foi o fato de que a mĂŁo nĂŁo estava naquela mesinha lateral
momentos atrás. Alguém a colocara ali enquanto eles estavam lá em
cima, sabendo que a encontrariam. Alguém estava debochando deles,
alguém com um senso de humor extremamente pervertido.
Os olhos encobertos de Bryce Hammond estavam abertos como
Jenny jamais os vira.
— Droga, mas esta coisa não estava aqui antes, estava?
— Não — respondeu Jenny.
O xerife e o delegado estavam carregando as armas com a boca
apontada para o chĂŁo. Agora, ergueram os revĂłlveres como se
pensassem que a mão cortada poderia largar o lápis de sobrancelha,
saltar da mesa, jogar-se sobre o rosto de alguém e arrancar-lhe fora os
olhos.
Ficaram sem fala.
Os desenhos em espiral do tapete oriental pareciam ter-se
transformado em serpentinas de refrigeração, lançando ondas de ar
gelado.
Lá em cima, num quarto distante, uma tábua de chão ou uma
porta sem lubrificação rangeu, gemeu, rangeu.
Bryce Hammond ergueu os olhos para o teto do saguĂŁo.
Crrrééééc.
Podia ser apenas um barulho natural de acomodação. Ou podia
ser outra coisa.
— Agora não há mais dúvida — disse o xerife.
—

Sobre quê? — perguntou o tenente Whitman, olhando não

para o xerife, mas para as outras entradas que davam para o saguĂŁo.
O xerife se voltou para Jenny.
—

A senhora disse que, ao ouvir a sirene e o sino da igreja,

pouco antes de chegarmos, teve a consciĂŞncia de que o que quer que
tivesse acontecido a Snowfield ainda poderia estar acontecendo.
— Foi.
— Agora sabemos que tinha razão.

12

Campo de batalha

Jake Johnson esperava com Frank, Gordy e Stu Wargle no fim
do quarteirão, num trecho de calçada fortemente iluminado em frente
ao Mercado Gilmartin, uma mercearia.
Viu Bryce Hammond sair da Candleglow Inn, e pedia aos céus
que o xerife andasse mais depressa. NĂŁo gostava de ficar ali parado
naquela luz toda. Que diabo, era como estar num palco. Jake sentia-se
vulnerável.
É claro, alguns minutos antes, enquanto faziam uma revista em
alguns dos prédios da rua, eles tinham tido que passar por zonas
escuras onde as sombras pareciam pulsar e se mover como criaturas
vivas, e Jake olhara com um anseio feroz para este mesmo trecho de
calçada fortemente iluminada. Tivera tanto medo da escuridão como
tinha agora da luz.
Correu a mĂŁo nervosamente pelo cabelo branco e espesso. A
outra mĂŁo ele deixou sobre a ponta do revĂłlver que sobressaĂ­a do
coldre.

Jake Johnson nĂŁo apenas acreditava na cautela; adorava-a. A
cautela era seu deus. Seguro morreu de velho; mais vale um pássaro na
mĂŁo do que dois voando; devagar se vai ao longe.. Ele tinha um milhĂŁo
de máximas que, para ele, eram como postes de luz marcando o único
caminho seguro. Para além dessas luzes ficava um vácuo frio de risco,
chances e caos.
Jake nunca se casara. O casamento significava assumir muitas
responsabilidades novas. Significava pôr em risco as suas emoções e o
seu dinheiro, e todo o seu futuro.
No tocante às finanças, também levara uma existência cautelosa
e frugal. Tinha feito um bom pé-de-meia, diversificando os seus fundos
numa ampla variedade de investimentos.
Jake, agora com 57 anos, trabalhava para o departamento
policial do condado de Santa Mira há mais de 37 anos. Podia ter-se
aposentado há bastante tempo. Mas se preocupava com a inflação,
portanto

continuava

no

emprego,

aumentando

o

valor

da

sua

aposentadoria, poupando mais e mais dinheiro.
Ter-se tornado policial fora talvez a Ăşnica coisa nĂŁo cautelosa
que Jake Johnson já fizera. Ele não quisera ser tira. Santo Deus, não!
Mas o seu pai, Big Ralph Johnson, fora xerife do condado nos anos 40 e
50, e esperava que o filho seguisse os seus passos. Big Ralph jamais
aceitava um nĂŁo como resposta. Jake tinha certeza de que Big Ralph o
deserdaria se ele não entrasse para a força policial. Não que houvesse
uma vasta fortuna na famĂ­lia; nĂŁo havia. Mas havia uma boa casa e
contas bancárias respeitáveis. E por trás da garagem da família,
enterrados no gramado, a um metro de profundidade, havia diversos
vidros grandes de conserva cheios de maços bem enroladinhos de notas
de vinte, cinqĂĽenta e cem dĂłlares, dinheiro que Big Ralph aceitara de
suborno e que guardara para a Ă©poca das vacas magras. E, assim, Jake
se tornara um tira como o pai, que finalmente morrera aos 82 anos,
quando Jake estava com 51. A essa altura Jake nĂŁo tinha outro jeito
senão continuar como tira pelo resto de sua vida profissional, já que era
a Ăşnica coisa que sabia fazer.

Ele era um tira cauteloso. Por exemplo, evitava atender a
chamados de problemas domésticos, porque os policiais às vezes eram
mortos ao tentar separar maridos e mulheres exaltados. As paixões
eram muito violentas nesse tipo de confronto. Olhem sĂł para esse
corretor imobiliário, Fletcher Kale. Um ano atrás, Jake comprara um
terreno nas montanhas por intermédio de Kale, e o homem parecia tão
normal quanto qualquer outro. Agora matara a mulher e o filho. Se um
tira tivesse interferido naquele dia, Kale o teria matado também.
Quando um despachante da polĂ­cia alertava Jake para um roubo em
andamento, ele normalmente mentia sobre a sua localização, dizendo-se
tĂŁo longe da cena do crime que outros guardas estariam mais prĂłximos
dela; então, aparecia por lá mais tarde, quando tudo já estava sob
controle.
NĂŁo era covarde. Houve vezes em que se encontrou na linha de
fogo e, nessas ocasiões, portou-se como um tigre, um leão, um urso
furioso. Ele era apenas cauteloso.
Havia serviços de polícia que ele realmente apreciava. Cuidar do
trânsito não era ruim. E adorava o serviço burocrático. O único prazer
que sentia ao fazer uma prisĂŁo era o preenchimento subseqĂĽente de
numerosos formulários que o mantinham em segurança na delegacia
durante algumas horas.
Desta

feita,

infelizmente,

as

suas

manobras

de

ficar

remanchando no preenchimento da papelada tinham sido um tiro pela
culatra. Estava na delegacia, ocupado com uns formulários, quando a
dra. Paige telefonara. Se estivesse na rua, patrulhando, poderia ter
evitado esta missĂŁo.
Mas, agora, cá estava ele. Parado sob a luz forte, tornando-se
um alvo perfeito. Droga.
Para tornar as coisas piores, era evidente que algo extremamente
violento ocorrera dentro do Mercado Gilmartin. Duas das cinco grandes
vidraças na parte da frente tinham sido quebradas de dentro para fora;
a calçada estava toda cheia de cacos de vidro. Caixas de comida de
cachorro

enlatada

e

pacotes

de

latas

de

cerveja

tinham

sido

arremessados pelas janelas e agora estavam espalhados pela calçada.
Jake estava com medo de que o xerife fosse mandar que eles entrassem
no mercado para ver o que acontecera, e estava com medo de que algo
perigoso ainda estivesse lá, à espera.
O xerife, Tal Whitman e as duas mulheres finalmente chegaram
ao mercado e Frank Autry mostrou-lhes o recipiente de plástico que
continha a amostra de água. O xerife falou que encontrara outra
enorme poça d'água no Brookhart's, e eles concordaram que aquilo
podia significar alguma coisa. Tal Whitman contou-lhes sobre a
mensagem no espelho — e sobre a mão cortada... doce Jesus! — na
Candleglow Inn e ninguém sabia também o que aquilo significava.
O xerife Hammond voltou-se para a frente estilhaçada do
mercado e disse o que Jake temia que dissesse:
— Vamos dar uma olhada.
Jake nĂŁo queria ser o primeiro a cruzar as portas. Nem um dos
últimos também. Ficou no meio da procissão.
A mercearia estava uma bagunça. Em volta das três caixas
registradoras, expositores de metal pretos tinham sido derrubados.
Goma de mascar, balas, lâminas de barbear, livros de bolso e outros
artigos pequenos derramavam-se pelo chĂŁo.
Eles atravessaram a parte dianteira da loja, examinando cada
corredor ao passarem por ele. A mercadoria tinha sido arrancada das
prateleiras e lançada ao chão. Caixas de cereais tinham sido rasgadas, e
os pedaços de papelão colorido sobressaíam no meio dos flocos de milho
e dos croquilos. Das garrafas de vinagre destroçadas vinha um fedor
pungente. Vidros de geléia, picles, mostarda, maionese e molhos
estavam misturados num monte irregular e viscoso.
No inĂ­cio do Ăşltimo corredor, Bryce Hammond se virou para a
dra. Paige.
— A loja estaria aberta hoje de noite?
— Não — replicou a médica —, mas eu acho que às vezes eles
arrumam as prateleiras nos domingos Ă  noite. NĂŁo Ă© sempre. SĂł de vez
em quando.

—

Vamos dar uma olhada nos fundos — falou o xerife. —

Podemos encontrar alguma coisa de interessante.
Disso Ă© que eu tenho medo, pensou Jake.
Seguiram Bryce Hammond pelo Ăşltimo corredor, pisando em e se
desviando de pacotes de dois quilos de açúcar e farinha, alguns dos
quais tinham se rasgado.
Enfileirados nos fundos da loja havia refrigeradores para carne,
queijo, ovos e leite. Para além dos refrigeradores ficava a área de
trabalho brilhando de limpa onde a carne era cortada, pesada e
embrulhada para o consumo.
Os olhos de Jake dardejaram nervosamente sobre as mesas de
porcelana e cepo de açougueiro. Ele soltou um suspiro de alívio quando
viu que nĂŁo havia nada em cima delas. NĂŁo teria ficado surpreso de ver
o corpo do gerente da loja cortado habilmente em filés, assados e
costeletas.
Bryce Hammond falou: — Vamos dar uma olhada no depósito.
NĂŁo vamos nĂŁo, pensou Jake.
Hammond continuou:
— Quem sabe nós... As luzes se apagaram.
As Ăşnicas janelas ficavam na parte da frente da loja, mas mesmo
lá estava escuro. As luzes das ruas também tinham se apagado. Aqui, a
escuridĂŁo era total, cegante.
Várias vozes falaram a um só tempo:
— Lanternas!
— Jenny!
— Lanternas!
EntĂŁo um bocado de coisa aconteceu muito depressa.
Tal Whitman acendeu uma lanterna elétrica e o facho de luz,
como uma lâmina, apunhalou o chão. No mesmo instante, algo o
atingiu por trás, algo invisível que se aproximara sob o manto da noite,
sorrateira e velocissimamente. Whitman foi lançado para a frente,
caindo em cima de Stu Wargle.
Autry estava soltando a outra lanterna de cabo comprido da

presilha no seu cinturĂŁo de armas. Todavia, antes que pudesse acendĂŞla, tanto Wargle quanto Tal Whitman caĂ­ram em cima dele e os trĂŞs
foram ao chĂŁo.
Quando Tal caiu, a lanterna voou da sua mĂŁo.
Bryce

Hammond,

brevemente

iluminado

pela

luz

em

movimentos, tentou agarrar a lanterna, mas errou. Ela caiu no chĂŁo e
foi girando para longe, lançando sombras loucas e agitadas com cada
revolução, sem iluminar nada.
E uma coisa fria tocou a nuca de Jake. Fria e ligeiramente
úmida — no entanto, algo que estava vivo.
Ele se crispou todo ante o toque, tentou se afastar e se virar.
Algo rodeou o seu pescoço com a presteza de um chicote.
Jake ficou sem fĂ´lego.
Mesmo antes de poder erguer as mĂŁos para lutar com o seu
assaltante, seus braços foram agarrados e presos.
Estava sendo erguido no ar como se fosse uma criança.
Tentou gritar, mas uma mão gélida se fechou sobre a sua boca.
Pelo menos ele achava que era uma mĂŁo. Mas parecia a pele de um
enguia, fria e Ăşmida.
E fedia também. Não muito. Não emanava nuvens de fedor. Mas
o cheiro era tão diferente de qualquer coisa que Jake já sentira antes,
tão amargo e pungente e inclassificável, que, mesmo em pequenas
quantidades, era quase intolerável.
Ondas de terror e repulsĂŁo quebraram e espumaram dentro dele,
e ele pressentiu que estava na presença de algo inimaginavelmente
estranho e inquestionavelmente perverso.
A lanterna elétrica ainda rodopiava pelo chão. Somente uns dois
segundos tinham se passado desde que Tal a deixara cair, embora para
Jake parecesse muito mais do que isso. Agora ela rodopiava pela Ăşltima
vez e bateu de encontro Ă  base do refrigerador de leite. A lente se
estilhaçou em inúmeros pedaços e até mesmo aquela luz débil e errática
lhes foi negada. Embora nĂŁo houvesse iluminado nada, fora melhor do
que a escuridão total. Sem ela, a esperança também se extinguiu.

Jake se esticou, se retorceu, se flexionou, se sacudiu e se
contorceu numa dança epilética de pânico, num fandango espasmódico
de fuga. Mas nĂŁo conseguiu libertar nem ao menos uma das mĂŁos. O
seu adversário invisível simplesmente apertava mais o seu braço.
Jake escutou os outros se chamando uns aos outros; pareciam
estar muito longe.

13

Subitamente

Jake Johnson desaparecera.
Antes que Tal pudesse localizar a lanterna intacta, aquela que
Frank Autry deixara cair, as luzes do mercado piscaram e depois se
acenderam, firmes e fortes. A escuridĂŁo nĂŁo durara mais do que quinze
ou vinte segundos.
Mas Jake sumira.
Procuraram-no. NĂŁo estava nos corredores, na geladeira de
carne, no depĂłsito, no escritĂłrio nem no banheiro dos empregados.
Saíram do mercado — agora em número de sete — atrás de
Bryce, movendo-se com extrema cautela, esperando encontrar Jake do
lado de fora, na rua. Mas ele não estava lá.
O silĂŞncio de Snowfield era um grito mudo e zombeteiro de
ridĂ­culo.
Tal Whitman achou que a noite parecia agora infinitamente mais
escura do que fora há alguns minutos. Era um imenso papo no qual
tinham entrado, inadvertidamente. Esta noite profunda e atenta estava
com fome.

— Onde é que ele pode ter ido? — perguntou Gordy, parecendo
um tanto selvagem, como sempre parecia quando franzia o cenho,
muito embora, no momento, estivesse apenas com medo.
—

Ele não foi a lugar algum — disse Stu Wargle. — Ele foi

levado.
— Não pediu socorro.
— Nem teve chance.
—

Acha que ele está vivo... ou morto? — perguntou a mais

jovem das Paiges.
— Bonequinha — falou Wargle, esfregando a barba por fazer na
ponta do queixo —, eu não ficaria cheia de esperança, se fosse você.
Aposto o meu Ăşltimo tostĂŁo como vamos achar Jake em algum lugar,
duro feito uma tábua, todo inchado e roxo como os outros todos.
A mocinha estremeceu e se acercou mais da irmĂŁ. Bryce
Hammond disse:
— Calma, não vamos dar Jake por perdido assim tão depressa.
— Concordo — manifestou-se Tal. — Existe muita gente morta
nesta cidade. Mas me parece que a maioria não está morta. Apenas
desaparecida.
—

EstĂŁo todos mais mortos do que bebĂŞs sob o efeito do

napalm. Não é mesmo, Frank? — Wargle não perdia uma chance de
implicar com Frank sobre o tempo que este servira no Vietnã. — Só que
ainda nĂŁo os encontramos.
Frank nĂŁo se deu por achado. Tinha inteligĂŞncia e autocontrole
demais para isso. Falou:
— O que não entendo é por que aquilo não nos pegou a todos
quando teve a chance. Por que apenas derrubou Tal?
— Eu ia acender a lanterna — disse Tal. — Aquilo não queria
que eu o fizesse.
—

É — disse Frank —, mas por que Jake foi o único a ser

agarrado, e por que se mandou logo depois?
— Está brincando conosco — disse a dra. Paige. A luz da rua
fazia seus olhos faiscarem com um fogo verde. — É como eu falei na

hora do sino da igreja e da sirene. É como um gato brincando com os
ratos.
—

Mas por quê? — indagou Gordy, exasperado. — O que

consegue com tudo isso? O que Ă© que aquilo quer?
— Esperem aí — aparteou Bryce. — Que história é essa de todo
mundo estar falando em "aquilo"? Da Ăşltima vez em que fiz uma
pesquisa informal, me parece que o consenso geral era que somente um
bando de assassinos psicopatas poderia ter feito isso. ManĂ­acos. Gente.
Eles se entreolharam, inquietos. Ninguém estava ansioso para
dizer o que lhe passava pela cabeça. Coisas inimagináveis agora eram
imagináveis. Eram coisas que pessoas razoáveis não conseguiam
verbalizar com facilidade.
O vento soprou na escuridão e as árvores obedientes se
inclinaram, reverentes.
As luzes da rua piscaram.
Todos se sobressaltaram, assustados com a inconstância da luz.
Tal levou Ă  mĂŁo ao revĂłlver no coldre. Mas as luzes nĂŁo se apagaram.
Ficaram atentos Ă  cidade sepulcral. O Ăşnico som era o sussurro
das árvores agitadas pelo vento, que era como a última, longa expiração
antes do tĂşmulo, um Ăşltimo suspiro extenso.
Jake está morto, pensou Tal. Ao menos desta vez Wargle tem
razão. Jake está morto, e talvez nós todos também estejamos, só que
ainda nĂŁo sabemos.
Voltando-se para Frank Autry, Bryce perguntou:
— Frank, por que você falou "aquilo", em vez de "eles", ou coisa
parecida?
Frank lançou um olhar para Tal, buscando apoio, mas Tal
também não sabia ao certo por que ele próprio dissera "aquilo". Frank
pigarreou. Passou o peso do corpo de um pé para o outro e olhou para
Bryce. Deu de ombros.
—

Bem, senhor, acho que falei "aquilo" porque... bem... um

soldado, um adversário humano, nos teria feito em pedaços logo ali no
mercado, quando tinha a oportunidade, a todos nĂłs de uma vez, na

escuridĂŁo.
—

Então você acha... o quê? Que este adversário não é

humano?
— Talvez possa ser algum tipo de... animal.
—

Animal? É mesmo isso que você acha? Frank parecia

muitĂ­ssimo constrangido.
— Não, senhor.
— Então, o que é que você acha? — perguntou Bryce.
— Que diabo, não sei o que pensar — falou Frank, frustrado, —
Como sabe, tive treinamento militar. Um militar nĂŁo gosta de entrar Ă s
cegas em qualquer situação. Gosta de planejar cuidadosamente a sua
estratégia. Mas um planejamento estratégico eficiente depende de uni
conjunto confiável de experiências. O que aconteceu em batalhas
semelhantes em outras guerras? O que outros homens fizeram em
circunstâncias semelhantes? Tiveram êxito ou fracassaram? Desta vez,
porém, não batermos de comparação. Não há nenhuma experiência a
que se recorrer. Isso Ă© estranho demais. Vou continuar pensando no
inimigo como um "aquilo" neutro e sem rosto.
Voltando-se para a dra. Paige, Bryce falou:
— E quanto à senhora? Por que também empregou a palavra
"aquilo"?
—

NĂŁo tenho certeza. Talvez porque o guarda Autry a tenha

empregado.
—

Mas foi a senhora que propôs a teoria de uma espécie

mutante de raiva que poderia criar um bando de manĂ­acos homicidas.
Está se descartando dela agora?
Ela franziu o cenho.
—

NĂŁo. A esta altura nĂŁo podemos nos descartar de nada.

Porém, xerife, eu nunca quis dizer que aquela fosse a única teoria
possĂ­vel.
— Tem outras?
— Não.
— E quanto a você? — perguntou Bryce a Tal.

Tal se sentia tĂŁo constrangido quanto Frank aparentara estar.
— Bem, acho que usei "aquilo" porque não posso mais aceitar a
teoria de manĂ­acos homicidas.
As pálpebras pesadas de Bryce se ergueram mais do que
habitualmente:
— Ah, é? E por que não?
—

Por causa do que aconteceu na Candleglow Inn. Quando

descemos e encontramos aquela mĂŁo na mesa do saguĂŁo, segurando o
lápis de sobrancelha que estávamos procurando... bem... isso não me
pareceu o que um biruta homicida faria. Todos nós somos tiras há
bastante tempo e já lidamos com a nossa cota de desequilibrados.
Algum de vocês já encontrou um tipo desses com senso de humor? Até
mesmo um senso de humor pervertido? SĂŁo gente sem humor.
Perderam a capacidade de rir de qualquer coisa, o que Ă© provavelmente
parte do motivo pelo qual sĂŁo malucos. Assim, logo que vi aquela mĂŁo
na mesa do saguĂŁo, a coisa pareceu nĂŁo se encaixar. Concordo com
Frank; pelo menos no momento, vou pensar no nosso inimigo como um
"aquilo" sem rosto.
—
perguntou

Por que nenhum de vocês admite o que está sentindo? —
baixinho

Lisa

Paige.

Ela

tinha

quatorze

anos,

uma

adolescente prestes a se tornar uma linda moça, mas fitava cada um
deles com o olhar franco e direto de uma criança. — De certa forma,
bem lá no fundo, onde lealmente importa, todos sabemos que não foi
gente que fez aquelas coisas. É uma coisa realmente terrível... pombas,
dá para a gente sentir... uma coisa estranha e nojenta. Seja lá o que for,
nĂłs estamos sentindo. Estamos Iodos com medo dela. EntĂŁo estamos
tentando, de todas as formas, nĂŁo admitir que ela existe.
Somente Bryce retribuiu o olhar da mocinha. Fitou-a, pensativo.
Os outros desviaram o olhar de Lisa. Também não estavam querendo
fitar uns aos outros.
Nos nĂŁo estamos querendo olhar para dentro de nĂłs mesmos,
pensou Tal, e é exatamente isto o que a garota está dizendo que
façamos. Não queremos olhar para dentro e encontrar superstições

primitivas. Somos todos adultos, civilizados, razoavelmente intruĂ­dos, e
os adultos nĂŁo devem acreditar em bicho-papĂŁo.
— Lisa tem razão — falou Bryce. — O único modo de resolver
esta parada — talvez o único modo de evitarmos virar vítimas também
— é ficar de cabeça aberta e soltar a imaginação.
—

Concordo — falou a dra. Paige. Gordy Brogan sacudiu a

cabeça.
—

Mas, entĂŁo, em que devemos pensar? Em qualquer coisa?

Quero dizer, não deve haver limites? Devemos começar a nos preocupar
com fantasmas, assombrações, lobisomens e... e vampiros? Tem que
haver algumas coisas que possamos eliminar.
— Claro — disse Bryce, pacientemente. — Gordy, ninguém está
dizendo que estamos lidando com fantasmas e lobisomens. Mas temos
que nos dar conta de que estamos lidando com o desconhecido. Isso Ă©
tudo. O desconhecido.
—

Não aceito isso — disse Stu Wargle, emburrado. — O

desconhecido, uma ova. No final das contas, vamos ver que tudo foi
obra de algum pervertido, algum lixo humano muito parecido com todo
o lixo humano com que já lidamos antes.
— Wargle — disse Frank —, o seu jeito de pensar é exatamente
o que fará com que deixemos passar provas importantes. E também é o
jeito de pensar que nos matará a todos.
— Esperem só — disse-lhes Wargle. — Vocês vão ver que tenho
razĂŁo.
Cuspiu na calçada, enfiou os polegares no cinturão e tentou dar
a impressĂŁo de que era o Ăşnico homem sensato do grupo.
Tal Whitman viu o que havia por trás da atitude de machão; viu
o terror em Wargle também. Embora fosse um dos homens mais
insensíveis que Tal já conhecera, Stu não ignorava a reação primitiva de
que Lisa Paige falara. Quer admitisse, quer nĂŁo, sentia claramente o
mesmo frio nos ossos que percorria todos eles.
Frank Autry também viu que o ar imperturbável de Wargle não
passava de uma pose. Num tom de admiração exagerada e insincera,

Frank falou:
— Stu, você nos fortifica com seu belo exemplo. Inspira-nos. O
que farĂ­amos sem vocĂŞ?
—

Sem mim — retrucou Wargle, com azedume — vocês

desceriam latrina abaixo, Frank.
Fingindo pesar, Frank olhou para Tal, Gordy e Bryce.
— Esse cara não é um pretensioso?
— Claro que é. É um pretensioso e um cabeça-de-vento — falou
Tal. — Só que essa última qualidade não é culpa dele; é o resultado dos
esforços desesperados da natureza para preencher um vácuo.
Era uma piadinha boba, mas provocou grandes risadas. Embora
Stu gostasse de dar alfinetadas nos outros, nĂŁo gostava de ser o alvo
delas. No entanto, até mesmo ele conseguiu dar um sorriso.
Tal sabia que nĂŁo era bem da piada que estavam rindo, mas sim
da Morte, rindo dela na sua cara esquelética.
Quando as risadas cessaram, porém, a noite ainda estava
sombria.
A cidade ainda estava inaturalmente silenciosa.
Jake Johnson ainda estava desaparecido.
E aquilo ainda estava Ă  solta.
A dia. Paige virou-se para Bryce Hammond e perguntou:
—

Está pronto para ir dar uma olhada na casa dos Oxlcys?

Bryce balançou a cabeça.
— Não no momento. Nilo creio que seja sensato continuarmos
as nossas explorações até conseguirmos reforçou, Nilo vou perder outro
homem. NĂŁo se puder evitar.
Tal notou a angĂşstia nos olhos de Hryco quando ele mencionou
Jake.
Pensou: Bryce, meu amigo, voce sempre assume demais a
responsabilidade quando algo dá errado, do mesmo modo que sempre
se apressa a partilhar o crédito para êxitos que foram inteiramente
seus.
— Vamos voltar para a subdelegacia — disse Bryce. — Temos

que planejar cuidadosamente nossos movimentos, Ă© preciso dar uns
telefonemas.
Voltaram pelo mesmo caminho por que tinham vindo. Stu
Wargle, ainda resolvido a provar que nĂŁo tinha medo, insistiu em fechar
a retaguarda desta feita, e foi atrás dos outros, andando com
arrogância.
Ao chegarem Ă  Skyline Road, um sino de igreja tocou,
sobressaltando-os. Tocou de novo, lentamente, de novo...
Tal sentiu o som metálico vibrar nos dentes.
Todos tinham parado numa esquina, atentos ao sino e olhando
para o leste, para a outra extremidade da Vail Lane. A pouco mais de
uma quadra de distância, uma torre de igreja de tijolos sobressaia
acima dos outros prédios. Havia uma luzinha pequena em cada canto
do telhado de ardósia pontudo do campanário.
— A igreja católica — informou-lhes a dra. Paige, erguendo a voz
para competir com o sino. — Atende a todas as cidades da redondeza.
Nossa Senhora das Montanhas.
O soar de um sino de igreja podia ser uma mĂşsica alegre. Mas
nada havia de alegre nesse aĂ­, concluiu Tal.
— Quem será que o está tocando? — perguntou-se Gordy, em
voz alta.
— Pode ser que não haja ninguém tocando — falou Frank. —
Talvez ele esteja lidado a um dispositivo mecânico de algum tipo;
provavelmente a um cronĂ´metro.
No campanário iluminado, o sino balançava, lançando um
reflexo de bronze juntamente com a sua Ăşnica nota lĂ­mpida.
—

Ele geralmente toca a esta hora no domingo à noite? —

perguntou Bryce Ă  dra. Paige.
— Não.
— Então não está ligado a um cronômetro. A uma quadra de
distância, bem acima do chão, o sino faiscou e tocou de novo.
— Então, quem está puxando a corda? — indagou Gordy
Brogan.

Uma imagem macabra surgiu na cabeça de Tal: Jake Johnson,
pisado e inchado e mortinho da silva, parado na câmera do tocador de
sino na base da torre da igreja, a corda segura nas mĂŁos exangues,
morto mas demoniacamente animado, morto mas puxando a corda,
apesar disso, puxando e puxando, o rosto morto voltado para cima,
exibindo o sorriso largo e sem alegria de um cadáver, os olhos
protuberantes fitando o sino que balançava e soava sob o telhado
pontudo.
Tal estremeceu.
— Talvez devêssemos ir até a igreja para ver quem está lá —
falou Frank.
— Não — disse Bryce, imediatamente. — É isso que aquilo quer
que façamos. Que vamos dar uma olhada. Que entremos na igreja.
Então apagará as luzes de novo...
Tal reparou que também Bryce, agora, estava usando o pronome
"aquilo".
—

É — concordou Lisa Paige. — Aquilo está lá neste exato

minuto, esperando por nĂłs.
Até mesmo Stu Wargle não estava preparado para encorajá-los a
visitar a igreja esta noite.
No campanário aberto, o sino visível balançava, lançando novos
reflexos de bronze, balançava, cintilava, balançava, faiscava, como se
estivesse mandando uma mensagem semafórica de força hipnótica ao
mesmo tempo que soava monotonamente: Você está ficando sonolento,
mais sonolento, quer dormir, dormir... está profundamente adormecido,
num transe... está em meu poder... virá à igreja... virá agora, venha,
venha, venha Ă  igreja e veja a surpresa maravilhosa que o espera aqui...
venha... venha...
Bryce se sacudiu, como que despertando de um sonho. Falou:
— Se aquilo quer que vamos à igreja, mais um motivo para não
irmos. Nada mais de explorações até o alvorecer.
Todos se afastaram da Vail Lane e caminharam para o norte na
Skyline Road, passando pelo Restaurante Mountainview, na direção da

sub-delegacia.
Tinham caminhado talvez uns seis metros quando o sino da
igreja parou de tocar.
Mais uma vez aquele silĂŞncio irreal derramou-se pela cidade
como um fluido viscoso, cobrindo tudo.
Quando chegaram à subdelegacia descobriram que o cadáver de
Paul Henderson tinha desaparecido. Parecia que o delegado morto
simplesmente se levantara e saíra andando. Como Lázaro.

14

Contenção

Bryce estava sentado Ă  mesa que pertencera a Paul Henderson.
Afastara

para

um

lado

o

nĂşmero

aberto

da

Time

que

Paul

aparentemente estava lendo quando Snowfield fora riscada do mapa.
Uma folha de bloco amarela jazia sobre o mata-borrĂŁo, preenchida com
a letra parcimoniosa de Bryce.
Ao redor dele, os seis outros dedicavam-se a tarefas que ele lhes
designara. Havia uma atmosfera de tempo de guerra na delegacia. A
determinação sombria de sobreviver fizera nascer entre eles uma
camaradagem, fraca a princĂ­pio, mas que ficava cada vez mais forte.
Existia até mesmo um otimismo discreto, talvez baseado na observação
de que ainda estavam vivos quando havia tantos outros mortos.
Bryce correu rapidamente os olhos pela lista que fizera, tentando
determinar se deixara passar alguma coisa. Finalmente, puxou para si o
telefone. Conseguiu linha imediatamente, e sentiu-se grato por isso, ao
pensar nas dificuldades de Jennifer Paige no tocante ao assunto.

Hesitou antes de dar o primeiro telefonema. Tinha nĂ­tida
consciência da imensa importância do momento. Nunca houvera nada
parecido com a selvagem obliteração de toda a população de Snowfield.
Dentro de horas, surgiriam no condado de Santa Mira jornalistas Ă s
dĂşzias, Ă s centenas, vindos de todo o mundo. Pela manhĂŁ, a histĂłria de
Snowfield teria tirado das manchetes todas as outras notĂ­cias. As
principais

redes

de

televisĂŁo

estariam

interrompendo

a

sua

programação normal para dar boletins especiais enquanto durasse a
crise. A cobertura da mídia seria Intensa. Até que o mundo soubesse se
algum germe em mutação tinha ou não tido um papel nesses
acontecimentos, centenas de milhões de pessoas esperariam de
respiração presa, imaginando se as suas próprias sentencia de morte
tinham sido assinadas em Snowfield. Mesmo que a hipótese de moléstia
fosse descartada, a atenção do mundo não se desviaria de Snowfield até
que o mistério tivesse sido explicado. A pressão para encontrar uma
solução iria ser insuportável.
Num nĂ­vel pessoal, a prĂłpria vida de Bryce seria modificada para
sempre. Ele era o encarregado do contingente policial. Portanto,
apareceria em todas as reportagens. Essa idéia o apavorava. Não era o
tipo de xerife que gostava de aparecer. Preferia se manter Ă  sombra.
Mas simplesmente nĂŁo podia largar Snowfield agora.
Ligou para o nĂşmero de emergĂŞncia no seu prĂłprio gabinete em
Santa Mira, desprezando a mesa telefĂ´nica. O sargento que estava de
serviço era Charlie Mercer, um bom homem, que faria exatamente o que
lhe mandassem fazer.
Charlie atendeu o telefone no meio do segundo toque.
— Departamento de polícia — falou, na sua voz nasalada.
— Charlie, aqui é Bryce Hammond.
— Sim, senhor. Estávamos imaginando o que teria acontecido
por aí. — Bryce descreveu sucintamente a situação em Snowfield. —
Santo Deus! — exclamou Charlie. — Jake também está morto?
— Não sabemos ao certo se está morto. Torcemos para que não
esteja. Agora escute, Charlie: há muitas coisas que temos que fazer nas

próximas duas horas, e seria mais fácil para todos nós se pudéssemos
guardar segredo até termos estabelecido a nossa base aqui e garantido
os perímetros. Contenção, Charlie, é esta a palavra-chave. Snowfield
tem que ficar completamente isolada, e isso será bem mais fácil de
conseguir se pudermos agir antes que os jornalistas comecem a subir
as montanhas. Sei que posso contar com vocĂŞ para ficar de boca
fechada, mas alguns dos homens sĂŁo...
— Não se preocupe — falou Charlie. — Podemos ficar na moita
por umas duas horas.
— Ótimo. A primeira coisa que quero é mais doze homens. Mais
dois no bloqueio da estrada na entrada para Snowfield. Dez aqui
comigo. Sempre que possĂ­vel, escolha homens solteiros sem famĂ­lia.
— Está tão ruim assim?
— Está. E é melhor escolher homens que não tenham parentes
em Snowfield. Outra coisa: eles terĂŁo que trazer comida e bebida para
uns dois dias. NĂŁo os quero consumindo coisa alguma aqui em
Snowfield até sabermos ao certo que a água e os alimentos aqui são
seguros.
— Certo.
— Cada homem deve trazer o seu revólver, uma arma de motim
e gás lacrimogêneo.
— Tudo bem.
— Isso vai deixar você com pouco pessoal, e ficará ainda pior
quando começar a chover o pessoal da mídia. Você vai ter que convocar
alguns dos delegados auxiliares para dirigir o tráfego e controlar as
multidões. Bem, Charlie, você conhece bem esta parte do condado, não
Ă©?
— Nasci e me criei em Pineville.
— Foi o que pensei. Estive olhado o mapa do condado, e, ao que
me consta, só existem dois caminhos que dão passagem até Snowfield.
O primeiro é a rodovia, que já bloqueamos. — Ele rodopiou na cadeira
giratória e fitou o grande mapa emoldurado na parede. — Depois, uma
antiga trilha de incêndio que sobe até dois terços do caminho, do outro

lado da montanha. No fim da primeira trilha, ela emenda com uma
trilha do deserto. Daquele ponto em diante nĂŁo passa de uma vereda de
pedestres, mas, pelo que está no mapa, vai dar direto no alto da maior
pista de esqui deste lado da montanha, logo acima de Snowfield.
—

É — falou Charlie. — Já excursionei por aqueles lados.

Oficialmente, Ă© a Velha Trilha do Deserto Mount Greentree. Ou, como os
nativos costumavam chamá-la: a Rodovia do Linimento para Músculos.
—

Teremos que colocar dois homens no começo da trilha de

incĂŞndio e mandar voltar quem quer que queira entrar por aquele lado.
— Teria que ser um repórter danado de cabeçudo para tentar.
— Não podemos nos arriscar. Conhece qualquer outro caminho
que nĂŁo esteja no mapa?
— Não — retrucou Charlie. — De outro modo, a pessoa teria
que vir para Snowfield diretamente por terra, abrindo a sua prĂłpria
trilha a cada passo. E lá é deserto de verdade, não um playground para
excursionistas de fim de semana, por Deus que nĂŁo Ă©. Nenhum
excursionista experiente tentaria vir por terra. Seria uma burrice.
—

Está certo. Outra coisa que vou querer é um número de

telefone dos arquivos. Lembra daquele seminário de atividades policiais
a que compareci em Chicago... faz um ano e pouco? Um dos oradores
era oficial do Exército. Copperfield, acho eu. General Copperfield.
— Claro — falou Charlie. — A Divisão CBW do Corpo Médico do
Exército.
— É isso.
—

Acho que chamam o setor de Copperfield de Unidade de

Defesa Civil. Espere um instante. — Charlie esteve fora da linha menos
de um minuto. Voltou com o número, leu-o para Bryce. — Fica em
Dugway, Utah. Jesus, acha que isso pode ser uma coisa para fazer com
que essa turma venha correndo? Isso Ă© de dar medo.
—

É de dar medo mesmo — concordou Bryce. — Mais umas

coisinhas. Quero que vocĂŞ ponha um nome no teletipo. Timothy Flyte.
— Bryce soletrou o nome. — Sem descrição. Sem endereço conhecido.
Descubra se é procurado em algum lugar. Verifique também com o FBI.

Depois, descubra tudo que puder sobre um tal Harold Ordnay e esposa,
de São Francisco. — Deu a Charlie o endereço que estava no registro de
hóspedes da Candleglow Inn. — Mais uma coisa. Quando esses novos
homens vierem para cá, mande que tragam alguns sacos de plástico
para cadáveres do necrotério municipal.
— Quantos?
— Para começar... uns duzentos.
— Hã... duzentos!
—

Podemos

precisar

bem

mais

do

que

isso,

antes

de

terminarmos. Talvez tenhamos que pedir emprestado de outros
condados.

Verifique

a

possibilidade.

Muita

gente

parece

ter

simplesmente desaparecido, mas os corpos ainda podem aparecer.
Havia

umas

quinhentas

pessoas

vivendo

aqui.

Possivelmente

precisaremos de igual número de sacos para cadáveres.
E talvez até mais de quinhentos, pensou Bryce. Porque podemos
precisar de alguns sacos para nós mesmos também.
Embora Charlie tivesse escutado atentamente quando Bryce lhe
contara que a cidade inteira fora riscada do mapa, e embora nĂŁo
houvesse dĂşvidas de que ele acreditava em Bryce, era Ăłbvio que nĂŁo
tinha compreendido totalmente, emocionalmente, as terríveis dimensões
do desastre até ouvir o pedido de duzentos sacos para cadáveres. Uma
imagem de todos aqueles cadáveres, selados no plástico opaco,
empilhados uns em cima dos outros nas ruas de Snowfield... fora isso o
que, finalmente, o atingira.
— Santa Mãe de Deus — murmurou Charlie Mercer.
Enquanto Bryce Hammond estava ao telefone com Charlie
Mercer, Frank e Stu começaram a desmontar o imenso rádio de polícia
que ficava de encontro Ă  parede dos fundos da sala. Bryce dissera-lhes
para descobrir o que havia de errado com o aparelho, pois nĂŁo havia
sinais visĂ­veis de danos.
A chapa dianteira estava presa por dez parafusos muito bem
apertados. Frank soltou-os, um de cada vez.
Como sempre, Stu não era de grande ajuda. Ficava lançando

olhares para a dra. Paige, que estava na outra extremidade da sala,
trabalhando com Tal Whitman em outro projeto.
— Ela é mesmo muito gostosa — falou Stu, lançando um olhar
cobiçoso para a doutora e limpando o nariz ao mesmo tempo.
Frank ficou calado.
Stu

olhou

para

a

secreção

que

arrancara

do

nariz,

inspecionando-a como se fosse uma pérola encontrada numa ostra.
Voltou a olhar para a doutora.
—

Olhe sĂł como ela enche aqueles jeans. Porra, como eu

adoraria dar uma metidinha nela.
Frank fitou os três parafusos que retirara do rádio e contou até
dez, resistindo ao impulso de enfiar um daqueles parafusos na cabeça
dura de Stu.
— Espero que não seja tão burro que vá dar uma cantada nela.
— Por que não? Ela é um tesão, meu chapa.
— Tente só, e o xerife lhe dará um chute na bunda.
— Ele não me mete medo.
— Você me espanta, Stu. Como pode estar pensando em sexo
numa hora dessas? Ainda nĂŁo lhe ocorreu que todos podemos morrer
aqui, esta noite, quem sabe até nos próximos minutos?
—

Mais um motivo para dar uma cantada nela, se tiver uma

chance. Que merda, se estamos vivendo com as horas contadas, afinal,
quem se importa? Quem quer morrer broxa? Certo? Até a outra é
bonitinha.
— A outra o quê?
— A garota, a guria — falou Stu.
— Ela só tem quatorze anos.
— Um tesãozinho.
— É uma criança, Wargle.
— Tem idade bastante.
— Isso é doentio.
— Não gostaria que ela o envolvesse com as perninhas firmes,
hein, Frank?

A chave de parafusos escorregou da fenda na cabeça do
parafuso e raspou o metal da placa com um guincho irregular.
Numa voz quase inaudĂ­vel, mas que, apesar disso, congelou o
sorri so de Wargle na cara, Frank falou:
— Se eu souber que você encostou um dedo sujo naquela garota
ou em qualquer outra, seja onde for, seja quando for, nĂŁo vou apenas
ajudar a fazer acusações contra você; vou mesmo é atrás de você. Sei
como ir atrás de um homem, Wargle. Não pilotei escrivaninha no
VietnĂŁ, estive no campo de batalha. E ainda sei como cuidar de mim
mesmo. Sei como cuidar de você. Está me ouvindo?
Por um momento, Wargle nĂŁo conseguiu falar. Ficou apenas
fitando os olhos de Frank.
Trechos de conversa vinham de outras partes da sala grande na
direção deles, mas nenhuma das palavras era clara. Ainda assim, era
óbvio que ninguém se dava conta do que estava acontecendo junto ao
rádio.
Wargle finalmente pestanejou, lambeu os lábios e baixou os
olhos para a ponta dos sapatos, erguendo-os em seguida e abrindo o
seu sorriso de bom moço.
— Puxa vida, Frank, não fique chateado. Não fique tão nervoso.
I!u não falei a sério.
— Entendeu bem o que eu disse? — insistiu Frank.
— Claro, claro. Mas já lhe disse que não falei a sério. Era só
papo furado. Conversa de homem, sabe como Ă©. Sabe que nĂŁo falei a
sério. Pelo amor de Deus, acha que sou algum tarado? Vamos, Frank,
não esquenta. Tá legal?
Frank fitou-o por mais um momento, depois disse:
— Vamos terminar de desmontar este rádio.

Tal Whitman abriu o armário de armas.
Jenny Paige falou:
— Santo Deus, mas é um verdadeiro arsenal.
Ele foi passando as armas para ela, e Jenny enfileirou-as numa

mesa de trabalho prĂłxima.
O armário parecia conter uma quantidade de armas excessiva
para uma cidade como Snowfield. Dois rifles de alta potĂŞncia com mira
telescópica. Duas espingardas semi-automáticas. Duas armas de motim
nĂŁo letais - espingardas especialmente modificadas que disparavam
apenas pelotas macias de plástico. Duas pistolas de sinalização. Dois
rifles que disparavam granadas de gás lacrimogêneo. Três revólveres:
um par de 38 e um grande Magnum 375 Smith & Wesson.
Enquanto o tenente empilhava caixas de munição na mesa,
Jenny inspecionava mais de perto o Magnum.
— Que monstro, hein?
— É. Dá para se derrubar um touro com ele.
— Parece que Paul mantinha tudo muitíssimo bem cuidado.
—

A senhora manuseia as armas como se entendesse muito

bem delas — disse o tenente, colocando mais munição na mesa.
— Sempre odiei armas. Nunca pensei em ter uma — falou ela.
— Mas quando eu já morava aqui há uns três meses, começamos a ter
problemas com um bando de motoqueiros que resolveu instalar uma
espécie de retiro de verão numas terras na Mount Larson Road.
— A Demon Chrome.
— Isso mesmo. Uma turma da pesada.
— Para não dizer coisa pior.
— Umas duas vezes, quando fui ver um paciente à noite, em
Mount Larson ou Pineville, arranjei uma escolta de motocicletas
indesejada. Seguiam dos dois lados do carro, perto demais para meu
gosto, sorrindo para mim pelas janelas laterais, gritando, dizendo
bobagens. NĂŁo tentaram nada, na verdade, mas foi...
— Ameaçador.
— Exatamente. Então comprei um revólver, aprendi a atirar, tirei
licença de porte.
O tenente começou a abrir as caixas de munição.
— Teve ocasião de usá-la?
— Bem — disse ela — nunca tive que atirar em ninguém, graças

a Deus. Mas tive que exibi-la, certa vez. Tinha acabado de escurecer. Eu
estava a caminho de Mount Larson e os Demons me escoltaram de
novo, sĂł que desta vez foi diferente. Quatro deles ficaram me cercando e
depois começaram a diminuir a marcha, forçando-me a diminuir
também. Finalmente, forçaram-me a parar completamente, no meio da
estrada.
— Isso deve ter feito o seu coração bater feito louco.
— Se fez! Um dos Demons saltou da moto. Era grande, talvez
1,90m, de cabelos crespos e longos, e barba. Usava um lenço amarrado
na cabeça, e um brinco de ouro. Parecia um pirata.
— Tinha um olho vermelho e amarelo tatuado na palma de cada
mĂŁo?
— Tinha! Pelo menos na palma que botou contra a janela do
carro quando ficou me espiando.
O tenente se apoiou contra a mesa onde tinham colocado as
armas.
—

O nome dele é Gene Terr. É o líder da Demon Chrome. É

difícil encontrar gente pior do que ele. Já esteve na cadeia duas ou três
vezes, mas nunca por coisa séria e nunca por muito tempo. Sempre que
parece que Jeeter vai ler que cumprir pena longa, um dos seus assume
a culpa por todas as acusações. Ele tem um poder incrível sobre os seus
seguidores. Fazem tudo que ele quer. É quase como se o adorassem,
Mesmo depois que estĂŁo na cadeia, Jeeter cuida deles, contrabandeia
dinheiro e drogas para eles, e eles continuam fieis ao sujeito. Sabe que
não podemos tocá-lo portanto é sempre irritantemente polido e
prestativo conosco, Ungindo ser um cidadão de bem. É uma grande
piada, que ele curte. Bem, e aĂ­ Jeeter se aproximou do seu carro e ficou
espiando-a?
— Foi. Queria que eu saltasse e eu não quis saltar. Ele falou
que eu devia ao menos baixar o vidro para nĂŁo termos que ficar
gritando um com o outro para sermos ouvidos. Eu falei que nĂŁo me
importava de grilar um pouquinho. Ele ameaçou quebrar o vidro se eu
nĂŁo o baixasse. E sabia que, se o fizesse, ele meteria a mĂŁo dentro do

carro e destrancaria a porta, portanto achei que seria melhor sair do
carro de bom grado. Disse a ele que saltaria se ele recuasse um pouco.
Ela se afastou da porta e eu peguei a arma debaixo do banco. Mal abri a
porta e saltei, ele tentou avançar sobre mim. Enfiei a boca da arma na
barriga dele. O cão da arma estava puxado para trás; ela estava pronta
para disparar. Ele percebeu isso imediatamente.
— Santo Deus, o que eu daria para ter visto a cara dele! — disse
o tenente Whitman, abrindo um sorriso.
—

Eu estava morta de medo — disse Jenny, recordando. —

Quero dizer, com medo dele, é claro, mas também com medo de ter que
puxar o gatilho. Nem mesmo tinha certeza de que poderia puxar o
gatilho. Mas sabia que nĂŁo podia deixar que Jeeter visse que eu tinha
as minhas dĂşvidas.
— Se ele tivesse visto, a senhora não escaparia da sanha dele.
— Foi o que pensei. Portanto fui muito fria, muito firme. Disse a
ele que era médica, que estava indo visitar um doente que se achava
muito mal e que não tinha a intenção de perder tempo. Falei baixo o
tempo lodo. Os outros trĂŞs homens ainda se encontravam montados
nas motos, e de onde estavam nĂŁo podiam ver a arma ou ouvir
exatamente o que eu dizia. Esse tal de Jeeter me parecia do tipo que
prefere morrer a deixar que alguém o veja recebendo ordens de uma
mulher, portanto eu não queda embaraçá-lo e forçá-lo talvez a fazer
uma besteira.
O tenente sacudiu a cabeça.
— A senhora sacou direitinho como ele é.
...... Também lembrei-lhe que ele próprio talvez viesse a precisar
de um médico qualquer dia desses. E se sofresse uma queda daquela
moto, estivesse largado no chão, em estado crítico, e eu fosse a médica a
atendĂŞ-lo. Nesse caso, se ele me machucasse naquela ocasiĂŁo, eu teria
boas razões para me vingar. Disse a ele que há coisas que um médico
pode fazer para complicar os ferimentos, para ter certeza de que o
paciente terá uma recuperação longa e dolorosa. Pedi-lhe que pensasse
nisso.

Whitman fitou-a, de boca aberta.
Ela continuou:
— Não sei se foi aquilo que o perturbou, ou se foi simplesmente
o revólver, mas ele hesitou, depois fez um estardalhaço para
impressionar os trĂŞs companheiros. Disse-lhes que eu era amiga de um
amigo. Que me conhecera há alguns anos, mas que não se lembrara de
mim a princĂ­pio. Eu deveria receber todas as cortesias que a Demons
Chrome era capaz de dar. Ninguém jamais me incomodaria, falou.
Depois voltou a montar na sua Harley e se afastou, e os outros trĂŞs o
seguiram.
— E a senhora continuou a viagem até Mount Larson?
— O que mais podia fazer? Ainda tinha um doente para visitar.
— Incrível.
— Devo admitir, contudo, que fui suando e tremendo a viagem
toda.
— E nenhum motoqueiro a incomodou mais, desde então?
Na verdade, quando passam por mim nas estradas vizinhas,
todos sorriem e dão adeus. Whitman achou graça.
—

Portanto — continuou Jenny —, eis aí a resposta à sua

pergunta: film, sei usar uma arma, mas espero nunca precisar atirar
em ninguém.
Ela olhou para o Magnum 375 na sua mĂŁo, fechou a cara, abriu
uma caixa de munição e começou a carregar o revólver.
O tenente tirou dois cartuchos de outra caixa e carregou uma
das espingardas.
Ficaram em silĂŞncio por algum tempo e depois ele perguntou;
— A senhora teria feito o que disse a Gene Terr?
— O quê? Atirar nele?
— Não. Quero dizer, se ele a tivesse machucado, talvez
estuprado, e depois, mais tarde, a senhora tivesse uma chance de tĂŞ-lo
como paciente... teria...?
Jenny terminou de carregar o Magnum, encaixou o cilindro no
lugar e largou o revĂłlver.

—

Bem, eu ficaria tentada. Por outro lado, porém, tenho um

enorme respeito pelo juramento de HipĂłcrates. Portanto... bem...
imagino que isso queira dizer que, no fundo, sou uma molenga... mas
teria dado ao Jeeter o melhor tratamento médico que pudesse.
— Sabia que diria isso.
— Falo grosso, mas sou uma banana por dentro.
— Nada disso — falou ele. — É preciso ser forte de verdade para
enfrentá-lo do jeito que a senhora o enfrentou. Agora, se ele a tivesse
machucado e, mais tarde, a senhora se aproveitasse da sua condição de
médica só para acertar as contas com ele... bem, aí seria diferente.
Jenny ergueu os olhos do 38 que acabara de tirar dentre as
armas expostas sobre a mesa e fitou os olhos do negro. Eram olhos
lĂ­mpidos, penetrantes.
—

Dra. Paige, a senhora tem o que chamamos de "raça". Se

quiser, pode me chamar de Tal. A maioria das pessoas me chama
assim. É o diminutivo de Talbert.
— Tudo bem, Tal. E você pode me chamar de Jenny.
— Ah, não sei não.
— E por que não?
— Afinal a senhora é médica. Minha tia Becky, que foi quem me
criou, sempre leve um grande respeito pelos médicos. Acho meio
esquisito ficar chamando um médico... ou uma médica... pelo nome de
batismo.
— Os médicos também são gente. E levando-se em conta que
estamos todos aqui numa espécie de panela de pressão...
— Mesmo assim — disse ele, balançando a cabeça.
—

Se isso o incomoda, entĂŁo me chame como a maioria dos

meus pacientes.
— Como é?
— Doc.
— Doc? — Ele refletiu, depois um sorriso lento se espalhou pelo
seu rosto. — Doc. Faz a gente pensar num daqueles velhotes simplórios,
grisalhos e rabugentos que Barry Fitzgerald costumava representar no

cinema, naqueles filmes dos anos 30 ou 40.
— Desculpe eu não ser grisalha.
—

Tudo bem. Também não é uma velhota simplória. Ela riu

baixinho.
— Gostei da ironia — falou Whitman. — Doc. É, e quando penso
em vocĂŞ enfiando o revĂłlver na barriga de Gene Terr, cai bem.
Carregaram mais duas armas.
— Tal, por que tantas armas para uma pequena subdelegacia
numa cidade como Snowfield?
— Se você quiser obter fundos federais e estaduais equivalentes
para o orçamento policial do condado, tem que atender às exigências
deles em toda sorte de coisas ridículas. Uma das especificações é para
arsenais mĂ­nimos em subdelegacias como esta. Agora... bem... quem
sabe devemos estar contentes por termos todo esse armamento.
— Exceto que, até agora, não vimos nada em que atirar.
— Desconfio de que vamos ver — falou Tal. — E deixe que lhe
diga uma coisa.
— O que é?
O rosto largo, escuro e bonito de Tal podia ter uma aparĂŞncia
perturbadoramente severa.
— Não creio que tenha que se preocupar em atirar em outras
pessoas. NĂŁo estou acreditando que tenhamos que nos preocupar com
pessoas.
Bryce ligou para o telefone particular e confidencial da
residĂŞncia do governador, em Sacramento. Falou com uma empregada
que insistiu em que o governador nĂŁo podia atender, nem mesmo sendo
um telefonema de vida e morte de um velho amigo. Ela queria que Bryce
deixasse um recado. Depois ele falou com o chefe dos empregados
domésticos, que também queria que deixasse recado. A seguir, tendo
esperado um pouco, falou com Gary Poe, o principal assessor e
conselheiro polĂ­tico do governador Jack Retlock.
— Bryce — falou Gary —, o Jack não pode atender no momento.
Está no meio de um jantar importante. O ministro do comércio

japonĂŞs e o cĂ´nsul-geral de SĂŁo Francisco.
— Gary...
—

Estamos dando um duro danado para conseguir a nova

usina eletrĂ´nica nipo-americana para a CalifĂłrnia, e receamos que ela
vá para o Texas ou o Arizona ou até mesmo Nova York. Jesus, Nova
York!
— Gary...
— Por que eles chegaram a pensar em Nova York, com todos os
problemas trabalhistas e o altos impostos que eles têm por lá? Às vezes
eu acho...
— Gary, cale a boca.
— Hã?
Bryce nunca falava bruscamente com ninguém. Até mesmo Gary
Poe, que contribuiu falar mais alto e mais depressa do que um
animador de parque de diversões, ficou tão chocado que perdeu a fala.
— Gary, é uma emergência. Chame o Jack para mim.
Num tom magoado, Poe falou:
— Bryce, tenho autorização para...
— Tenho um bocado de coisas para fazer nas próximas duas
horas, Gary. Isto Ă©, se conseguir sobreviver. NĂŁo posso passar quinze
minutos explicando tudo isso a vocĂŞ e depois mais quinze explicando
tudo Jack. Escute, estou em Snowfield. Parece que todo mundo que
morava aqui morreu, Gary.
— O quê?
— Quinhentas pessoas.
— Bryce, se isso é uma piada ou...
—- Quinhentos mortos. E isso é o de menos. Agora, pelo amor de
Deus, quer chamar o Jack?
— Mas Bryce, quinhentos...
— Chame o Jack, porra!
Poe hesitou, depois falou:
Meu chapa, é melhor que essa merda seja séria.
Largou o telefone e foi chamar o governador.

Bryce conhecia Jack Retlock há dezessete anos. Quando entrara
para a força policial de Los Angeles, fora destacado para servir com
Jack, como recruta. Naquela época, Jack era um veterano da força há
sete anos, um policial experimentado. Na verdade, Jack parecia tĂŁo
experiente e tĂŁo por dentro de tudo, que Bryce chegara a desesperar de
algum dia vir a ter a metade do seu desempenho no emprego. Dentro de
um ano, contudo, chegara a ter um desempenho melhor. Resolveram
ficar juntos, como parceiros. Porém, dali a dezoito meses, farto de um
sistema legal que libertava regularmente os marginais que ele lutava
tanto para aprisionar, Jack abandonou a polĂ­cia e ingressou na polĂ­tica.
Como tira, colecionara um punhado de citações por bravura. Usou a
sua imagem de herĂłi para conseguir se eleger vereador por Los Angeles,
depois se candidatou a prefeito, ganhando por maioria esmagadora. De
prefeito, passara a governador do Estado. Era uma carreira bem mais
impressionante do que o progresso claudicante de Bryce até o posto de
xerife em Santa Mira, mas Jack sempre fora o mais agressivo dos dois.
— Doody? É você? — perguntou Jack, atendendo o telefone em
Sacramento.
Doody era o apelido dele para Bryce. Sempre dissera que o
cabelo avermelhado de Bryce, suas sardas, seu ar sadio e olhos de
marionete faziam com que se parecesse com Howdy Doody.
— Sou eu, Jack.
— Gary está falando umas loucuras idiotas...
— É verdade — disse Bryce.
Contou a Jack tudo sobre Snowfield. Depois de escutar a
histĂłria toda, Jack inspirou fundo e falou:
— Gostaria que você fosse dado à bebida, Doody.
— Não é o álcool falando, Jack. Escute, a primeira coisa que
quero Ă©...
— A Guarda Nacional?
— Não! — exclamou Bryce. — Isso é exatamente o que quero
evitar, enquanto tivermos escolha.
— Se eu não usar a Guarda e todas as agências ao meu dispor,

e mais tarde se concluir que eu devia tĂŞ-las mandado logo no inĂ­cio,
meu rabo vai virar grama e haverá uma manada de vacas esfomeadas
ao meu redor.
—

Jack, estou contando com você para tomar as decisões

certas, não apenas as decisões políticas certas. Até sabermos mais sobre
essa situação, não queremos hordas de guardas invadindo isto aqui.
Eles são ótimos para ajudar numa inundação, numa greve de correios,
esse tipo de coisa. Mas nĂŁo sĂŁo militares em tempo integral. SĂŁo
vendedores de sapatos, advogados, carpinteiros e professores. Isso aqui
exige uma ação policial eficiente, severamente controlada, e esse tipo de
coisa sĂł pode ser conduzida por tiras de verdade, tiras em tempo
integral.
— E se seus homens não derem conta do recado?
—

EntĂŁo serei o primeiro a berrar pela Guarda. Finalmente,

Retlock falou:
— Tudo bem, nada de guardas. Por enquanto. Bryce soltou um
suspiro.
— E também quero o Departamento Estadual de Saúde longe
daqui.
—

Doody, seja razoável. Como posso fazer isso? Se houver

alguma possibilidade de que uma doença contagiosa tenha arrasado
com Snowfield... ou algum tipo de envenenamento ambiental...
— Escute, Jack, o Departamento de Saúde faz um bom trabalho
quando se trata de descobrir e controlar vetores para surtos de peste ou
envenenamento alimentar em massa ou contaminação de água.
Essencialmente, porém, eles são burocratas; mexem-se lentamente. Não
podemos nos dar ao luxo de nos mexermos lentamente neste caso.
Tenho a sensação de que estamos vivendo com as horas contadas. A
coisa toda pode estourar a qualquer hora; na verdade, ficarei surpreso
se não estourar. Além disso, o Departamento de Saúde não tem o
equipamento para cuidar do caso, nem um plano de contingĂŞncia para
cobrir a morte de uma cidade inteira. Mas existe alguém que tem, Jack.
A Divisão CBW do Corpo Médico do Exército tem um programa

relativamente novo a que dĂŁo o nome de Unidade de Defesa Civil.
— Divisão CBW? — perguntou Retlock. Havia uma tensão nova
na sua voz. — Está se referindo ao pessoal da guerra química e
bacteriolĂłgica?
— Isso mesmo.
— Santo Cristo, você não acha que isso tenha algo a ver com
gás que afeta o sistema nervoso ou guerra bacteriológica...
—

Provavelmente não — falou Bryce, pensando nas cabeças

cortadas dos Liebermanns, naquela sensação esquisita que tomara
conta dele no corredor coberto, ou na maneira incrivelmente sĂşbita
como Jake Johnson desaparecera. — Mas não sei o suficiente a respeito
para eliminar a CBW ou outra coisa qualquer.
Uma ponta dura de raiva se cristalizara na voz do governador.
—

Se o maldito Exército foi descuidado com uma daquelas

porras de vĂ­rus do juĂ­zo final, vou tirar o couro deles!
— Calma, Jack. Talvez não seja um acidente. Talvez seja obra
de terroristas que deitaram as mĂŁos numa amostra de algum agente da
CBW. Ou quem sabe sĂŁo os russos fazendo um pequeno teste do nosso
sistema de análise e defesa da CBW. Foi para cuidar desse tipo de
situação que o Corpo Médico do Exército instruiu a sua Divisão CBW no
sentido de criar o setor do general Copperfield.
— Quem é Copperfield?
— General Copperfield. É o comandante da Unidade de Defesa
Civil da Divisão CBW. Este é precisamente o tipo de situação de que
querem ser avisados. Dentro de horas Copperfield pode colocar uma
equipe de cientistas bem treinados em Snowfield. BiĂłlogos, virologistas,
bacteriologistas,

patologistas

treinados

na

medicina

legal

mais

moderna, pelo menos um imunologista e bioquĂ­mico, um neurologista...
até mesmo um neuropsicólogo. O departamento de Copperfield projetou
elaborados laboratĂłrios de campo mĂłveis. Guardam-nos em depĂłsitos
pelo paĂ­s todo, entĂŁo deve haver um relativamente perto de nĂłs. NĂŁo
chame a turma do Departamento de SaĂşde, Jack. Eles nĂŁo tĂŞm gente
do calibre que Copperfield pode oferecer, e nĂŁo tĂŞm um equipamento de

diagnĂłstico atualizado tĂŁo mĂłvel quanto o de Copperfield. Quero
chamar o general; na verdade, vou chamá-lo, mas preferia ter a sua
concordância e a sua garantia de que os burocratas estaduais não vão
ficar andando por aqui, interferindo.
Depois de uma breve hesitação, Jack Retlock perguntou:
—

Doody, em que tipo de mundo deixamos que o nosso se

transformasse, no qual coisas como o departamento de Copperfield sĂŁo
necessárias?
— Você vai deixar a Saúde de fora?
— Vou. Do que mais você precisa?
Bryce lançou um olhar à lista à sua frente.
— Podia falar com a companhia telefônica e pedir que tirasse os
circuitos de Snowfield do controle automático. Quando o mundo
descobrir o que aconteceu aqui, todos os telefones da cidade ficarĂŁo
tocando feito doidos, e nós não poderemos manter as comunicações
essenciais. Se ele pudessem fazer todas as ligações para e de Snowfield
passarem

por

algumas

telefonistas

especiais

e

"podassem"

os

telefonemas dos manĂ­acos e...
— Pode deixar — falou Jack.
— Claro que podemos ficar sem telefone a qualquer momento. A
dra. Paige teve problemas em conseguir linha da primeira vez que
tentou, entĂŁo eu vou precisar de um aparelho de ondas curtas. O que
temos aqui na subdelegacia parece ter sido sabotado.
— Posso lhe conseguir uma unidade de ondas curtas móvel, um
furgĂŁo com o seu prĂłprio gerador de gasolina. O Gabinete de ProntidĂŁo
para Terremotos tem dois. Mais alguma coisa?
— Por falar em geradores, seria bom que não tivéssemos que
depender do suprimento de força público. Evidentemente, nosso inimigo
aqui pode mexer nele quando bem quiser. Pode conseguir dois grandes
geradores para nĂłs?
— Posso. Mais alguma coisa?
— Se eu me lembrar de algo, não hesitarei em pedir.
—

Deixe-me dizer-lhe uma coisa, Bryce. Como amigo, estou

muito chateado por vocĂŞ estar metido nisto. Mas, como governador,
estou muito feliz por isto, seja lá o que for, ter caído na sua jurisdição.
Existem alguns babacas por aí que já teriam metido os pés pelas mãos
se esse caso tivesse caĂ­do no colo deles. A essa altura, se fosse uma
moléstia, já estaria espalhada pela metade do Estado. Ainda bem que
você está aí.
— Obrigado, Jack.
Ficaram ambos calados por um momento. EntĂŁo, Retlock falou:
— Doody?
— Sim, Jack.
— Cuide-se.
— Pode deixar. Bem, tenho que falar com Copperfield. Ligo para
vocĂŞ depois.
—

Por favor, Bryce, ligue mesmo. NĂŁo suma, companheiro.

Bryce largou o telefone e correu os olhos pela subdelegacia. Stu Wargle
e Frank estavam tirando a chapa dianteira de acesso ao rádio. Tal e a
dra. Paige estavam carregando as armas, Gordy Brogan e a jovem Lisa
Paige, o maior e a menor do grupo, estavam fazendo café e arrumando a
comida sobre uma das mesas de trabalho.
Mesmo no meio do desastre, pensou Bryce, mesmo aqui nesta
situação "além da imaginação", temos que comer e tomar café. A vida
continua.
Tirou o fone do gancho para discar o nĂşmero de Copperfield em
Dugway, Utah.
NĂŁo deu linha.
Ele mexeu na trave de desligar.
— Alô — disse. Nada.
Bryce pressentiu alguém ou algo à escuta. Podia sentir a
presença, como a dia. Paige tinha descrito.
— Quem é? — perguntou.
NĂŁo estava esperando uma resposta, mas recebeu-a. NĂŁo era
uma voz. lira um som estranho, mas familiar: o grito de aves, talvez
gaivotas. É, gaivotas guinchando estridentes acima da costa varrida

pelo vento.
O

som

se

modificou.

Transformou-se

num

retinir.

Num

chocalhar. Como feijões numa cuia rasa. O som de advertência de uma
cascavel. É, não havia dúvida. O som bem distinto de uma cascavel.
E entĂŁo ele se modificou de novo. Zumbidos eletrĂ´nicos. NĂŁo,
eletrĂ´nicos nĂŁo. Abelhas. Abelhas zumbindo, enxameando.
E agora os gritos das gaivotas de novo.
E o pio de outra ave, um trinado musical.
E um arfar. Como o de um cĂŁo cansado.
E um rosnar. NĂŁo um cĂŁo, algo maior.
E o ruĂ­do caracterĂ­stico de gatos brigando.
Embora não houvesse nada de especialmente ameaçador quanto
aos sons em si — exceto, talvez, no caso da cascavel e do rosnar —,
Bryce ficou gelado com eles.
Os ruĂ­dos animais cessaram.
Bryce ficou Ă  espera, Ă  escuta, e perguntou:
— Quem é? — Nenhuma resposta. — O que você quer?
Um outro som veio pelo fio e penetrou Bryce como se fosse um
punhal de gelo. Gritos. Homens, mulheres e crianças. Mais do que uns
poucos. DĂşzias, vintenas. NĂŁo gritos teatrais; nĂŁo terror de mentirinha.
Eram os gritos chocantes e ferozes dos amaldiçoados: gritos de agonia,
de medo e de desespero de cortar o coração.
Bryce sentiu-se mai.
Seu coração disparou.
Parecia-lhe que tinha uma linha aberta para as entranhas do
Inferno.
Aqueles seriam os gritos dos mortos de Snowfield, capturados
numa fita? Por quem? Por quĂŞ? Seriam ao vivo ou seriam uma
gravação?
Um grito derradeiro. Uma criança. Uma garotinha. Ela gritou de
terror, depois de dor, depois de sofrimento inimaginável, como se
estivesse sendo feita em pedaços. Sua voz aumentou, cresceu em
espirais, e mais e...

SilĂŞncio.
O silêncio ainda era pior do que os gritos, porque a presença
sem nome ainda estava na linha e Bryce pĂ´de senti-la ainda com mais
força. Ficou abalado com a percepção do mal puro e inexorável.
Aquilo estava ali.
Ele desligou rapidamente.
Estava tremendo. NĂŁo estivera em perigo algum... e no entanto
estava tremendo.
Correu o olhar pela cadeia. Os outros ainda estavam entregues
às tarefas que ele lhes designara. Aparentemente, ninguém tinha
reparado que sua sessĂŁo mais recente ao telefone fora bastante
diferente daquelas que a antecederam.
O suor lhe escorria pela nuca.
Acabaria por ter que contar aos outros o que acontecera. Mas
nĂŁo nesse momento. Porque, neste momento, nĂŁo podia confiar na
prĂłpria voz. Eles sem dĂşvida perceberiam o tremor nervoso e saberiam
que esta estranha experiĂŞncia o tinha abalado muitĂ­ssimo.
Até que os reforços chegassem, até que a cabeça-de-ponte deles
em Snowfield estivesse mais firmemente estabelecida, até que todos se
sentissem menos temerosos, nĂŁo era sensato deixar que os outros o
vissem tremendo de pavor. Afinal de contas, buscavam nele a liderança.
Ele não pretendia desapontá-los.
Inspirou ampla, profundamente.
Tirou o fone do gancho e escutou imediatamente o sinal de
discar.
AliviadĂ­ssimo, ligou para a Unidade de Defesa Civil da CBW em
Dugway, Uttah.
Lisa gostava de Gordy Brogan.
A princípio parecera ameaçador e emburrado. Era um homem
grande, e as suas mĂŁos eram tĂŁo enormes que levavam todos a pensar
no monstro de Frankenstein. O rosto dele até que era bonito, mas
quando franzia o cenho, mesmo que nĂŁo estivesse zangado, mesmo que
estivesse apenas preocupado com alguma coisa ou pensando com muita

concentração, as suas sobrancelhas se uniam ferozmente e os olhos
muito negros ficavam ainda mais negros, e ele parecia o prĂłprio fim do
mundo.
Um sorriso o transformava. Era uma coisa espantosa. Quando
Gordy sorria, todos sabiam logo que estavam vendo o verdadeiro Gordy
Brogan. Sabiam que o outro Gordy — o que todos pensavam ver quando
ele franzia o cenho ou quando o seu rosto estava em repouso — era
puramente fruto da sua imaginação. O seu sorriso cálido, amplo,
chamava a atenção para a bondade que brilhava em seus olhos, a
meiguice na sua fisionomia larga.
Quando se o conhecia bem, ele era como um cĂŁozinho
avantajado, ansioso para que gostassem dele. Era um dos raros adultos
que sabia conversar com uma criança sem ficar constrangido ou ser
paternalista. Neste aspecto, era até melhor do que Jenny. E, até mesmo
nas circunstâncias ninais, sabia rir.
Enquanto punham a comida na mesa — frios, pão, queijo, frutas
frescas, rosquinhas — e faziam café, Lisa falou:
— Você não me parece um tira.
— É ? E como é que um tira deve parecer?
—

Ué! Será que falei a coisa errada? "Tira" é uma palavra

ofensiva?
— Em alguns lugares, é. Como nas prisões, por exemplo.
Ela ficou espantada ao ver que ainda podia rir depois de tudo o
que acontecera esta noite. Falou:
— Não, serio. Como é que os membros da polícia gostam de ser
chamados? Policiais?
— Não importa. Sou delegado, policial, tira... o que você quiser.
SĂł que vocĂŞ acha que nĂŁo tenho cara disso.
—

Ah, tem cara sim — falou Lisa. — Especialmente quando

franze as sobrancelhas. Mas nĂŁo parece um tira.
— O que pareço, para você?
— Deixe-me pensar. — Interessou-se imediatamente pelo jogo,
pois desviava a sua atenção do pesadelo que a cercava. — Talvez você

pareça... um jovem pastor.
— Eu?
— Bem, você ficaria fantástico no púlpito, fazendo um sermão
sobre as penas do inferno. E posso vĂŞ-lo sentado na residĂŞncia
paroquial, um sorriso encorajador no rosto, escutando os problemas
dos outros.
— Eu, um pastor — disse ele, nitidamente atônito. — Com essa
sua imaginação, você devia ser escritora quando crescer.
— Acho que vou ser médica, como Jenny. Um médico pode fazer
tanto bem. — Ela fez uma pausa. — Sabe por que você não se parece
com um tira? É porque não consigo imaginá-lo usando isso. — Apontou
para o revólver dele. — Não consigo imaginar você atirando em alguém.
Mesmo que ele merecesse.
Ela ficou espantada com a expressĂŁo que se estampou no rosto
de Gordy Brogan. Ele ficara visivelmente chocado.
Antes que ela pudesse perguntar qual o problema, as luzes
piscaram.
Lisa ergueu os olhos.
As luzes piscaram de novo. E de novo.
Ela lançou um olhar pelas janelas da frente. Lá fora, as luzes
dos postes de rua também piscavam.
NĂŁo, pensou. NĂŁo, por favor, Deus, de novo, nĂŁo. NĂŁo nos lance
de novo na escuridĂŁo; por favor, por favor!
As luzes se apagaram.

15

A coisa na janela
Bryce falara com o oficial de serviço da noite que guarnecia a

linha de emergĂŞncia na Unidade de Defesa Civil da CBW em Dugway,
Utah. Não precisara dizer muito até ser transferido para o telefone da
casa do general Galen Copperfield. Este escutara com atenção, mas
pouco falara. Bryce queria saber se era provável que um agente químico
ou bacteriológico pudesse ser o causador da agonia e obliteração de
Snowfield. Copperfield dissera "Sim". Mas dissera somente isto. Avisara
a Bryce que estavam falando numa linha telefĂ´nica livre e fizera
referências vagas, mas severas, a normas de segurança e informações
confidenciais. Quando tinha ouvido todo o essencial, mas apenas
alguns dos detalhes, ele interrompera Bryce um tanto bruscamente e
sugerira que discutissem o resto quando se encontrassem frente a
frente.
— Já ouvi o bastante para me convencer de que a minha
organização deve se envolver.
Ele prometeu mandar um laboratĂłrio de campo e uma equipe de
investigadores para Snowfield até o alvorecer, ou logo depois.
Bryce estava pousando o fone no gancho quando as luzes
piscaram, diminuĂ­ram, piscaram, oscilaram... e se apagaram.
Ele buscou a lanterna elétrica na mesa à sua frente, encontrou-a
e acendeu-a.
Ao voltarem à subdelegacia, há pouco, haviam localizado duas
lanternas elétricas adicionais, de cabo longo, equipamento policial.
Gordy ficara com uma, a dra. Paige com a outra. Agora, as duas
lanternas se acenderam simultaneamente, abrindo longas feridas
brilhantes na escuridĂŁo.
Tinham discutido um plano de ação, uma rotina para seguir se
as luzes se apagassem de novo. Agora, como fora planejado, todos se
dirigiram para o centro da sala, longe de portas e janelas, e se
amontoaram num cĂ­rculo, as costas voltadas para dentro, reduzindo a
sua vulnerabilidade.
Ninguém falou muito. Estavam todos de ouvidos atentos.
Lisa Paige estava Ă  esquerda de Bryce, os ombros esbeltos
encurvados, a cabeça baixa.

Tal Whitman estava Ă  direita de Bryce, os dentes Ă  mostra num
rosnado silencioso, enquanto inspecionavam a escuridĂŁo que ficava
além do Incho móvel da lanterna.
Tal e Bryce estavam de revĂłlver na mĂŁo.
Eles trĂŞs estavam de frente para os fundos da sala, enquanto os
outros quatro — dra. Paige, Gordy, Frank e Stu — encaravam a frente
do Aposento.
Bryce jogava o facho da sua lanterna sobre tudo, pois até os
contornos vagos dos objetos mais triviais subitamente pareciam
ameaçadores. Nada, porém, se escondia ou se movia por entre as peças
familiares de mĂłveis e equipamento.
SilĂŞncio.
Na parede dos fundos, junto ao canto direito da sala, havia duas
portas. Uma dava para o corredor que servia as três celas de detenção.
Eles tinham revistado aquela parte do prédio anteriormente; as celas, a
sala de interrogatĂłrios e os dois banheiros que ocupavam aquela
metade do andar térreo estavam todos desertos. A outra porta dava
para a escada que levava ao apartamento do delegado. Aqueles
aposentos também estavam desocupados. Apesar disso, Bryce voltava
repetidamente o facho da lanterna para as portas entreabertas. Estava
intranqĂĽilo quanto a elas. Na escuridĂŁo, ouviu-se uma batida suave.
— O que foi isso? — perguntou Wargle.
— Veio daqui — falou Gordy.
— Não, daqui — retrucou Lisa Paige.
— Quietos! — Exclamou Bryce, vivamente. Turn... tum-tum.
Era o som de um golpe amortecido. Como um travesseiro caindo
ao chĂŁo.
Bryce mexeu a sua lanterna rapidamente daqui para ali.
Tal acompanhou o facho de luz com o revĂłlver.
Bryce pensou: o que faremos se as luzes ficarem apagadas a
noite toda? O que faremos quando as pilhas das lanternas finalmente
acabarem? O que vai acontecer entĂŁo!
Desde pequeno nĂŁo sabia o que era ter medo do escuro. Agora

estava se lembrando de como era.
Tum-tum... tum... tum-tum.
Mais alto. Porém não mais perto.
Tum!
— As janelas! — exclamou Frank.
Bryce deu meia-volta, sondando com a lanterna elétrica.
Os trĂŞs fachos fortes encontraram as janelas da frente ao mesmo
tempo, transformando os quadrados de vidro em espelhos que
ocultavam o que quer que houvesse por trás deles.
— Voltem as luzes para o chão ou o teto — falou Bryce. Um
facho subiu, dois desceram.
A luz indireta revelou as janelas, mas nĂŁo as transformou em
superfĂ­cies de prata refletivas.
Tum!
Algo bateu numa janela, fez chocalhar uma vidraça solta e
ricocheteou dentro da noite. Bryce teve uma impressĂŁo de asas.
— O que foi isso?
— ...um pássaro...
— ...não um pássaro de um tipo que já...
— ...algo...
— ...terrível...
A coisa voltou, batendo de encontro ao vidro com mais
determinação do que antes: tum-tum-tum-tum-tum! Lisa berrou. Franky
Autry arquejou, e Stu Wargle exclamou:
— Puta que o pariu!
Gordy emitiu um som mudo e estrangulado.
Fitando a janela, Bryce sentiu como se tivesse atravessado a
cortina da realidade e sido projetado num lugar de pesadelo e ilusĂŁo.
Com os postes de rua apagados, a Skyline Road se achava Ă s
escuras, exceto pelo luar luminoso; todavia, a coisa na janela estava
vagamente iluminada.
Mesmo a vaga iluminação daquela monstruosidade esvoaçante
era demais. O que Bryce viu do outro lado do vidro — o que ele pensou

ter visto na multiplicidade caleidoscópica de luz, sombra e luar — foi
algo saĂ­do de um sonho febril. Tinha uma envergadura de asas de
1,00m a l,20m. Uma cabeça insetóide. Antenas curtas e trêmulas.
MandĂ­bulas pequenas, pontudas e em movimento incessante. Um corpo
segmentado. Que ficava suspenso entre as asas cinzentas e tinha
aproximadamente o tamanho e o formato de duas bolas de futebol
sobrepostas. Ele também era cinzento, do mesmo tom das asas — um
cinza doentio, bolorento —, tinha penugem e parecia úmido. Bryce
vislumbrou ainda os olhos: lentes imensas, negras como o pixe,
multifacetadas, protuberantes, que refratavam e refletiam a luz,
brilhando sombria e esfaimadamente.
Se ele estava vendo o que pensava ver, a coisa na janela era uma
mariposa grande como uma águia. O que era uma loucura.
Ela se jogou contra as janelas com fĂşria renovada, num frenesi,
as asas pálidas batendo tão depressa que se tornou um borrão. Moviase ao longo das vidraças escuras, ricocheteando repetidamente dentro
da noite, depois voltando, tentando febrilmente entrar pela janela.
Tumtumtumtum. Mas não tinha forças para quebrar a janela e entrar.
Além do mais, não tinha carapaça; o seu corpo era inteiramente macio
e, a despeito do tamanho incrĂ­vel e aparĂŞncia intimidadora, incapaz de
romper o vidro.
Tumtumtum.
E entĂŁo foi embora.
As luzes se acenderam.
É como uma maldita peça de teatro, pensou Bryce.
Quando se deram conta de que a coisa na janela nĂŁo ia voltar
mais, Iodos se adiantaram, num consenso tácito, até a frente da sala.
Cruzaram

o

portĂŁo

na

grade

que

levava

Ă 

área

do

pĂşblico,

aproximaram-se das janelas e ficaram olhando para fora num silĂŞncio
atĂ´nito.
A Skyline Road não sofrerá nenhuma modificação.
A noite estava vazia.
Nada se mexia.

Bryce

sentou-se

na

cadeira

rangedora

Ă 

mesa

de

Paul

Henderson. Os outros se aproximaram.
— E então — falou Bryce.
— E então — falou Tal. Entreolharam-se, inquietos.
— Alguma idéia? — perguntou Bryce.
Ninguém falou nada.
— Alguma teoria sobre o que possa ter sido?
— Obsceno — disse Lisa, e estremeceu.
— Ah, isso foi mesmo — falou a dra. Paige, colocando uma mão
reconfortante no ombro da irmã mais moça.
Bryce ficou impressionado com a força e resistência emocionais
da doutora. Parecia estar agĂĽentando cada choque que Snowfield lhe
proporcionava. Na verdade, parecia até estar resistindo melhor do que
os seus prĂłprios homens. Os olhos dela eram os Ăşnicos que nĂŁo se
desviavam quando ele os fitava. RetribuĂ­a o olhar, francamente. Esta,
pensou ele, Ă© uma mulher especial.
— Impossível — falou Frank Autry. — Foi isso. Simplesmente
impossĂ­vel.
—

Que diabo, o que está havendo com vocês? — indagou

Wargle. Franziu o rosto gordo. — Foi só um pássaro. Era só isso que
estava lá fora. Só uma droga de um pássaro.
— Uma ova que foi — falou Frank.
— Só um pássaro nojento — insistiu Wargle. Quando os outros
discordaram, ele falou: — A luz fraca e todas aquelas sombras lá fora
dĂŁo uma impressĂŁo falsa. VocĂŞs nĂŁo viram o que acham que viram.
— E o que você acha que vimos? — perguntou-lhe Tal. O rosto
de Wargle ficou vermelho. — Será que vimos a mesma coisa que você
viu, a coisa em que não quer acreditar? — insistiu Tal. — Uma
mariposa? Viu uma maldita mariposa, grande, feia, impossĂ­vel?
Wargle fitou os sapatos.
— Vi um pássaro. Apenas um pássaro.
Bryce se deu conta de que Wargle era tĂŁo completamente
desprovido de imaginação que não conseguia aceitar a possibilidade do

impossĂ­vel, nem mesmo quando o havia testemunhado com os prĂłprios
olhos.
— De onde ela veio?—perguntou Bryce. Ninguém soube dizer.
— O que queria? — continuou Bryce.
— Queria a gente — respondeu Lisa.
Todos pareciam concordar com a opiniĂŁo dela.
— Mas aquela coisa na janela não foi o que pegou o Jake —
disse Frank. — Era frágil, levinha. Não poderia levar embora um homem
adulto.
— Então o que pegou o Jake? — perguntou Gordy.
— Uma coisa maior — falou Frank. — Uma coisa bem mais forte
e perversa.
Bryce concluiu que, afinal de contas, era chegada a hora de lhes
contar sobre as coisas que ouvira — e sentira — ao telefone, no
intervalo dos seus telefonemas para o governador Retlock e o general
Copperfield: a presença silenciosa; o grito triste das gaivotas; o ruído de
advertĂŞncia de uma cascavel; e o pior de tudo, os gritos de agonia e
desespero de homens, mulheres e crianças. Não tinha a intenção de
tocar naquele assunto até a manhã seguinte, até a chegada da luz do
sol e dos reforços. Mas eles poderiam perceber algo importante que ele
deixara passar, algum detalhe, alguma pista que seria útil. Além disso,
agora que tinham Iodos visto a coisa na janela, o incidente do telefone,
por comparação, mio era mais muito chocante.
Os outros escutaram Bryce falar, e essa nova informação teve
uni efeito negativo no comportamento deles.
—

Que espécie de degenerado gravaria os gritos de suas

vítimas? — perguntou Gordy.
Tal Whitman balançou a cabeça.
— Podia ser outra coisa. Podia ser...
— O quê?
—

Bem, talvez nenhum de vocĂŞs queira escutar isso neste

momento
— Já que começou, vá até o fim — insistiu Bryce.

—

Bem — falou Tal —, e se não foi uma gravação que você

ouviu? Quero dizer, sabemos que desapareceu gente de Snowfield. Na
verdade, pelo que vimos, tem mais gente desaparecida do que morta.
Portanto... e se os desaparecidos estĂŁo presos em algum lugar? Como
reféns? Quem sabe os gritos viessem de gente ainda viva, que estava
sendo torturada e morta talvez naquele momento, bem na hora em que
vocĂŞ tinha o fone no ouvido.
Lembrando-se daqueles gritos terrĂ­veis, Bryce sentiu a medula
congelar lentamente.
— Quer tenha sido ou não gravado — disse Frank Autry —, é
provável que seja um erro pensar em termos de reféns.
— É — falou a dra. Paige. — Se o sr. Autry está querendo dizer
que temos que ter cuidado para não limitar nossas idéias a situações
convencionais, concordo inteiramente. Isso nĂŁo me parece um drama de
reféns. Algo tremendamente esquisito está acontecendo aqui, algo que
ninguém ainda encontrou antes, portanto não vamos cair em erro só
porque nos sentimos mais confortáveis com explicações aconchegantes
e familiares. Além disso, se estamos lidando com terroristas, como é que
isso combina com aquela coisa que vimos na janela?
Bryce assentiu.
— Tem razão. Mas não creio que Tal tenha querido dizer que as
pessoas estão sendo mantidas como reféns por motivos convencionais.
— Não, não — disse Tal. — Não precisa ser coisa de terrorista
ou de seqüestrador. Se há pessoas mantidas como reféns, isso não quer
dizer necessariamente que haja outras pessoas prendendo-as. Estou até
disposto a considerar que estĂŁo sendo aprisionados por algo que nĂŁo Ă©
humano. Se isso nĂŁo Ă© ser liberal, o que Ă©? Talvez aquilo as esteja
aprisionando, o aquilo que nenhum de nĂłs pode definir. Quem sabe as
esteja aprisionando apenas para prolongar o prazer que sente em
acabar com a vida delas. Quem sabe as esteja aprisionando apenas
para nos provocar com os seus gritos, do jeito que provocou Bryce ao
telefone. Que diabo, se estamos lidando com algo verdadeiramente
extraordinário, verdadeiramente inumano, os seus motivos para fazer

reféns — se é que fez algum — certamente serão incompreensíveis.
— Pombas, vocês estão falando como lunáticos — disse Wargle.
Todos o ignoraram.
Tinham atravessado o espelho. O impossĂ­vel era possĂ­vel. O
inimigo era o desconhecido.
Lisa Paige pigarreou. Seu rosto estava cinzento. Numa voz que
mal se ouvia, disse:
—

Quem sabe teceu uma teia em algum lugar, num lugar

escuro, num porĂŁo ou numa caverna, amarrou nela todas as pessoas
desaparecidas,

envolveu-as

em

casulos,

vivas.

Quem sabe

está

guardando-as sĂł para quando tiver fome de novo?
Se não havia absolutamente nada que ficasse além da esfera da
possibilidade, se até mesmo as teorias mais ousadas podiam se
confirmar, entĂŁo talvez a mocinha estivesse certa, pensou Bryce. Talvez
houvesse uma leia enorme vibrando baixinho em algum lugar escuro,
cheia de guloseimas, cem, duzentos ou mais homens-mulheres-crianças
embalados individualmente para conservarem o frescor e facilitar o
consumo. Em algum canto de Snowfield havia seres humanos que
tinham sido reduzidos ao terrĂ­vel equivalente de tortinhas embrulhadas
em alumĂ­nio, esperando apenas servir de alimento para algum horror de
outra dimensĂŁo, brutal, inimaginavelmente perverso, sombriamente
inteligente.
NĂŁo. RidĂ­culo.
Por outro lado: talvez.
Jesus.
Bryce se agachou em frente ao rádio de ondas curtas e espiou as
suas entranhas destroçadas. Os painéis dos circuitos tinham sido
arrancados. Várias partes pareciam ter sido esmagadas num torno ou
amassadas com martelo.
Frank disse:
— Eles teriam que retirar a chapa protetora para mexer nisso
aĂ­, como nĂłs retiramos.
— Então, depois que esculhambaram com a merda toda — disse

Wargle —, por que teriam se dado ao trabalho de recolocar a chapa?
— E por que se dar a todo esse trabalho, só para começo de
conversa? — questionou-se Frank. — Bastaria arrancar o fio do lugar
para o rádio deixar de funcionar.
Lisa e Gordy apareceram quando Bryce estava se afastando do
rádio. A mocinha falou:
A comida e o café estão prontos, se alguém quiser comer alguma
coisa.
— Estou morrendo de fome — disse Wargle, lambendo os lábios.
— Todos devemos comer alguma coisa, mesmo sem vontade —
falou Bryce.
— Xerife — falou Gordy —, Lisa e eu estivemos pensando nos
animais, nos bichinhos de estimação. Nós fomos levados a pensar nisso
porque o senhor falou que tinha ouvido ruĂ­dos de cĂŁes e gatos ao
telefone. Senhor, o que aconteceu a todos os bichos de estimação?
— Ninguém viu nem gatos nem cachorros — falou Lisa. — Nem
escutou nenhum latido.
Pensando nas ruas silenciosas, Bryce franziu o cenho e falou:
— Tem razão. É estranho.
— Jenny falou que há uns cachorros bem grandes na cidade.
Alguns pastores alemĂŁes. Pelo menos um doberman que ela conhece.
Até mesmo um dinamarquês. Não acha que eles teriam lutado? Não
acha que alguns dos cachorros teriam conseguido escapar? —
perguntou a garota.
—

Vamos admitir — falou Gordy rapidamente, antecipando a

resposta de Bryce — que a coisa fosse grande bastante para dominar
um cachorro normal e zangado. Sabemos também que as balas não
puderam

detĂŞ-la,

o

que

significa

que

talvez

nada

possa.

É

aparentemente grande e muito forte. Porém, senhor, grande e forte não
contam muito, necessariamente, para um gato. Os gatos sĂŁo uns
verdadeiros raios. Seria preciso algo um bocado traiçoeiro para pegar
todos os gatos da cidade.
— Um bocado traiçoeiro e um bocado ligeiro — falou Lisa.

— É — comentou Bryce, inquieto. — Um bocado ligeiro.
Jenny estava começando a comer um sanduíche quando o xerife
Hammond

se

sentou

numa

cadeira

ao

lado

da

escrivaninha,

equilibrando o prato no colo.
— Importa-se de ter um pouco de companhia?
— De modo algum.
— Tal Whitman andou me contando que a senhora é o flagelo
da nossa gangue de motoqueiros local.
Ela sorriu.
— Tal está exagerando.
— Aquele homem não sabe o que é exagerar — falou o xerife. —
Deixe-me contar-lhe uma coisa a respeito dele. Há um ano e pouco
viajei para Chicago a fim de participar de uma conferĂŞncia sobre
atividades policiais. Fiquei fora trĂŞs dias e, quando voltei, Tal foi a
primeira pessoa que vi. Perguntei-lhe se tinha acontecido alguma coisa
de especial enquanto eu estivera fora, e ele me disse que tinham
ocorrido as coisas de sempre, motoristas bĂŞbados, brigas de bar, uns
furtos, diversos GNA...
— O que é GNA? — perguntou Jenny.
— Ah, é um chamado para gato-na-árvore.
— Os policiais não salvam mesmo os gatos, não é?
— Acha que não temos coração? — perguntou, fingindo estar
chocado.
— GNA? Ora, vamos!
Ele abriu um sorriso. Tinha um sorriso maravilhoso.
— Lá uma vez em cada dois meses nós temos que tirar um gato
de cima de uma árvore. Mas um GNA não quer dizer apenas gatos nas
árvores. É nosso código para qualquer tipo de chamada chatinha que
nos afaste de trabalhos mais importantes.
— Ah!
—

Bem, entĂŁo, quando voltei de Chicago, aquela vez, Tal me

disse que tinham sido trĂŞs dias bem comuns. E depois, quase como se
sĂł entĂŁo tivesse se lembrado, contou que houvera uma tentativa de

roubo, num mercado 7-Eleven. Tal era apenas um freguĂŞs, Ă  paisana,
quando o fato ocorrera. Um tira, porém, mesmo quando não está de
serviço, é obrigado a andar armado, e Tal tinha um revólver num coldre
de tornozelo. Ele me contou que um dos marginais estava armado, e
que fora forçado a matá-lo; que eu não devia me preocupar pensando se
fora homicĂ­dio justificado ou nĂŁo. Disse que fora mais do que
justificado. Quando fiquei preocupado com ele, falou: "Bryce, foi uma
sopa." Mais tarde, fiquei sabendo que os dois marginais tinham
pretendido atirar em todo mundo. EntĂŁo Tal atirara num deles...
embora tivesse sido atingido antes. O marginal enfiara uma bala no
braço esquerdo de Tal, e, uma fração de segundo mais tarde, Tal o
matara. O ferimento de Tal não era sério, mas sangrava pra diabo, e
deve ter doĂ­do uma barbaridade. Naturalmente eu nĂŁo reparara na
atadura porque estava debaixo da manga da camisa, e Tal nĂŁo se dera
ao trabalho de falar no assunto. Bem, então, lá está Tal no 7-Eleven,
sangrando feito um desesperado, e descobre que está sem munição. O
segundo bandido, que pegou a arma que o primeiro deixara cair,
também está sem munição, e resolve correr. Tal vai no seu encalço; eles
se atracam e rolam de um lado para o outro da pequena mercearia. O
sujeito tinha cinco centĂ­metros e nove quilos a mais do que Tal, nĂŁo
estava ferido. Mas sabe o que o guarda que atendeu ao chamado contou
que encontraram, quando chegaram ao local? Que Tal estava sentado
no balcĂŁo ao lado da caixa registradora, sem camisa, tomando um
cafezinho de cortesia, enquanto o funcionário tentava estancar o fluxo
de

sangue.

Um

dos

suspeitos

estava

morto.

O

outro

estava

inconsciente, esparramado no meio de uma massa pegajosa de Hostess
Twinkies, Fudge Fantasies e bolinhos de coco. Parece que tinham
derrubado uma prateleira cheia de bolinhos e merendas bem no meio
da luta. Cerca de cem pacotes de guloseimas tinham se esparramado
pelo chĂŁo, e Tal e o outro sujeito tinham pisoteado tudo enquanto se
atracavam. A maioria dos pacotes se abrira. Havia coberturas, biscoitos
esfarelados e Twinkies esmagados por todo um corredor. Todo aquele
lixo estava cheio de pegadas incertas, e dava para se acompanhar o

progresso da briga olhando para a trilha pegajosa.
O xerife terminou a sua histĂłria e olhou para Jenny, na
expectativa.
—

Ah, e ele tinha dito ao senhor que fora uma prisão fácil...

uma sopa.
— Pois é — riu-se o xerife.
Jenny lançou um olhar para Tal Whitman, que estava do outro
lado da sala, comendo um sanduĂ­che e conversando com o guarda
Brogan e Lisa.
—

Então — continuou o xerife —, quando Tal me diz que a

senhora é o flagelo da Demon Chrome, sei que não está exagerando.
Exagero nĂŁo faz o gĂŞnero dele.
Jenny sacudiu a cabeça, impressionada.
— Quando contei a Tal sobre o meu breve encontro com esse
homem que ele chama de Gene Terr, ele agiu como se pensasse que era
uma das coisas mais corajosas que alguém já fizera. Comparado com a
"sopa" dele, a minha histĂłria deve ter parecido uma disputa num
playground de jardim de infância.
— Não, não — falou Hammond. — Tal não estava apenas sendo
gentil. Ele realmente acha que a senhora fez uma coisa corajosa pra
burro. E eu também. O Jeeter é uma cobra, dra. Paige. Do tipo
venenoso.
— Pode me chamar de Jenny, se quiser.
— Bem, Jenny-se-quiser, pode me chamar de Bryce.
Ele tinha os olhos mais azuis que ela já vira. Seu sorriso se
definia tanto por aqueles olhos luminosos quanto pela curva da boca.
Enquanto comiam, conversavam sobre coisas inconseqĂĽentes,
como se aquela fosse uma noite comum. Ele possuĂ­a uma capacidade
impressionante de deixar as pessoas Ă  vontade, a despeito das
circunstâncias. Trazia consigo uma aura de tranqüilidade. Ela se sentiu
agradecida pelo interlĂşdio calmo.
Quando terminaram de comer, todavia, ele voltou a conduzir a
conversa de volta Ă  crise que estavam enfrentando.

—

VocĂŞ conhece Snowfield melhor do que eu. Temos que

encontrar um quartel-general adequado para esta operação. Este lugar
Ă© pequeno demais. Logo teremos mais dez homens aqui. E a equipe de
Copperfield pela manhĂŁ.
— Quantos homens ele vai trazer?
— Pelo menos doze. Talvez até vinte. Preciso de um QG de onde
cada aspecto da operação possa ser coordenado. Talvez fiquemos aqui
por vários dias, então é preciso que haja um quarto onde o pessoal que
não está de serviço possa dormir, e também precisamos de uma
lanchonete para alimentar todo mundo.
— Uma das estalagens seria o lugar ideal — disse Jenny.
— Talvez. Mas não quero o pessoal dormindo de dois em dois
em muitos quartos diferentes. Ficariam vulneráveis demais. Temos que
bolar todo mundo num Ăşnico dormitĂłrio.
— Então, o Hilltop Inn é a melhor solução. Fica a uma quadra
daqui, do outro lado da rua.
— Ah, sim, claro. O maior hotel da cidade, não é?
—

É. O Hilltop tem um saguão bem grande porque funciona

também como bar.
— Já tomei um drinque ali uma ou duas vezes. Se modificarmos
o mobiliário do saguão, podemos transformá-lo numa área de trabalho
para acomodar lodo mundo.
— Tem também um grande restaurante dividido em duas salas.
Uma parte poderia ser uma lanchonete e poderíamos trazer colchões
dos quartos e usar a outra metade do restaurante como dormitĂłrio.
— Vamos dar uma olhada nele — falou Bryce.
Ele largou o prato de papel vazio em cima da mesa e se pĂ´s de
pé.
Jenny lançou um olhar às janelas da frente. Pensou na estranha
criatura que voam de encontro ao vidro e, mentalmente, ouviu o
barulho suave mas frenético: tumtumtumtum.
— Quer dizer... dar uma olhada agora?
— Por que não?

— Não seria melhor esperar pelos reforços? — perguntou.
— Provavelmente ainda demorarão um pouco para chegar. Não
faz sentido ficar parado olhando para ontem. Todos vamos nos sentir
melhor se estivermos fazendo alguma coisa construtiva. Vai desviar a
nossa atenção... das coisas piores que já vimos.
Jenny não conseguia se libertar da lembrança daqueles olhos
negros de inseto, tão malévolos, tão esfaimados. Fitou as janelas, fitou a
noite além delas. A cidade não mais lhe parecia familiar. Era totalmente
estranha agora, um lugar hostil no qual ela era uma desconhecida mal
acolhida.
— Não estamos nem um pouquinho mais seguros aqui do que
estaríamos ali — falou Bryce, gentilmente.
Jenny assentiu, lembrando-se dos Oxleys no seu quarto com
barricada. Ao se levantar da escrivaninha, falou:
— Não há segurança em lugar algum.

16

Vindo da escuridĂŁo

SaĂ­ram da delegacia, liderados por Bryce Hammond. Cruzaram
as pedras da calçada manchadas pelo luar, atravessaram uma torrente
de luz cor de âmbar de um poste de rua e adentraram a Skyline Road.
Bryce levava uma espingarda, assim como Tal Whitman.
A cidade estava parada. As árvores não respiravam, e os edifícios
eram como miragens diáfanas penduradas em paredes de ar.
Bryce saiu da luz, caminhou no calçamento pintalgado de luar,
cruzando a rua, encontrando sombras dispersas no meio dela. Sempre

sombras.
Os outros o seguiam silenciosamente.
Algo rangeu sob o pé de Bryce, sobressaltando-o. Era uma folha
seca.
Ele podia ver o Hilltop Inn pouco mais adiante, na Skyline Road.
Era uma construção de pedra cinzenta de quatro andares, a
quase uma quadra de distância, e estava muito escura. Algumas das
janelas do quarto andar refletiam a lua cheia, mas, dentro do hotel,
nem uma sĂł luz ardia.
Todos já tinham alcançado ou ultrapassado o meio da rua
quando algo surgiu, vindo da escuridĂŁo. Bryce percebeu, em primeiro
lugar, uma sombra da lua que perpassou pelo calçamento, como uma
ondulação numa poça d'água. Instintivamente, baixou a cabeça.
Escutou o som de asas. Sentiu algo roçar de leve sobre a sua cabeça.
Stu Wargle gritou.
Bryce endireitou o corpo e rodopiou.
A mariposa.
Estava fixada firmemente ao rosto de Wargle, agarrando-se por
algum meio que não era visível para Bryce. Toda a cabeça de Wargle
estava coberta pela coisa.
Wargle não era o único que gritava. Os outros também gritaram
e recuaram, surpresos. A mariposa também ginchava, emitindo um som
estridente e intenso.
Aos raios prateados do luar, as imensas asas pálidas e
aveludadas do inseto impossĂ­vel se agitavam, se abriam e fechavam com
uma graça e beleza horríveis, fustigando a cabeça e os ombros de
Wargle.
Wargle saiu cambaleando, ladeira abaixo, movendo-se Ă s cegas,
arranhando a coisa terrĂ­vel que se agarrava ao seu rosto. Os seus gritos
logo ficaram abafados; dentro de dois segundos, cessaram por completo.
Bryce, como os outros, ficou paralisado pelo nojo e pela
incredulidade.
Wargle começou a correr, mas percorreu apenas alguns metros

antes de parar abruptamente. As mĂŁos largaram aquela coisa no seu
rosto. Os joelhos estavam cedendo.
Saindo do seu breve transe, Bryce deixou cair a espingarda
inútil e correu na direção de Stu.
Wargle nĂŁo desabou ao chĂŁo, afinal de contas. Em vez disso, os
joelhos trĂŞmulos ficaram firmes e ele ficou ereto. Os ombros foram
jogados para trás. O corpo se retorcia e estremecia como se estivesse
sendo percorrido por uma corrente elétrica.
Bryce tentou agarrar a mariposa e arrancá-la de cima de Wargle.
Mas o delegado começou a oscilar e se debater numa dança-de-são-vito
de dor e sufocação, e as mãos de Bryce se fecharam em torno do ar.
Wargle cruzou a rua erraticamente, sacudindo-se de um lado para
outro, ondulando, se contorcendo e rodopiando, como se estivesse preso
a fios sendo manipulados por um titereiro bĂŞbado. As mĂŁos pendiam
frouxas ao lado do corpo, o que tornava a sua dança frenética e
espasmĂłdica especialmente lĂşgubre. As mĂŁos se agitavam muito
debilmente, mas nĂŁo se levantavam para tentar arrancar o assaltante
de cima de si. Era quase como se, agora, ele estivesse tomado de ĂŞxtase,
e nĂŁo nas garras da dor. Bryce seguiu-o, tentou ajudar, mas nĂŁo
conseguia se aproximar.
E entĂŁo Wargle desabou.
Naquele mesmo instante, a mariposa se ergueu e virou,
suspensa no ar as asas batendo muito rapidamente, o olhar negro como
a noite e maligno Veio para cima de Bryce.
Ele deu um passo trôpego para trás e cobriu o rosto com os
braços.
A mariposa passou voando por cima da cabeça dele.
Bryce girou o corpo, ergueu os olhos.
O inseto do tamanho de uma pipa continuou o seu vĂ´o
silencioso, cruzando a rua e se dirigindo para os prédios do outro lado.
Tal Whitman levantou a sua espingarda. O estampido parecia
um tiro de canhĂŁo na cidade silenciosa.
A mariposa caiu para um lado, em pleno vĂ´o. Veio rodopiando

quase até o chão, depois alçou vôo de novo e continuou o seu caminho,
desaparecendo por sobre um telhado.
Stu Wargle estava esparramado no calçamento, de costas,
imĂłvel.
Bryce se pôs de pé e foi para junto de Wargle. O delegado jazia
no meio da rua onde havia luz suficiente para se ver que o seu rosto
tinha sumido Jesus Sumido. Como se tivesse sido arrancado fora. O
cabelo e tiras irregulares do couro cabeludo encimavam o osso branco
da sua testa. Um crânio espiava para Bryce.

17

A hora antes da meia-noite

Tal, Gordy, Frank e Lisa sentavam-se em poltronas vermelhas
de couro sintético num canto do saguão do Hilltop Inn. O hotel estava
fechado desde o término da última estação de esqui e eles tinham
removido as coberturas brancas empoeiradas das poltronas antes de
desabarem nelas, enternecidos com o choque. A mesinha de centro de
café ainda estava coberta com um pano; ficaram fitando o objeto
amortalhado, incapazes de olhar uns para os outros.
No canto mais afastado da sala, Bryce e Jenny encontravam-se
ao lado do corpo de Stu Wargle, que estava num aparador longo e baixo,
de encontro à parede. Ninguém nas poltronas conseguia se forçar a
olhar para aquele lado.
Fitando a mesinha de centro coberta, Tal talou:
— Eu atirei naquela coisa maldita. Acertei. Sei que acertei.
— Todos nós vimos o chumbo pegar nela — concordou Frank.

—

Então por que ela não explodiu? — quis saber Tal. — Foi

atingida em cheio por chumbo de espingarda calibre 20. Devia ter ficado
em pedaços, porra.
— Armas não vão salvar a gente — falou Lisa. Numa voz
distante, assombrada, Gordy falou:
— Podia ter sido qualquer um de nós. Aquela coisa podia ter
nu-pegado. Eu estava logo atrás de Stu. Se ele tivesse se abaixado ou
pulado fora...
— Não — disse Lisa. — Não. Ela queria o guarda Wargle. Mais
ninguém. Só o guarda Wargle.
Tal fitou a garota:
— Como assim?
A pele dela estava com a palidez de seus ossos.
—

O guarda Wargle recusou-se a admitir que a vira quando

estava batendo contra a janela. Ele insistiu que era só um pássaro.
— E daí?
—

EntĂŁo ela o queria. A ele, especialmente. Para lhe ensinar

uma lição. Mas, principalmente, para nos ensinar uma lição.
— Mas aquela coisa não podia ter escutado o que Stu dissera.
— Mas escutou.
— Mas não podia ter compreendido.
— Mas compreendeu.
—

Acho que você está lhe creditando inteligência demais —

falou Tal. — Era grande, é verdade, e diferente de qualquer coisa que já
tenhamos visto antes. Mas ainda era sĂł um inseto. Uma mariposa.
Certo?
A mocinha ficou calada.
— Não é onisciente — continuou Tal, tentando convencer a si
mesmo, mais do que a qualquer outra pessoa. — Não vê tudo, ouve
tudo e sabe tudo.
A mocinha fitava silenciosamente a mesinha de centro coberta.
Controlando a náusea, Jenny examinou a horrenda ferida de
Wargle. As luzes do saguĂŁo nĂŁo eram bastante fortes, entĂŁo ela usou

uma lanterna elétrica para inspecionar as beiradas do ferimento e
espiar para dentro do crânio. O centro do rosto demolido do morto fora
consumido até os ossos: toda a pele, carne e cartilagem tinham
desaparecido. Até o osso em si parecia estar parcialmente dissolvido em
alguns lugares, furadinho como se tivesse sido borrifado com ácido. Os
olhos tinham desaparecido. Contudo, existia carne normal em todos os
lados da ferida; havia carne macia e intacta ao longo dos dois lados do
rosto, dos pontos externos dos maxilares até os malares, e havia pele
lisa do meio do queixo para baixo e do meio da lesta para cima. Era
como se algum artista macabro tivesse projetado uma moldura de pele
sadia para dar destaque à horrenda exibição de osso em exposição no
centro da face.
Tendo visto o suficiente, Jenny desligou a lanterna elétrica.
Anteriormente, tinham coberto o corpo com o pano retirado de uma das
poltronas. Agora, Jenny acabou de puxar o pano para cima do rosto do
morto, aliviada por estar cobrindo aquele sorriso esquelético.
— E então? — indagou Bryce.
— Não há marcas de dentes — falou ela.
— E uma coisa daquela teria dentes?
— Sei que tinha boca, um pequeno bico quitinoso. Vi as suas
mandĂ­bulas se mexendo quando se jogou contra as janelas da
subdelegacia.
— É, eu também vi.
— Uma boca daquelas marcaria a carne. Haveria cortes. Marcas
de mordidas. Sinais de mastigação e arrancamento.
— Mas não havia nenhum.
— Não. A carne não parece ter sido rasgada. Parece ter sido...
dissolvida. Nas beiradas da ferida, a carne que resta está até meio
cauterizada, como se tivesse sido queimada com alguma coisa.
— Acha que aquele... aquele inseto... secretou um ácido? — Ela
fez que sim. — E dissolveu o rosto de Stu Wargle?
— E chupou a carne liqüefeita — disse ela.
— Santo Deus.

— É.
Bryce

estava

pálido

feito

uma

máscara

mortuária,

e,

contrastantemente, as sardas pareciam arder e brilhar no seu rosto.
—

Isso explica como pode ter feito tanto estrago em apenas

alguns segundos.
Jenny tentou nĂŁo pensar no rosto ossudo que espiava para fora
da carne... como uma fisionomia monstruosa que tivesse retirado uma
máscara de normalidade.
— Acho que o sangue sumiu — falou. — Todo ele.
— Como?
— O corpo estava numa poça de sangue?
— Não.
— Também não havia sangue no uniforme.
— Eu reparei.
—

Devia haver sangue, devia ter jorrado como uma fonte. As

cavidades dos olhos deviam estar cheias de sangue, mas não há uma
Ăşnica gota.
Bryce esfregou a mão pelo rosto. Esfregou-a com tanta força, na
verdade, que levou um pouco de cor Ă s faces.
— Dê uma olhada no pescoço dele — falou Jenny. — Na jugular.
Ele nĂŁo se adiantou para o corpo.
— E dê uma olhada na parte de dentro dos braços e na parte de
trás das mãos. Não há sinal de veias em parte alguma, nenhum tom de
azul.
— Vasos sangüíneos arruinados?
— É. Acho que todo o sangue foi retirado do seu corpo. Bryce
inspirou fundo. Disse:
— Eu o matei. Sou o responsável. Devíamos ter esperado pelos
reforços antes de sair da subdelegacia... como você falou.
— Não, não. Voce tinha razão. Lá não era mais seguro do que
na rua.
— Mas ele morreu na rua.
— Os reforços não teriam feito a menor diferença. Do jeito que

aquela coisa infernal caiu do céu... que diabo, nem mesmo um exército
a lei ia detido. Ligeiro demais. Surpreendente demais.
A desolação tomara conta dos olhos dele. Sentia a sua
responsabilidade vivamente demais. Ia ficar insistindo em se culpar
pela morte do seu subalterno.
Com relutância, ela falou:
— Tem coisa pior.
— Não pode ser.
— O cérebro dele...
Bryce ficou esperando. Depois, falou:
— O que é que tem? O que é que tem o cérebro dele?
— Sumiu.
— Sumiu?
— O crânio dele está vazio. Totalmente vazio.
— Como é que pode saber disso sem ter aberto...
Ela estendeu a lanterna elétrica para ele, interrompendo-o.
— Pegue isso e ilumine as órbitas dele.
Ele nĂŁo fez nenhum gesto para seguir a sugestĂŁo dela. Os seus
olhos agora nĂŁo estavam encobertos. Estavam abertos, arregalados.
Ela reparou que nĂŁo conseguia segurar direito a lanterna
elétrica. Sua mão tremia violentamente.
Ele também reparou. Colocou a lanterna no aparador, ao lado do
cadáver amortalhado. Tomou ambas as mãos da moça e segurou-as nas
suas, grandes e curtidas; aqueceu-as com as mĂŁos em concha.
Ela falou:
—

Não há nada para além das órbitas, nada, absolutamente

nada, nada mesmo, exceto a parte de trás do crânio dele.
Bryce esfregou-lhe as mĂŁos, tranqĂĽilizadoramente.
—

Só uma cavidade úmida, escareada — continuou ela.

Enquanto falava, a sua voz aumentava de volume e falhava: — Aquilo
corroeu o rosto dele, corroeu os seus olhos, provavelmente com a
mesma velocidade com que ele era capaz de piscar, pelo amor de Deus,
corroeu a sua boca e arrancou a lĂ­ngua pela raiz, retirou as gengivas

que cobriam os seus dentes, depois corroeu o céu da boca, Jesus, e
simplesmente consumiu o seu cérebro, consumiu todo o sangue do seu
corpo também, provavelmente chupou-o todo e...
— Calma, calma — falou Bryce.
Mas as palavras jorravam aos trancos e barrancos, como se
fossem elos de uma cadeia que a prendesse a um albatroz.
— ...consumiu tudo aquilo num máximo de dez ou doze
segundos, o que Ă© impossĂ­vel, maldito seja, simplesmente impossĂ­vel!
Devorou... está compreendendo?... devorou quilos e quilos de tecido...
só o cérebro pesa uns três quilos... devorou tudo isso em dez ou doze
segundos!
Ela ficou arfando, as mĂŁos presas nas dele.
Ele a levou para um sofá coberto por um pano empoeirado.
Sentaram-se lado a lado.
No outro canto da sala, nenhum dos outros estava olhando para
aquele lado.
Jenny ficou contente por isso. NĂŁo queria que Lisa a visse
naquele estado.
Bryce pĂ´s a mĂŁo no seu ombro. Falou-lhe em voz baixa,
reconfortante.
Aos poucos ela foi ficando mais calma. NĂŁo menos perturbada.
NĂŁo com menos medo. Simplesmente mais calma.
— Melhor? — perguntou Bryce.
— Como diria a minha irmã... acho que fraquejei com você, não
foi?
— De modo algum. Está brincando ou o quê? Eu nem mesmo
pude pegar a lanterna e olhar para dentro daqueles ossos, como vocĂŞ
queria que eu fizesse. Você é que teve coragem para examiná-lo.
—

Bem, obrigada por ter me acalmado. VocĂŞ sabe como

ninguém costurar nervos esfarrapados.
— Eu? Mas eu não fiz nada.
—

VocĂŞ tem um jeito bem reconfortante de nĂŁo fazer nada.

Ficaram em silĂŞncio, pensando em coisas em que nĂŁo queriam pensar.

EntĂŁo, ele falou:
—

Aquela mariposa... — Ela esperou. — De onde veio! —

perguntou ele.
— Do inferno?
— Mais alguma sugestão? Jenny deu de ombros.
— Era mesozóica? — falou, em tom de brincadeira.
— Quando foi isso?
— Era dos dinossauros.
Os olhos azuis dele brilharam, interessados.
— Mariposas como aquela existiam naquele tempo?
— Não sei — admitiu ela.
— Dá para imaginá-la voando por cima dos pântanos préhistóricos.
—

É. Atacando os animais pequenos, incomodando um

Tyrannosaurus rex do mesmo jeito que as nossas pequenas mariposas
de verĂŁo nos incomodam.
—

Mas se Ă© da era mesozĂłica, onde andou escondida nos

últimos cem milhões de anos? — perguntou ele. Mais segundos se
passaram.
— Será que podia ser... algo de um laboratório de engenharia
genética? — ela se perguntou. — Uma experiência com recombinação de
ADN?
— Será que já estão tão adiantados? Podem produzir espécies
totalmente novas? Eu sĂł sei daquilo que leio nos jornais, mas pensei
que ainda faltavam anos para chegarem a esse tipo de coisa. Ainda
estão trabalhando com bactérias.
— Você provavelmente tem razão — disse ela. — No entanto...
— É. Nada é impossível porque a mariposa está aqui. Depois de
novo silĂŞncio, ela falou:
— E o que mais estará rastejando ou voando por aí?
— Está pensando no que aconteceu a Jack Johnson?
— É. O que foi que o levou? Não foi a mariposa. Mesmo mortífera
como ela Ă©, nĂŁo poderia tĂŞ-lo matado sem barulho, e nĂŁo poderia

carregá-lo para longe. — Ela soltou um suspiro. — Sabe, a princípio eu
nĂŁo quis tentar sair da cidade porque tinha medo de que fĂ´ssemos
espalhar uma epidemia. Agora nĂŁo tentaria sair porque sei que nĂŁo
sairĂ­amos com vida. SerĂ­amos detidos.
— Não, não, estou certo de que poderíamos tirar você daqui —
falou Bryce. — Se pudermos provar que isso não tem nada a ver com
doenças, se o pessoal do general Copperfield puder eliminar isso, então,
é claro, você e Lisa serão levadas embora em segurança, imediatamente.
Ela sacudiu a cabeça.
—

Não. Tem algo lá fora, Bryce, algo mais astucioso e muito

mais intimidador do que a mariposa, e que nĂŁo quer que nĂłs vamos
embora. Quer brincar conosco antes de nos matar. NĂŁo vai deixar
nenhum de nĂłs partir; entĂŁo, Ă© bom encontrarmos logo essa coisa e
descobrir como lidar com ela antes que ela fique cansada da
brincadeira.
Nas duas salas do grande restaurante do Hilltop Inn, as cadeiras
estavam empilhadas de cabeça para baixo em cima das mesas, tudo
coberto com grandes pedaços de plástico verde. Na primeira sala, Bryce
e os outros removeram as coberturas de plástico, tiraram as cadeiras de
cima da mesa e começaram a preparar o lugar para servir como
lanchonete.
Na segunda sala, os mĂłveis tiveram que ser retirados para abrir
espaço para os colchões que, mais tarde, seriam trazidos do andar
superior. Tinham começado a esvaziar aquela parte do restaurante
quando escutaram o som débil, mas inconfundível, de motores de
automĂłveis.
Bryce se dirigiu para as portas envidraçadas. Olhou para a
esquerda, para o começo da ladeira da Skyline Road. Três carrospatrulha do condado vinham subindo a rua, as luzes vermelhas do teto
piscando.
— Estão aqui — disse Bryce aos outros.
Estivera pensando nos reforços como um reabastecimento
reconfortante do seu contingente dizimado. Agora se dava conta de que

mais dez homens ou mais um era praticamente a mesma coisa.
Jenny Paige tivera razĂŁo quando dissera que a vida de Stu
Wargle provavelmente nĂŁo teria sido salva se tivessem esperado pelos
reforços antes de deixarem a subdelegacia.
Todas as luzes do Hilltop Inn e também da rua principal
piscaram. Ficaram baixas. Apagaram-se. Mas voltaram depois de
apenas um segundo de escuridĂŁo.
Eram 23:15 de domingo, e começara a contagem regressiva para
a meia-noite, a hora do encantamento.

18

Londres, Inglaterra

Quando a meia-noite chegou na CalifĂłrnia, eram oito horas da
manhĂŁ de segunda-feira em Londres.
O dia estava melancĂłlico. Nuvens cinzentas se derretiam sobre a
cidade. Uma garoa constante e desanimadora caĂ­a desde antes do
alvorecer. As árvores afogadas pendiam murchas, as ruas cintilavam
sombriamente e todo mundo que andava pelas calçadas parecia possuir
guarda-chuvas pretos.
No Churchill Hotel, em Portman Square, a chuva batia de
encontro Ă s janelas e escorria pelos vidros, distorcendo a visĂŁo no
refeitório. Raios ocasionais, cuja luz passava pelas vidraças tomadas
pela água, lançavam breves imagens imprecisas de gotas de chuva nas
toalhas de mesa brancas e limpas.
Burt Sandler, de Nova York, em viagem de negĂłcios a Londres,
sentava-se a uma das mesas junto Ă  janela, imaginando como, em

nome de Deus, iria justificar o tamanho desta conta de café da manhã
na sua despesa de representação. O seu convidado começara pedindo
uma garrafa de bom champanhe: Mumm's Extra Dry, que nĂŁo era
barato. Junto com o champanhe, o seu convidado queria caviar —
champanhe e caviar no café da manhã! — e duas qualidades de frutas
frescas. E estava claro que o velhote ainda nĂŁo parara de fazer os seus
pedidos.
Do outro lado da mesa, o dr. Timothy Flyte, o objeto do espanto
de Sandler, examinava o cardápio com alegria infantil. Falou para o
garçom:
— E quero também um pouco dos seus croissants.
— Pois não, senhor — retrucou o garçom.
— Estão frescos?
— Estão sim, senhor. Bem frescos.
— Ótimo. E ovos — continuou Flyte. — Dois belos ovos, é claro,
com a gema mole, e torradas com manteiga.
—

Torradas? — perguntou o garçom. — Além dos dois

croissants, senhor?
—

É, é sim — disse Flyte, roçando o dedo pelo colarinho

ligeiramente puído da camisa branca. — E uma porção de bacon com os
ovos.
O garçom pestanejou.
— Sim, senhor.
Finalmente, Flyte ergueu os olhos para Burt Sandler.
— O que é um café da manhã sem bacon! Não estou certo?
—

Eu também sou adepto do ovos-com-bacon — concordou

Burt Sandler, forçando um sorriso.
— Muito sensato da sua parte — falou Flyte, judiciosamente. Os
Ăłculos de aros largos tinham escorregado nariz abaixo e agora estavam
encarapitados na ponta redonda e vermelha do prĂłprio. Com um dedo
comprido e magro ele os recolocou no lugar.
Sandler reparou que a armação, na parte que repousava sobre o
nariz,

tinha

sido

quebrada

e

remendada.

O

remendo

era

tĂŁo

nitidamente amador que ele desconfiou ter sido feito pelo prĂłprio Flyte,
para poupar dinheiro.
— As lingüiças estão boas? — perguntou Flyte ao garçom. —
Diga a verdade. Eu as devolverei imediatamente se nĂŁo forem da melhor
qualidade.
— Temos lingüiças excelentes — assegurou-lhe o garçom. — Eu
mesmo gosto muito delas.
— Lingüiças, então.
— Em vez do bacon, senhor?
— Não, não, não. Além dele — disse Flyte, como se a pergunta
do garçom não fosse apenas ditada pela curiosidade, mas pela burrice.
Flyte tinha 58 anos, mas parecia uma década mais velho. O seu
cabelo ralo e espetado se enroscava no alto da cabeça e sobressaía ao
redor das orelhas grandes como se estivesse cheio de eletricidade
estática. Tinha o pescoço esquálido e enrugado; os ombros eram
estreitos; o seu corpo tendia mais para ossos e cartilagem do que para
carne. Podia-se duvidar, legitimamente, que fosse capaz de comer tudo
aquilo que tinha pedido.
— Batatas — falou Flyte.
—

Pois não, senhor — disse o garçom, anotando no bloco de

pedidos, onde já quase não havia espaço para escrever.
— Tem pasteizinhos doces? — indagou Flyte.
O

garçom,

um

modelo

de

comportamento,

dadas

as

circunstâncias, sem ter feito a mais leve alusão à gula espantosa de
Flyte, olhou para Burt Sandler, como que a dizer: O seu avĂ´ Ă©
totalmente senil, senhor, ou Ă© um corredor de maratonas que precisa de
calorias?
Sandler apenas sorriu.
Para Flyte, o garçom falou:
— Temos sim, senhor, de diversos tipos. Temos um delicioso...
— Traga-me um prato deles, variados. No final da refeição, é
claro.
— Perfeitamente, senhor.

—

Bom. Ótimo. Excelente! — disse Flyte, todo sorridente.

Finalmente, coin uma ponta de relutância, deixou de lado o seu
cardápio.
Sandler quase soltou um suspiro de alĂ­vio. Pediu suco de
laranja, ovos, bacon e torradas, enquanto o professor Flyte ajeitava o
cravo de um dia de idade preso Ă  lapela do seu terno azul um tanto
lustroso.
Quando Sandler terminou de fazer o seu pedido, Fly te inclinouse para ele com ar de conspiração.
— Vai tomar um pouco do champanhe, sr. Sandler?
— Creio que vou aceitar uma ou duas taças — disse Sandler,
esperando que as borbulhas liberassem a sua mente e o ajudassem a
formular uma explicação digna de crédito para esta extravagância, uma
histĂłria

que

pudesse

convencer

até

mesmo

os

contadores

parcimoniosos que examinariam a conta com microscópio de elétron.
Flyte olhou para o garçom.
— Então é melhor o senhor trazer duas garrafas.
Sandler, que estava sorvendo água gelada, quase se engasgou. O
garçom se foi e Flyte espiou pela janela manchada de água ao lado da
mesa deles.
— Que tempo horrível. Nova York no outono é assim?
— Temos nossa cota de dias chuvosos. Mas o outono pode ser
belo Ă s vezes.
—

Aqui também — disse Flyte. — Embora eu imagine que

tenhamos mais dias como este do que vocês. A reputação de Londres
para o tempo chuvoso nĂŁo Ă© inteiramente imerecida.
O professor insistiu em conversar fiado até que o champanhe e o
caviar tivessem sido servidos, como se temesse que, tĂŁo logo o assunto
de negĂłcios tivesse sido discutido, Sandler mandaria prontamente
cancelar o resto do pedido.
Ele parece um personagem de Dickens, pensou Sandler.
TĂŁo logo tinham feito um brinde, desejando-se mutuamente boa
sorte, e tinham sorvido o Mumm's, Flyte falou:

—

Quer dizer que veio desde Nova York para me ver, nĂŁo Ă©?

Seus olhos brilhavam alegremente.
— Para ver diversos escritores, na verdade — falou Sandler. —
Faço essa viagem uma vez ao ano. Sondo os livros em andamento. Os
autores britânicos são populares nos Estados Unidos, especialmente os
autores de thrillers.
— MacLean, Follet, Forsythe, Bagley, essa turma?
— É, e alguns são mesmo muito populares.
O caviar estava soberbo. Por insistĂŞncia do professor, Sandler
experimentou um pouco com cebola batidinha. Flyte enchia pequenas
fatias de torradas com montes de caviar e comia-o sem o auxĂ­lio de
condimentos.
—

Mas não vim apenas em busca de thrillers — explicou

Sandler. — Estou atrás de outros gêneros também. E de autores
desconhecidos também. E ocasionalmente sugiro projetos, quando
tenho um assunto para um determinado autor.
— Aparentemente, tem algo em mente para mim.
— Primeiro, deixe-me dizer-lhe que li O inimigo antigo logo que
foi publicado e achei-o fascinante.
— Muitas pessoas acharam-no fascinante — falou Flyte. — Mas
a maior parte achou-o enfurecedor.
— Ouvi dizer que o livro criou problemas para o senhor.
— Virtualmente apenas problemas.
— Tais como?
— Perdi meu cargo na universidade há quinze anos, na idade de
43 anos, quando a maioria dos acadêmicos está adquirindo estabilidade
no emprego.
— Perdeu o seu cargo por causa de O inimigo antigo?
— Eles não puseram a coisa nesses termos — disse Flyte —-,
engolindo um bocado de caviar. — Isso faria com que parecessem ter a
mente muito estreita. Os administradores da minha faculdade, o chefe
do meu departamento e a maior parte dos meus ilustres colegas
preferiram atacar indiretamente. Meu caro sr. Sandler, a competição

entre políticos ambiciosos e as atitudes maquiavélicas dos jovens
executivos nas grandes companhias sĂŁo ninharias, em termos de
baixeza e perversidade, quando comparadas ao comportamento dos
acadĂŞmicos que, de repente, vislumbram uma oportunidade de galgar
os degraus da vida universitária à custa de um colega. Espalharam
boatos sem fundamento, nojeiras escandalosas sobre as minhas
preferências sexuais, sugestões de confraternização íntima com as
minhas alunas. E com os meus alunos também, diga-se de passagem.
Nenhuma dessas calĂşnias foi discutida abertamente num fĂłrum onde
eu pudesse refutá-las. Apenas boatos, murmurados por trás das costas.
Venenosos.

Mais

incompetĂŞncia,

abertamente,

excesso

de

fizeram

trabalho,

sugestões

fadiga

mental.

polidas

de

Foram

me

eliminando aos poucos, entende, embora para mim isso fosse tĂŁo
penoso quanto uma demissĂŁo abrupta. Dezoito meses depois da
publicação de O inimigo antigo, tinham me posto na rua. E nenhuma
outra universidade queria me aceitar, ostensivamente por causa de
minha má reputação. O verdadeiro motivo, é claro, era que minhas
teorias eram excĂŞntricas demais para os gostos acadĂŞmicos. Fui
acusado de tentar fazer fortuna explorando o gosto do homem comum
pela pseudociĂŞncia e pelo sensacionalismo, de vender a minha
credibilidade.
Flyte

parou

para

tomar

mais

um

gole

de

champanhe,

saboreando-o. Sandler ficou genuinamente chocado com o que Flyte lhe
contara.
—

Mas isso Ă© um absurdo! O seu trabalho foi um tratado

erudito. Jamais foi dirigido Ă s listas de bestsellers. O homem comum
teria a maior dificuldade em acompanhar O inimigo antigo. É
virtualmente impossĂ­vel fazer fortuna com esse tipo de obra.
—

Um fato que meus direitos autorais bem podem atestar —

disse Flyte, terminando o restinho do caviar.
— O senhor era um arqueólogo respeitado — disse Sandler.
— Bem, nunca fui assim tão respeitado — disse Flyte,
depreciando a si mesmo. — Embora nunca tivesse sido uma vergonha

para a minha profissĂŁo, como foi sugerido com tanta freqĂĽĂŞncia
posteriormente. Se a conduta de meus colegas lhe parece incrĂ­vel, sr.
Sandler, Ă© porque o senhor nĂŁo compreende a natureza dĂł animal.
Quero dizer, do animal cientista. Os cientistas sĂŁo educados para
acreditar que todo novo conhecimento vem em porções minúsculas,
grĂŁos de areia empilhados uns sobre os outros. Portanto, nunca estĂŁo
preparados para aqueles visionários que chegam a novas conclusões
que, da noite, para o dia, transformam completamente todo um campo
de investigação. Copérnico foi ridicularizado por seus contemporâneos
por crer que os planetas giravam em torno do sol. Claro que mais tarde
provou-se que Copérnico estava com a razão. Existem exemplos
incontáveis na história da ciência. — Flyte enrubesceu e bebeu mais
champanhe. — Não que eu me compare a Copérnico ou a qualquer
desses outros grandes homens. Estou simplesmente tentando explicar
por que meus colegas estavam condicionados a se voltar contra mim.
Eu devia ter esperado por isso.
O garçom veio apanhar o prato de caviar. Aproveitou para servir
o suco de laranja de Sandler e as frutas frescas de Flyte.
Quando ficou sozinho de novo com Flyte, Sandler perguntou: —
Ainda acredita que sua teoria tinha validade?
— Inteiramente! — exclamou Flyte. — Estou certo: ou, pelo
menos, há uma chance danada de boa que esteja. A história está cheia
de

misteriosos

desaparecimentos

em

massa

para

os

quais

os

historiadores e arqueólogos não podem oferecer explicações viáveis.
Os olhos remelentos do professor ficaram vivos e penetrantes por
sob as fartas sobrancelhas brancas. Inclinou-se sobre a mesa, fixando
Burt Sandler com um olhar hipnĂłtico.
— No dia 10 de dezembro de 1939 — continuou Flyte —, perto
das colinas de Nanquim, um exército de três mil soldados chineses, a
caminho

da

linha

de

frente

para

lutar

contra

os

japoneses,

simplesmente desapareceu sem deixar vestĂ­gios, antes de sequer se
aproximar da batalha. Nem um sĂł corpo foi encontrado. Nem uma
Ăşnica sepultura. Nem uma testemunha. Os historiadores militares

japoneses jamais encontraram registros de terem enfrentado aquela
força chinesa em particular. No campo por onde passaram os soldados
desaparecidos, nenhum camponĂŞs ouviu ruĂ­dos de tiros ou outras
indicações de conflito. Um exército evaporou-se em pleno ar. Em 1711,
durante a Guerra Espanhola de SucessĂŁo, quatro mil soldados partiram
para uma expedição aos Pireneus. Até o último homem desapareceu em
terreno familiar e amistoso, antes mesmo de montarem acampamento
na primeira noite.
Flyte ainda era tĂŁo entusiasmado pelo tema quanto o fora ao
escrever o seu livro, dezessete anos antes. As frutas e o champanhe
estavam esquecidos. Ele fitava Sandler como que o desafiando a
contestar as suas notĂłrias teorias.
—

Numa

escala

maior

—

prosseguiu

o

professor

—,

consideramos as grandes cidades maias de Copán, Piedras Negras,
Palenque, Menché, Seibal e várias outras que foram abandonadas da
noite para o dia. Dezenas de milhares, centenas de milhares de maias
abandonaram as suas casas em 610 d.C, aproximadamente, talvez no
espaço de uma semana, talvez no espaço de um dia. Alguns parecem ter
fugido para o norte, para fundar novas cidades, mas há evidências de
que inĂşmeros milhares simplesmente desapareceram. Tudo isso num
espaço de tempo chocantemente curto. Não se deram ao trabalho de
levar muitas das suas panelas, ferramentas, utensĂ­lios de cozinha...
Meus ilustres colegas dizem que a terra ao redor daquelas cidades
maias ficou infértil, tornando essencial, dessa forma, a mudança do
povo para o norte, onde a terra seria mais produtiva. Se esse grande
êxodo, porém, foi planejado, por que deixar para trás os pertences? Por
que deixar para trás as preciosas sementes de milho? Por que nem um
sĂł sobrevivente voltou para saquear aquelas cidades com os tesouros
abandonados? — Flyte bateu na mesa de leve com o punho cerrado. —
É irracional! Os emigrantes não começam viagens longas e árduas sem
se preparar, sem levar todas as ferramentas que possam ajudá-los.
Além disso, em algumas das casas de Piedras Negras e Seibal existem
evidências de que as famílias partiram depois de preparar refeições

elaboradas... mas sem comĂŞ-las. Isso sem dĂşvida pareceria indicar que
a partida deles fora repentina. Nenhuma teoria atual responde
adequadamente a essas perguntas — exceto a minha, por mais
excĂŞntrica que seja, por mais estranha que seja, por mais impossĂ­vel
que seja.
— Por mais assustadora que seja — acrescentou Sandler.
— Exatamente — concordou Flyte.
O professor afundou de volta na cadeira, sem fĂ´lego. Reparou na
taça de champanhe, agarrou-a, esvaziou-a e lambeu os lábios.
O garçom apareceu e voltou a encher as taças.
Flyte consumiu rapidamente as suas frutas, como que temendo
que o garçom pudesse levar embora os morangos de estufa se eles
permanecessem intactos.
Sandler teve pena do velhote. Era evidente que há muito tempo o
professor não era convidado para uma refeição cara servida numa
atmosfera elegante.
—

Fui acusado de tentar explicar todos os desaparecimentos

misteriosos, dos maias até o juiz Crater e Amelia Earhart, com uma
Ăşnica teoria. Isso foi muito injusto. Jamais mencionei o juiz ou a
desafortunada aviadora. Estou interessado apenas no desaparecimento
em massa inexplicado de seres humanos e de animais. Houve
literalmente centenas deles ao longo da HistĂłria.
O garçom trouxe croissants.
Do lado de fora, um raio cruzou velozmente o céu sombrio e
botou o pé pontiagudo na terra, em outra parte da cidade. A sua
descida flame-jante foi acompanhada de um terrĂ­vel estrondo e um
rugido que ecoou por todo o firmamento.
Sandler falou:
— Se, após a publicação do seu livro, tivesse havido um novo e
espantoso desaparecimento em massa, isso teria dado considerável
credibilidade...
—

Ah — interrompeu Flyte, batendo enfaticamente na mesa

com o dedo esticado —, mas houve tais desaparecimentos!

— Mas sem dúvida teriam sido notícia de primeira página...
—

Tive ciência de dois casos. Pode haver outros. — insistiu

Flyte. — Um deles foi o desaparecimento de grandes quantidades de
espécimes inferiores... especificamente peixes. Foi comentado na
imprensa, mas sem grande destaque. PolĂ­tica, assassinato, sexo e
cabras de duas cabeças são as únicas coisas que os jornais gostam de
noticiar. É preciso ler revistas científicas para saber o que está
realmente acontecendo. Foi por isso que eu soube que, faz oito anos, os
biólogos marinhos notaram um decréscimo dramático da quantidade de
peixes numa das regiões do Pacífico. Na realidade, em algumas espécies
houvera uma redução pela metade. Em certos círculos científicos houve
pânico a princípio, um medo de que a temperatura do oceano pudesse
estar sofrendo uma súbita modificação que fosse despovoar os mares de
todas as espécies, exceto as mais resistentes. Mas esse acabou não
sendo o caso. Aos poucos a vida marinha naquela área — que cobria
centenas de quilômetros quadrados — acabou se reabastecendo. No
fim, ninguém pôde explicar o que acontecera aos milhões e milhões de
criaturas que tinham desaparecido.
—

Poluição — sugeriu Sandler, alternando goles de suco de

laranja e de champanhe.
Passando marmelada num pedaço de croissant, Flyte disse:
— Não, não, não. Não senhor. Teria sido preciso o mais maciço
caso de poluição da água já registrado para causar um despovoamento
tão devastador numa área tão extensa. Um acidente naquela escala não
teria passado despercebido. Mas nĂŁo houve acidentes, nem vazamentos
de Ăłleo, nada. Na verdade, um mero vazamento de Ăłleo nĂŁo poderia ser
responsável; a região afetada e o volume de água eram vastos demais
para isso. E nĂŁo apareceram peixes mortos nas praias. Os peixes
simplesmente desapareceram sem deixar vestĂ­gio.
Burt Sandler estava empolgado. Podia sentir o cheiro do
dinheiro. Tinha palpites sobre alguns livros, e nenhum dos seus
palpites jamais dera errado. (Bem, se nĂŁo contarmos o livro de dietas
escrito pela estrela de cinema que, uma semana antes da data da

publicação, morreu de desnutrição depois de passar seis meses se
alimentando de toranja, mamĂŁo, torradas com passas e cenouras.)
Havia um bestseller certo nessa histĂłria; duzentos ou trezentos mil
exemplares encadernados, talvez até mais; dois milhões em brochuras.
Se ele pudesse persuadir Flyte a popularizar e atualizar o material
acadêmico árido de O inimigo antigo, o professor poderia pagar o seu
prĂłprio champanhe por muitos e muitos anos.
— O senhor falou que teve ciência de dois desaparecimentos em
massa desde a publicação de seu livro — disse Sandler, encorajando-o a
continuar.
—

O outro foi na Ăfrica, em 1980. Entre trĂŞs a quatro mil

nativos de uma tribo — homens, mulheres e crianças — desapareceram
de uma área relativamente remota da Ăfrica Central. Encontraram
vazias as suas aldeias; tinham abandonado todos os seus pertences,
inclusive grandes quantidades de comida. Pareciam simplesmente ter
corrido para dentro do mato. Os Ăşnicos sinais de violĂŞncia eram alguns
pedaços quebrados de cerâmica. Claro que os desaparecimentos em
massa naquela parte do mundo sĂŁo mais tristemente freqĂĽentes do que
costumavam ser, principalmente devido Ă  violĂŞncia polĂ­tica. Os
mercenários cubanos, operando com armamentos soviéticos, vêm
contribuindo para o extermĂ­nio de tribos inteiras que nĂŁo estĂŁo
dispostas a colocar suas identidades Ă©tnicas a reboque dos propĂłsitos
revolucionários. Porém, quando aldeias inteiras são chacinadas para
fins polĂ­ticos, sĂŁo sempre saqueadas, depois queimadas, os corpos
sendo enterrados em covas comunitárias. Nesse caso a que me refiro
nĂŁo houve saques, nem queimadas, nem corpos encontrados. Algumas
semanas mais tarde, os guarda-caças naquele distrito comunicaram um
decréscimo inexplicável na população animal. Ninguém ligou o fato aos
aldeões desaparecidos; considerou-se isso um fenômeno separado.
— Mas o senhor sabe que não é assim.
— Bem, eu desconfio que não é assim — disse Flyte, passando
geléia de morango num último pedaço de croissant.
—

A maior parte desses desaparecimentos parece ocorrer em

áreas remotas — disse Sandler. — O que torna difícil a verificação,
— É. Isso também me foi lançado no rosto. Na verdade, a maior
parte dos incidentes provavelmente ocorre no mar, pois este cobre a
maior parte da Terra. O mar pode ser tĂŁo remoto quanto a Lua, e muita
coisa que ocorre por sob as ondas fica ignorada por nĂłs. No entanto,
não se esqueça dos dois exércitos que mencionei: o chinês e o espanhol.
Esses desaparecimentos ocorreram dentro do contexto da civilização
moderna. E se dezenas de milhares de maias foram vĂ­timas do inimigo
antigo para cuja existĂŞncia criei a minha teoria, entĂŁo aquele foi um
caso em que cidades inteiras, centros de uma civilização, foram
atacadas com ousadia assustadora.
— Acha que poderia acontecer agora, hoje...
— Sem dúvida alguma!
— ...num lugar como Nova York, ou mesmo aqui em Londres?
— Claro que sim! Poderia acontecer virtualmente em qualquer
parte que tenha as escoras geolĂłgicas que descrevi no meu livro.
Ficaram os dois sorvendo champanhe, pensando.
A chuva martelava as janelas com maior fĂşria do que antes.
Sandler nĂŁo tinha certeza de que acreditava nas teorias que
Flyte formulara em O inimigo antigo. Sabia que elas podiam formar a
base de um livro de tremendo sucesso, escrito em linguagem popular,
mas isso nĂŁo significava que tinha que acreditar nelas. NĂŁo queria
realmente acreditar. Acreditar era como abrir a porta do Inferno.
Olhou para Flyte, que estava ajeitando novamente o seu cravo
murcho, e falou:
— Isso me dá arrepios.
— E deve dar — assentiu Flyte. — Deve dar mesmo. O garçom
chegou com ovos, bacon, lingüiças e torradas.

19

Na calada da noite

O hotel era uma fortaleza.
Bryce ficou satisfeito com os preparativos que tinham sido feitos.
Finalmente, após duas horas de trabalho árduo, ele se sentou à
mesa da lanchonete improvisada, sorvendo café sem cafeína numa
caneca branca de cerâmica em que estava gravado o timbre azul do
hotel.
Por volta de uma e meia da madrugada, com a ajuda dos dez
delegados que tinham vindo de Santa Mira, muita coisa tinha sido feita.
Uma das duas salas fora convertida em dormitório; havia vinte colchões
enfileirados no chĂŁo, o suficiente para acomodar qualquer turno da
equipe de investigação, mesmo depois da chegada do pessoal do general
Copperfield. Na outra metade do restaurante, duas mesas compridas
foram armadas numa das extremidades, onde se poderia formar uma
fila de pessoas para se servirem na hora das refeições. A cozinha fora
limpa e posta em ordem. O grande saguĂŁo fora transformado num
enorme centro de operações, com escrivaninhas, algumas improvisadas,
máquinas de escrever, arquivos, quadros de avisos e um grande mapa
de Snowfield.
Além disso, fora feita uma meticulosa inspeção de segurança no
hotel, e foram tomadas medidas para impedir uma invasĂŁo pelo inimigo.
As duas entradas dos fundos — uma através da cozinha, outra através
do saguão — estavam trancadas, e uma segurança adicional fora
conseguida por meio de grandes tábuas enfiadas sob as trancas e
pregadas nas molduras das portas. Bryce mandara tomar essa
precaução extra para evitar o desperdício de guardas nessas entradas.
A porta que dava para as escadas de emergĂŞncia estava lacrada da

mesma forma; nada podia entrar nos andares superiores do hotel e
descer para surpreendĂŞ-los. Agora, somente um par de pequenos
elevadores ligava o térreo aos três andares superiores, e havia dois
guardas de vigia ali. O outro guarda vigiava a entrada principal. Um
grupo de quatro homens se assegurara de que todos os quartos
superiores estavam vazios. Um outro grupo verificara que todas as
janelas do térreo estavam trancadas; a maior parte também estava
fechada pela prĂłpria tinta com que fora pintada. Apesar disso, as
janelas eram o ponto fraco nas fortificações deles.
Se alguma coisa tentar entrar por meio de uma janela, pensou
Bryce, pelo menos teremos o ruĂ­do do vidro se partindo para nos
alertar.
Cuidara-se também de diversos outros detalhes. O corpo
mutilado de Stu Wargle fora temporariamente guardado num quartinho
para material de limpeza adjacente ao saguĂŁo. Bryce montara uma
escala de serviço e criara turnos de doze horas para os próximos três
dias, prevendo a hipĂłtese da crise durar tanto tempo. Finalmente, nĂŁo
pôde pensar em mais nada para ser feito até o alvorecer.
Agora estava sentado sozinho a uma das mesas redondas no
refeitório, sorvendo o café, tentando equacionar os acontecimentos
daquela noite. Os seus pensamentos acabavam voltando sempre para
uma idéia indesejada:
O cérebro dele tinha sumido. O sangue todo fora chupado... até
a Ăşltima maldita gota.
Afastou da cabeça a imagem nauseante do rosto destruído de
Wargle, levantou-se, foi buscar mais café, depois voltou para a mesa.
O hotel estava muito quieto.
Na outra mesa, três dos homens do turno da noite — Miguel
Hernandez, Sam Potter e Henry Wong — jogavam cartas, mas não
falavam muito. Quando falavam, era quase aos sussurros.
O hotel estava muito quieto.
O hotel era uma fortaleza.
O hotel era uma fortaleza, porra.

Mas seria seguro?

Lisa escolheu um colchĂŁo num canto do dormitĂłrio, onde podia
dar as costas a uma parede.
Jenny desdobrou um dos dois cobertores empilhados ao pé do
colchĂŁo e cobriu a mocinha.
— Quer o outro?
— Não — falou Lisa. — Esse chega. Mas é gozado, eu me deitar
toda vestida.
—

Logo as coisas voltarão ao normal — disse ela, mas mal

acabou de falar percebeu como era vazia essa afirmação.
— Vai dormir agora?
— Ainda não.
— Gostaria que viesse — falou Lisa. — Gostaria que viesse se
deitar neste colchĂŁo aqui ao lado.
— Você não está sozinha, meu bem — disse Jenny, afagando o
cabelo da jovem.
Alguns delegados — inclusive Tal Whitman, Gordy Brogan e
Frank Autry — tinham se deitado nos outros colchões. Havia também
trĂŞs guardas fortemente armados que vigiariam todos os demais
durante a noite.
— Eles vão apagar mais um pouco a luz? — indagou Lisa.
— Não. Não podemos nos arriscar a ter escuridão.
— Ótimo. Para mim já estão baixas o suficiente. Você fica comigo
até eu pegar no sono? — pediu Lisa, parecendo bem mais jovem do que
os seus quatorze anos.
— Claro.
— E conversa comigo?
— Claro. Mas vamos conversar baixinho, para não incomodar os
outros.
Jenny se deitou ao lado da irmã, a cabeça apoiada numa das
mĂŁos.
— Quer conversar sobre o quê?

— Não importa. Qualquer coisa. Qualquer coisa menos... esta
noite.
—

Bem, há uma coisa que eu queria lhe perguntar — falou

Jenny. — Não é sobre esta noite, mas é sobre uma coisa que você disse
esta noite. Lembra quando estávamos sentadas no banco em frente à
cadeia, esperando pelo xerife? Lembra que estávamos falando da
mamĂŁe e vocĂŞ disse que ela costumava... contar vantagem a meu
respeito?
Lisa sorriu.
— A filha dela, a médica. Ah, ela tinha tanto orgulho de você,
Jenny. Como acontecera antes, a frase perturbou Jenny.
—

E mamãe nunca me culpou pelo derrame do papai? —

perguntou.
— Por que culparia? — indagou Lisa, franzindo o cenho.
— Bem... porque acho que causei a ele algum sofrimento, numa
certa época. Sofrimento e muita preocupação.
— Você? — perguntou Lisa atônita.
—

E quando o médico do papai não pôde controlar a sua

pressĂŁo alta e ele teve o derrame...
— Segundo a mamãe, a única coisa ruim que você fez em toda a
sua vida foi quando resolveu pintar o gato malhado de preto para o Dia
das Bruxas e manchou de tinta toda a mobĂ­lia da varanda.
Jenny riu, surpresa.
— Havia me esquecido disso. Eu tinha apenas oito anos.
Sorriram uma para a outra, e naquele momento sentiram-se irmĂŁs,
mais do que nunca.
E entĂŁo Lisa perguntou:
—

Por que vocĂŞ acha que mamĂŁe a culpava pela morte do

papai? Foi de causas naturais, nĂŁo foi? Um derrame. Como isso poderia
ser culpa sua?
Jenny hesitou, voltando o pensamento para treze anos atrás,
quando tudo começara. O fato da mãe jamais tê-la culpado pela morte
do pai lhe dava uma sensação profundamente libertadora. Sentiu-se

livre pela primeira vez desde os dezenove anos.
— Jenny?
— Hein?
— Está chorando?
—

Não, estou bem — disse, engolindo as lágrimas. — Se a

mamĂŁe nĂŁo me culpava, entĂŁo eu acho que estava errada me culpando.
SĂł estou feliz, meu hem. Feliz por causa do que vocĂŞ me contou.
— Mas o que foi que você pensou que fez? Se vamos ser boas
irmĂŁs, nĂŁo devemos guardar segredos. Me conte, Jenny.
— É uma longa história, mana. Um dia eu conto para você, mas
nĂŁo agora. Agora quero ouvir falar de vocĂŞ.
Conversaram sobre banalidades durante mais alguns minutos, e
os olhos de Lisa foram ficando cada vez mais pesados.
Jenny ficou pensando nos olhos gentis e encobertos de Bryce
Hammond.
E nos olhos de Jakob e Aida Liebermann, arregalados nas
cabeças cortadas.
E nos olhos do delegado Wargle. Sumidos. Aquelas cavidades
vazias no crânio oco.
Tentou se forçar a não pensar naquelas coisas macabras,
naquele olhar sinistro da morte. Mas os seus pensamentos teimavam
em voltar para aquela imagem de violĂŞncia e morte monstruosas.
Desejou ter alguém para conversar com ela até pegar no sono,
como estava fazendo agora com Lisa. Ia ser uma noite muito
intranqĂĽila.
No quartinho para material de limpeza adjacente ao saguĂŁo e
encostado ao poço do elevador, a luz estava apagada. Não havia janelas.
Havia no quartinho um leve odor de fluidos de limpeza. Pinhosol. Lysol. Lustra-mĂłveis. Cera. Outros artigos de limpeza estavam
estocados nas prateleiras ao longo de uma das paredes.
No canto direito do aposento que ficava mais longe da porta,
havia uma grande pia de metal. A água escorria de uma bica com
defeito... uma gota a cada dez ou doze segundos. Cada gota d'água

atingia a bacia de metal com um ping macio e cavo.
No centro do quarto, tĂŁo amortalhado na completa escuridĂŁo
quanto todo o resto, o corpo sem rosto de Stu Wargle jazia sobre uma
mesa, coberto por um pedaço de pano.
Tudo estava quieto.
Exceto pelo ping monótono da água que gotejava.
Uma expectativa ansiosa pairava no ar.
Frank Autry se encolheu debaixo da coberta, de olhos fechados,
e pensou em Ruth. Ruthie, alta, esguia, de rosto meigo. Ruthie, da voz
doce mas decidida, Ruthie da risada rouca que a maioria das pessoas
achava contagiante, sua mulher há 26 anos. Ela era a única mulher
que já amara; ainda a amava.
Falara com ela ao telefone durante alguns minutos, pouco antes
de vir se deitar. NĂŁo pudera lhe contar muito sobre o que estava
acontecendo... só que havia uma situação de cerco ocorrendo em
Snowfield, que estavam mantendo isso em sigilo enquanto pudessem, e
que, pelo jeito, nĂŁo iria para casa esta noite. Ruthie nĂŁo insistira
pedindo detalhes. Tinha sido uma boa esposa de militar durante os
seus anos no Exército. Ainda era.
Pensar em Ruth era o seu primeiro mecanismo de defesa
psicolĂłgico. Nas horas de tensĂŁo, nas horas de medo, dor e depressĂŁo,
ele simplesmente pensava em Ruth, concentrava-se unicamente nela, e
o mundo árduo desaparecia. Para um homem que passara a maior
parte da vida entregue a trabalhos perigosos, para um homem cuja
profissĂŁo raramente permitia que ele esquecesse que a morte era uma
parte íntima da vida, uma mulher como Ruth era um remédio
indispensável, uma inoculação contra o desespero.

Gordy Brogan estava com medo de fechar os olhos de novo. Cada
vez que os fechara, fora atormentado por visões sangrentas que surgiam
da sua prĂłpria escuridĂŁo particular. Agora jazia sob a coberta, olhos
abertos lixos nas costas de Frank Autry.
Mentalmente, compunha a sua carta de demissĂŁo para Bryce

Hammond, SĂł poderia datilografar e entregar a carta depois que toda
essa histĂłria de Snowfield tivesse acabado. NĂŁo queria deixar os seus
companheiros em meio a uma batalha; não era correto. Poderia até
prestar-lhes alguma ajuda, já que parecia não ser necessário que ele
atirasse em gente. Todavia, tĂŁo logo essa coisa estivesse resolvida, tĂŁo
logo estivessem de volta a Santa Mira, ele escreveria a carta e a
entregaria ao xerife, em mĂŁos.
Não tinha mais dúvidas: o serviço de polícia não era (e jamais
tinha sido) coisa para ele.
Ainda era moço; ainda tinha tempo de trocar de profissão.
Tornara-se um tira em parte como um gesto de rebeldia contra os pais,
pois era a Ăşltima coisa que eles queriam que fosse. Tinham notado o
jeito fantástico que ele tinha para lidar com animais, a sua capacidade
de ganhar a confiança e a amizade de qualquer criatura de quatro
pernas em meio minuto cravado, e tinham desejado que se tornasse
veterinário. Gordy sempre se sentira sufocado pela afeição infatigável da
mĂŁe e do pai, e quando eles o tinham incentivado para uma carreira na
medicina veterinária, ele rejeitara a possibilidade. Agora via que eles
estavam com a razĂŁo e que sĂł queriam o que era melhor para ele. Na
verdade, bem no fundo, sempre soubera que eles estavam certos. Ele
nascera para curar, nĂŁo para manter a ordem.
Também se sentira atraído para o uniforme e o distintivo porque
ser um tira lhe parecera uma boa forma de provar a sua masculinidade.
A despeito de seu tamanho e mĂşsculos impressionantes, a despeito do
seu interesse agudo por mulheres, sempre acreditara que os outros o
consideravam andrĂłgino. Quando garoto, nunca se interessara por
esportes, que era a obsessão dos seus contemporâneos masculinos. E
aquela conversa Interminável sobre carros velozes simplesmente o
entediava. Os seus interesses eram outros, meio afeminados aos olhos
de alguns. Embora o seu talento fosse apenas médio, adorava pintar.
Tocava trompa. A natureza o fascinava, era um ávido observador de
pássaros. A sua aversão pela violência não fora adquirida na vida
adulta; mesmo em criança, evitara confrontos. O seu pacifismo, quando

considerado junto com a sua reticência na companhia das moças, faziao parecer, pelo menos aos próprios olhos, um pouco menos do que
másculo. Porém agora, finalmente, ele viu que não precisava provar
coisa alguma.
Iria para a faculdade, tomar-se-ia um veterinário. Ficaria
satisfeito. Os pais também ficariam felizes. A sua vida entraria nos eixos
novamente.
Fechou

os

olhos,

suspirando,

profundamente,

procurando

dormir. Porém, vindas da escuridão, surgiam imagens apavorantes de
cabeças cortadas de cães e gatos, imagens arrepiantes de animais
esquartejados e torturados.
Abriu depressa os olhos, ofegando.
O que acontecera a todos os animais de estimação em Snowfield?

O quartinho de material de limpeza, adjacente ao saguĂŁo.
Sem janelas, sem luz.
O ping monótono da água caindo na pia de metal tinha parado.
Mas agora nĂŁo havia silĂŞncio. Algo se mexia na escuridĂŁo. Emitia
um ruĂ­do macio, molhado, sorrateiro, enquanto deslizava pelo quarto
escuro como breu.
Jenny ainda nĂŁo estava pronta para dormir. Foi para a
lanchonete, serviu-se de uma xícara de café e se reuniu ao xerife numa
mesa de canto.
— Lisa está dormindo? — perguntou ele.
— Como uma pedra.
—

E você, como está? Isso deve ser muito difícil para você.

Todos os seus vizinhos, amigos...
— É difícil lamentar do modo adequado — disse ela. — Estou
meio entorpecida. Se me permitisse reagir a todas as mortes que me
afetaram, estaria um bagaço. Então, mantenho as minhas emoções
entorpecidas.
— É uma reação sadia e normal. É assim que todos estamos
lidando com a situação.

Beberam o café, papearam um pouco. E então:
— Casada? — perguntou ele.
— Não. E você?
— Fui.
— Divorciado?
— Ela morreu.
— Ah, Jesus, é claro. Li a respeito. Desculpe. Um ano atrás, não
foi? Acidente de trânsito?
— Um caminhão desgovernado.
Ela estava olhando nos olhos dele e achou que estavam
nublados, um pouco menos azuis do que antes.
— Como vai indo o seu filho?
— Ainda está em coma. Acho que nunca vai sair.
— Sinto muito, Bryce, sinto de verdade.
Ele envolveu a caneca com as mãos e ficou fitando o café.
— Do jeito que está, será uma benção, na verdade, se finalmente
ele se for. Eu fiquei entorpecido durante algum tempo. NĂŁo sentia nada,
não só emocional, mas fisicamente também. Houve uma vez em que
cortei o dedo quando estava descascando uma laranja; sangrei por toda
a cozinha, e até comi uns pedaços de laranja com sangue antes de
reparar que havia algo errado. Mesmo assim nĂŁo senti nenhuma dor.
Ultimamente , estou começando a compreender, a aceitar. — Ergueu os
olhos e encarou Jenny. — O estranho é que, desde que cheguei aqui em
Snowfield, as coisas nĂŁo estĂŁo mais cinzentas.
— Cinzentas?
— Há muito tempo que todas as coisas perderam o colorido, tem
sido tudo cinzento. Mas esta noite...foi o contrário. Esta noite houve
tanta

emoção,

tanta

tensĂŁo,

tanto

medo,

que

tudo

ficou

mĂŁe,

do

efeito

extraordinariamente vĂ­vido.
EntĂŁo

Jenny

falou

da

morte

da

surpreendentemente forte que tivera sobre ela, a despeito dos doze anos
de separação parcial que deviam ter amortecido o golpe.
Novamente, Jenny ficou impressionada com a capacidade de

Bryce Hammond de fazê-la ficar à vontade. Pareciam conhecer-se há
anos.
Ela até mesmo se pegou contando a ele os erros que cometera
aos dezoito e dezenove anos, o seu comportamento ingênuo e cabeçudo
que tanta dor causara aos pais. No final do seu primeiro ano na
faculdade, ela viera a conhecer um homem que a cativara. Ele fazia pósgraduação, chamava-se Campbell Hudson, apelidado de Cam, cinco
anos mais velho do que ela. Fora conquistada pela atenção dele, seu
charme, sua corte apaixonada. Até então, tivera uma vida protegida;
nunca tivera namorado firme, nem mesmo era de sair muito. Era um
alvo fácil. Apaixonando-se por Cam Hudson, ela se tornou não apenas
sua amante, mas sua aluna e discĂ­pula embevecida e praticamente sua
escrava dedicada.
— Não consigo imaginá-la submetendo-se a alguém — disse
Bryce.
— Eu era jovem.
— Sempre uma desculpa aceitável.
Ela fora viver com Cam, sem tomar as devidas precauções para
esconder da mĂŁe e do pai o seu pecado. E eles achavam mesmo que era
pecado. Depois, ela decidira — ou melhor, deixara que Cam decidisse
por ela — que abandonaria os estudos e iria trabalhar como garçonete
para ajudá-lo a se manter enquanto ele concluía o seu mestrado e
doutorado.
Depois de aprisionada no cenário servil de Cam Hudson, passou,
aos poucos, a achá-lo menos atencioso e menos encantador do que fora
no passado. Descobriu que ele tinha um gĂŞnio violento. O pai dela
morreu quando ela ainda estava vivendo com Cam, e, no enterro, ela
sentiu que a mĂŁe a culpava pelo falecimento prematuro. Contando um
mĂŞs exato do dia em que o pai fora enterrado, descobriu que estava
grávida. Já estava grávida quando ele morrera. Cam ficou furioso e
insistiu num aborto rápido. Ela pediu um dia para pensar no assunto,
mas ele ficou enraivecido até mesmo com um atraso de 24 horas.
Espancou-a tĂŁo brutalmente que ela abortou. Tudo terminou entĂŁo. A

tolice terminou, ela amadureceu de um dia para o outro... embora o seu
amadurecimento abrupto tivesse vindo tarde demais para agradar ao
pai.
—

Desde então — contou a Bryce — passei a minha vida

trabalhando duro — talvez duro demais — para provar à minha mãe
que estava arrependida e que era, afinal de contas, digna do seu amor.
Trabalhei nos fins de semana, recusei inĂşmeros convites para festas,
cortei as férias na maior parte dos últimos doze anos, tudo com o
propósito de me aperfeiçoar. Não visitei a família tanto quanto devia.
Não podia enfrentar a minha mãe. Podia ler a acusação em seus olhos.
E entĂŁo, hoje Ă  noite, soube por Lisa a coisa mais espantosa.
— A sua mãe jamais a culpou — disse Bryce, exibindo aquela
sensibilidade e percepção fantásticas que ela já vira nele antes.
— Acertou! —disse Jenny. — Ela nunca me acusou de nada.
— Provavelmente tinha até orgulho de você.
— Acertou de novo. Nunca me considerou culpada pela morte
de papai. Eu é que vivia me culpando. A acusação que eu achava que
via nos olhos dela era apenas um reflexo dos meus prĂłprios
sentimentos de culpa. — Jenny riu baixinho e amargamente, sacudindo
a cabeça. — Seria engraçado se não fosse tão triste.
Nos

olhos

de

Bryce

Hammond

ela

viu

a

compaixĂŁo

e

compreensĂŁo que vinha buscando desde o enterro do pai.
— Somos muito parecidos em algumas coisas, você e eu. Acho
que ambos temos complexo de mártir.
— Não tenho mais — disse ela. — A vida é curta demais. Isso é
algo que acabei aprendendo hoje. De agora em diante vou viver, viver de
verdade... se Snowfield deixar.
— Vamos vencer essa situação — disse ele.
— Gostaria de ter certeza.
— Sabe — falou Bryce —, ter alguma coisa pela qual esperar vai
nos ajudar a vencer. EntĂŁo, que tal me dar uma coisa pela qual
esperar?
— Hein?

—

Um encontro. — Ele se inclinou para a frente. O cabelo

espesso e avermelhado lhe caiu nos olhos. — Ristorante Gervasio, em
Santa Mira. Minestrone. Camarões na manteiga e alho. Uma boa vitela,
quem sabe um filé. Acompanhamento de massa. Eles fazem um
maravilhoso vermicelli al pesto. Um bom vinho.
Ela abriu um sorriso.
— Eu adoraria.
— Esqueci de falar no pão de alho.
— Ah, adoro pão de alho.
— Zabaglione de sobremesa.
— Vão ter que carregar a gente para fora — disse ela.
— Vou providenciar os carrinhos de mão.
Papearam por mais alguns minutos, aliviando a tensĂŁo; depois,
finalmente, ambos se sentiram prontos para dormir.
Ping.
No quartinho de limpeza escuro onde o corpo de Stu Wargle jazia
sobre uma mesa, a água recomeçara a pingar na pia de metal.
Ping,
Algo continuava a se mover sorrateiramente na escuridĂŁo,
rodeando e rodeando a mesa. Fazia um ruĂ­do untuoso, molhado, de
quem deslizava na lama.
Aquele nĂŁo era o Ăşnico som no aposento; havia muitos outros
ruĂ­dos, Iodos baixos e suaves. O arfar de um cĂŁo cansado. O sibilar de
um gato zangado. Um riso tranqĂĽilo, cristalino, persistente; o riso de
uma criança pequena. Depois, o choramingar doloroso de uma mulher.
Um gemido. D in suspiro. O gorjeio de um pardal, emitido com clareza,
mas baixinho, para não chamar a atenção dos guardas colocados no
saguão. O chocalhar de uma cascavel. O zumbido de mangangás. O
zunido mais estridente e sinistro das vespas. Um cĂŁo rosnando.
Os ruídos cessaram tão abruptamente quanto tinham começado.
O silĂŞncio retornou.
O silĂŞncio perdurou, total, exceto pelas notas regularmente
espaçada da água que caía, durante cerca de um minuto.

Ping.
Houve um farfalhar de pano no quarto sem luz. A mortalha que
cobria o cadáver de Wargle. A mortalha escorregara de cima do morto e
caira ao chĂŁo.
Um deslizar, de novo.
E um ruído de madeira seca se lascando. Um ruído frágil,
abafado, mas violento. Como um osso se partindo, vivamente.
Novamente o silĂŞncio.
Ping.
SilĂŞncio.
Ping. Ping. Ping.

Enquanto Tal Whitman esperava pelo sono, pensou no medo.
Esta era a palavra-chave; era a emoção básica que o forjara. O medo. A
sua vida era uma longa e vigorosa negação do medo, uma refutação da
sua existĂŞncia. Ele se recusava a ser afetado (e humilhado e motivado)
pelo medo. NĂŁo admitia que coisa alguma pudesse lhe dar medo. Bem
cedo, na vida, a dura experiência lhe ensinara que até o mero admitir
do medo poderia expĂ´-lo ao seu apetite voraz.
Ele nascera e se criara no Harlem, onde o medo estava em toda a
parte; medo de quadrilhas de rua, medo dos viciados, medo da violĂŞncia
sem sentido, medo da privação econômica, medo de ser excluído do
fluxo da vida. Naqueles cortiços, naquelas ruas cinzentas, o medo
esperava para engolir vocĂŞ no instante em que vocĂŞ lhe fazia o mais leve
sinal de reconhecimento.
Na infância, não estivera seguro nem mesmo no apartamento
que dividia com a mĂŁe, um irmĂŁo e trĂŞs irmĂŁs. O pai de Tal fora um
sociopata, um espancador de mulheres que aparecia em casa uma ou
duas vezes por mês pelo simples prazer de bater na mulher até deixá-la
sem sentidos e de aterrorizar os filhos. Claro que a mĂŁe nĂŁo era muito
melhor do que o velho. Bebia vinho demais, fumava baseados demais e
era quase tão implacável com os filhos quanto o pai.
Quando Tal estava com nove anos, numa das raras noites em

que o pai estava em casa, houvera um incêndio no cortiço. Tal fora o
Ăşnico sobrevivente da famĂ­lia. A mĂŁe e o pai tinham morrido na cama,
sufocados pela fumaça enquanto dormiam. O irmão de Tal, Oliver, e as
suas irmãs (Heddy, Louisa e o bebê Francesca) também se foram, e
agora, tantos anos mais tarde, às vezes era até difícil acreditar que
tinham realmente existido.
Depois do incĂŞndio, ele foi morar com a irmĂŁ da mĂŁe, tia
Rebecca. Ela também morava no Harlem. Becky não bebia. Não
consumia drogas. NĂŁo tinha filhos, mas tinha um emprego, freqĂĽentava
a escola noturna, acreditava na auto-suficiĂŞncia e era cheia de ideais.
Muitas vezes dizia a Tal que nada havia a temer exceto o PrĂłprio Medo,
e que o PrĂłprio Medo era como o bicho-papĂŁo, apenas uma sombra, nĂŁo
sendo digno que se tivesse medo dele. "Deus lhe deu saĂşde, Talbert, e
uma boa cabeça. Se você puser tudo a perder, a culpa será só sua, de
mais ninguém", dizia ela.
Com o amor, a disciplina e a orientação da tia Becky, o jovem
Talbert acabara por se convencer de que era virtualmente invencĂ­vel.
Não tinha medo de coisa alguma na vida; também não tinha medo de
morrer.
Fora por esse motivo que, anos mais tarde, depois de sobreviver
ao tiroteio no mercado 7-Eleven, em Santa Mira, ele pudera dizer a
Bryce Hammond que a coisa fora uma sopa.
Agora, pela primeira vez em muitos, muitos anos, ele se
deparava com um nĂł de medo.
Tal pensou em Stu Wargle, e o nĂł de medo ficou mais apertado,
espremendo as suas entranhas.
Os olhos tinham sumido completamente do crânio.
O PrĂłprio Medo.
Mas esse bicho-papĂŁo era real.
Faltando meio ano para o seu 31º. aniversário, Tal Whitman
estava descobrindo que ainda podia sentir medo, nĂŁo importava o quĂŁo
veementemente o negasse. O seu destemor muito o ajudara na vida.
Porém, opondo-se a tudo aquilo em que acreditara antes, dava-se conta

agora de que havia vezes em que ter medo era simplesmente ser
inteligente.
Pouco antes do alvorecer, Lisa acordou de um pesadelo de que
nĂŁo conseguia se lembrar.
Olhou para Jenny e os outros que estavam dormindo, depois
voltou-se para as janelas. Do lado de fora, a Skyline Road estava
enganadora-mente tranqĂĽila ao se aproximar o fim da noite.
Lisa sentiu vontade de urinar. Levantou-se e caminhou sem
fazer barulho por entre duas filas de colchões. Na abertura em arco da
sala, sorriu para o guarda, que piscou para ela.
Havia um homem no refeitĂłrio, folheando uma revista.
No saguĂŁo havia dois guardas postados junto Ă s portas dos
elevadores. As duas portas enceradas de carvalho na entrada do hotel,
cada uma com um vidro oval chanfrado no centro, estavam trancadas,
mas havia uni terceiro guarda postado junto a elas. Ele segurava uma
espingarda e espiava para fora através de um dos vidros ovais, vigiando
o principal caminho que dava para o prédio.
Um quarto homem estava no saguĂŁo. Lisa fora apresentada a ele
antes um delegado calvo de rosto vermelho chamado Fred Turpner.
Estava sentado Ă  maior das mesas, cuidando do telefone, que devia ter
tocado com freqüência durante a noite, pois havia duas páginas de
papel almaço elidas de recados. Quando Lisa ia passando, o telefone
tocou de novo. Fred ergueu uma das mãos para cumprimentá-la, depois
tirou o fone do gancho.
Lisa foi direto para os banheiros, que ficavam num canto do
saguĂŁo:

GATINHAS DA NEVE

GATĂ•ES DA NEVE

Aquela jocosidade nĂŁo combinava com o restante do Hilltop Inn.
Ela atravessou a porta marcada

GATINHAS DA NEVE.

OS banheiros

tinham sido considerados territĂłrio seguro porque nĂŁo tinham janelas e
podiam ser alcançados somente através do saguão, onde sempre havia

guardas. O banheiro feminino era grande e limpo, com quatro
reservados e pia. Os pisos e paredes eram de cerâmica branca
margeados por ladrilhos azul-escuros nas beiradas do chĂŁo e no alto
das paredes.
Lisa usou o primeiro reservado e depois a pia mais prĂłxima.
Quando terminou de lavar as mĂŁos e ergueu os olhos para o espelho
que encimava a pia, ela o viu. Ele. O delegado morto. Wargle.
Estava parado atrás dela, a uns três metros de distância, no
meio do aposento. De sorriso aberto.
Ela girou o corpo, certa de que era alguma falha no espelho, um
truque qualquer do espelho. Claro que ele nĂŁo estava ali.
Mas ele estava ali. Nu. Sorrindo obscenamente.
O seu rosto fora recomposto. As faces gordas, a boca de lábios
grossos e aparĂŞncia gordurosa, o nariz de porco, os olhinhos furtivos. A
carne estava inteira de novo, como que por mágica.
ImpossĂ­vel.
Antes que Lisa pudesse reagir, Wargle se interpĂ´s entre ela e a
porta. Seus pés descalços batiam surdamente no chão de ladrilhos.
Alguém estava batendo com força na porta.
Wargle parecia nĂŁo estar ouvindo.
Batendo e batendo e batendo...
Por que simplesmente nĂŁo abriam a porta e entravam?
Wargle estendeu os braços e fez sinais de venha-a-mim com as
mĂŁos. Sempre sorrindo abertamente.
Desde o momento em que o vira, Lisa nĂŁo tinha gostado de
Wargle. Percebera que ele sempre olhava para ela quando pensava que
ela estava olhando para outro lado, e a expressĂŁo nos seus olhos era
perturbadora.
— Venha cá, tesãozinho — disse ele.
Ela olhou para a porta e se deu conta de que não havia ninguém
batendo nela. Ela estava escutando apenas o bater frenético de seu
próprio coração.
Wargle lambeu os lábios.

Lisa ofegou subitamente, surpreendendo a si mesma. Estivera
tĂŁo totalmente paralisada pela volta do homem dentre os mortos, que
tinha se esquecido de respirar.
— Venha cá, sua putinha.
Ela

tentou

gritar.

NĂŁo

conseguiu.

Wargle

se

tocou,

obscenamente.
— Aposto que você está querendo um bocado disto aqui, não é?
— falou, sorriso aberto, os lábios úmidos, constantemente lambidos.
Mais uma vez, ela tentou gritar. Mais uma vez, nĂŁo conseguiu.
Mal conseguia arrancar cada respiração dos pulmões que ardiam.
Ele nĂŁo Ă© real, disse consigo mesma.
Se fechasse os olhos por alguns segundos, apertando-os bem, e
contasse até dez, ele não estaria aqui quando ela olhasse de novo.
— Putinha.
Ele era uma ilusão. Talvez até parte de um sonho. Quem sabe
sua vinda ao banheiro nĂŁo era apenas outra parte do seu pesadelo?
Mas ela nĂŁo pĂ´s Ă  prova a sua teoria. NĂŁo fechou os olhos e
contou até dez. Não teve coragem.
Wargle deu um casso na sua direção, ainda se bolinando.
Ele nĂŁo Ă© real. E uma ilusĂŁo.
Mais um passo.
Ele nĂŁo Ă© real Ă© uma ilusĂŁo.
— Venha cá, tesãozinho, deixe eu mamar nesses seus peitinhos.
Ele nĂŁo Ă© real, Ă© uma ilusĂŁo, ele nĂŁo Ă© real, e uma...
— Você vai adorar, tesãozinho. Ela recuou, afastando-se dele.
— Corpinho engraçadinho que você tem, tesãozinho. Muito
engraçadinho.
Ele continuou a avançar.
A luz agora estava por trás dele. A sua sombra caiu sobre ela. Os
fantasmas não lançavam sombras.
A despeito da sua risada e de seu sorriso fixo, a voz dele foi
ficando cada vez mais áspera, mais irritada.
— Sua piranha estúpida. Vou usar você pra valer. Mas pra valer

mesmo. Melhor do que qualquer daqueles garotos de ginásio. Você não
vai conseguir andar direito por uma semana quando eu acabar com
vocĂŞ, tesĂŁozinho.
A sombra dele a engolira completamente.
Com o coração batendo com tanta força que parecia querer sair
do peito, Lisa recuou mais, e mais — mas logo colidiu com a parede.
Estava encurralada.
Olhou ao seu redor Ă  procura de uma arma, algo que pelo menos
pudesse jogar em cima dele. NĂŁo havia nada.
Estava cada vez mais difĂ­cil respirar. Ela se sentia tonta e fraca.
Ele não é real. É uma ilusão.
Mas ela nĂŁo podia mais se iludir: nĂŁo podia mais acreditar em
sonhos.
Wargle parou quase em cima dela. Olhou-a fixamente. Oscilou
de um lado para o outro e balançou-se para a frente e para trás nas
plantas dos pés descalços, como se alguma música louca-sombriaparticular estivesse crescendo e diminuindo e crescendo dentro dele.
Fechou os olhos odiosos, oscilando sonhadoramente.
Passou-se um segundo.
O que ele está fazendo!
Dois segundos, trĂŞs, seis, dez.
Ainda assim, os olhos dele permaneciam fechados.
Ela se sentiu transportada num redemoinho de histeria.
Será que poderia se esgueirar e passar por ele? Enquanto estava
de olhos fechados? Jesus. NĂŁo. Ele estava perto demais. Para escapar,
teria que roçar nele. Jesus. Roçar nele? Não. Deus, aquilo faria com ele
saísse do transe, ou fosse lá o que era aquilo, e ele a agarraria, e as
suas mĂŁos seriam frias, mortalmente frias. Ela nĂŁo conseguiria se
forçar a tocar nele. Não.
Então ela notou que algo estranho estava acontecendo por trás
dos olhos dele. Movimentos sinuosos... As pálpebras não mais se
ajustavam Ă  curvatura dos globos oculares.
Ele abriu os olhos.

Eles tinham sumido.
Por trás das pálpebras havia apenas cavidades negras e vazias.
Ela finalmente gritou, mas o grito que emitiu ficava além da
capacidade humana de ouvir. A respiração saiu do seu corpo numa
velocidade de trem expresso, e ela sentiu a garganta se mover
convulsivamente, mas nĂŁo saiu absolutamente som algum que pudesse
trazer auxĂ­lio.
Os olhos dele.
Os olhos vazios dele.
Ela estava certa de que aquelas órbitas vazias ainda podiam vêla. Sugavam-na com seu vácuo.
O sorriso largo nĂŁo desaparecera.
— Gostosa — falou.
Ela gritava o seu grito silencioso.
— Gostosa. Me beija, gostosa.
De alguma forma, escuras como a meia-noite, aquelas cavidades
orladas de ossos ainda cintilavam com uma percepção malévola.
— Me beija.
NĂŁo.
Deixe que eu morra, ela rezava. Deus, por favor, deixe que eu
morra primeiro.
— Quero chupar a sua língua suculenta - disse Wargle
ansiosamente, dando uma risadinha.
Estendeu a mĂŁo para ela.
Ela apertou o corpo contra a parede imĂłvel.
Wargle tocou-lhe a face.
Ela se crispou e tentou se afastar.
As pontas dos dedos dele correram de leve pela sua face.
A mĂŁo dele estava fria e escorregadia.
Ela escutou um gemido fraco, seco, sinistro. - Uh-uh-uh-uh
uhhhhhh -, e percebeu que estava escutando a si mesma.
Sentiu um cheiro estranho, acre. O hálito dele? O hálito fétido de
um morto, expelido de pulmões apodrecidos? Acaso os mortos-vivos

respiravam? O fedor era leve, mas insuportável. Ela teve ânsias de
vômito. Ele baixou o rosto na direção do rosto dela.
Ela fitou os seus olhos carcomidos, a escuridĂŁo hedionda para
além deles, e era como espiar por duas portinholas para as câmaras
mais profundas do Inferno.
A mĂŁo dele apertou-lhe a garganta.
Ele falou:
— Me dá...
Ela inspirou com dificuldade.
— ...um beijinho.
Ela expirou, soltando outro grito.
SĂł que desta vez o grito nĂŁo foi mudo. Desta vez ela emitiu um
som que parecia alto o bastante para estilhaçar os espelhos do banheiro
e lascar os ladrilhos de cerâmica.
Enquanto o rosto morto e sem olhos de Wargle baixava
lentamente na sua direção, enquanto ela escutava o próprio grito
ecoando pelas paredes, o redemoinho de histeria no qual estava girando
tornou um redemoinho de escuridĂŁo, e ela foi atraĂ­da para o oblĂ­vio.

20

Ladrões de corpos

No saguão do Hilltop Inn, num sofá cor de ferrugem, encostado à
parede que ficava mais longe dos banheiros, Jennifer Paige sentava-se
ao lado da irmã, abraçando-a.
Bryce estava agachado na frente do sofá, segurando a mão de
Lisa, que ele nĂŁo conseguia aquecer nĂŁo importa o quanto a apertasse e

esfregasse.
Excetuando os guardas de serviço, todo mundo estava reunido
atrás de Bryce, formando um semicírculo na frente do sofá.
Lisa tinha uma aparĂŞncia terrĂ­vel. Seus olhos estavam fundos,
velados, atormentados. O rosto, tĂŁo branco quanto o chĂŁo de ladrilhos
no banheiro feminino, onde a haviam encontrado inconsciente.
— Stu Wargle está morto — assegurou-lhe Bryce, mais uma vez.
—

Ele queria que eu o b-b-beijasse — repetia a garota,

insistindo resolutamente na sua histĂłria absurda.
— Não havia mais ninguém no banheiro, só você — disse Bryce.
— Só você, Lisa.
— Ele estava lá — insistiu a jovem.
— Viemos correndo logo que você gritou. Você estava sozinha...
— Ele estava lá.
— ...caída no chão, no canto, desmaiada.
— Ele estava lá.
—

O corpo dele está no quartinho de limpeza — disse Bryce

suavemente, apertando-lhe a mão. — Nós o colocamos lá antes. Não
está lembrada?
— Ainda está lá? — perguntou a garota. — Seria melhor vocês
darem uma olhada.
Bryce e Jenny trocaram olhares. Ela assentiu. Lembrando-se de
que qualquer coisa era possível esta noite, Bryce se pôs de pé, soltando
a mão da moça. Dirigiu-se para o quartinho de material de limpeza.
— Tal?
— Sim?
— Venha comigo. Tal sacou o revólver.
Tirando a prĂłpria arma do coldre, Bryce falou:
— Os outros ficam aqui.
Com Tal ao seu lado, Bryce cruzou o saguão até a porta do
quartinho e parou diante dela.
— Não acho que ela seja do tipo que inventa histórias — disse
Tal.

— Sei que não é.
Bryce pensou em como o corpo de Paul Henderson tinha sumido
da subdelegacia. Pombas, pensou, aquilo era muito diferente da
situação atual. O corpo de Paul estava acessível, sem ninguém a vigiálo. Mas ninguém poderia ter chegado ao corpo de Wargle — e ele não
poderia ter se levantado e caminhado sozinho — sem ter sido visto por
um dos três delegados postados no saguão. No entanto, ninguém e
nada fora visto.
Bryce dirigiu-se para a esquerda da porta e fez sinal a Tal para ir
para a direita.
Prestaram atenção durante vários segundos. O hotel estava
silencioso. NĂŁo vinha som algum de dentro do quartinho.
Mantendo o corpo longe da abertura da porta, Bryce se inclinou
para diante e estendeu a mão para a maçaneta, girou-a lenta e
silenciosamente até onde foi possível. Hesitou. Lançou um olhar a Tal,
que indicou estar pronto. Bryce inspirou fundo, escancarou a porta
para dentro e deu um salto para trás, para se proteger.
Nada saiu correndo do quarto Ă s escuras.
Tal foi se movendo devagarinho para a ombreira da porta,
estendeu a mĂŁo para dentro do quarto, tateou em busca do interruptor,
encontrou-o.
Bryce estava agachado, Ă  espera. TĂŁo logo a luz se acendeu, ele
se arremeteu para dentro, o revĂłlver apontado para a frente.
A luz fluorescente nua jorrava dos painéis gêmeos do teto e
cintilava nas beiradas da pia de metal e nas garrafas e latas de material
de limpeza.
A mortalha em que tinham enrolado o corpo jazia amontoada no
chĂŁo, ao lado da mesa.
O cadáver de Wargle desaparecera.

Deke Coover era o guarda que estava de vigia nas portas de
entrada do hotel. NĂŁo ajudou muito a Bryce. Passara a maior parte do

tempo olhando para fora, para a Skyline Road, de costas para o saguĂŁo.
Alguém poderia ter retirado o corpo de Wargle sem que Coover tomasse
conhecimento.
— O senhor mandou que eu vigiasse a entrada da frente, xerife
— falou Deke. — Contanto que não estivesse cantando, Wargle poderia
ter saído dali sozinho, dançando e agitando uma bandeira em cada
mão, e não teria chamado a minha atenção.
Os dois homens postados junto aos elevadores, perto do
quartinho de limpeza, eram Kelly MacHeath e Donny Jessup. Eram dois
dos homens mais moços de Bryce, com vinte e poucos anos, mas ambos
capazes, dignos de confiança e razoavelmente experientes.
MacHeath, um sujeito louro e corpulento, de pescoço taurino e
ombros cheios, balançou a cabeça e falou:
— Ninguém entrou ou saiu daquele quartinho a noite toda.
—

Ninguém — concordou Jessup. Era um homem magro e

musculoso, de cabelos crespos e olhos cor de chá. — A gente teria visto.
— A porta é logo ali — observou MacHeath.
— E passamos a noite toda aqui.
— O senhor nos conhece, xerife — disse MacHeath.
— Sabe que não somos relaxados — disse Jessup.
— Quando estamos de serviço...
— ...estamos de serviço — concluiu Jessup.
— Porra — exclamou Bryce —, o corpo de Wargle sumiu. Não
saiu de cima da mesa e atravessou a parede!
— Mas também não saiu de cima da mesa e atravessou aquela
porta — insistiu MacHeath.
— Senhor — disse Jessup —, Wargle estava morto. Eu mesmo
nĂŁo vi o corpo, mas, pelo que me contaram, estava bem morto. Os
mortos ficam onde a gente os bota.
—

Não necessariamente — falou Bryce. — Não nesta cidade.

NĂŁo esta noite.
No quartinho de material de limpeza, junto com Tal, Bryce falou:
— Não há outra saída aqui, exceto a porta. Caminharam

lentamente pelo quarto, examinando-o.
A bica com defeito deixou cair uma gota d'água que atingiu a
bacia da pia de metal com um ping suave.
— A saída de aquecimento — disse Tal, apontando para uma
grade numa das paredes, diretamente sob o teto. — O que você acha?
— Está falando sério?
— É melhor a gente dar uma olhada.
— Não tem tamanho para passar um homem.
— Lembra do roubo na Joalheria Krybinsky?
—

Como vou esquecer? Ainda nĂŁo foi resolvido, como Alex

Krybinsky fica me lembrando cada vez que nos encontramos.
—

O sujeito entrou no porĂŁo de Krybinsky por uma janela

destrancada do tamanhinho daquela grade.
Bryce sabia, como o sabia qualquer tira que lidava com roubo e
invasĂŁo de domicĂ­lio, que um homem de porte comum nĂŁo precisava de
mais que uma abertura surpreendentemente pequena para obter acesso
a um edifício. Qualquer buraco em que coubesse a cabeça de um
homem também tinha tamanho suficiente para deixar passar todo o seu
corpo. Os ombros eram mais magros do que a cabeça, é claro, mas
podiam ser jogados para a frente ou contorcidos de forma a poderem
passar; igualmente a largura dos quadris era quase suficientemente
maleável para seguir o mesmo caminho dos ombros. Mas Stu Wargle
nĂŁo tinha sido um homem de porte comum.
—

A barriga de Stu teria entalado ali como uma rolha numa

garrafa — disse Bryce.
Apesar disso, ele pegou um banquinho que estava num canto,
subiu nele e foi olhar mais de perto a saĂ­da em questĂŁo.
— A grade não é presa por parafusos — disse ele a Tal. — É um
modelo de encaixe, portanto poderia ter sido recolocada pelo lado de
dentro do conduto, depois de Wargle ter passado, desde que ele tivesse
entrado com os pés em primeiro lugar.
Retirou a grade da parede.
Tal passou-lhe uma lanterna elétrica.

Bryce dirigiu o facho de luz para o conduto de aquecimento
escuro e franziu a testa. A passagem estreita de metal percorria apenas
uma curta distância antes de dar uma guinada abrupta de noventa
graus para cima.
Desligando a lanterna e passando-a a Tal, Bryce falou:
—

ImpossĂ­vel. Para passar por aqui, Wargle nĂŁo poderia ser

maior do que Sammy Davis Jr., e teria que ser tĂŁo flexĂ­vel quanto o
homem-borracha de um parque de diversões.

Frank Autry se aproximou de Bryce Hammond na mesa central
de operações no meio do saguão, onde o xerife estava sentado, lendo as
mensagens que tinham chegado durante a noite.
— Senhor, tem uma coisa que precisa saber sobre Wargle. Bryce
ergueu os olhos.
— E o que é?
— Bem... não gosto de ter que falar mal dos mortos...
—

Nenhum de nós gostava mesmo dele — disse Bryce, sem

meias palavras. — Qualquer tentativa de honrar a sua memória seria
hipĂłcrita. Portanto, se souber de alguma coisa que possa me ajudar,
Frank, não faça cerimônia.
Frank sorriu.
— O senhor se teria dado muito bem no Exército. — Sentou-se
na beirada da mesa. — Na noite passada, quando Wargle e eu
estávamos desmontando o rádio lá na subdelegacia, ele fez vários
comentários nojentos sobre a dra. Paige e Lisa.
— Papo de sexo?
— É.
Frank contou a conversa que tivera com Wargle.
— Santo Deus — disse Bryce, sacudindo a cabeça.
— O que ele falou sobre a garota foi o que mais me incomodou
— disse Frank. — Wargle não estava brincando quando falou sobre,
quem sabe, dar uma prensa nela se a oportunidade se apresentasse.
NĂŁo creio que tivesse ido aos limites do estupro, mas era capaz de dar

uma prensa das grandes e usar a sua autoridade, o seu distintivo, para
coagi-la. NĂŁo creio que aquela garota pudesse ser coagida, tem garra
demais. Mas acho que Wargle poderia tentar. — O xerife bateu com o
lápis na mesa, fitando o ar, pensativo. — Mas Lisa não estava sabendo
disso — continuou Frank.
— Será que não podia ter escutado a conversa de vocês?
— Nem uma palavra.
— Ela podia ter desconfiado do tipo de homem que Wargle era,
pelo jeito como ele olhava para ela.
— Mas não podia saber — falou Frank. — Entende aonde estou
querendo chegar?
— Entendo.
— Qualquer criança — falou Frank —, se inventasse uma
histĂłria a esse respeito ficaria satisfeita dizendo que um morto correra
atrás dela. Normalmente não enfeitaria a história dizendo que o morto
queria molestá-la.
Bryce concordou.
—

A cabeça das crianças não é assim tão barroca. As suas

mentiras em geral sĂŁo simples, nĂŁo elaboradas.
— Exatamente — disse Frank. — O fato de ter dito que Wargle
estava nu e que queria molestá-la... bem, para mim isso acrescenta
credibilidade Ă  histĂłria dela. Bem, todos gostarĂ­amos de acreditar que
alguém se esgueirou para dentro do quartinho de limpeza e roubou o
corpo de Wargle. E gostarĂ­amos de imaginar que colocaram o corpo no
banheiro feminino, que Lisa o viu, entrou em pânico e imaginou o resto.
E que, depois que ela desmaiou, alguém tirou o corpo de lá, de alguma
forma incrivelmente inteligente. Mas esta explicação está toda furada. O
que aconteceu foi muito mais estranho do que isso.
Bryce largou o lápis e se recostou na cadeira.
— Merda. Você crê em fantasmas, Frank? Em mortos-vivos?
— Não. Existe uma explicação real para isso — falou Frank. —
Não um monte de baboseiras e superstições. Uma explicação real.
— Concordo. Mas o rosto de Wargle estava...

— Eu sei. Eu vi.
— Como é que o rosto dele podia ter sido recomposto?
— Não sei.
— E Lisa falou que os olhos dele...
— É. Ouvi o que ela falou. Bryce soltou um suspiro.
— Já tentou resolver o Cubo de Rubik? Frank pestanejou.
— Não, nunca.
— Bem, eu já — falou o xerife. — O danado quase me deixou
maluco, mas eu nĂŁo desisti, e acabei resolvendo. Todo mundo acha que
é um quebra-cabeça difícil, mas, comparado a este caso, é brincadeira
de jardim de infância.
— Tem mais uma diferença — falou Frank.
— Qual é?
— Se você não conseguir resolver o Cubo de Rubik, o castigo
nĂŁo Ă© a morte.
Em Santa Mira, na sua cela na cadeia municipal, Fletcher Kale,
assassino da mulher e do filho, acordou antes do alvorecer. Ficou
imĂłvel no colchĂŁo fino de espuma e olhou para a janela, que
apresentava uma faixa retangular do céu antes da aurora para a sua
inspeção.
Ele nĂŁo ia passar a vida na prisĂŁo. NĂŁo ia.
Tinha

um

destino

magnĂ­fico.

Era

isso

que

ninguém

compreendia. Eles viam o Fletcher Kale que existia agora, sem
conseguir enxergar aquilo em que ele se transformaria. Estava
destinado a ter tudo: dinheiro a perder de vista, um poder que
transcendia a imaginação, fama, respeito.
Kale sabia que era diferente da ralé da humanidade, e era esta
certeza que fazia com que seguisse em frente, a despeito de toda a
adversidade. As sementes de grandeza dentro dele já estavam brotando.
Com o tempo, faria com que todos vissem o quanto estavam errados a
seu respeito.
A percepção, pensou, fitando a janela com grades, a percepção é
meu maior dom. Sou extraordinariamente perceptivo.

Ele via que, sem exceção, os seres humanos eram impulsionados
pelo interesse. Nada de errado nisso. Era a natureza da espécie. Era
assim mesmo que a humanidade tinha que ser. Mas a maioria das
pessoas nĂŁo suportava enfrentar a verdade. Inventavam uns conceitos
ditos inspiradores como amor, amizade, honra, verdade, fé, confiança e
dignidade individual. Alegavam acreditar em todas essas coisas e em
outras mais. Todavia, bem no fundo, sabiam que era tudo babaquice.
SĂł que nĂŁo queriam admitir. E entĂŁo, burramente, se atavam a um
cĂłdigo de conduta piegas e autocongratulatĂłrio, a sentimentos nobres
mas vazios, frustrando assim os seus verdadeiros desejos, destinandose ao fracasso e Ă  infelicidade.
Idiotas. Deus, como os desprezava.
Da sua perspectiva singular, Kale via que a humanidade era, na
realidade, a espécie mais implacável, perigosa e inexorável na face da
terra. E ele curtia essa certeza. Tinha orgulho de pertencer a uma raça
assim.
Sou muito avançado para a minha época, pensou Kale,
sentando-se na beirada do catre e pondo os pés descalços no chão frio
da cela. Sou o passo seguinte na evolução. Evoluí além da necessidade
de acreditar em moralidade. É por isso que me olham com tanto asco.
NĂŁo porque tenha matado Joanna e Danny. Eles me odeiam porque sou
melhor do que eles, mais completamente afinado com a minha
verdadeira natureza humana.
Ele nĂŁo tivera outra escolha a nĂŁo ser matar Joanna. Ela se
recusara a lhe dar o dinheiro, afinal de contas. Estava pronta para
humilhá-lo profissionalmente, arruiná-lo financeiramente e destruir o
seu futuro inteiro.
Tivera que matá-la, ela estava no seu caminho.
Quanto a Danny, fora uma pena. Kale lamentava um pouco essa
parte. Não sempre. Só de vez em quando. Uma pena. Necessário, mas
uma pena.
De qualquer maneira, Danny sempre fora um filhinho da
mamĂŁe. Na verdade, era totalmente distante do pai. Isso fora obra de

Joanna. Provavelmente fazia lavagem cerebral no menino, voltando-o
contra o seu velho. No final, Danny já nem era mais filho de Kale.
Tornara-se uni estranho.
Kale deitou-se no chão da cela e começou a fazer flexões.
Um-dois, um-dois, um-dois.
Pretendia manter-se em forma para o momento em que se lhe
apresentasse uma oportunidade de fuga. Sabia exatamente aonde iria
quando fugisse. NĂŁo para o Oeste, nĂŁo para fora do condado, nĂŁo para
os lados de Sacramento. Era isso o que esperavam que fizesse.
Um-dois, um-dois.
Conhecia um esconderijo perfeito. Ficava bem aqui no condado.
Não iriam procurá-lo bem debaixo de seus narizes. Quando não
conseguissem encontrá-lo dentro de um dia ou dois, concluiriam que já
se tinha mandado e parariam de procurar ativamente nas vizinhanças.
Depois de passadas varias semanas, quando já nem estivessem
pensando mais nele, entĂŁo ele sairia do esconderijo, voltaria a passar
pela cidade e se dirigiria para o Oeste.
Um-dois.
Mas, primeiro, iria para as montanhas. Era lá que ficava o
esconderijo. As montanhas lhe ofereciam a melhor chance de escapar
dos tiras, depois de fugir. Estava com um palpite. As montanhas. É.
Sentia-se atraĂ­do para as montanhas.

O alvorecer chegou nas montanhas, espalhando-se como uma
mancha viva no céu, embebendo-se na escuridão, descolorindo-a.
A floresta que ficava acima de Snowfield estava quieta. Muito
quieta.
Na vegetação rasteira, as folhas estavam orladas de orvalho. O
cheiro agradável do humo rico se erguia do chão esponjoso da floresta.
O ar estava frio, como se a última expiração da noite ainda
pairasse sobre a terra.
A raposa estava imóvel sobre uma formação calcária que se
projetava de um declive aberto, pouco abaixo da linha das árvores. O

vento eriçava levemente o seu pêlo cinzento.
Seu hálito formava uma pequena pluma fosfórica no ar
revigorante.
A raposa não era uma caçadora noturna, no entanto estava à
espreita desde uma hora antes do alvorecer. Não comia há quase dois
dias.
NĂŁo

conseguia

encontrar

caça.

Os

bosques

estavam

invulgarmente silenciosos e despidos do cheiro das presas.
Em todas as suas temporadas como caçadora, a raposa jamais
encontrara uma quietude tão estéril quanto esta. Os dias mais amargos
do inverno tinham mais promessas do que este. Mesmo nas nevascas de
janeiro havia sempre o cheiro do sangue, o cheiro da caça.
Agora nĂŁo.
Agora nĂŁo havia nada.
A morte parecia ter chamado todas as criaturas nesta parte da
floresta — excetuando a pequena raposa faminta. No entanto, não havia
nem ao menos o cheiro da morte, nem mesmo o fedor forte de uma
carcaça apodrecendo na vegetação rasteira.
Finalmente, porém, ao cruzar a baixa formação calcária,
tomando cuidado para nĂŁo pisar numa das fendas ou buracos
acanalados que levavam às cavernas lá embaixo, a raposa vira algo se
mover no declive Ă  sua frente, algo que nĂŁo fora apenas agitado pelo
vento. Ela se imobilizara nas pedras baixas, olhando para cima, para o
perímetro impreciso deste novo braço da floresta.
Um esquilo. Dois esquilos. Não, havia mais deles ainda — cinco,
dez, vinte. Estavam alinhados lado a lado na penumbra ao longo da
linha das árvores.
Primeiro, nenhuma caça. Agora, uma abundância igualmente
estranha de caça.
A raposa farejou.
Embora os esquilos estivessem apenas a cinco ou seis metros de
distância, ela não conseguia sentir o cheiro deles.
Os esquilos olhavam diretamente para ela, mas nĂŁo pareciam

assustados.
A raposa inclinou a cabeça para o lado, a desconfiança
moderando a sua fome.
Os esquilos se moveram para a esquerda, todos de uma sĂł vez,
num grupinho compacto, e depois saíram das sombras das árvores,
afastando-se da proteção da floresta, entrando em campo aberto,
dirigindo-se diretamente para a raposa. Eles se misturavam uns com os
outros, por cima, por baixo, ao redor, formando uma confusĂŁo de peles
castanhas, um borrĂŁo de movimento na grama marrom. Quando
pararam abruptamente, todos no mesmo instante, estavam apenas a
três ou quatro metros da raposa. E já não eram mais esquilos.
A raposa estremeceu e emitiu um som sibilante.
Os

vinte

pequenos

esquilos

eram

agora

quatro

grandes

guaxinins.
A raposa rosnou baixinho.
Ignorando-a, um dos guaxinins ergueu-se nas patas traseiras e
começou a lamber as dianteiras.
O pêlo das costas da raposa ficou todo eriçado.
Ela farejou o ar.
NĂŁo havia cheiro.
Ela baixou bem a cabeça e observou atentamente os guaxinins.
Os seus mĂşsculos lisos ficaram ainda mais tensos do que estavam, nĂŁo
porque pretendesse dar o bote, mas porque pretendia fugir.
Havia alguma coisa muito errada.
Todos os quatro guaxinins agora estavam sentados nas patas
traseiras, as patas dianteiras erguidas, a barriga Ă  mostra.
Estavam observando a raposa.
Geralmente, o guaxinim nĂŁo era presa para a raposa. Era
agressivo demais, tinha os dentes afiados demais, era ligeiro demais
com as garras. Mas embora estivesse a salvo da raposa, o guaxinim nĂŁo
apreciava o confronto; nunca se pavoneava como aqueles quatro
estavam fazendo.
A raposa lambeu com a lĂ­ngua o ar frio.

Farejou de novo e, finalmente, conseguiu sentir um cheiro.
As suas orelhas grudaram-se ao crânio e ela rosnou.
NĂŁo era cheiro de guaxinim. NĂŁo era cheiro de nenhum
habitante da floresta que já tivesse encontrado antes. Era um odor
desconhecido, ativo, desagradável. Leve. Mas repelente.
Esse odor repulsivo nĂŁo vinha de nenhum dos quatro guaxinins
que se postavam diante da raposa. Ela nĂŁo conseguia detectar
exatamente de onde estava vindo.
Pressentindo um grave perigo, a raposa deu meia-volta no
calcário, afastando-se dos guaxinins, embora sentisse relutância em
dar-lhes as costas.
As suas patas rasparam e as suas garras fizeram ruĂ­do na
superfĂ­cie dura quando ela se precipitou encosta abaixo, por cima da
rocha plana, desgastada pelo tempo, a cauda ondeando atrás de si. Ela
saltou por cima de uma fenda de trinta centĂ­metros na pedra...
...e, em pleno salto, foi agarrada no ar por algo escuro, frio e
pulsante.
A coisa irrompeu de dentro da fenda com força e velocidade
brutais, chocantes.
O guincho agoniado da raposa foi agudo e breve.
Com a mesma rapidez com que foi agarrada, a raposa foi atraĂ­da
para dentro da fenda. Um metro e meio mais abaixo, no fundo do
abismo em miniatura, havia um pequeno buraco que levava Ă s cavernas
por baixo do afloramento de calcário. O buraco era pequeno demais
para deixar passar a raposa, mas a criatura que se debatia foi arrastada
por ali assim mesmo, com os ossos se partindo pelo caminho.
Sumiu.
Tudo isso num piscar de olhos. Em meio piscar.
Na verdade, a raposa fora sugada para dentro da terra mesmo
antes que o eco de seu Ăşltimo grito tivesse ressoado de volta de uma
colina distante.
Os guaxinins tinham sumido.
Agora, uma torrente de pequenos ratos silvestres escorria por

sobre as superfícies lisas do calcário. Dezenas deles, vintenas. Pelo
menos uns cem.
Dirigiam-se para a beira da fenda.
Ficaram olhando para baixo.
De um em um, os ratinhos pularam da beirada para o fundo do
buraco, depois passaram pela pequena abertura natural que levava Ă 
caverna lá embaixo.
Logo, todos os ratinhos também tinham desaparecido.
Mais uma vez a floresta acima de Snowfield ficou em sossego.

SEGUNDA PARTE

FANTASM AS

O mal nĂŁo Ă© um conceito abstrato. Ele
vive. Tem forma. Fica Ă  espreita.
É bem real.

— Dr. Tom Dooley

Fantasmas! Sempre que acho que compreendi plenamente o
propĂłsito da humanidade na terra, justo quando, tolamente, imagino
que me apercebi do sentido da vida... subitamente vejo fantasmas
dançando nas sombras, fantasmas misteriosos dançando uma gavota
que diz, tĂŁo incisivamente quanto as palavras: "O que vocĂŞ sabe nĂŁo Ă©
nada, homenzinho; o que tem que aprender, uma imensidĂŁo."

— Charles Dickens

21

A grande reportagem

Santa Mira.
Segunda-feira — 01:02.
— Alô?
— É do Santa Mira Daily Newsl
— É.
— Do jornal?
— Dona, o jornal está fechado. Passa de uma da manhã.
— Fechado? Não sabia que jornal fechava.
— Aqui não é o New York Times.
— Mas não estão imprimindo agora a edição de amanhã?
—

A impressĂŁo nĂŁo Ă© feita aqui. Aqui Ă© o setor comercial e

editorial. Quer falar com o impressor, ou o quĂŞ?
— Bem... tenho uma reportagem.
— Se é um obituário ou um bazar de igreja ou coisa assim, então
ligue de novo de manhĂŁ, depois das nove, e...
— Não, não. É uma reportagem das grandes.
— Sei, uma venda de objetos usados, não é?
— Como?
— Esqueça. Terá que ligar de novo pela manhã.
— Espere, escute, trabalho para a companhia telefônica.
— Isso não é uma grande reportagem.
— Não, escute, é porque trabalho para a telefônica que descobri
essa coisa. O senhor Ă© editor?
— Não, sou encarregado da venda de espaço publicitário.
— Bem... mesmo assim, quem sabe pode me ajudar.

— Dona, estou sentado aqui num domingo à noite — não, já é
segunda de madrugada —, sozinho neste escritório sombrio, tentando
imaginar como Ă© que vou conseguir anunciantes suficientes para
manter este jornal funcionando. Estou cansado, estou irritado...
— Que horrível.
— ...e receio que a senhora tenha que voltar a ligar pela manhã.
—

Mas unia coisa terrĂ­vel aconteceu em Snowfield. NĂŁo sei

exatamente o quê, mas sei que tem gente morta. Pode ter até um
bocado de gente morta, ou pelo menos correndo risco de vida.
—

Pombas, eu devo estar mais cansado do que imaginava.

Estou ficando interessado, mesmo a contragosto. Conte mais.
— Mexendo no serviço telefônico de Snowfield, ele não está mais
no

sistema

de

discagem

automática,

e

restringimos

todos

os

telefonemas de fora. Agora sĂł se pode falar com dois nĂşmeros na
cidade, e ambos estĂŁo sendo atendidos pelos homens do xerife. O
motivo pelo qual fizeram essas modificações é isolar o lugar antes que
os repĂłrteres descubram que tem coisa acontecendo.
— Dona, andou bebendo?
— Eu não bebo.
— Então, o que andou fumando?
— Ouça, ainda sei mais um pouco. Estão recebendo telefonemas
do gabinete do xerife em Santa Mira o tempo todo, e do gabinete do
governador, e de uma base militar em Utah, e eles...

SĂŁo Francisco.
Segunda-feira — 01:40.
— Aqui fala Sid Sandowicz. O que deseja?
— Estou dizendo a eles que quero falar com um repórter do San
Francisco Chronicle, cara.
— Sou eu.
— Pô, cara, vocês desligaram na minha cara três vezes! Porra,
qual Ă© a de vocĂŞs?
— Olha como fala.

— Merda.
— Escute, você tem idéia do número de garotos que liga para os
jornais, fazendo a gente perder tempo com brincadeiras idiotas e furos
inventados?
— Hein? Como é que soube que eu era um garoto?
— Por que você tem voz de doze anos.
— Tenho quinze.
— Parabéns.
— Merda!
— Escute, filho, tenho um garoto da sua idade, e é por isso que
estou perdendo tempo com vocĂŞ, coisa que os outros nĂŁo quiseram
fazer. Portanto, se tem alguma coisa realmente interessante para dizer,
diga logo.
—

Bem, meu velho é professor em Stanford. É virologista e

epidemiologista. Sabe o que isso quer dizer, cara?
— Ele estuda vírus, moléstias, coisas assim.
— Certo. E se deixou corromper.
— Como assim?
—

Aceitou uma subvenção da porra dos milicos. Cara, está

metido com um grupo de guerra biolĂłgica. Dizem que vĂŁo fazer uma
aplicação pacífica das suas pesquisas, mas você sabe que isso é uma
babaquice. Ele vendeu a alma, e agora eles vieram buscá-lo. Jogaram
merda no ventilador.
— O fato do seu pai ter se vendido — se é que se vendeu mesmo
— pode ser uma grande notícia para o pessoal da sua família, filho, mas
duvido que desperte muito o interesse dos nossos leitores.
— Escuta, cara, eu não liguei pra você só pra te sacanear, não.
Tenho uma reportagem de verdade. Hoje eles vieram buscá-lo. Está
havendo uma crise. Querem que eu pense que ele foi para o Leste a
negócios, mas eu fui na moita lá para cima e escutei atrás da porta do
quarto deles quando ele contou para a velha. Houve uma espécie de
contaminação em Snowfield. Uma grande emergência. Está todo mundo
tentando guardar segredo.

— Snowfield, Califórnia?
— É, é. O que eu acho, cara, é que eles estavam fazendo algum
teste secreto de arma bacteriolĂłgica no nosso prĂłprio pessoal e a coisa
fugiu ao controle. Ou quem sabe foi algum derramamento acidental. O
certo é que a coisa por lá está feia.
— Como se chama, filho?
— Ricky Bettenby. O meu velho se chama Wilson Bettenby.
— Stanford, foi o que você disse?
— É. Vai até o fim nessa, cara?
— Pode ser que valha a pena. Mas antes de começar a ligar para
o pessoal de Stanford, preciso lhe fazer mais perguntas.
— Manda brasa. Vou lhe contar o que puder. Quero que isso
vire um escândalo, cara. Quero que ele pague por ter se vendido.

Durante a noite, os vazamentos foram aparecendo, de um em
um. Em Dugway, Utah, um oficial do Exército, que não podia ter feito
isso, usou um telefone pĂşblico fora da base para ligar para Nova York e
contar a história para um irmão caçula muito querido que era foca do
Times. Na cama, depois de ter feito sexo, um assessor do governador
contou para a amante, uma repĂłrter. Estes e outros buracos na represa
fizeram com que o fluxo de informação crescesse de um filete para uma
torrente.
Ă€s trĂŞs da manhĂŁ, a mesa telefĂ´nica do departamento policial do
condado de Santa Mira nĂŁo dava mais conta do recado. Ao alvorecer, os
repórteres de jornal, televisão e rádio estavam invadindo Santa Mira.
Logo nas primeiras horas da manhĂŁ, a rua na frente dos escritĂłrios do
xerife estava lotada com carros de imprensa, furgões para filmagem com
os logotipos das estações de TV de Sacramento e São Francisco,
repĂłrteres e curiosos de todas as idades.
Os delegados desistiram de tentar impedir as pessoas de se
reunir no meio da rua, pois elas eram em nĂşmero grande demais para
se limitar às calçadas. Isolaram o quarteirão com cavaletes e
transformaram-no num grande recinto ao ar livre para a imprensa. Dois

garotos empreendedores de um prédio de apartamentos próximo
começaram a vender Tang, biscoitos e — com a ajuda da série mais
comprida de fios e extensões que alguém se lembrava de ter visto — café
quente. A sua barraquinha tornou-se a central de boatos, onde os
repĂłrteres se reuniam para partilhar teorias e fofocas, enquanto
esperavam pelas últimas informações oficiais.
Outros jornalistas se espalharam por Santa Mira, procurando
pessoas que tinham amigos ou parentes morando em Snowfield, ou que
tinham algum parentesco com os delegados que estavam lá no
momento. No entroncamento da estrada estadual e a Snowfield Road,
ainda outros repĂłrteres davam plantĂŁo junto ao bloqueio da estrada
feito pela polĂ­cia.
A despeito de toda essa movimentação, uma boa parte da
imprensa ainda nĂŁo tinha chegado. Muitos representantes da mĂ­dia do
Leste e da imprensa estrangeira ainda estavam em trânsito. Para as
autoridades que vinham se esforçando para lidar com a confusão o pior
ainda estava por vir. Segunda-feira Ă  tarde o circo estaria formado.

22

ManhĂŁ em Snowfield

Pouco depois do alvorecer, o rádio de ondas curtas e os dois
geradores elétricos movidos a gasolina chegaram ao bloqueio na estrada
que marcava o perĂ­metro da zona de quarentena. Os dois pequenos
furgões que os conduziam eram guiados pelos Patrulheiros das
Rodovias da CalifĂłrnia (CHiP). Permitiram que eles passassem pelo
bloqueio até um ponto a meio caminho dos seis quilômetros e meio da

Snowfield Road, onde foram estacionados e abandonados.
Quando os patrulheiros retornaram ao local do bloqueio, os
delegados do condado passaram um rádio dando conta da situação
para o QG em Santa Mira. Por sua vez, o QG entrou em contato com
Bryce Hammond no hotel Hilltop.
Tal Whitman, Frank Autry e dois outros homens levaram um
carro-patrulha até a metade da Snowfield Road e pegaram os furgões
abandonados. Desse modo, mantinha-se a contenção de quaisquer
possíveis vetores de moléstias.
O rádio de ondas curtas foi instalado num canto do saguão do
Hilltop. Uma mensagem enviada para o QG em Santa Mira foi recebida
e respondida. Agora, se algo acontecesse aos telefones, nĂŁo ficariam
inteiramente isolados.
Dentro de uma hora, um dos geradores fora ligado aos circuitos
dos postes de rua no lado oeste da Skyline Road. O outro foi ligado no
sistema elétrico do hotel. Esta noite, se o suprimento principal de força
fosse misteriosamente desligado, os geradores passariam a funcionar
automaticamente. A escuridĂŁo duraria apenas um ou dois segundos.
Bryce estava confiante de que nem mesmo aquele inimigo
desconhecido poderia levar embora uma vítima nesse espaço de tempo.
Jenny Paige começou a manhã com um banho de esponja
insatisfatĂłrio,

seguido

de

um

café

da

manhĂŁ

completamente

satisfatório, composto de ovos, fatias de presunto, torradas e café.
Depois, acompanhada por trĂŞs homens fortemente armados, ela
subiu a rua até a sua casa, onde pegou roupas limpas para si mesma e
para Lisa. Também deu uma passada no seu consultório, onde apanhou
um estetoscĂłpio, um esfigmomanĂ´metro, abaixa-lĂ­ngua, algodĂŁo, gaze,
talas,

ataduras,

torniquetes,

anti-sépticos,

seringas

descartáveis,

analgésicos, antibióticos e outros instrumentos e suprimentos de que
precisaria a fim de montar uma enfermaria de emergĂŞncia num dos
cantos do saguĂŁo do Hilltop.
A casa estava quieta.
Os delegados ficavam olhando Ă  sua volta, nervosos, entrando

em cada aposento como se esperassem que houvesse uma guilhotina
armada em cima da porta.
Quando Jenny estava terminando de arrumar os suprimentos
médicos no consultório, o telefone tocou. Todos ficaram olhando para
ele.
Sabiam

que

somente

dois

telefones

na

cidade

estavam

funcionando e que ambos ficavam no Hilltop.
O telefone tocou de novo.
Jenny atendeu. NĂŁo disse "alĂ´".
SilĂŞncio.
Ela esperou.
ApĂłs um segundo, ouviu os gritos distantes de gaivotas. O
zumbido de abelhas. O miado de um gatinho. Uma criança chorando.
Outra criança: rindo. Um cão arfando. O chocalhar de uma cascavel.
Bryce ouvira coisas semelhantes ao telefone na noite passada,
na subdelegacia, pouco antes da mariposa vir bater nas janelas. Ele
dissera que os sons tinham sido ruĂ­dos animais perfeitamente comuns e
familiares. A despeito disso, tinham-no perturbado. NĂŁo conseguira
explicar por quĂŞ.
Agora Jenny sabia exatamente o que ele queria dizer.
Pássaros cantando.
Sapos coaxando.
Um gato ronronando.
O ronronar tornou-se um sibilar. O sibilar tornou-se um grito
estridente de gato, cheio de raiva. O grito tornou-se um guincho de dor,
breve mas terrĂ­vel.
EntĂŁo uma voz:
— Vou enfiar a minha grande pica na sua irmãzinha suculenta.
— Jenny reconheceu a voz. Wargle. O morto. — Está me ouvindo, Doc?
Ela ficou calada.
—

E estou me lixando para o buraco em que vou enfiar —

continuou ele, soltando uma risadinha.
Ela bateu com o telefone.

Os delegados olharam para ela, com ar de expectativa.
— É... não havia ninguém na linha — disse ela, resolvendo não
lhes contar o que tinha ouvido. Eles já estavam nervosos demais.
Do consultório de Jenny foram para a Farmácia Tayton, na Vail
Lane, onde ela apanhou mais medicamentos: analgésicos adicionais,
uma vasta gama de antibiĂłticos, coagulantes, anticoagulantes e
quaisquer outras coisas de que pudesse vir a necessitar.
Quando estavam terminando na farmácia, o telefone tocou.
Jenny era quem estava mais perto dele. NĂŁo queria atender, mas
nĂŁo pĂ´de resistir.
E lá estava aquilo de novo.
Jenny esperou um momento, depois disse:
— Alô? Wargle falou:
— Vou usar a sua irmãzinha com tanto gosto que ela não vai
poder andar por uma semana.
Jenny desligou.
— Ninguém — disse aos delegados.
Achou que nĂŁo tinham acreditado nela. Estavam fitando as suas
mĂŁos trĂŞmulas.

Bryce estava sentado à mesa central de operações, falando por
telefones com o QG em Santa Mira.
O pedido de informações sobre Timothy Flyte não dera em nada.
Flyte nĂŁo era procurado por nenhuma agĂŞncia policial nos Estados
Unidos ou Canadá. O FBI nem mesmo ouvira falar dele. O nome no
espelho do banheiro na Candleglow Inn ainda era um mistério.
A polícia de São Francisco pudera dar informações sobre os
desaparecidos Harold Ordnay e esposa, em cujo quarto fora encontrado
o nome de Timothy Flyte. Os Ordnays eram donos de duas livrarias em
SĂŁo Francisco. Uma delas era uma livraria de varejo comum. A outra
vendia livros antigos e raros. Aparentemente, era, de longe, a mais
lucrativa das duas. Os Ordnays eram conhecidos e respeitados nos
cĂ­rculos de colecionadores. Segundo a sua famĂ­lia, Harold e Blanche

tinham ido para Snowfield passar um fim de semana prolongado para
comemorar o seu 31º. aniversário de casamento. A família jamais ouvira
falar em Timothy Flyte. A polĂ­cia teve permissĂŁo para examinar o
caderno de endereços pessoal dos Ordnays, mas não foi encontrado
ninguém por nome de Flyte.
A

polĂ­cia

ainda

nĂŁo

conseguira

localizar

nenhum

dos

empregados das livrarias. Todavia, esperavam fazĂŞ-lo tĂŁo logo as duas
lojas abrissem, Ă s dez da manhĂŁ. Esperava-se que Flyte fosse uma
relação comercial dos Ordnays da qual os empregados tivessem
conhecimento.
— Fique me mantendo a par das novidades — disse Bryce ao
policial de plantão ao telefone, em Santa Mira. — Como estão as coisas
por aĂ­?
— Um pandemônio.
— E vai piorar.
Quando Bryce estava desligando, Jenny Paige voltou do seu
safári em busca de drogas e equipamentos médicos.
— Onde está Lisa?
— Trabalhando na cozinha — disse Bryce.
— Ela está bem?
— Claro. Há três homens grandes, fortes e armados com ela.
Esqueceu? Algum problema?
— Eu conto depois.
Bryce destacou os trĂŞs guardas armados de Jenny para novas
tarefas, depois ajudou-a a montar uma enfermaria num dos cantos do
saguĂŁo.
— Isso provavelmente é esforço desperdiçado — disse ela.
— Por quê?
— Até agora não houve ninguém ferido. Só morto.
— Bem, isso pode mudar.
— Acho que aquilo só ataca quando quer matar. Não tem meias
medidas.
— Pode ser. Mas com todos esses homens carregando armas, e

com todo mundo danado de nervoso, não me surpreenderia se alguém
ferisse um companheiro acidentalmente, ou mesmo atirasse no prĂłprio
pé.
Ajeitando umas garrafas na gaveta de uma escrivaninha, Jenny
disse:
— O telefone tocou na minha casa, e de novo na farmácia. Era
Wargle.
Narrou-lhe os dois telefonemas.
— Tem certeza de que era mesmo ele?
— Lembro-me distintamente da voz dele. Uma voz desagradável.
— Mas, Jenny, ele foi...
— Eu sei, eu sei. O rosto dele foi carcomido, o cérebro sumiu, e
todo o seu sangue foi sugado do corpo. Eu sei. E estou ficando maluca
tentando adivinhar o que está se passando.
— Alguém fazendo uma imitação?
— Se é, então tem alguém por aí que faz o Rich Little parecer
um amador.
— Ele parecia estar...
Bryce interrompeu a frase no meio, e tanto ele quanto Jenny se
voltaram ao ver Lisa aparecer correndo. A jovem fez-lhes um sinal.
— Venham! Depressa! Tem uma coisa esquisita acontecendo na
cozinha.
Antes que Bryce pudesse detĂŞ-la, ela voltou correndo por onde
viera. Vários homens começaram a ir em seu encalço, sacando as
armas, mas Bryce ordenou-lhes que parassem.
—

Fiquem aqui. Fiquem em seus postos. Jenny já saíra

correndo atrás da garota.
Bryce correu para o refeitório, alcançou Jenny, passou à sua
frente, sacou o revólver e acompanhou Lisa pelas portas de vaivém que
conduziam Ă  cozinha do hotel.
Os trĂŞs homens destacados para este turno de tarefas na
cozinha — Gordy Brogan, Henry Wong e Max Dunbar — já tinham
trocado os abridores de lata e os utensĂ­lios de cozinha pelos revĂłlveres,

mas nĂŁo sabiam para o que apontar. Ergueram os olhos para Bryce,
com ar desconcertado e perplexo.

Lá vamos nós rodear a amoreira,
a amoreira, a amoreira.

O ar se enchia com o canto de uma criança. Um garotinho. A voz
dele era clara, frágil e doce.

Lá vamos nós rodear a amoreira,
de manhĂŁ bem ceeediiinhoooo!

— A pia — falou Lisa, apontando.
Intrigado, Bryce se aproximou da pia dupla mais prĂłxima, com
Jenny vindo logo atrás.
A canção mudara. A voz era a mesma.

Este velho sabe tocar
Toca pĂŁo-pa-ra-rĂŁo no meu tambor
Com um pĂŁo-pa-ra-rĂŁo-pĂŁo, pĂŁo-pĂŁo
Dá um osso ao cão...

A voz da criança saía do ralo da pia, como se ela estivesse presa
lá embaixo, no encanamento.

...e este velho se manda pra casa.

Durante

segundos

metronĂ´micos,

Bryce

escutou

com

intensidade fascinada. Perdera a fala.
Lançou um olhar para Jenny. Ela o olhava com a mesma
expressĂŁo atĂ´nita que vira no rosto dos homens quando passara pelas
portas de vaivém.
—

Começou de repente — disse Lisa, erguendo a voz para

abafar a cantoria.
— Quando? — quis saber Bryce.
— Tem uns dois minutos — respondeu Gordy Brogan.
—

Eu estava na pia — disse Max Dunbar. Era um homem

corpulento, cabeludo, de aparência rude e olhos castanhos simpáticos e
tímidos. — Quando a cantoria começou... pombas, acho que dei um
salto de meio metro!
A canção mudou de novo. A doçura foi substituída por uma
devoção untuosa, quase zombeteira:

Jesus me ama, disso eu sei,
pois a BĂ­blia me diz que sim

— Não estou gostando disso — falou Henry Wong. — Como é
que pode?

Chama a si os pequeninos.
Eles sĂŁo fracos, mas Ele Ă© forte.

Não havia no canto nada de claramente ameaçador; no entanto,
como os ruĂ­dos que Bryce e Jenny tinham ouvido pelo telefone, a voz
meiga da criança, vinda de uma fonte tão absurda, era de dar nos
nervos. Assustadora.

Sim, Jesus me ama.
Sim, Jesus me ama.
Sim, Jesus...

O cantar cessou abruptamente.
— Graças a Deus! — exclamou Max Dunbar, estremecendo de
alĂ­vio,

como

se

o

canto

melĂłdico

da

criança

tivesse

sido

insuportavelmente áspero, estridente, desafinado. — Aquela voz estava
atingindo até a raiz dos meus dentes.

Depois de vários segundos passados em silêncio, Bryce começou
a se debruçar para espiar para dentro do ralo...
...e Jenny disse que talvez ele nĂŁo devesse...
...e algo explodiu vindo daquele buraco escuro e redondo.
Todos gritaram, Lisa deu um berro e Bryce recuou, com medo e
surpresa, amaldiçoando-se por não ter sido mais cuidadoso, levantando
bruscamente o revĂłlver, mirando na coisa que saĂ­a de dentro do ralo.
Mas era somente água.
Um jato alto de água excepcionalmente nojenta e gordurosa
explodiu até quase o teto e depois caiu sobre todos os presentes. Foi um
jato de curta duração, apenas um ou dois segundos, lançando borrifos
em todas as direções.
Algumas das gotas imundas atingiram o rosto de Bryce.
Manchas escuras apareceram na frente de sua camisa. Aquilo fedia.
Era exatamente o que se esperaria que brotasse de um ralo
entupido: água marrom e suja, fiapos de lama viscosa, pedaços das
sobras do café da manhã que tinham sido levados ao triturador.
Gordy pegou um rolo de toalhas de papel e todos esfregaram os
rostos e procuraram secar as manchas das roupas.
Ainda estavam se enxugando, ainda esperando para ver se a
cantoria ia recomeçar, quando Tal Whitman empurrou uma das portas
de vaivém.
— Bryce, acabamos de receber uma ligação. O general
Copperfield e a sua equipe chegaram ao bloqueio na estrada e
receberam ordens de passar há uns dois minutos.

23

A equipe da crise

Snowfield parecia limpinha e tranqĂĽila Ă  luz cristalina da
manhã. Uma brisa agitava as árvores. O céu estava sem nuvens.
Saindo do hotel, com Bryce, Frank, Doc Paige e mais alguns
outros atrás de si, Tal olhou para o sol, e essa visão trouxe-lhe uma
lembrança de sua infância no Harlem. Ele costumava comprar balas de
um centavo na Loja Boaz, que ficava na extremidade oposta da quadra
em que se localizava o apartamento de sua tia Becky. Preferia os dropes
de limão. Eram do tom de amarelo mais lindo que já vira. E agora, esta
manhĂŁ, ele via que o sol estava precisamente daquele tom de amarelo,
pendurado no céu como um imenso drope de limão. Aquilo lhe trouxe
de volta as imagens, os sons e os odores da Boaz com uma força
surpreendente.
Lisa se aproximou de Tal e todos pararam na calçada, olhando
para o sopé da ladeira, esperando pela chegada da Unidade de Defesa
Civil da CBW.
Nada se movia no sopé da ladeira. A montanha estava silenciosa.
Era evidente que a equipe de Copperfield estava a alguma distância
dali.
Esperando ao sol de limĂŁo, Tal ficou imaginando se a Loja Boaz
ainda existia no mesmo local. O mais provável é que fosse apenas mais
uma loja vazia, imunda e pilhada. Ou quem sabe vendia revistas, fumo
e balas apenas como fachada para o tráfico de drogas.
Ă€ medida que ele envelhecia, percebia mais nitidamente uma
tendência para a degeneração em todas as coisas. Bairros bons
acabavam

se

transformando

em

bairros

pobres;

bairros

pobres

transformavam-se em bairros miseráveis; bairros miseráveis viravam

favelas. Era a ordem dando a vez ao caos. Via-se isso por toda a parte,
hoje em dia. Mais homicĂ­dios este ano do que no ano anterior, Um
abuso cada vez maior das drogas. Ă­ndices cada vez mais altos de
assaltos, estupros, roubos. O que salvava Tal de ser um pessimista
quanto ao futuro da humanidade era a sua convicção fervorosa de que
as pessoas boas — pessoas como Bryce, Frank e Doc Paige; pessoas
como a sua tia Becky — podiam deter o fluxo da involução, e quem sabe
até invertê-lo, de vez em quando.
Mas a sua fé no poder das pessoas boas e nos atos responsáveis
estava enfrentando um teste severo aqui em Snowfield. Este mal parecia
invencĂ­vel.
—

Ouçam! — exclamou Gordy Brogan. — Estou escutando o

barulho de motores.
Tal olhou para Bryce.
—

Pensei que só eram esperados lá pelo meio-dia. Estão três

horas adiantados.
— Meio-dia era o limite máximo para a chegada deles — falou
Bryce. — Copperfield queria chegar mais cedo, se possível. A julgar pela
conversa que tive com ele, Ă© um capataz durĂŁo, o tipo do sujeito que,
em geral, obtém exatamente o que quer do seu pessoal.
— Igual a você, não é? — perguntou Tal.
Bryce encarou-o por sob as pálpebras sonolentas e caídas.
— Eu? Durão? Ora, eu sou um gatinho. Tal abriu um sorriso.
— Da mesma família da pantera.
— Aí vêm eles!
No começo da Skyline Road surgiu um grande veículo e o som do
seu motor ficou mais alto.
Havia trĂŞs grandes veĂ­culos na Unidade de Defesa Civil da CBW.
Jenny ficou olhando enquanto eles subiam lentamente a rua comprida
e inclinada na direção do Hilltop.
Liderando a procissĂŁo vinha um motor home branco e brilhante,
um monstro de dez metros que fora um tanto modificado. NĂŁo tinha
portas ou janelas ao longo dos flancos. A Ăşnica entrada ficava,

evidentemente, na parte traseira. O pára-brisa curvo e contínuo da
boléia tinha uma coloração muito escura, impossibilitando a visão de
fora para dentro, e parecia ser feito de um vidro muito mais espesso do
que o usado nos motor homes comuns. Não havia identificação no
veículo, nenhum nome de projeto, nenhuma indicação de que era
propriedade do Exército. A placa do veículo era uma placa comum da
CalifĂłrnia. O anonimato durante o transporte fazia parte evidente do
programa de Copperfield.
Atrás do primeiro motor home, vinha um segundo. Fechando a
fila vinha um caminhão sem identificação puxando um trailer comum
de nove metros, de cor cinza. Até as janelas do caminhão eram coloridas
de escuro e tinham uma espessura exagerada.
Sem ter certeza se o motorista do primeiro veĂ­culo tinha visto o
seu grupo parado diante do Hilltop, Bryce saiu para o meio da rua e
agitou o braço por cima da cabeça.
Era Ăłbvio que as cargas Ăşteis nos motor homes e no caminhĂŁo
eram bastante pesadas. Seus motores faziam esforço para subir a rua, e
eles vinham bem lentamente, a menos de 15km por hora, depois menos
de 7, se arrastando, gemendo, rangendo. Quando finalmente chegaram
ao Hilltop, seguiram em frente, dobraram Ă  direita na esquina e
entraram na estrada transversal que flanqueava o hotel.
Jenny, Bryce e os outros se dirigiram para o lado do hotel,
enquanto a caravana encostava no meio-fio e estacionava. Todas as
ruas leste-oeste de Snowfield cruzavam a face larga da montanha, e a
maioria delas era plana. Era muito mais fácil estacionar com segurança
os trĂŞs veĂ­culos ali do que na Ă­ngreme Skyline Road.
Jenny ficou parada na calçada, olhando para a porta traseira do
primeiro motor home, esperando que alguém saísse.
Os trĂŞs motores superaquecidos foram desligados, um depois do
outro, e caiu um pesado silĂŞncio.
Jenny estava mais animada agora do que em qualquer outro
momento desde que entraram em Snowfield, na noite anterior. Os
especialistas tinham chegado. Como a maioria dos americanos, tinha

uma fé enorme nos especialistas, na tecnologia, na ciência. Na verdade,
provavelmente tinha mais fé do que a maioria, pois também era uma
especialista, uma cientista. Logo saberiam o que matara Hilda Beck, os
Licbcrmanns e todos os outros. Os especialistas tinham chegado.
Finalmente aparecera a cavalaria.
A porta traseira do caminhĂŁo se abriu em primeiro lugar, e
alguns

homens

saltaram.

Estavam vestidos

para

operações

em

atmosfera biologicamente contaminada. Usavam os macacões de vinil
brancos e herméticos do tipo criado para a NASA, com grandes
capacetes que apresentavam visores exagerados de plexiglas. Cada
homem carregava Ă s costas o seu tanque de suprimento de ar, assim
como um sistema de purificação e recuperação de dejetos do tamanho
de uma pasta.
Curiosamente, a princĂ­pio Jenny nĂŁo achou que os homens
parecessem astronautas. Pareciam mais os seguidores de uma estranha
religiĂŁo, resplandecentes nas suas vestes sacerdotais.
Meia dúzia de homens agéis tinha saltado do caminhão. Ainda
vinham vindo mais quando Jenny se deu conta de que estavam
fortemente armados. Eles se espalharam pelos dois lados da sua
caravana e tomaram posição entre os meios de transporte e as pessoas
na calçada, de costas para os veículos. Esses homens não eram
cientistas. Eram tropas de apoio. Seus nomes estavam marcados nos
capacetes, logo acima dos visores: SGT. HARKER, PÇA. FODOR, PÇA.
PASCALLI, TEN. UNDERHILL. Eles ergueram as armas e apontaram
para fora, formando um perĂ­metro seguro de um modo que nĂŁo permitia
interferĂŞncia.
Para seu choque e confusĂŁo, Jenny se pegou fitando a boca de
uma metralhadora portátil.
Dando um passo na direção das tropas, Bryce falou:
— Que diabo significa isso?
O sargento Harker, o mais prĂłximo de Bryce, girou a sua arma
para o alto e disparou alguns tiros de advertĂŞncia.
Bryce parou abruptamente.

Tal e Frank estenderam a mĂŁo, automaticamente, para seus
revĂłlveres.
— Não! — gritou Bryce. — Pelo amor de Deus, nada de tiros!
Estamos do mesmo lado.
Um dos soldados falou. O tenente Underbill. A sua voz soou
metálica, vinda de um pequeno amplificador de rádio numa caixa de
quinze centĂ­metros de largura no seu peito.
— Por favor, afastem-se dos veículos. Nosso dever primordial é
proteger a integridade dos laboratĂłrios, e Ă© o que faremos, custe o que
custar.
—

Droga — disse Bryce —, não vamos causar nenhum

problema. Fui eu quem os chamou, para começo de conversa.
— Afastem-se — insistiu Underbill.
A porta traseira do primeiro motor home finalmente se abriu. Os
quatro indivíduos que saltaram também estavam vestindo macacões
herméticos, mas não eram soldados. Moviam-se sem pressa. Não
estavam armados. Um deles era mulher. Jenny percebeu de relance um
rosto de mulher, oriental, impressionantemente belo. Os nomes dos
capacetes não eram precedidos por designação de posto:
VALDEZ, NIVEN,

BETTENBY,

YAMAGUCHI. Estes eram os médicos e cientistas que,

numa emergĂŞncia de guerra quĂ­mica e bacteriolĂłgica extrema, deixavam
suas vidas particulares em Los Angeles, SĂŁo Francisco, Seattle e outras
cidades ocidentais, e se colocavam ao dispor de Copperfield. Segundo
Bryce, havia uma equipe dessas no Oeste, outra no Leste e outra nos
estados meridionais do Golfo.
Seis homens saltaram do segundo motor home. GOLDSTEIN,
ROBERTS,

COPPERFIELD, HOUK.

Os dois Ăşltimos estavam de macacĂŁo sem

identificação, não havia nomes acima dos seus visores. Eles se
adiantaram, permanecendo atrás dos soldados armados, e se uniram a
Bettenby, Valdez, Niven e Yamaguchi.
Os dez mantiveram uma conversa entre si por meio dos rádios
nos macacões. Jenny podia ver os lábios deles se movendo por detrás
dos visores de plexiglas, mas os alto-falantes em seus peitos nĂŁo

transmitiram uma sĂł palavra, o que significava que eles tinham a
capacidade de manter conversas tanto pĂşblicas quanto estritamente
particulares. No momento, estavam optando pela privacidade.
Mas, por quĂŞ? questionou-se Jenny. NĂŁo tĂŞm nada a esconder de
nós. Ou será que têm?
O general Copperfield, o mais alto dos vinte, afastou-se do grupo
na traseira do primeiro motor home, pisou na calçada e acercou-se de
Bryce.
Antes que Copperfield pudesse tomar a iniciativa, Bryce se
adiantou.
— General, exijo que me diga por que estão apontando armas
para nĂłs.
— Lamento — disse Copperfield. Voltou-se para os soldados de
rostos inexpressivo, e falou: — Tudo bem, homens. Não há perigo.
Descansar armas.
Por cansa dos tanques de ar que estavam carregando, os
soldados não podiam assumir, confortavelmente, a posição clássica de
descansar armas. Porém, movendo-se com a fluida harmonia de uma
equipe excepcionalmente treinada, eles imediatamente arrancaram as
metralhadoras port al eis dos ombros, abriram os pés, deixando entre
eles uma distância precisa de trinta centímetros, colocaram os braços
ao longo do corpo e ficaram imĂłveis, olhando para a frente.
Bryce estivera certo quando dissera a Tal que Copperfield
parecia um capataz durĂŁo. Era Ăłbvio para Jenny que nĂŁo havia
problemas de disciplina na unidade do general.
Voltando-se para Bryce, sorrindo através do visor, Copperfield
perguntou:
— Está melhor?
— Melhor — disse Bryce. — Mas ainda quero uma explicação.
—

Só POP — falou Copperfield. — Procedimento Operacional

PadrĂŁo. Faz parte do treinamento normal. NĂŁo temos nada contra o
senhor ou seu pessoal, xerife. O senhor Ă© o xerife Hammond, nĂŁo Ă©?
Lembro-me do senhor da conferĂŞncia em Chicago, no ano passado.

—

Sim, senhor, sou Hammond. Mas o senhor ainda nĂŁo me

ofereceu uma explicação adequada. POP só não basta.
— Não há necessidade de erguer a voz, xerife. — Com uma das
mãos enluvadas, Copperfield bateu no alto-falante no seu peito. — Isto
aqui não é apenas um alto-falante. Também é equipado com um
microfone extremamente sensĂ­vel. Sabe, entrando num lugar onde pode
existir uma séria contaminação química ou biológica, temos que
considerar a possibilidade de sermos atacados por um bocado de gente
doente ou moribunda. Ora, nĂŁo somos equipados para administrar
curas

ou

mesmo

paliativos.

Somos

uma

equipe

de

pesquisa.

Estritamente patológica, não tratamento. É nosso serviço descobrir tudo
que pudermos sobre a natureza do contaminante, para que as equipes
médicas devidamente equipadas possam vir logo depois de nós e lidar
com os sobreviventes. Pessoas moribundas e desesperadas, porém,
podem não entender que não podemos tratá-las. Podem atacar os
laboratórios móveis impulsionados pela raiva e frustração.
— E pelo medo — disse Tal Whitman.
— Exatamente — concordou o general, sem perceber a ironia. —
Nossas simulações de estresse psicológico indicam que esta é uma
possibilidade bem real.
— E se as pessoas doentes e moribundas tentassem perturbar o
seu trabalho — falou Jenny —, vocês a matariam?
Copperfield voltou-se para ela. O sol refletiu no seu visor,
transformando-o num espelho, e, por um momento, ela nĂŁo pĂ´de vĂŞ-lo.
Então, ele mudou ligeiramente de posição e seu rosto voltou a aparecer,
mas nĂŁo o suficiente para que ela pudesse ver direito a sua aparĂŞncia.
Era um rosto fora do contexto, emoldurado na porção transparente de
seu capacete. Ele perguntou:
— A dra. Paige, presumo?
— Sim.
— Bem, doutora, se terroristas ou agentes de um governo
estrangeiro cometessem um ato de guerra biolĂłgica contra uma
comunidade americana, caberia a mim e ao meu pessoal isolar o

micróbio, identificá-lo e sugerir medidas para contê-lo. Esta é uma
tremenda responsabilidade. Se permitĂ­ssemos que qualquer um, mesmo
as vĂ­timas em sofrimento, nos atrapalhasse, o perigo da praga se
espalhar aumentaria dramaticamente.
— Quer dizer — continuou Jenny, ainda insistente — que se as
pessoas doentes e moribundas tentassem perturbar o seu trabalho,
vocĂŞs as matariam?
—

Sim — respondeu ele, sem rodeios. — Mesmo as pessoas

decentes Ă s vezes tĂŞm que optar: dos males o menor.
Jenny correu os olhos por Snowfield, que parecia um cemitério
ao sol da manhĂŁ do mesmo modo que parecera na escuridĂŁo da noite. O
general Copperfield tinha razĂŁo. Qualquer coisa que ele tivesse que fazer
para proteger a sua equipe seria apenas um pequeno mal. O grande mal
era o que fora feito — o que ainda estava sendo feito — a esta cidade.
NĂŁo estava bem certa do motivo pelo qual fora tĂŁo irascĂ­vel com
ele.
Talvez fosse porque pensara nele e no seu pessoal como a
cavalaria

salvadora.

Quisera

que

todos

os

problemas

fossem

solucionados, todas as ambigĂĽidades esclarecidas instantaneamente,
com a chegada de Copperfield, Quando se dera conta de que nĂŁo ia ser
assim, quando eles chegaram a puxar revĂłlveres para ela, o sonho se
desfizera num instante. Irracionalmente, pusera a culpa no general.
Isso nĂŁo fazia o seu gĂŞnero. Seus nervos deviam estar mais
afetados do que ela imaginara.
Bryce começou a apresentar os seus homens ao general, mas
Copperfield interrompeu.
— Não quero ser grosseiro, xerife, mas não temos tempo para
apresentações. Mais tarde. Agora, quero ação. Quero ver todas aquelas
coisas de que o senhor me falou ao telefone, ontem Ă  noite, e depois dar
inĂ­cio a uma autĂłpsia.
Ele não quer que se façam as apresentações porque não faz
sentido fazer amizade com gente que pode estar condenada, pensou
Jenny. Se apresentarmos sintomas de moléstia nas próximas horas, se

for uma doença cerebral, enlouquecermos e tentarmos atacar os
laboratórios móveis, será mais fácil para ele atirar em nós se não nos
conhecer muito bem.
Pare com isso! falou consigo mesmo, irada.
Olhou para Lisa e pensou: Santo Deus, garota, se eu estou deste
jeito, imagino em que estado de nervos vocĂŞ deve estar. No entanto,
manteve-se tão controlada quanto qualquer um. Que garota fantástica
para se ter como irmĂŁ.
— Antes de lhe mostrarmos tudo — disse Bryce a Copperfield —
o senhor deve saber sobre a coisa que vimos ontem Ă  noite e o que
aconteceu ao...
—

Não, não — falou Copperfield, impaciente. — Quero

acompanhar a coisa passo a passo. Exatamente do jeito que vocĂŞs
encontraram tudo. Haverá tempo de sobra para me contar o que
aconteceu ontem Ă  noite. Vamos andando.
— Mas acontece que está começando a parecer que é impossível
que tenha sido uma moléstia que acabou com esta cidade — protestou
Bryce.
O general falou:
—

O meu pessoal veio para cá para investigar possíveis

conexões de CBW. Faremos isto em primeiro lugar. Depois, poderemos
considerar outras possibilidades. POP, xerife.
Bryce enviou a maioria de seus homens de volta ao Hilltop,
conservando apenas Tal e Frank consigo.
Jenny tomou a mão de Lisa e dirigiram-se, elas também, para o
hotel.
—

Doutora! — chamou Copperfield. — Espere um momento.

Quero que venha conosco. A senhora foi a primeira médica no local. Se
as condições dos cadáveres se modificaram, é a mais indicada para
observar isso.
Jenny olhou para Lisa.
— Quer vir junto?
—

Voltar para a padaria? Não, obrigada — retrucou a jovem,

estremecendo.
Pensando na voz infantil, sinistramente doce, que saĂ­ra do ralo
da pia, Jenny disse:
— Não entre na cozinha. E se tiver que ir ao banheiro, peça a
alguém para ir com você.
— Jenny, só tem homem!
— Não faz mal. Peça ao Gordy. Ele pode ficar em frente à porta,
de costas para vocĂŞ.
— Pombas, eu vou morrer de vergonha.
— Quer entrar naquele banheiro sozinha de novo? O rosto da
jovem ficou sem cor.
— De jeito nenhum.
—

Ă“timo. Fique junto dos outros. E quero dizer junto. NĂŁo

apenas na mesma sala. Fique na mesma parte da sala. Promete?
— Prometo.
Jenny pensou nos dois telefonemas de Wargle pela manhĂŁ.
Pensou nas ameaças obscenas que fizera. Embora fossem as ameaças
de um morto e devessem nĂŁo significar nada, Jenny estava com medo.
— Você também tenha cuidado — disse Lisa.
Ela beijou a mocinha na face.
— Agora corra e vá ficar junto do Gordy antes que ele dobre a
esquina.
Lisa saiu correndo e gritando:
— Gordy! Espere por mim!
O delegado jovem e alto parou na esquina e olhou para trás.
Vendo Lisa correr pela calçada de pedras redondas, Jenny
sentiu um aperto no coração.
Pensou: E se, quando eu voltar, ela tiver sumido? E se eu nunca
mais a vir com vida?

24

Um terror gelado

A padaria dos Liebermanns.
Bryce, Tal, Frank e Jenny entraram na cozinha. O general
Copper-field e os nove cientistas de sua equipe seguiram-nos de perto, e
quatro

soldados,

portando

metralhadoras

portáteis,

fechavam

a

retaguarda.
A cozinha ficou superlotada. Bryce se sentiu pouco Ă  vontade. E
se fossem atacados enquanto estivessem ali amontoados? E se tivessem
que sair Ă s pressas?
As duas cabeças estavam exatamente onde tinham estado na
véspera; dentro dos fornos, espiando pelo vidro. Na mesa de trabalho,
as mĂŁos cortadas ainda estavam segurando o rolo de macarrĂŁo.
Niven, um dos homens do general, tirou diversas fotos da
cozinha de vários ângulos, depois cerca de doze doses das cabeças e
das mĂŁos.
Os outros ficavam circulando pela sala para sair da frente de
Niven. O registro fotográfico tinha que ser completado antes que o
trabalho dos médicos pudesse começar, o que não diferia da rotina que
os policiais seguiam na cena de um crime.
Enquanto os cientistas de trajes espaciais se moviam, a sua
roupa de borracha rangia. As botas pesadas raspavam ruidosamente no
chĂŁo ladrilhado.
—

Ainda acha que é um simples incidente de CBW? —

perguntou Bryce a Copperfield.
— Pode ser.
— Verdade?
Copperfield falou:

— Phil, você é o especialista do grupo no gás que afeta o sistema
nervoso. Está pensando no que eu estou pensando?
A pergunta foi respondida pelo homem em cujo capacete se via o
nome

HOUK.

—

Ainda Ă© muito cedo para afirmar qualquer coisa, mas me

parece que podíamos estar lidando com uma toxina neuroplética. E
existem algumas coisas a respeito disto — principalmente a extrema
violência psicopática — que me fazem pensar se não estaríamos diante
de um caso de T-139.
— É uma possibilidade nada desprezível — disse Copper field.
— Foi exatamente no que pensei quando entramos.
Niven continuou a bater fotos, e Bryce perguntou:
— E o que é esse T-139?
— Um dos principais gases que afetam o sistema nervoso, do
arsenal russo — explicou o general. — Seu nome completo é
Timoshenko-139, batizado em homenagem a Ilya Timoshenko, o
cientista que o criou.
— Que belo monumento — comentou Tal. com sarcasmo.
—

A maior parte dos gases asfixiantes que afetam o sistema

nervoso causa a morte num perĂ­odo que vai de trinta segundos a cinco
minutos após o contato com a pele — explicou Houk. — Mas o T-139
nĂŁo Ă© assim tĂŁo misericordioso.
— Misericordioso! — exclamou Frank Autry, atônito.
— O T-139 não é apenas um matador — explicou Houk. — Isso
seria misericordioso, por comparação. O T-139 é aquilo que os
estrategistas militares chamam de desmoralizador.
Copperfield falou:
—
segundos,

Ele passa pela pele e entra na corrente sangĂĽĂ­nea em dez
ou

menos,

depois

migra

para

o

cérebro

e

quase

instantaneamente causa danos irreparáveis aos tecidos cerebrais.
— Por um período de quatro a seis horas — disse Houk —, a
vĂ­tima continua em pleno uso dos membros e com cem por cento da sua
força normal. A princípio, é apenas a mente que sofre.

— Demência paranóide — falou Copperfield. — Confusão
intelectual, medo, raiva, perda do controle emocional e uma certeza
absoluta de que todo mundo está tramando contra ela. Isso é
combinado com uma compulsĂŁo feroz de cometer atos violentos. Em
essência, xerife, o T-139 transforma as pessoas em máquinas
alucinadas de matar por um perĂ­odo de quatro a seis horas. Elas se
atacam entre si e atacam as pessoas que nĂŁo foram afetadas, fora do
raio de ação do gás. O senhor pode ver que efeito extremamente
desmoralizante isso teria num inimigo.
— Sem dúvida — disse Bryce. — E a dra. Paige apresentou a
teoria de uma doença dessas, ontem à noite, uma raiva mutante que
mataria

algumas

pessoas,

transformando

outras

em

assassinos

dementes.
— O T-139 não é uma moléstia. — disse Houk rapidamente. —
É um gás que afeta o sistema nervoso. E se eu pudesse escolher,
preferia que isso fosse um ataque deste tipo de gás. Logo que o gás se
dissipa, a ameaça termina. Uma ameaça biológica é bem mais difícil de
controlar.
—

Se foi gás — falou Copperfield —, já se dissipou há muito

tempo, mas haverá vestígios dele em quase toda a parte. Resíduos
condensados. Num instante o identificaremos.
Recuaram de encontro a uma parede, para dar passagem a
Niven e sua câmara.
Jenny perguntou:
— Dr. Houk, quanto a este T-139, o senhor mencionou que o
estágio ambulatorial dura de quatro a seis horas. E depois?
— Bem — respondeu Houk —, o segundo estágio é também o
estágio terminal. Pode durar de seis a doze horas. Começa com a
deterioração dos nervos eferentes e vai crescendo até a paralisia dos
centros de reflexos cardíacos, vasomotores e respiratórios do cérebro.
— Santo Deus — exclamou Jenny. Frank pediu:
— Repita mais uma vez para nós, leigos. Jenny explicou:
— Significa que durante o segundo estágio da doença, num

perĂ­odo que vai de seis a doze horas, o T-139 reduz gradativamente a
capacidade do cérebro de regular suas funções automáticas, tais como
respiração, batimentos cardíacos, dilatação dos vasos sangüíneos,
função dos órgãos. A vítima começa a experimentar um batimento
cardĂ­aco irregular, dificuldade extrema em respirar e colapso gradativo
de todas as glândulas e órgãos. Doze horas podem não parecer
gradativo para vocĂŞ, mas pareceria uma eternidade para a vĂ­tima. Ela
teria vômitos, diarréia, incontinência urinária, espasmos musculares
contĂ­nuos e violentos. E se apenas os nervos eferentes fossem
danificados, se o restante do sistema nervoso permanecesse intacto, ela
sentiria dores cruciantes e incessantes.
— De seis a doze horas de inferno — confirmou Copperfield.
— Até que o coração pare — disse Houk — ou até que a vítima
simplesmente pare de respirar e sufoque.
Durante longos segundos, enquanto Niven tirava as suas
últimas fotos, ninguém falou.
Finalmente, Jenny falou:
— Ainda acho que um gás não pode ter sido o responsável por
isso, nem mesmo um T-139, que explicaria as decapitações. Para
começo de conversa, nenhuma das vítimas que encontramos tinha
indĂ­cios de vĂ´mitos ou incontinĂŞncia.
— Bem — disse Copperfield —, podemos estar lidando com um
derivado do T-139 que nĂŁo produza esses sintomas. Ou algum outro
gás.
— Nenhum gás pode explicar a mariposa — falou Tal Whitman.
—

Ou o que aconteceu com Stu Wargle — disse Frank.

Copperfield indagou:
— Mariposa?
— O senhor não queria ouvir a história até ter visto estas outras
coisas — lembrou Bryce a Copperfield. — Mas agora acho que está na
hora de...
Niven disse:
— Terminei.

—

Muito bem — falou Copperfield. — Xerife, dra. Paige,

delegados, se quiserem fazer o favor de ficar em silêncio até termos
completado o resto de nossas tarefas aqui, a sua cooperação será
muitĂ­ssimo apreciada.
Os demais imediatamente se lançaram ao trabalho. Yamaguchi e
Bettenby transferiram as cabeças cortadas para um par de baldes para
amostras revestidos de porcelana e com tampas que os trancavam
hermeticamente. Valdez retirou com cuidado as mĂŁos do rolo de
macarrĂŁo e colocou-as num terceiro balde para amostras. Houk raspou
um pouco da farinha que havia sobre a mesa e colocou-a num pequeno
frasco de plástico, evidentemente porque a farinha seca teria absorvido,
e ainda teria, vestígios do gás — se, na verdade, tivesse havido qualquer
gás que afetasse o sistema nervoso. Houk também pegou uma amostra
da massa para tortas que estava sob o rolo de macarrĂŁo. Goldstein e
Roberts inspecionaram os dois fornos de onde as cabeças tinham sido
retiradas, e depois Goldstein utilizou um pequeno aspirador a pilha
para dar uma limpeza completa no primeiro forno. Quando terminou,
Roberts pegou o saco com os resĂ­duos, selou-o e etiquetou-o, enquanto
Goldstein usava o aspirador para coletar evidências mínimas e até
microscĂłpicas do segundo forno.
Todos os cientistas estavam atarefados, exceto os dois homens
cujos nomes nĂŁo estavam nos capacetes. Eles ficavam de lado, apenas
observando.
Bryce observava os observadores, imaginando quem seriam e
qual a função que desempenhariam.
Enquanto os outros trabalhavam, eles descreviam o que estavam
fazendo e faziam comentários sobre o que tinham encontrado, sempre
falando num jargĂŁo que Bryce nĂŁo conseguia compreender. NĂŁo falavam
dois ao mesmo tempo; este fato, juntamente com o pedido de silĂŞncio
feito por Copperfield para aqueles que nĂŁo eram membros da equipe,
fazia parecer que estavam falando oficialmente.
Entre os objetos que pendiam do cinto de utilidades Ă  volta da
cintura de Copperfield, estava um gravador ligado diretamente ao

sistema de comunicações do macacão do general. Bryce percebeu que
os rolos do gravador estavam se movendo.
Quando os cientistas tinham obtido tudo que queriam da
cozinha da padaria, Copperfield falou:
— Muito bem, xerife. Para onde, agora? Bryce apontou para o
gravador.
— Não vai desligar isso até chegarmos lá?
—

Não. Começamos a gravar desde o momento em que nos

permitiram passar pelo bloqueio na estrada e vamos continuar
gravando até descobrirmos o que aconteceu a esta cidade. Desse modo,
se algo der errado, se todos morrermos antes de ser encontrada a
solução, a nova equipe saberá de todos os passos que demos. Não terão
que começar da estaca zero, e poderão até ter um registro detalhado do
erro fatal que causou a nossa morte.
A segunda parada foi na galeria de arte e artesanato para onde
Frank Autry levara os trĂŞs outros homens na noite anterior. Novamente
foi ele a tomar a frente, entrando primeiro na sala de exposição, depois
no escritĂłrio dos fundos, depois subindo a escada que levava ao
apartamento do segundo andar.
Parecia a Frank haver algo de quase cĂ´mico na cena: todos
aqueles astronautas subindo laboriosamente a escada estreita, os
rostos teatralmente sombrios por trás dos visores de plexiglas, o som da
sua respiração amplificado pelo espaço fechado do capacete e projetado
pelos alto-falantes no peito num volume exagerado, um som agourento.
Era como um daqueles filmes de ficção científica de 1950 — O Ataque
dos Astronautas Alienígenas, ou qualquer coisa igualmente cafona —, e
Frank nĂŁo pĂ´de deixar de sorrir.
O seu débil sorriso, porém, desapareceu quando ele entrou na
cozinha do apartamento e viu novamente o homem morto. O cadáver
estava no mesmo lugar da véspera, deitado ao pé da geladeira, usando
apenas as calças azuis do pijama. Ainda inchado, pisado, fitando o
nada de olhos arregalados.
Frank saiu do caminho do pessoal de Copperfield e foi se juntar

a Bryce ao lado do balcĂŁo onde estava a torradeira.
Copperfield voltou a pedir silĂŞncio aos leigos, enquanto os
cientistas rodeavam cuidadosamente o material para o preparo de
sanduíches que estava espalhado pelo chão. Cercaram o cadáver.
Dentro de alguns minutos tinham terminado um exame
preliminar do corpo.
Copperfield voltou-se para Bryce e falou:
— Vamos levar este aqui para autópsia.
—

Ainda acha que podemos estar lidando com um simples

incidente de CBW? — perguntou Bryce, como já perguntara antes.
— Sim, é inteiramente possível — disse o general.
— Mas as pisaduras e o inchaço... — falou Tal.
— Podem ser uma reação alérgica a um gás que afeta o sistema
nervoso — disse Houk.
— Se levantarem a perna do pijama — falou Jenny —, creio que
verão que a reação se estende até mesmo à pele que não está exposta.
— É verdade — concordou Copperfield. — Já olhamos.
— Mas como é possível a pele reagir mesmo nos lugares em que
não entrou em contato com o gás?
—

Esses gases em geral têm um alto poder de penetração —

explicou Houk. — Costumam atravessar a maioria das roupas. Na
verdade, a única coisa que detém muitos deles são os trajes de vinil ou
borracha.
Exatamente o que vocĂŞs estĂŁo usando, pensou Frank, e nĂłs nĂŁo.
— Também há outro corpo aqui — disse Bryce ao general. —
Quer dar uma olhada nele também?
— Positivo.
— É por aqui, senhor — mostrou Frank.
Saiu da cozinha e desceu o corredor, de arma em punho.
Frank temia entrar no quarto onde a mulher morta jazia nua em
meio aos lençóis amassados. Lembrou-se das coisas grosseiras que Stu
Wargle dissera a seu respeito e tinha a sensação terrível de que Stu
estaria ali agora, transando com a loura, seus corpos mortos grudados

numa paixão fria e infindável.
Mas apenas a mulher estava lá. Esparramada na cama. As
pernas ainda abortas. A boca escancarada num grito eterno.
Quando Copperfield e o seu pessoal tinham terminado um
exame preliminar do cadáver e estavam prontos para partir, Frank fez
questão de que eles vissem a automática 22 que ela aparentemente
esvaziara atirando no assassino.
— Acha que ela teria' atirado numa nuvem de gás, general?
— Claro que não — disse Copperfield. — Mas talvez já estivesse
afetada pelo gás, já estivesse com o cérebro danificado. Poderia estar
atirando em alucinações, em fantasmas.
— Fantasmas — falou Frank. — É, senhor, é isso que teriam
que ser. Porque, sabe, ela disparou todas as dez balas do pente, no
entanto só encontramos dois projéteis — um naquela cômoda ali, outro
na parede onde se vĂŞ o buraco. Isso quer dizer que ela acertou a maioria
dos disparos naquilo contra que estava atirando.
— Conheço essa gente — disse a dra. Paige, adiantando-se. —
Gary e Sandy Wechlas. Ela era uma exĂ­mia atiradora. Tiro ao alvo.
Ganhou diversas competições na feira do condado, no ano passado.
— Então tinha perícia bastante para acertar oito tiros entre dez
— falou Frank. — E mesmo oito tiros certeiros não detiveram a coisa
que ela estava tentando deter. Oito tiros certeiros nem mesmo a fizeram
sangrar. Claro, fantasmas não sangram. Mas, senhor, será que um
fantasma seria capaz de sair daqui levando consigo aqueles oito
projéteis!
Copperfield fitou-o, de testa franzida.
Todos os cientistas também estavam franzindo a testa.
Os soldados nĂŁo estavam apenas franzindo a testa; estavam
olhando ao seu redor, inquietos.
Frank pôde ver que o estado dos dois corpos — especialmente a
expressão de pesadelo da mulher — fizera efeito no general e no seu
pessoal. O medo nos olhos de todos estava mais nĂ­tido. Embora nĂŁo
quisessem admiti-lo, tinham encontrado algo além da sua experiência.

Ainda estavam se apegando a explicações que faziam sentido para eles
(gases, vírus, veneno), mas estavam começando a ter as suas dúvidas.
O pessoal de Copperfield trouxera consigo uma sacola de
plástico com zíper para colocar cadáveres. Na cozinha, enfiaram o
cadáver de pijama na sacola, depois tiraram-na do prédio e deixaram-na
na calçada, com a intenção de pegá-la na hora de voltar para os
laboratĂłrios mĂłveis.
Bryce levou-os até o Mercado Gilmartin. Lá dentro, junto aos
refrigeradores de leite, onde a coisa acontecera, ele lhes contou sobre o
desaparecimento de Jake Johnson.
— Nenhum grito. Absolutamente nenhum som. Somente alguns
segundos de escuridĂŁo. Alguns segundos. Mas quando a luz se acendeu
de novo, Jake tinha sumido.
Copperfield falou:
— Vocês procuraram...
— Por toda- a parte.
— Ele pode ter fugido — falou Roberts.
— É — concordou a dra. Yamaguchi. — Quem sabe desertou.
Dadas as coisas que viu...
—

Meu Deus — exclamou Goldstein. — E se ele deixou

Snowfield? Pode estar além da linha de quarentena, espalhando a
infecção...
— Não, não, não. Jake não desertaria — disse Bryce. — Não era
exatamente

o

policial

mais

agressivo

da

força,

mas

nĂŁo

me

abandonaria. Não era irresponsável.
— Definitivamente não — concordou Tal. — Além disso, o pai de
Jake foi o xerife do condado, portanto há muito orgulho de família na
histĂłria.
— E Jake era um homem cauteloso — falou Frank. — Não fazia
nada impulsivamente.
Bryce assentiu.
—

De qualquer forma, mesmo que estivesse apavorado o

bastante para fugir, teria levado um carro-patrulha. NĂŁo teria saĂ­do da

cidade a pé.
— Olhem — falou Copperfield. — Ele sabia muito bem que não
o deixariam passar pelo bloqueio da estrada, portanto teria evitado
completamente a rodovia. Podia ter se metido nos bosques.
Jenny sacudiu a cabeça.
— Não, general. A terra por lá é realmente agreste. O delegado
Johnson nĂŁo ignorava que se perderia e morreria.
— E — disse Bryce — será que um homem assustado se meteria
intempestivamente pelo meio de uma floresta estranha, Ă  noite? Acho
que não, general. Mas acho que está na hora do senhor saber o que
aconteceu ao meu outro delegado.
Apoiado de encontro a um refrigerador cheio de queijos e frios,
Bryce contou-lhes sobre a mariposa, sobre o ataque a Wargle e o estado
arrepiante do cadáver. Contou-lhes sobre o encontro de Lisa com um
Wargle ressuscitado e sobre a constatação subseqüente de que o corpo
tinha desaparecido.
Copperfield e a sua equipe expressaram espanto a princĂ­pio,
depois confusĂŁo, depois medo. Durante a maior parte da histĂłria de
Bryce, porém, fitaram-no num silêncio desconfiado e trocaram olhares
intencionais.
Bryce encerrou a sua narrativa falando-lhes da voz infantil que
saĂ­ra de dentro do ralo tia cozinha alguns momentos antes da chegada
deles. EntĂŁo, pela terceira vez, falou:
— Como é, general, ainda acha que parece um simples incidente
de CBW?
Copperfield hesitou, correu os olhos pelo mercado desarrumado,
finalmente encontrou o olhar de Bryce e falou:
— Xerife, o dr. Roberts e o dr. Goldstein farão um exame físico
completo no senhor e em todas as pessoas que viram esta... hĂŁ...
mariposa.
— Não acredita em mim.
— Ah, eu acredito que vocês, genuína, sinceramente, acham ter
visto todas essas coisas.

— Droga — disse Tal. Copperfield continuou:
— Sem dúvida vocês podem compreender que, para nós, isso
soa como se vocĂŞs todos tivessem sido contaminados, como se
estivessem sofrendo de alucinações.
Bryce estava cansado da descrença deles e frustrado pela sua
rigidez intelectual. Como cientistas, supunha-se que devessem ser
receptivos a novas idéias e possibilidades inesperadas. Em vez disso,
pareciam determinados a forçar as provas e se conformarem às suas
noções preconcebidas do que iam encontrar em Snowfield.
— Acha que todos poderíamos ter tido a mesma alucinação? —
perguntou Bryce.
—

Alucinações em massa não são algo desconhecido — disse

Copperfield.
— General — falou Jenny —, não havia nada de alucinatório no
que vimos. Tudo tinha a textura áspera da realidade.
— Dra. Paige, de um modo geral eu daria um peso considerável
a qualquer observação que a senhora houvesse por bem fazer. Porém, à
semelhança daquelas pessoas que alegam ter visto a tal mariposa, o seu
juízo médico no assunto simplesmente não é objetivo.
Fechando a cara para Copperfield, Frank Autry falou:
— Senhor, se foi tudo apenas uma alucinação coletiva... então
onde está Stu Wargle?
— Quem sabe tanto ele quanto esse Jake Johnson abandonaram
vocês? — disse Roberts. — E quem sabe vocês simplesmente
incorporaram o desaparecimento deles aos seus delĂ­rios?
Graças a uma longa experiência, Bryce sabia que um debate
estava perdido do momento em que se deixava aflorar a emoção.
Forçou-se a permanecer numa posição relaxada, apoiado contra o
refrigerador. Mantendo a voz baixa e lenta, falou:
— General, pelas coisas que o senhor e o seu pessoal disseram,
alguém podia achar que o departamento policial do condado de Santa
Mira tem como funcionários apenas covardes, idiotas e homens que se
furtam ao seu dever.

Copperfield fazia gestos conciliatĂłrios com as mĂŁos enluvadas
em borracha.
— Não, não, não. Não estamos dizendo nada disso. Por favor,
xerife, tente compreender. Estamos sendo francos com o senhor.
Estamos lhe dizendo como a situação nos parece — como pareceria, a
qualquer um com conhecimento especializado de guerra quĂ­mica e
biológica. A alucinação é uma das coisas que esperamos encontrar nos
sobreviventes. É uma das coisas que temos que procurar. Agora, se
vocês conseguissem nos oferecer uma explicação lógica para a
existência dessa mariposa do tamanho de uma águia... bem, então
talvez nós pudéssemos vir a acreditar. Mas vocês não conseguiram. O
que faz com que a nossa sugestão — de que vocês meramente tiveram
alucinações — seja a única explicação que faz sentido.
Bryce notou que os quatro soldados o estavam fitando de uma
maneira muito diferente, agora que ele estava sendo considerado como
uma vítima do gás que afetava o sistema nervoso. Afinal de contas, um
homem que sofria de alucinações bizarras era obviamente instável,
perigoso, talvez até violento o bastante para cortar fora a cabeça das
pessoas e enfiá-las nos fornos de uma padaria. Os soldados ergueram
as metralhadoras portáteis alguns centímetros, embora não estivessem
apontando diretamente para Bryce. Olhavam para ele (e para Jenny, Tal
e Frank) com um ar de desconfiança novo e indisfarçável.
Antes que pudesse responder a Copperfield, Bryce sobressaltouse com um barulho alto vindo dos fundos do mercado, para além dos
cepos de açougueiro. Ele se afastou do refrigerador, voltou-se para a
origem da comoção e levou a mão direita ao revólver no coldre.
Com o canto do olho viu que dois dos soldados estavam reagindo
a ele, e nĂŁo ao barulho. Quando levara a mĂŁo ao revĂłlver, eles haviam
instantaneamente erguido as metralhadoras.
Fora um som de marteladas que chamara a sua atenção. E uma
voz. Ambos vinham do grande frigorífico, do outro lado da área de
trabalho do açougueiro, a cerca de quatro metros e meio de distância,
quase diretamente em oposição ao ponto em que Bryce e os outros

estavam reunidos. A porta espessa e isolada da geladeira abafava os
golpes que choviam sobre ela, mas, mesmo assim, eles ainda eram
altos. A voz também era abafada, as palavras indistintas, mas Bryce
pensou que podia ouvir alguém pedindo socorro.
— Há alguém preso lá dentro — falou Copperfield.
— Não pode ser — disse Bryce.
Frank falou:
— Não pode estar trancado lá dentro porque a porta abre dos
dois lados.
As batidas e os gritos cessaram abruptamente. Um tinido.
Um ruĂ­do de metal sobre metal.
A maçaneta da grande porta de aço polido moveu-se para cima e
para baixo, para cima e para baixo, para cima...
O trinco se soltou. A porta se abriu. Mas apenas uns cinco
centĂ­metros. Depois, parou.
O ar refrigerado saiu lá de dentro, misturando-se com o ar mais
cálido do mercado. Pequenas nuvens de vapor gelado erguiam-se ao
longo da extensĂŁo da porta aberta.
Embora a luz estivesse acesa no aposento para além da porta,
Bryce nĂŁo podia ver nada pela abertura estreita. Apesar disso, sabia
bem como era o frigorífico. Durante a busca da véspera por Jake
Johnson, Bryce estivera lá dentro, vasculhando. Era um lugar frígido,
sem janelas, claustrofĂłbico, de cerca de 3,50m por 4,50m. Havia uma
outra porta, equipada com duas trancas, que dava para o beco, com o
objetivo de facilitar o recebimento das entregas de carne. Um piso de
concreto pintado. Paredes de concreto seladas. Luzes fluorescentes.
Respiradouros em trĂŞs das paredes faziam circular o ar gelado em volta
dos pedaços de carne de boi e de porco que pendiam dos ganchos no
teto.
Bryce não podia ouvir nada além da respiração aumentada dos
cientistas e soldados nos macacões de descontaminação, que, por sinal,
já estava abrandada; alguns deles pareciam estar prendendo o ar nos
pulmões.

EntĂŁo, de dentro do frigorĂ­fico, saiu um gemido de dor. Uma voz
muito fraquinha pediu socorro. Ricocheteando nas frias paredes de
concreto, levada nos vapores de ar em espiral que escapavam pela porta
ligeiramente aberta, a voz era trĂŞmula, distorcida, mas reconhecĂ­vel.
— Bryce... Tal...? Quem está ai? Frank? Gordy? Tem alguém aí?
Alguém... pode... me ajudar?
Era Jake Johnson.
Bryce, Jenny, Tal e Frank ficaram imóveis, prestando atenção.
Copperfield disse:
— Seja quem for, está precisando muito de ajuda.
— Bryce... por favor... alguém...
—

O senhor o conhece? — perguntou Copperfield. — Está

chamando pelo senhor, não está, xerife?
Sem esperar resposta, o general ordenou que dois de seus
homens — o sargento Harker e o praça Pascalli — fossem examinar o
frigorĂ­fico.
— Espere! — exclamou Bryce. — Ninguém vai entrar lá. Vamos
deixar esses refrigeradores nos separando daquele frigorífico até
sabermos mais alguma coisa.
— Xerife, conquanto eu pretenda lhe prestar cooperação integral
em tudo que for possĂ­vel, o senhor nĂŁo tem autoridade sobre meus
homens ou sobre mim.
— Bryce... sou eu... Jake... Pelo amor de Deus, me ajude. Quebrei
a droga da minha perna.
—

Jake? — perguntou Copperfield, apertando os olhos,

curiosamente, ao fitar Bryce. — Quer dizer que esse homem aí dentro é
o mesmo que vocĂŞs disseram ter sido levado daqui ontem Ă  noite?
— Alguém... me ajude... Jesus, está f-frio... tão f-f-frio.
— Parece com ele — admitiu Bryce.
— Pronto, estão vendo só ? — disse Copperfield. — Não há nada
de misterioso na histĂłria, afinal de contas. Ele esteve aĂ­ o tempo todo.
Bryce olhou feio para o general.
—

Eu já lhe disse que revistamos tudo ontem à noite. Até

mesmo a droga do frigorífico. Ele não estava lá.
— Bem, mas agora está — retrucou o general.
— Ei, vocês aí fora! Estou com f-frio. Não consigo m-mexer... a
droga da perna!
Jenny tocou o braço de Bryce.
— Está errado. Está tudo errado. Copperfield disse:
— Xerife, não podemos ficar aqui parados permitindo que um
homem ferido sofra.
— Se Jake realmente tivesse passado a noite toda aí dentro —
falou Frank Autry —, a esta altura já teria morrido congelado.
—

Bem, se é um frigorífico para guardar carne — falou

Copperfield —, o ar lá dentro não chega a congelar. É apenas frio. Se o
homem estivesse com roupas bem quentes, sobreviveria este tempo todo
com facilidade.
— Mas como foi que ele entrou aí, para começo de conversa? —
perguntou Frank. — Que diabo estava fazendo aí dentro?
—

E ele não estava aí ontem à noite — disse Tal, com

impaciĂŞncia. Jake Johnson pediu socorro de novo.
—

Há perigo aí — disse Bryce a Copperfield. — Eu estou

sentindo. Meus homens estão sentindo. A dra. Paige está sentindo.
— Eu não — disse Copperfield.
— General, o senhor não esteve em Snowfield tempo suficiente
para compreender que tem que esperar o totalmente inesperado.
—

Como mariposas do tamanho de águias? Engolindo a sua

raiva, Bryce falou:
—

O senhor não está aqui há tempo suficiente para

compreender que... bem... nada Ă© exatamente o que parece ser.
Copperfield examinou-o com ar cético.
— Não banque o místico para cima de mim, xerife.
Dentro do frigorífico, Jake Johnson começou a chorar. As suas
sĂşplicas choramingadas soavam horrĂ­veis. Parecia um velho apavorado,
cheio de dores. NĂŁo parecia ser nem um pouquinho perigoso.
— Temos que ajudar aquele homem agora — disse Copperfield.

— Não vou arriscar os meus homens — disse Bryce. — Ainda
não. Copperfield voltou a ordenar ao sargento Harker e ao praça
Pascalli que examinassem o frigorĂ­fico. Embora fosse Ăłbvio, pela sua
fisionomia, que nĂŁo estava achando haver muito perigo para homens
armados com metralhadoras, disse-lhes que tomassem cuidado. O
general ainda acreditava que o inimigo era algo tĂŁo pequeno quanto
uma bactéria ou uma molécula de gás.
Os dois soldados atravessaram as filas de refrigeradores na
direção do portão que conduzia à área de trabalho do açougueiro.
Frank falou:
—

Se Jake pĂ´de abrir a porta, por que nĂŁo pĂ´de abri-la

completamente para deixar que o vĂ­ssemos?
— Provavelmente gastou as suas últimas forças simplesmente
destrancando a porta — falou Copperfield. — Dá para se notar pela voz
dele, pelo amor de Deus. ExaustĂŁo completa.
Harker e Pascalli cruzaram o portão, por trás dos refrigeradores.
A mão de Bryce apertou com mais força o cabo do seu revólver, ainda
no coldre.
Tal Whitman falou:
— Tem muita coisa errada nesta história, pombas. Se é
realmente o Jake, se precisa de ajuda, por que esperou até agora para
abrir a porta?
—

A única maneira de descobrirmos é perguntando a ele —

disse o general.
— Não, quero dizer, há uma entrada externa para esta geladeira
— falou Tal. — Ele podia ter aberto a porta antes e gritado para dentro
do beco. A cidade está tão quieta que nós o teríamos ouvido lá no
Hilltop.
—

Quem

sabe

esteve

inconsciente

até

agora

—

falou

Copperfield. Harker e Pascalli estavam passando pelos cepos e a serra
elétrica para carne.
Jake Johnson chamou de novo.
—

Alguém... está vindo? Alguém... está vindo agora? Jenny

começou a levantar outra objeção, mas Bryce falou:
— Poupe seu fôlego.
— Dra. Paige — disse Copperfield —, a senhora realmente espera
que ignoremos os pedidos de socorro desse homem?
— Claro que não — replicou ela. — Mas devemos dar um tempo
e pensar num modo seguro de dar uma olhada lá dentro.
Sacudindo a cabeça, Copperfield interrompeu-a:
— Temos que cuidar dele sem demora. Preste atenção, doutora.
Ele está muito ferido.
Jake estava gemendo de dor de novo.
Harker aproximou-se da porta do frigorĂ­fico.
Pascalli ficou uns dois passos para trás e para o lado, dando a
melhor cobertura possĂ­vel ao seu sargento.
Bryce sentiu os mĂşsculos se enrijecendo de tensĂŁo nas costas,
nos ombros e no pescoço.
Harker chegara Ă  porta.
— Não — disse Jenny, baixinho.
A porta do frigorĂ­fico abria para dentro. Harker estendeu para
diante o cano da metralhadora e escancarou a porta com a ajuda dele.
As dobradiças gemeram e rangeram.
O ruĂ­do deixou Bryce todo arrepiado.
Jake nĂŁo estava largado no vĂŁo da porta. NĂŁo estava visĂ­vel em
parte alguma.
Para além do sargento, nada podia ser visto, exceto os pedaços
de carne pendurados: escuros, cheios de gordura, sangrentos.
Harker hesitou...
(NĂŁo entre! pensou Bryce.)
...e depois entrou. Cruzou a soleira da porta agachado, olhando
para a esquerda e apontando a arma para aquele lado, depois, quase
instantaneamente, olhando para a direita e girando a boca da arma
para esse lado.
Ă€

sua

direita,

Harker

viu

alguma

coisa.

Endireitou-se

bruscamente, com surpresa e medo. Cambaleando apressadamente

para trás, colidiu com um talho de carne.
— Puta que pariu!
Harker pontuou o seu grito com uma saraivada curta de balas
da sua metralhadora.
Bryce se crispou. O ruĂ­do da arma era ensurdecedor.
Algo empurrou a porta da geladeira pelo lado de dentro e fechoua.
Harker estava preso lá dentro com aquilo. Aquilo.
— Santo Deus — exclamou Bryce.
Sem perder o tempo que gastaria até o portão, Bryce subiu no
refrigerador Ă  sua frente, que lhe batia pela cintura, pisando em pacotes
de queijo suíço Kraft e queijo de bola envoltos em papel impermeável.
Passou por cima de tudo aquilo e saltou pelo outro lado, na área do
açougueiro.
Outra saraivada de balas. Mais longa, desta feita. Talvez longa o
bastante para esgotar a munição da arma.
Pascalli

estava

junto

Ă 

porta

do

frigorĂ­fico,

lutando

desesperadamente com a maçaneta.
Bryce rodeou as mesas de trabalho.
— O que é que há? — O praça Pascalli parecia jovem demais
para estar no Exército... e muito assustado. — Pombas, vamos tirar ele
daí! — disse Bryce.
— Não posso. Esta merda não quer abrir! Dentro do frigorífico,
os disparos cessaram. Começaram os gritos.
Pascalli mexia na maçaneta emperrada feito um alucinado.
Embora a porta grossa e isolada abafasse os gritos de Harker,
ainda assim eles eram altos, e ficaram rapidamente ainda mais altos.
Vindo através do transmissor-receptor portátil no macacão de Pascalli,
a gritaria agoniada devia ser ensurdecedora, pois o soldado de repente
levou a mĂŁo ao capacete como se estivesse tentando bloquear o som.
Bryce empurrou o soldado para o lado. Agarrou a maçaneta
comprida da porta, que funcionava com ação de alavanca, com as duas
mĂŁos. Ela nĂŁo se moveu nem para cima nem para baixo.

Dentro

do

frigorĂ­fico,

os

gritos

penetrantes

aumentavam,

diminuĂ­am e aumentavam, ficando mais altos, mais estridentes e mais
apavorantes.
Que diabo aquilo está fazendo com Harker? perguntou-se Bryce.
Esfolando vivo o pobre filho da mĂŁe?
Voltou o olhar para os refrigeradores. Tal também pulara por
cima das mercadorias e vinha rapidamente na sua direção. O general e
outro soldado, praça Fodor, atravessaram às pressas o portão. Frank
tinha saltado para cima de um dos refrigeradores, mas de frente para a
parte principal da loja, prevendo a hipótese de que aquela comoção no
frigorífico fosse apenas unia tática para desviar a atenção. Os restantes
ainda estavam parados em grupo, no corredor para além dos
refrigeradores.
Bryce grilou:
— Jenny!
— O que é?
— Esta loja tem seção de ferramentas?
— Umas miudezas.
— Preciso de uma chave de fenda.
— Estou indo — falou, e já estava correndo. Harker gritou.
Jesus, que grito terrĂ­vel. SaĂ­do de um pesadelo. De um asilo de
loucos. Do Inferno.
Só de escutá-lo, Bryce ficou suando gelado. Copperfield chegou
ao frigorĂ­fico.
— Deixe-me ver essa maçaneta.
— Não adianta.
— Deixe-me ver! Bryce saiu do caminho.
O general era um homem grande e musculoso — o maior homem
de todos, na verdade. Parecia forte o bastante para arrancar pela raiz
um carvalho centenário. Esforçando-se, praguejando, ele não conseguiu
mover a maçaneta da porta nem um milímetro, da mesma forma que
Bryce nĂŁo conseguira.
—

O maldito trinco deve estar quebrado ou torto — disse

Copperfield, arfando.
Harker berrava e berrava.
Bryce pensou na padaria dos Liebermanns. No rolo de macarrĂŁo
sobre a mesa. As mĂŁos. As mĂŁos cortadas. Era assim que um homem
poderia berrar enquanto via suas mĂŁos sendo cortadas fora na altura
dos pulsos.
Copperfield esmurrava a porta, com fúria e frustração.
Bryce lançou um olhar a Tal. Há sempre uma primeira vez:
Talbert Whitman estava visivelmente amedrontado.
Chamando o nome de Bryce, Jenny atravessou o portĂŁo.
Carregava trĂŞs chaves de fenda, cada uma delas fechada num pacote
colorido de papelão e plástico.
— Não sabia qual o tamanho que você ia precisar — falou.
— Ótimo — disse Bryce, estendendo a mão para as ferramentas.
— Agora saia daqui rápido. Volte para junto dos outros.
Ignorando a ordem, ela lhe deu duas das chaves de fenda, mas
nĂŁo soltou a terceira.
Os gritos de Harker tinham se tornado tĂŁo estridentes, tĂŁo
horríveis, que já nem pareciam humanos.
Enquanto Bryce abria um dos pacotes, Jenny rasgou o terceiro
invólucro amarelo em pedaços e tirou de dentro dele a chave de fenda.
— Sou médica. Eu fico.
— Não há nenhum médico que possa fazer mais nada por ele —
falou Bryce, rasgando furiosamente o segundo pacote.
— Pode ser que não. Se você achasse que não havia chance, não
estaria tentando tirá-lo daí.
— Que droga, Jenny!
Estava preocupado com ela, mas sabia que nĂŁo conseguiria
persuadi-la a sair se ela já tinha se resolvido a ficar.
Tirou a terceira chave de fenda das mĂŁos dela, passou pelo
general Copperfield e voltou para junto da porta.
Não podia remover os parafusos das dobradiças. A porta abria
para dentro, portanto as dobradiças eram internas.

A maçaneta de ação de alavanca, porém, ajustava-se através de
uma grande placa de cobertura atrás da qual ficava o mecanismo da
tranca. A placa estava presa Ă  parte externa da porta por quatro
parafusos. Bryce se agachou diante da placa, escolheu a chave de fenda
mais adequada e retirou o primeiro parafuso, deixando-o cair ao chĂŁo.
Os gritos de Harker cessaram.
O silĂŞncio que se seguiu era quase pior do que a gritaria.
Bryce retirou o segundo, o terceiro e o quarto parafusos.
Ainda nĂŁo se ouvia som algum vindo do sargento Harker.
Quando a placa de cobertura ficou solta, Bryce deslizou-a ao
longo da maçaneta, soltou-a e jogou-a ao chão. Fitou de olhos apertados
as entranhas do trinco, cutucou o mecanismo com a chave de fenda.
Como resposta, pedaços irregulares de metal partido saltaram de dentro
do trinco; outros pedaços foram caindo por um espaço oco no interior
da porta. O trinco fora completamente destroçado por dentro da porta.
Ele encontrou a fenda de liberação manual na haste do trinco, enfiou
nela a chave de fenda, puxou para a direita. A mola parecia ter sido
muito danificada, pois quase nĂŁo tinha resistĂŞncia. Apesar disso, ele
puxou o trinco o bastante para conseguir retirá-lo do buraco no batente
da porta, depois empurrou para dentro. Algo estalou; a porta começou a
se abrir.
Todos, inclusive Bryce, recuaram.
O prĂłprio peso da porta contribuĂ­a suficientemente para o seu
momento, e ela continuou a se mover lenta, lentamente para dentro.
O praça Pascalli a estava cobrindo com a metralhadora, e Bryce
sacou o prĂłprio revĂłlver, assim como Copperfield, embora o sargento
Harker tivesse provado conclusivamente que tais armas eram inĂşteis.
A porta se escancarou.
Bryce esperava que algo saísse correndo na direção deles. Nada
disso ocorreu.
Olhando pela porta aberta para dentro do frigorĂ­fico, ele pĂ´de ver
que a porta externa também estava aberta, ao contrário de quando
Harker entrara, uns dois minutos antes. Para além dela via-se o beco

manchado pelo sol.
Copperfield mandou que Pascalli e Fodor vistoriassem o
frigorĂ­fico. Eles entraram rapidamente porta adentro, um virando para
esquerda, outro para a direita, até sumirem de vista.
Dentro de alguns segundos, Pascalli voltou.
— Tudo em ordem, senhor.
Copperfield entrou no frigorĂ­fico, e Bryce o seguiu.
A metralhadora de Harker jazia no chĂŁo.
O sargento Harker estava pendurado na armação para carne do
teto, ao lado de um talho de carne — pendurado num gancho de duas
pontas enormes e de ar malévolo que fora enfiado no seu peito.
O estômago de Bryce revirou. Começou a se afastar do homem
pendurado, quando se deu conta de que nĂŁo era realmente Harker. Era
apenas o macacão de descontaminação e o capacete do sargento, que
pendiam frouxos, vazios. O tecido resistente de vinil fora cortado. O
visor de plexiglas fora quebrado e quase arrancado de dentro da base de
borracha em que se encaixava firmemente. Harker fora arrancado do
traje antes que este fosse espetado no gancho.
Mas onde estava Harker?
Sumira.
Mais outro. Sumido.
Pascalli e Fodor estavam lá fora na plataforma de carga, olhando
para um e outro lado do beco.
— Toda aquela gritaria — disse Jenny, parando ao lado de Bryce
—, no entanto não há sangue no chão ou no macacão.
Tal Whitman apanhou vários cartuchos que tinham sido
cuspidos pela metralhadora; dezenas deles coalhavam o chĂŁo. Os
invĂłlucros de metal brilhavam na palma aberta da sua mĂŁo.
— Muitos cartuchos, mas não estou vendo muitas balas. Parece
que o sargento acertou naquilo em que estava atirando. Deve ter
acertado pelo menos uns cem tiros. Quem sabe duzentos. Quantas
balas há num desses pentes grandes, general?
Copperfield fitou os cartuchos brilhantes, mas nĂŁo respondeu.

Pascalli e Fodor voltaram da plataforma de carga e Pascalli falou:
— Não há sinal dele lá fora, senhor. Quer que revistemos o beco
um pouco mais?
Antes que Copperfield pudesse responder, Bryce falou:
— General, o senhor tem que esquecer o sargento Harker, por
mais doloroso que isso possa ser. Ele está morto. Não tenha nenhuma
esperança quanto a ele. Trata-se de morte. De morte. Não tomada de
reféns. Não terrorismo. Não gás que afeta o sistema nervoso. Não há
nada de parcial nesta histĂłria, neste jogo estĂŁo valendo todas as fichas.
Não sei exatamente que diabo está lá fora, ou de onde veio, mas sei que
é a Morte personificada. A morte está lá fora numa forma que ainda
nem podemos imaginar, impulsionada por algum propĂłsito que talvez
nem possamos compreender. A mariposa que matou Stu Wargle...
aquela nem era a verdadeira aparĂŞncia da coisa. Eu sinto isso. A
mariposa foi como a reanimação do corpo de Wargle quando ele foi
atrás

de

Lisa

no

banheiro:

foi

apenas

para

enganar,

uma

prestidigitação.
— Um fantasma — falou Tal, usando a palavra que Copperfield
utilizara com um sentido um tanto diferente.
—

É, um fantasma — concordou Bryce. — Ainda não

encontramos o verdadeiro inimigo. É algo que simplesmente gosta de
matar. Pode matar rápida e silenciosamente, do jeito que matou Jake
Johnson. Mas matou Harker mais lentamente, machucando-o de
verdade, fazendo-o gritar. Porque queria que ouvĂ­ssemos aqueles gritos.
O assassinato de Harker foi mais ou menos aquilo que o senhor falou
do T-139: desmoralizador. Essa coisa nĂŁo levou o sargento Harker
embora. Matou-o, general. Aquilo o matou. NĂŁo arrisque a vida de mais
homens procurando por um cadáver.
Copperfield ficou calado por um momento. Depois, falou:
— Mas a voz que ouvimos. Era o seu homem, Jake Johnson.
— Não — disse Bryce. — Acho que não era realmente Jake.
Parecia a voz dele, mas agora estou começando a desconfiar que
estamos enfrentando algo que é um imitador fantástico.

— Imitador? — perguntou Copperfield. Jenny olhou para Bryce.
— Aqueles barulhos de animal ao telefone.
— É. Os gatos, cães, aves, cascavéis, a criança chorando... Era
quase como uma atuação. Como se ele estivesse se vangloriando: "Ei,
olhe o que sei fazer; veja como sou esperto." A voz de Jake Johnson era
apenas mais uma imitação do seu repertório.
— O que está sugerindo? — perguntou Copperfield. — Algo de
sobrenatural?
— Não. Isto é real.
— E então? Dê-lhe um nome — exigiu Copperfield.
— Não posso, que diabo — exclamou Bryce. — Talvez seja uma
mutação natural ou até mesmo algo que saiu de um laboratório de
engenharia genética em alguma parte. Sabe alguma coisa a esse
respeito, general? Vai ver, o Exército tem uma droga duma divisão
inteira

de

geneticistas

criando

máquinas

guerreiras

biolĂłgicas,

monstros feitos pelo homem, projetados para chacinar e aterrorizar,
criaturas compostas do ADN de meia dĂşzia de animais. Pegue um
pouco da estrutura genética da tarântula e combine-a com um pouco
da estrutura genética do crocodilo, da cobra, da vespa, quem sabe do
urso mais feroz, e depois, só de curtição, insira o gens da inteligência
humana. Ponha tudo num tubo de ensaio; incube-o; nutra-o. O que
obteria? Com que se pareceria? Será que estou falando como um louco
furioso, sugerindo uma coisa dessas? Frankenstein com uma bossa
moderna? Será que já foram tão longe com a pesquisa da recombinação
do ADN? Talvez eu nem mesmo devesse ter eliminado o sobrenatural. O
que estou tentando dizer, general, é que pode ser qualquer coisa. É por
isso que não posso lhe dar um nome. Dê asas à imaginação, general.
NĂŁo importa que coisa pavorosa o senhor possa imaginar, nĂŁo podemos
eliminá-la. Estamos lidando com o desconhecido, e o desconhecido
abrange todos os nossos pesadelos.
Copperfield fitou-o, depois ergueu os olhos para o macacĂŁo e o
capacete do sargento Marker, que pendiam do gancho de carne. Voltouse para Pascalli e Fodor.

— Não vamos revistar o beco. O xerife provavelmente tem razão.
O sargento Marker está perdido, e não há nada que possamos fazer por
ele.
Pela quarta vez desde que Copperfield chegara na cidade, Bryce
falou:
—

O senhor ainda acha que podemos estar lidando com um

simples incidente de CBW?
—

Agentes químicos ou biológicos podem estar envolvidos —

disse Copperfield. — Como o senhor observou, não podemos eliminar
coisa alguma. Mas nĂŁo Ă© um caso simples. Tem razĂŁo quanto a isso,
xerife. Desculpe ter sugerido que vocĂŞs estavam apenas tendo
alucinações e...
— Desculpas aceitas — falou Bryce.
— Alguma teoria? — perguntou Jenny.
— Bem — respondeu Copperfield —, quero começar a primeira
autĂłpsia

e

os

testes

de

patologia

imediatamente.

Talvez

nĂŁo

encontremos uma moléstia ou um gás, mas ainda podemos encontrar
algo que nos dĂŞ uma pista.
— É bom mesmo fazer isso, senhor — falou Tal. — Porque tenho
um palpite de que o tempo está se esgotando.

25

Perguntas

O cabo Billy Velazquez, um dos membros da tropa de apoio do
general Copperfield, desceu pela abertura que levava ao escoadouro.
Embora não tivesse feito esforço algum, estava respirando com

dificuldade. Porque estava com medo.
O que acontecera ao sargento Harker?
Os outros tinham voltado, com ar apalermado. O velho
Copperfield dissera que Harker estava morto. Dissera que nĂŁo tinham
certeza do que matara o sarja, mas que pretendiam descobrir. Cara,
isso era papo furado. Eles deviam saber o que o tinha matado.
Simplesmente não queriam contar. Isso era típico dos figurões, fazer
segredo de tudo.
A escada descia por um pedaço curto de cano vertical, depois
entrava no cano de escoamento principal e horizontal. Billy chegou ao
fundo. As suas botas emitiram ruĂ­dos duros, secos, ao atingirem o chĂŁo
de concreto.
O tĂşnel nĂŁo tinha altura suficiente para permitir que ele ficasse
ereto. Agachou-se ligeiramente e correu o facho da lanterna elétrica ao
seu redor.
Paredes de concreto cinzentas. Tubos das companhias telefĂ´nica
e de força. Alguma umidade. Alguns fungos aqui e ali. Nada mais.
Billy se afastou da escada quando Ron Peake, outro membro do
grupo de apoio, desceu até o escoadouro.
Por que ao menos nĂŁo tinham trazido com eles o corpo de
Harker, quando retornaram do Mercado Gilmartin?
Billy ficava movendo a lanterna Ă  sua volta e olhando
nervosamente por cima do ombro.
Por que o velho cu-de-ferro Copperfield ficava enfatizando a
necessidade de serem atentos e cuidadosos aqui embaixo?
Senhor, o que é que devemos procurar? — perguntara Billy.
Copperfield dissera:
Qualquer coisa. Tudo. Não sei se há perigo ou não. E mesmo que
haja, nĂŁo sei exatamente o que mandar vocĂŞs procurarem. Sejam apenas
tremendamente cuidadosos. E se qualquer coisa se mexer lá embaixo,
não importa o quanto pareça inocente, mesmo que seja só um
camundongo, sebo nas canelas, dêem o fora de lá imediatamente.
Ora, que porra de resposta era aquela?

Jesus.
Ele estava todo arrepiado.
Billy gostaria de ter podido ter uma conversinha com Pascalli ou
Fodor. Eles nĂŁo eram nenhum maldito figurĂŁo. Eles lhe contariam toda
a história sobre Harker — se tivesse a chance de lhes perguntar.
Ron Peake chegou ao pé da escada. Olhou ansiosamente para
Billy.
Velazquez dirigiu o facho da lanterna para todos os cantos, para
mostrar ao outro homem que nĂŁo havia o que temer.
Ron ligou a sua prĂłpria lanterna e sorriu constrangido, sem jeito
por ter ficado tĂŁo nervoso.
Os homens lá em cima começaram a enfiar um cabo de força
através do orifício de entrada. O cabo provinha de dois laboratórios
mĂłveis que estavam estacionados a poucos metros da entrada do
escoadouro.
Ron pegou a extremidade do cabo, e Billy, arrastando-se, meio
agachado, foi abrindo caminho para o leste. Na rua lá em cima, os
homens soltaram mais cabo para dentro do escoadouro.
Este tĂşnel devia cortar um conduto igualmente grande ou ainda
maior sob a rua principal, a Skyline Road. Naquele ponto devia haver
uma caixa de ligações elétricas da companhia de força, onde diversos
fios da rede elétrica da cidade se uniam. Enquanto seguia com toda a
cautela que Copperfield sugerira, Hilly jogava o facho da lanterna sobre
as paredes do túnel, procurando o emblema da companhia de força.
A caixa de ligações elétricas estava à esquerda, a cerca de dois
metros do cruzamento dos dois condutos, do lado de quem vinha. Billy
passou por ela, foi até o cano da Skyline Road, debruçou-se na
passagem, apontou a sua luz para a direita e para a esquerda,
certificando-se de que nĂŁo havia nada Ă  espreita. O cano da Skyline
Road era do mesmo tamanho daquele em que ele se encontrava, mas
seguia a inclinação da rua que o encimava, caindo montanha abaixo.
NĂŁo havia nada Ă  vista.
Olhando para baixo, para o tĂşnel que sumia de vista, Billy

Velazquez lembrou-se de uma história em quadrinhos que lera há
muitos anos numa revista de terror. NĂŁo se lembrava do tĂ­tulo. A
histĂłria era sobre um ladrĂŁo de bancos que matara duas pessoas
durante um assalto e depois, fugindo da polĂ­cia, penetrara no sistema
de escoamento da cidade. O bandido entrara por um tĂşnel que se
inclinava para baixo, achando que o levaria ao rio, mas ele o levara, em
vez disso, ao Inferno. Era isso o que o cano da Skyline Road parecia,
descendo, descendo, descendo: um caminho para o Inferno.
Billy virou-se para olhar montanha acima, imaginando se aquele
se pareceria com um caminho para o CĂ©u. Mas parecia a mesma coisa,
de um lado ou de outro. Para cima ou para baixo, parecia um caminho
para o Inferno.
O que acontecera ao sargento Harker?
Será que a mesma coisa aconteceria a todos, mais cedo ou mais
tarde?
Até mesmo a William Luis Velazquez, que sempre tivera tanta
certeza (até agora) de que viveria para sempre?
Ficou com a boca seca, de repente.
Virou a cabeça, dentro do capacete, e levou os lábios ressecados
ao bico do seu tubo nutriente. Sugou, trazendo para a boca um fluido
doce, fresco, cheio de carboidratos, rico em vitaminas e minerais. O que
ele queria era uma cerveja. Mas até que pudesse sair deste macacão, a
solução nutriente era a única coisa disponível. Carregava consigo um
suprimento para 48 horas — se não tomasse mais de sessenta gramas
por hora.
Afastando-se do caminho para o Inferno, dirigiu-se Ă  caixa de
ligações elétricas. Ron Peake já estava trabalhando. Movendo-se com
eficiência, apesar dos trajes de descontaminação volumosos e do pouco
espaço, eles fizeram a ligação do cabo deles com o suprimento de força.
A unidade trouxera o seu prĂłprio gerador, mas ele seria usado
somente se a energia elétrica municipal se perdesse.
Dentro de alguns minutos, Velazquez e Peake tinham terminado.
Billy usou o seu rádio de macacão-a-macacão para ligar para a

superfĂ­cie.
—

General, já fizemos a ligação. Já devem ter energia agora,

senhor. A resposta veio prontamente:
— Já lemos. Agora tratem de se arrancar daí, e bem rápido.
— Sim, senhor — respondeu Billy. Então ele escutou... alguma
coisa.
Sussurrando.
Arfando.
Ron Peake agarrou o ombro de Billy. Apontou. Para além dele.
Para o cano do escoamento da Skyline.
Billy deu meia-volta, agachou-se ainda mais e jogou o facho da
sua lanterna para o cruzamento que a lanterna de Peake estava
focalizando.
Animais vinham descendo o tĂşnel da Skyline Road. DĂşzias e
dĂşzias

deles.

CĂŁes.

Brancos,

cinzentos,

pretos,

castanhos,

avermelhados e dourados, cĂŁes de todo tamanho e feitio; a maioria era
vira-lata, mas também havia beagles, poodles miniatura, poodles de
tamanho normal, pastores alemĂŁes, spaniels, dois dinamarqueses,
alguns airedales, um schnuzer, um par de dobermans pretos retintos
com o focinho adornado de marrom. E havia gatos também. Grandes e
pequenos. Gatos magros e gatos gordos. Gatos pretos, malhados,
brancos, amarelos, pintados, castanhos, listrados e cinzentos. Nenhum
dos cĂŁes latia ou rosnava. Nenhum dos gatos miava ou ronronava. Os
Ăşnicos sons eram o seu arfar e o pisar e o raspar macios das suas patas
no concreto. Os animais derramavam-se cano abaixo com uma
intensidade curiosa, todos olhando direto para a frente, nenhum deles
sequer

lançando

um

olhar

ao

cano

do

cruzamento,

onde

se

encontravam Billy e Ron Peake.
— O que estão fazendo aqui? — indagou Billy. — Como
chegaram aqui?
Da rua lá em cima, Copperfield perguntou pelo rádio:
— O que está havendo? Velazquez?
Billy estava tĂŁo estupefato com a procissĂŁo de animais que nĂŁo

respondeu imediatamente.
Outros animais começaram a aparecer, misturados aos cães e
gatos. Esquilos, Coelhos. Uma raposa cinzenta. Guaxinins. Mais
raposas e mais esquilos. Cangambás. Todos eles olhando direto para a
frente, indiferentes a tudo, exceto Ă  necessidade de continuar em
movimento. Gambás e texugos. Camundongos e tâmias. Coiotes. Todos
descendo o caminho que levava ao Inferno, misturando-se uns com os
outros, por cima e por baixo e ao redor, sem contudo jamais tropeçar ou
hesitar ou tentar atacar uns aos outros. O estranho desfile era tĂŁo
veloz, contínuo e harmonioso quanto a água corrente.
— Velazquez! Peake! Comuniquem-se:
— Animais — disse Billy para o general. — Cães, gatos,
guaxinins, bichos de todo tipo. Um rio deles.
— Senhor, eles estão correndo pelo túnel da Skyline abaixo, logo
além da boca deste cano — falou Peake.
— Embaixo da terra — disse Billy, perplexo. — É uma loucura.
—

Batam

em

retirada,

porra

—

explodiu

Copperfield,

ansiosamente. — Saiam daí agora. Agora!
Billy lembrou-se da advertĂŞncia do general, feita pouco antes de
terem cruzado o orifício de entrada: Se qualquer coisa se mexer lá
embaixo... mesmo que seja sĂł um camundongo, sebo nas canelas, dĂŞem
o fora de lá imediatamente.
Inicialmente,

o

desfile

subterrâneo

de

animais

fora

surpreendente, mas nĂŁo especialmente assustador. Agora, a procissĂŁo
bizarra ficou subitamente sinistra, até ameaçadora.
E agora havia cobras no meio dos animais. Dezenas delas.
Longas cobras negras, do tipo nĂŁo venenosa, deslizando rapidamente,
as cabeças erguidas uns trinta ou sessenta centímetros acima do chão
do escoadouro, ali havia as cascavéis, as cabeças planas e malévolas
erguidas também, embora mais baixo do que as das cobras negras mais
compridas, porém movendo-se com igual rapidez e sinuosidade,
dirigindo-se todas com um propĂłsito misterioso para um destino
sombrio e igualmente misterioso.

Embora as cobras nĂŁo tivessem dado a Velazquez e Peake nem
mais um pouco de atenção do que os cães e gatos, a sua chegada
deslizante foi o bastante para tirar Billy do seu transe. Ele odiava
cobras. Virou-se para o caminho por onde viera e cutucou Peake.
— Ande; Ande logo. Saia daqui. Corra!
Algo guinchou-gritou-rugiu.
O coração de Billy começou a bater ferozmente.
O som vinha do escoadouro da Skyline, lá do caminho para o
Inferno. Billy não teve coragem de olhar para trás.
NĂŁo era um grito humano, nem era um som animal, no entanto,
inquestionavelmente, era o grito de uma coisa viva. NĂŁo havia como se
enganar quanto às emoções selvagens daquele berro estranho, de gelar
o sangue. NĂŁo era um grito de medo ou de dor. Era uma explosĂŁo de
fĂşria, Ăłdio, e de uma fome de sangue febril.
Felizmente, aquele rugido malévolo não vinha de perto, vinha
mais do alto da montanha, da direção da extremidade superior do
conduto da Skyline. A fera — fosse lá em nome de Deus o que fosse —
pelo menos ainda nĂŁo estava bem perto deles. Mas se aproximava
rapidamente.
Ron Peake voltou rapidamente para junto da escada, e Billy foi
atrás. Os trajes de descontaminação volumosos dificultavam seus
movimentos, o chĂŁo curvo do cano atrasava o seu progresso, e eles
corriam arrastando os pés e sacolejando. Embora não tivessem uma
grande distância a percorrer, progrediam de maneira irritantemente
lenta.
A coisa no tĂşnel gritou de novo.
Mais perto.
Era um ganido e um rosnar e um uivo e um rugido e um
guincho petulante, tudo a um sĂł tempo, um som de arame farpado que
furava os ouvidos de Billy e raspava cravos grandes e frios de metal
sobre o seu coração.
Mais perto.
Se Billy Velazquez fosse um nazareno temente a Deus ou um

cristĂŁo fundamentalista de bater no peito, sempre agarrado Ă  BĂ­blia e
falando nos castigos do Inferno, teria sabido qual a fera que poderia
emitir um grito daqueles. Se tivesse aprendido que o Maligno e Seus
servos andam pela terra em carne e osso, buscando almas incautas
para devorar, teria identificado prontamente esta fera. Teria dito "É
Satanás".

O

rugido

que

ecoava

pelos

tĂşneis

de

concreto

era

verdadeiramente terrĂ­vel a este ponto.
E mais perto.
Aproximando-se.
Rapidamente.
Mas Billy era um catĂłlico. O catolicismo moderno tende a
minimizar as histĂłrias das covas-cheias-de-enxofre-do-Inferno e, em
troca, enfatizar a grande misericĂłrdia e infinita compaixĂŁo de Deus. Os
protestantes fundamentalistas extremistas enxergavam a mĂŁo do
Demônio em tudo, desde programas de televisão até os romances de
Judy Blume, passando pelos sutiãs de armação para erguer bem os
seios. Mas o catolicismo optava por um tom mais discreto, mais leve. A
Igreja de Roma agora dava ao mundo coisas tais como as noviças
cantoras, Bingo das Quartas Ă  Noite, e padres como Andrew Greeley.
Portanto,

Billy

imediatamente

Velazquez,
as

forças

criado
satânicas

como

catĂłlico,

sobrenaturais

nĂŁo
com

associou
o

grito

apavorante desta fera desconhecida — muito embora tivesse se
lembrado tĂŁo sinistramente daquela velha histĂłria em quadrinhos do
caminho-para-o-Inferno. Billy sĂł sabia que a criatura aos berros que se
aproximava pelas entranhas da terra era uma coisa ruim. Uma coisa
muito ruim.
E estava chegando perto. Muito mais perto.
Ron Peake chegou à escada, começou a subir, deixou cair a sua
lanterna, não se deu ao trabalho de voltar para pegá-la. Peake estava
indo muito devagar, e Billy gritou para ele:
— Depressa, porra!
O grito da fera desconhecida tornara-se uma ululação sinistra
que preenchia os canos de escoamento subterrâneos tão completamente

quanto as águas de uma enchente. Billy nem mesmo conseguia escutar
os seus prĂłprios gritos.
Peake já estava na metade da escada.
Havia quase espaço suficiente para Billy se colocar debaixo dele
e começar a subir. Ele botou uma das mãos na escada.
O pé de Ron Peake escorregou. Ele caiu para o degrau abaixo.
Billy praguejou e tirou a mĂŁo do caminho.
A gritaria estava cada vez mais alta.
Mais perto, mais perto.
A lanterna de Peake estava apontando na direção do escoadouro
da Skyline, mas Billy não olhou para trás. Olhava somente para cima,
para a luz do sol. Se olhasse para trás e visse uma coisa pavorosa, as
suas forças falhariam, e ele não conseguiria se mexer, e a coisa o
pegaria, por Deus que o pegaria.
Peake voltou a subir. Desta feita, seus pés permaneceram nos
degraus.
O cano de concreto estava transmitindo vibrações trovejantes
que Billy podia sentir através das solas de suas botas. As vibrações
eram como passos pesados, desajeitados, e no entanto velozes como um
raio.
NĂŁo olhe, nĂŁo olhe!
Billy agarrou os lados da escada e foi subindo com a rapidez que
o progresso do Peake lhe permitia. Um degrau. Dois. TrĂŞs.
Acima dele, Peake atravessou o orifĂ­cio e saiu para a rua.
Com Peake fora do caminho, um jato de luz do sol de outono
caiu sobre Billy Velazquez, e havia algo nele que era como a luz
penetrando por uma janela de igreja — talvez porque representasse a
esperança.
Estava na metade da escada.
Vou chegar lá, vou chegar lá, sem dúvida que vou chegar lá,
disse a si mesmo, sem fĂ´lego.
Mas os gritos e os uivos, Jesus, era como estar no centro de um
ciclone!

Mais um degrau.
E mais outro.
O traje de descontaminação parecia mais pesado do que já
parecera antes. Uma tonelada. Uma armadura. Atrasando o seu
progresso.
Estava agora no cano vertical, saindo do cano horizontal que
corria por baixo da rua. Olhou ansioso para a luz e os rostos que
espiavam a sua subida, e continuou firme.
Vou chegar lá.
A sua cabeça passou pelo orifício de entrada.
Alguém estendeu a mão. Era Copperfield em pessoa.
Atrás de Billy, os gritos tinham cessado.
Ele subiu mais um degrau, soltou uma das mĂŁos da escada e
estendeu-a para o general...
...mas algo agarrou as suas pernas por baixo antes que ele
pudesse segurar a mĂŁo de Copperfield.
— Não!
Algo o agarrou, soltou os seus pés da escada e o arrancou dali.
Gritando — estranhamente, ele se ouviu gritando pela mãe —, Billy
caiu, batendo com o capacete contra a parede do cano e depois contra
um degrau da escada, atordoando-se, machucando os cotovelos e
joelhos, tentando desesperadamente agarrar-se a um degrau, sem
conseguir, finalmente desabando no abraço daquela coisa execrável que
começou a arrastá-lo na direção do conduto da Skyline, puxando-o
pelas costas.
Ele se retorceu, chutou, esmurrou, mas em vĂŁo. Estava seguro
com firmeza e era arrastado cada vez mais para as profundezas do
escoadouro.
No fiapo de luz que vinha do orifĂ­cio de entrada, depois no facho
de luz cada vez mais fraco da lanterna abandonada de Peake, Billy viu
um pouco da coisa que o mantinha preso. NĂŁo muito. Fragmentos que
saĂ­am das sombras, depois sumiam de novo na escuridĂŁo. Viu o
suficiente para que se lhe soltassem os intestinos e a bexiga. Era como

um lagarto. Mas nĂŁo era um lagarto. Como um inseto. Mas nĂŁo era um
inseto. Sibilava e vagia e rosnava. Mordia e rasgava o seu macacĂŁo
enquanto o arrastava. Tinha mandĂ­bulas cavernosas e dentes. Jesus,
Maria e José — os dentes! Uma fila dupla de espigões afiados como
navalhas. Tinha garras e era imenso, e os olhos eram de um vermelho
esfumaçado com pupilas alongadas negras como o fundo de uma
sepultura. Tinha escamas em vez de pele e dois chifres, saindo da testa
acima dos olhos malignos, curvando-se para fora e para cima, com a
ponta fina como a de um punhal. Um focinho, em vez de um nariz, um
focinho que vertia ranho. Uma lĂ­ngua bipartida que ficava entrando e
saindo e entrando e saindo no meio de todas aquelas presas mortais, e
algo que parecia o ferrĂŁo de uma vespa, ou quem sabe uma quela.
A coisa arrastou Billy Velazquez para dentro do conduto da
Skyline. Ele raspava o concreto, buscando desesperadamente algo em
que se agarrar, mas conseguia apenas desgastar os dedos e palmas de
suas luvas. Sentiu o ar subterrâneo fresco nas mãos e se deu conta de
que agora podia estar contaminado, mas aquilo era o mĂ­nimo com que
se devia preocupar.
A coisa o arrastou para dentro do coração pulsante da
escuridão. Parou, apertou-o com força. Rasgou o seu macacão. Rachoulhe o capacete. Começou a retirar o visor de plexiglas. Parecia encará-lo
como a uma noz deliciosa dentro de uma casca dura.
Ele mal estava conseguindo manter a sanidade, mas se
esforçava para não se descontrolar completamente, para tentar
compreender. A princípio, pareceu-lhe que aquilo era uma criatura préhistórica, algo com um milhão de anos de idade, que, de alguma forma,
por alguma deformação no tempo, viera cair nos escoadouros. Mas isso
era uma loucura. Ele sentiu que ia soltar uma risadinha cristalina,
estridente, lunática, e soube que estaria perdido se se permitisse soltála.

O

monstro

já

arrancara

a

maior

parte

do

seu

traje

de

descontaminação. Estava em contato com ele agora, pressionando com
força, uma coisa fria e repulsivamente escorregadia que parecia pulsar
e, de alguma forma, se modificar ao tocá-lo. Billy, arfando e chorando,

lembrou-se de repente de uma ilustração de um antigo catecismo. O
desenho de um demônio. Era isso que isto era. Como o desenho. É,
exatamente como ele. Os chifres. A lĂ­ngua escura e bipartida. Os olhos
vermelhos. Um demĂ´nio saĂ­do do Inferno. E entĂŁo ele pensou: NĂŁo, nĂŁo,
isso também é loucura! E durante todo o tempo em que aqueles
pensamentos fervilhavam na sua cabeça, a criatura esfaimada o despia
e praticamente abria em dois o seu capacete. Na escuridĂŁo total, ele
sentiu o focinho dela pressionando por entre as metades do capacete
quebrado, na direção do seu rosto, farejando. Sentiu-lhe a língua
adejando de encontro Ă  sua boca e seu nariz. Sentiu um cheiro vago
mas repelente, como jamais sentira antes. A fera cutucava a barriga e
as coxas dele, e entĂŁo ele sentiu um fogo estranho e brutalmente
doloroso penetrando suas carnes: o fogo do ácido. Ele se retorceu, se
contorceu, corcoveou, se debateu — tudo em vão. Billy ouviu a própria
voz gritando de terror, dor e confusĂŁo.
— É o Diabo, é o Diabo?
Deu-se conta de que estivera berrando e gritando coisas quase
continuamente desde o momento em que fora arrancado da escada.
Agora, sem conseguir mais falar, enquanto o fogo sem chamas
transformava-lhe os pulmões em cinzas e se revolvia na sua garganta,
ele orou num cantochĂŁo silencioso, para afastar o medo, a morte e a
terrível sensação de pequenez e inutilidade que o acometera: Maria, Mãe
de Deus, ouve a minha sĂşplica... ouve a minha sĂşplica, Maria, ora por
mim... ora, ora por mim, Maria, MĂŁe de Deus, Maria, intercede por mim
e...
A sua pergunta fora respondida.
Ele sabia o que tinha acontecido ao sargento Harker.
Galen Copperfield era um homem de vida ao ar livre, e sabia
muita coisa a respeito dos animais selvagens da América do Norte. Uma
das criaturas que achava mais interessantes era a aranha de alçapão.
Ela era uma engenheira esperta, construĂ­a um ninho profundo e
tubular no chĂŁo, com uma tampa articulada. A tampa se harmonizava
tĂŁo perfeitamente com o solo na qual se encontrava que os outros

insetos caminhavam por cima dela, inconscientes do perigo lá embaixo,
e

eram

instantaneamente

seqĂĽestrados

para

dentro

do

ninho,

arrastados lá para baixo e devorados. A rapidez com que a coisa
acontecia era apavorante e fascinante. Num instante a presa ali estava,
parada em cima do alçapão, e no instante seguinte desaparecera, como
se nunca tivesse existido.
O desaparecimento do cabo Velazquez foi tĂŁo sĂşbito como se ele
tivesse pisado na tampa da toca de uma aranha de alçapão.
Sumiu.
Os

homens

de

Copperfield

já

estavam

nervosos

com

o

desaparecimento de Harker e assustados com os uivos de pesadelo que
tinham cessado pouco antes de Velazquez ser arrastado para baixo.
Quando o cabo foi levado, todos eles recuaram, aos tropeções, temendo
que algo fosse sair de dentro da abertura.
Copperfield, no ato de estender a mĂŁo para Velazquez quando ele
foi apanhado, deu um salto para trás. Depois ficou imóvel. Indeciso. Ele
nĂŁo era assim. Jamais fora indeciso numa crise.
Velasquez gritava pelo rádio de macacão-a-macacão. Rompendo
o gelo que imobilizava as suas juntas, Copperfield dirigiu-se Ă  abertura
e olhou para baixo. A lanterna elétrica de Peake jazia no chão do cano.
Porém não havia mais nada. Nem sinal de Velazquez.
Copperfield hesitou.
O cabo continuava a berrar.
Mandar outros homens atrás do pobre filho da mãe.
NĂŁo. Seria uma missĂŁo suicida. Lembre-se de Harker. Reduzir as
perdas, aqui e agora.
Porém, santo Deus, os gritos eram terríveis. Não tão pavorosos
quanto os de Harker. Aqueles tinham sido gritos de dor cruciante. Estes
eram gritos de terror mortal. Não tão ruins, talvez, porém bastante
ruins. TĂŁo ruins quanto qualquer coisa que Copperfield tivesse ouvido
no campo de batalha.
Havia palavras em meio aos gritos, cuspidas em arquejos
explosivos.

O

cabo

estava

fazendo

uma

tentativa

desesperada,

balbuciante, de explicar aos que estavam lá em cima — e quem sabe a
si mesmo — exatamente o que estava vendo.
— ...lagarto...
— ...inseto...
— ...dragão...
— ...pré-histórico... .— ...demônio...
E finalmente, com dor fĂ­sica e angĂşstia da alma na voz, o cabo
exclamou:
— É o Diabo, é o Diabo!
Depois disso, os gritos foram tĂŁo pavorosos quanto os de Harker.
Pelo menos, estes duraram menos tempo.
Quando reinou apenas o silĂŞncio, Copperfield recolocou a tampa
da abertura no lugar. Por causa do cabo de força, a tampa de metal não
se encaixava corretamente e ficou inclinada num dos cantos, mas
cobria a maior parte do buraco.
Ele colocou dois homens na calçada, a três metros da entrada do
escoadouro, e ordenou-lhes que atirassem em qualquer coisa que saĂ­sse
dali.
Como uma arma de nada servira para Harker, Copperfield e
mais alguns outros homens reuniram tudo de que precisavam para
fabricar coquetéis Molotov. Pegaram duas dúzias de garrafas de vinho
da loja de bebidas Brookhart, na Vail Lane, esvaziaram-nas, colocaram
sabĂŁo em pĂł no fundo de cada uma, encheram-nas com gasolina e
enrolaram mechas de trapos nos gargalos, até que elas estivessem bem
arrolhadas.
Será que o fogo obteria êxito onde as balas tinham falhado?
O que acontecera a Harker?
O que acontecera a Velazquez?
O que acontecerá comigo, questionou-se Copperfield.

O primeiro dos dois laboratĂłrios de campo mĂłveis tinha custado
mais de trĂŞs mil dĂłlares, e fazia jus a cada centavo que o Departamento
da Defesa gastara com ele.

O laboratório era uma maravilha de microminiaturização
tecnológica. Por exemplo, o seu computador — baseado num trio de
mĂłdulos

principais

do

micro

Intel

432;

690.000

transistores

concentrados sobre apenas nove chips de silício — não ocupava mais
espaço do que um par de malas, no entanto era um sistema altamente
sofisticado, capaz de complexas análises médicas. Na verdade, era um
sistema mais elaborado (com maior lĂłgica e capacidade de memĂłria) do
que os que podiam ser encontrados na maioria dos laboratĂłrios de
patologia dos grandes hospitais universitários.
Havia uma grande quantidade de equipamento para diagnĂłstico
no motor home, todo projetado e posicionado para a utilização máxima
do espaço limitado. Além de um par de terminais de acesso ao
computador numa das paredes, havia vários dispositivos e máquinas;
uma centrĂ­fuga a ser usada para separar os principais componentes do
sangue, da urina e outras amostras fluidas; um espectrofotĂ´metro; um
espectrógrafo; um microscópio de elétron com a leitura conectada a
uma das telas do computador, dando uma imagem interpretada e
ampliada; um aparelho compacto que congelava amostras de sangue e
tecido para armazenagem e para uso em testes nos quais as extrações
de

elementos

fossem

realizadas

mais

facilmente

em

materiais

congelados; e muito, muito mais.
Mais para a frente do veículo, por trás do compartimento do
motorista, ficava uma mesa para autĂłpsias que entrava para dentro da
parede quando nĂŁo estava em uso. No momento, a mesa estava
abaixada, e o corpo de Gary Wechlas — sexo masculino, 37 anos,
caucasiano — jazia sobre a superfície de aço inoxidável. As calças azuis
do pijama tinham sido cortadas a tesoura, retiradas do corpo e postas
de lado para exame posterior.
O dr. Seth Goldstein, um dos trĂŞs principais especialistas em
medicina legal da Costa Oeste, realizaria a autĂłpsia. Ele estava parado
num dos lados da mesa com o dr. Daryl Roberts, e o general Copperfield
estava do outro lado, de frente para eles, com o cadáver a separá-los.
Goldstein apertou um botĂŁo num painel de controle engastado

na parede à sua direita. Seria feita uma gravação de cada palavra dita
durante a autĂłpsia; este era o procedimento normal, mesmo em
autópsias comuns. Uma gravação visual também estava sendo feita:
duas câmeras de videoteipe montadas no teto focalizavam o cadáver;
elas também foram acionadas quando o dr. Goldstein apertou o botão
no painel da parede.
Goldstein começou pelo exame atento e pela descrição do
cadáver: a expressão facial fora do comum, as machucaduras
universais, o inchaço curioso. Ele estava procurando, especificamente,
perfurações, abrasões, contusões localizadas, cortes, lesões, bolhas,
fraturas e outras indicações de pontos específicos de ferimento. Não
encontrou nenhum.
Com a mĂŁo enluvada pairando sobre a bandeja de instrumentos,
Goldstein hesitou, sem saber ao certo por onde começar. Geralmente,
no começo de uma autópsia, ele já tinha uma idéia bem definida da
causa da morte. Quando o autopsiado morrera de doença, Goldstein em
geral já vira o relatório do hospital. Se a morte resultará de acidente,
havia traumas visĂ­veis. Se fosse morte causada por outrem, havia sinais
de violência. Neste caso, porém, as condições do cadáver levantavam
mais perguntas do que as respondiam, perguntas estranhas como ele
jamais encontrara antes.
Como que lendo os pensamentos de Goldstein, Copperfield falou:
— Tem que encontrar algumas respostas para nós, doutor.
Nossas vidas provavelmente dependem disso.
O segundo motor home tinha muitas das mesmas máquinas e
instrumentos de diagnóstico que havia no veículo principal — uma
centrífuga de tubos de ensaio, um microscópio de elétron, e assim por
diante —, além de diversas peças de equipamento que não estavam
duplicadas no outro veĂ­culo. NĂŁo continha nenhuma mesa de autĂłpsia,
e

apenas

um

sistema

de

videoteipe.

Havia

trĂŞs

terminais

de

computador, em vez de dois.
O dr. Enrico Valdez estava sentado a uma das tábuas de
programação, numa cadeira bem funda, projetada para acomodar um

homem num traje de descontaminação com tanque de ar. Ele estava
trabalhando com , Houk e Niven nas análises químicas das amostras de
diversas substâncias coletadas em diversos estabelecimentos comerciais
e moradias ao longo da Skyline Road e da Vail Lane — tais como a
farinha e a massa tiradas da mesa na padaria dos Liebermanns. Estava
buscando vestígios de condensado do gás que afetava o sistema nervoso
ou outras substâncias químicas. Até o momento, nada tinham
encontrado de anormal.
O dr. Valdez não acreditava que o gás ou alguma moléstia
acabariam sendo os culpados.
Estava começando a se perguntar se esta história toda não devia
pertencer ao territĂłrio de Isley e Arkham. Isley e Arkham, os dois
homens sem nome nos trajes de descontaminação, nem ao menos eram
membros da Unidade de Defesa Civil, pertenciam a um projeto
inteiramente diferente. Hoje de manhĂŁ, pouco antes do alvorecer,
quando o dr. Valdez fora apresentado a eles no ponto de encontro da
equipe, em Sacramento, quando soubera que tipo de pesquisa eles
estavam fazendo, quase caĂ­ra na risada. Achara que o projeto deles era
um desperdĂ­cio do dinheiro do contribuinte. Agora nĂŁo tinha tanta
certeza. Agora questionava-se...
Questionava-se... e preocupava-se.

A dra. Sara Yamaguchi também se achava no segundo motor
home.
Estava preparando culturas de bactérias. Usando uma amostra
de sangue retirada do corpo de Gary Wechlas, ela contaminava
metodicamente uma série de meios de crescimento de cultura,
compostos gelatinosos cheios de nutrientes nos quais as bactérias
geralmente vicejavam: ágar-ágar de sangue de cavalo, ágar-ágar de
sangue de ovelha, ágar-ágar de chocolate, e muitos outros.
Sara Yamaguchi era uma geneticista que passara onze anos nas
pesquisas de recombinação de ADN. Se ficasse comprovado que
Snowfield fora atacada por um microorganismo criado pelo homem, o

trabalho de Sara se tornaria o centro das investigações. Ela dirigiria o
estudo da morfologia do micrĂłbio, e quando este estivesse terminado,
teria um papel relevante ao tentar determinar a função do micróbio.
Como o dr. Valdez, Sara Yamaguchi estava começando a se
perguntar se Isley e Arkham poderiam se tornar mais essenciais Ă 
investigação do que ela tinha pensado. Pela manhã, a área em que eles
se destacavam parecera tão exótica quanto a macumba. Agora, porém,
em vista do que ocorrera desde que a equipe chegara em Snowfield, viuse forçada a admitir que a especialidade de

Isley e Arkham parecia

cada vez mais pertinente. E, como o dr. Valdez, ela estava preocupada.

O dr. Wilson Bettenby, chefe do setor cientĂ­fico civil da Unidade
de Defesa Civil da CBW, equipe da Costa Oeste, sentava-se a um
terminal de computador, duas cadeiras depois do dr. Valdez.
Bettenby

estava

rodando

um

programa

de

análises

automatizadas de diversas amostras de água. As amostras eram
introduzidas num processador que destilava a água, armazenava o
destilado e sujeitava as substâncias filtradas a análises espectrográficas
e outros testes. Bettenby nĂŁo estava procurando microorganismos; isso
exigiria

procedimentos

diferentes

destes.

Esta

máquina

apenas

identificava e quantificava todos os elementos minerais e quĂ­micos
presentes na água; os dados eram apresentados no tubo de raio
catĂłdico.
Todas as amostras de água, exceto uma, tinham sido colhidas de
bicas nas cozinhas e banheiros de casas e lojas na Vail Lane.
Comprovou-se que estavam livres de impurezas quĂ­micas perigosas.
A outra amostra de água era aquela que o delegado Autry
recolhera do chão da cozinha do apartamento da Vail Lane, na véspera.
Segundo o xerife Hammond, poças d'água e tapetes encharcados
tinham sido descobertos em diversos prédios. Hoje de manhã, contudo,
a água já tinha se evaporado, exceto em alguns tapetes úmidos, dos
quais Bettenby nĂŁo conseguiria obter uma amostra limpa. Ele colocou a
amostra do delegado no processador.

Dentro de alguns minutos, o computador apresentou a completa
análise químico-mineral da água e dos resíduos que permaneciam
depois que todo o lĂ­quido da amostra fora destilado.
PERCENTUAL PERCENTUAL
DA SOLUÇĂO

DO RESĂŤDUO

PERCENTUAL
DA SOLUÇĂO

PERCENTUAL
DO RESĂŤDUO

H

11,188

00.00

HE

00.00

00.00

LI

00.00

00.00

BE

00.00

00.00

B

00.00

00.00

C

00.00

00.00

N

00.00

00.00

O

88.812

00.00

NA

00.00

00.00

MG

00.00

00.00

AL

00.00

00.00

SI

00.00

00.00

P

00.00

00.00

S

00.00

00.00

CL

00.00

00.00

K

00.00

00.00

O computador continuou por um tempo consideravelmente
maior, apresentando os resultados de cada substância que podia ser
ordinariamente detectada. Os resultados eram os mesmos. No seu
estado não destilado, a água não continha vestígio algum de quaisquer
outros elementos que nĂŁo os seus dois componentes, hidrogĂŞnio e
oxigênio. E a completa destilação e filtragem não produzira resíduo
algum, nem mesmo simples traços de elementos. A amostra de Autry
não podia vir do suprimento de água da cidade, pois não continha cloro
nem flúor. Tampouco era água engarrafada. A água engarrafada teria
tido um conteĂşdo mineral normal. Talvez houvesse um sistema de
filtragem sob a pia da cozinha daquele apartamento — uma peça
Culligan —, porém, mesmo que houvesse, a água que passava por ele
ainda possuiria mais conteĂşdo mineral do que isto. O que Autry
recolhera era o grau mais puro de água destilada e multiplamente
filtrada obtido em laboratĂłrio.
EntĂŁo... o que estava fazendo espalhada pelo chĂŁo daquela
cozinha?
Bettenby fitou a tela do computador, franzindo o cenho.
Será que o pequeno lago na loja de bebidas Brookhart também

era composto desta água ultrapura?
Por que alguém andaria pela cidade esvaziando galões e galões
de água destilada?
E onde iriam encontrá-la em tais quantidades, para começo de
conversa?
Estranho.
Jenny, Bryce e Lisa estavam a uma mesa num canto do
refeitĂłrio do Hilltop Inn.
O major Isley e o capitĂŁo Arkham, que vestiam os trajes de
descontaminação sem nomes nos capacetes, sentavam-se em dois
banquinhos, do outro lado da mesa. Eles tinham trazido a notĂ­cia sobre
o cabo Velazquez. Tinham trazido também um gravador, que estava
agora no centro da mesa.
— Ainda não entendo por que isso não pode esperar — disse
Bryce.
— Não vamos demorar muito — falou o major Isley.
— Estou com uma equipe de busca pronta para sair — disse
Bryce. — Temos que revistar cada prédio na cidade, fazer uma
contagem de corpos, descobrir quantos estĂŁo mortos e quantos
desaparecidos, e buscar uma pista para o que matou toda aquela gente.
Temos vários dias de trabalho pela frente, especialmente desde que não
podemos continuar com a busca depois do anoitecer. NĂŁo vou deixar
meus homens ficarem andando por aĂ­ Ă  noite, quando as luzes podem
se apagar a qualquer momento. Mas nĂŁo vou mesmo.
Jenny pensou no rosto carcomido de Wargle. Nas Ăłrbitas vazias.
O major Isley falou:
— Só umas perguntinhas. Arkham ligou o gravador.
Lisa olhava fixamente para o major e o capitĂŁo. Jenny ficou
imaginando o que estaria se passando na cabeça da mocinha.
— Vamos começar com o senhor, xerife — falou o major Isley. —
Nas 48 horas que antecederam esses acontecimentos, o seu gabinete
recebeu algum informe de falta de luz ou interrupção no serviço
telefĂ´nico?

—

Quando ocorrem problemas dessa natureza — respondeu

Bryce —, as pessoas em geral ligam para as próprias companhias de
prestação de serviços, não para o xerife.
— Sim, mas essas companhias não o notificariam? Os períodos
de interrupção de luz e telefone não contribuem para as atividades
criminosas?
Bryce assentiu.
— Claro. E, ao que me consta, não recebemos nenhum alerta
desse gĂŞnero.
O capitĂŁo Arkham se inclinou para diante.
— E quanto a dificuldades com recepção de rádio e TV nesta
área?
— Nenhuma, que eu saiba — respondeu Bryce.
— Algum informe de explosões inexplicáveis?
— Explosões?
— Sim — confirmou Isley. — Explosões ou estrondos sônicos ou
quaisquer ruĂ­dos in vulgarmente altos e indefinĂ­veis.
— Não. Nada disso.
Jenny ficou se perguntando que diabo estariam querendo saber.
Isley hesitou e perguntou:
—

Algum

informe

de

aeronaves

fora

do

comum

nas

proximidades?
— Não. Lisa falou:
— Vocês dois não fazem parte da equipe do general Copperfield,
não é? É por isso que não têm nomes nos capacetes.
— E seus trajes de descontaminação não se ajustam tão bem
quanto os dos outros — disse Bryce. — Os deles foram feitos sob
medida, os seus nĂŁo.
— Muito observador — falou Isley.
—

Se vocês não estão com o projeto CBW — falou Jenny —,

entĂŁo o que estĂŁo fazendo aqui?
—

Não queríamos contar logo no começo — falou Isley. —

Achamos que obterĂ­amos respostas mais diretas de vocĂŞs se nĂŁo

tivessem uma idéia imediata do que estávamos procurando.
Arkham falou:
—

Não somos do Corpo Médico do Exército. Somos da Força

—

Projeto Skywatch — disse Isley. — Não somos exatamente

AĂ©rea.

uma organização secreta, mas... bem... digamos que desencorajamos
publicidade.
—

Skywatch? — falou Lisa, animando-se. — Está falando de

OVNIs? É isso? Discos voadores?
Jenny viu que Isley se crispou ante as palavras "discos
voadores". Ele falou:
—

NĂŁo saĂ­mos por aĂ­ checando cada informe biruta de

homenzinhos de Marte. Para começo de conversa, não temos fundos
para tanto. Nosso trabalho é planejar com relação aos aspectos
cientĂ­ficos, sociais e militares do primeiro encontro da humanidade com
uma inteligência alienígena. Na realidade, somos mais umas "cabeças
pensantes" do que outra coisa qualquer.
Bryce sacudiu a cabeça.
— Ninguém por aqui andou informando sobre discos voadores.
— Mas é exatamente isso o que o major Isley quer dizer — falou
Arkham. — Sabe, os nossos estudos indicam que o primeiro encontro
pode ter inĂ­cio de uma forma tĂŁo estranha que nĂłs nem o
reconhecerĂ­amos como Tal. O conceito popular de naves espaciais
descendo do céu... bem, pode não ser desse jeito. Se estivermos lidando
com inteligĂŞncias verdadeiramente alienĂ­genas, as naves deles poderĂŁo
ser tĂŁo diferentes do nosso conceito de nave que nem nos darĂ­amos
conta de que elas já tinham pousado.
— É por esse motivo que checamos os fenômenos estranhos que
não parecem ter ligação com os OVNIs logo à primeira vista —
continuou Arkham. — Por exemplo, na primavera passada, em
Vermont, havia uma casa em que um poltergeist extremamente ativo
estava Ă  solta. Os mĂłveis levitavam, os pratos voavam pela cozinha e se
espatifavam de encontro à parede. Jatos d'água irrompiam de paredes

em que nĂŁo havia encanamentos. Bolas de fogo explodiam em pleno
ar...
— Mas um poltergeist não é um fantasma? — perguntou Bryce.
— O que é que os fantasmas têm a ver com a sua área de interesse?
— Nada — respondeu Isley. — Não acreditamos em fantasmas.
Mas nos perguntamos se os fenĂ´menos do poltergeist poderiam resultar
de uma tentativa malsucedida de comunicação entre espécies. Se
encontrássemos uma raça alienígena que se comunicasse somente por
telepatia, e se fĂ´ssemos incapazes de receber esses pensamentos
telepáticos,

talvez

a

energia

psĂ­quica

nĂŁo

recebida

produzisse

fenĂ´menos destrutivos do tipo que Ă s vezes se atribuem a espĂ­ritos
malignos.
—

E o que vocĂŞs finalmente decidiram sobre o poltergeist de

Vermont? — perguntou Jenny.
— Decidimos? Nada — respondeu Isley.
— Somente que era... interessante — falou Arkham.
Jenny lançou um olhar para Lisa e viu que os olhos da garota
estavam muito arregalados. Isso era algo que Lisa podia perceber,
aceitar, algo a se apegar. Esse era um medo para o qual fora
meticulosamente preparada, graças aos filmes, aos livros e à televisão.
Monstros do espaço sideral. Invasores de outros mundos. Isso não
tornava as mortes de Snowfield menos lúgubres. Mas era uma ameaça
conhecida, e isso a tornava infinitamente preferĂ­vel ao desconhecido.
Jenny tinha as suas fortes dĂşvidas de que este era o primeiro encontro
da humanidade com criaturas das estrelas, mas Lisa parecia ansiosa
para acreditar.
— E quanto a Snowfield? — perguntou a mocinha. — É isso o
que está acontecendo? Alguma coisa lá de fora... pousou aqui?
Arkham olhou constrangido para o major Isley. Este pigarreou.
Saindo do alto-falante no seu peito, o som parecia artificial, feito por
máquina.
— Ainda é muito cedo para julgarmos. Acreditamos que exista
uma pequena chance de que o primeiro contato entre o homem e o

alienígena possa incluir o perigo da contaminação biológica. É por isso
que temos um trato de troca de informações com o projeto de
Copperfield. Um surto inexplicável de uma moléstia desconhecida pode
indicar um contato não reconhecido com uma presença extraterrestre.
—

Mas se isso com que estamos lidando Ă© uma criatura

extraterrestre — falou Bryce, obviamente não convencido —, parece um
bocado selvagem para um ser de inteligĂŞncia "superior".
—

Tive a mesma idéia — disse Jenny. Isley ergueu as

sobrancelhas.
— Não há garantia de que uma criatura com maior inteligência
seja pacifista e benevolente.
— É — falou Arkham. — Esse é um conceito comum: a idéia de
que os alienĂ­genas teriam aprendido a viver em completa harmonia
entre si e com as outras espécies. Como diz a velha canção... "não é
necessariamente

assim".

Afinal

de

contas,

a

humanidade

está

consideravelmente mais adiantada no caminho da evolução do que os
gorilas, mas, como espécie, somos definitivamente mais belicosos do
que eles, no máximo de sua agressividade.
— Quem sabe algum dia vamos encontrar uma raça alienígena
benevolente que nos ensinará a viver em paz? — disse Isley. — Quem
sabe eles nos passarĂŁo o conhecimento e a tecnologia para resolver
todos os nossos problemas terrenos, e até mesmo alcançar as estrelas?
Quem sabe?
—

Mas não podemos eliminar a alternativa — disse Arkham,

sombrio.

26

Londres, Inglaterra

Onze horas da manhĂŁ em Snowfield eram sete horas da noite em
Londres. Uma segunda-feira.
Um dia miseravelmente Ăşmido se transformara numa noite
miseravelmente Ăşmida. Gotas de chuva tamborilavam na janela da
cozinha minúscula do apartamento de duas peças, num sótão, em que
morava Timothy Flyte.
O professor estava parado diante de uma tábua de carne,
preparando um sanduĂ­che.
Depois

de

tomar

aquele

magnĂ­fico

café

da

manhĂŁ

com

champanhe, à custa de Burt Sandler, Timothy não tivera disposição
para almoçar. Também dispensara o chá da tarde.
Dera aula a dois estudantes hoje. Um deles estava aprendendo
análise de hieróglifos, e o outro, latim. Empanturrado com o café da
manhã, quase pegara no sono durante as duas aulas. Embaraçoso.
Porém, pelo pouco que lhe pagavam, seus alunos não podiam reclamar
com muita veemĂŞncia se, apenas esta vez, ele tivesse cochilado no meio
de uma lição.
Enquanto colocava uma fatia fina de presunto cozido e uma de
queijo suíço num pão besuntado de mostarda, escutou o telefone
tocando no VestĂ­bulo da casa de cĂ´modos. NĂŁo pensou que fosse para
ele. Recebia muito poucos telefonemas.
Dali a segundos, porém, ouviu uma batida na porta. Era o jovem
indiano que alugava um quarto no primeiro andar. Num inglĂŞs com
forte sotaque, ele disse a Timothy que o telefonema era para ele. E que
era urgente.
—

Urgente?

Quem

Ă©?

—

perguntou

Timothy,

enquanto

acompanhava o rapaz pelas escadas. — Ele falou quem era?
— Sandler — disse o indiano. Sandler? Burt Sandler?
Durante o café da manhã, eles tinham acertado os termos para
uma nova edição de O inimigo antigo, que seria completamente reescrita
para atrair o leitor comum. Logo depois da publicação original do livro,
há quase dezessete anos, ele recebera várias ofertas para popularizar as

suas teorias sobre os desaparecimentos histĂłricos em massa, mas
resistira à idéia. Achara que a publicação de uma versão popularizada
de O inimigo antigo pareceria estar dando razĂŁo & todos aqueles que tĂŁo
injustamente o tinham acusado de sensacionalismo, fraude e ganância.
Agora, todavia, anos de penúria tinham feito com que encarasse a idéia
com outros olhos. O aparecimento de Sandler e a sua oferta de um
contrato tinham vindo numa hora em que a pobreza cada vez maior de
Timothy chegara a um estágio crítico. Era um verdadeiro milagre. Pela
manhĂŁ tinham acertado um adiantamento (sobre os direitos autorais)
de quinze mil dólares. Ao câmbio atual, dava um pouco mais de oito mil
libras esterlinas. NĂŁo era uma fortuna, mas era mais dinheiro do que
Timothy via num perĂ­odo bem grande de tempo, e no momento lhe
parecia uma fortuna incalculável.
Enquanto descia a escada estreita que levava ao VestĂ­bulo, onde
o telefone ficava numa mesinha debaixo de uma cĂłpia barata de um tela
ruim, Timothy se perguntava se Sandler estaria ligando para cancelar o
acordo.
O coração do professor começou a bater com uma força quase
dolorosa.
O jovem cavalheiro indiano disse:
— Espero que não seja problema, senhor. Depois retornou ao
seu quarto e fechou a porta. Flyte pegou o telefone:
— Alô?
— Meu Deus, leu o jornal da tarde? — perguntou Sandler. A voz
dele estava estridente, quase histérica.
Timothy ficou imaginando se Sandler estava bêbado. Será que
era isso o que considerava assunto urgente?
Antes de Timothy poder responder, Sandler falou:
— Acho que aconteceu! Por Deus, dr. Flyte, acho que aconteceu
de verdade! Deu no jornal vespertino. E deu no rádio. Sem muitos
detalhes. Mas parece mesmo que aconteceu.
A preocupação do professor com o contrato do livro estava agora
aumentada pela exasperação.

— Por favor, quer ser mais específico, sr. Sandler?
— O inimigo antigo, dr. Flyte. Uma daquelas criaturas atacou de
novo. Ontem. Uma cidade na CalifĂłrnia. Alguns estĂŁo mortos. A maioria
está desaparecida. Centenas. Uma cidade inteira. Sumida.
— Deus lenha piedade deles — disse Flyte.
—

lenho um amigo no escritĂłrio da Associated Press em

Londres, e ele leu para mim as últimas notícias que chegaram — disse
Sandler. — Sei de coisas que ainda nem saíram nos jornais. Por
exemplo, a polĂ­cia da CalifĂłrnia expediu um alerta geral para o senhor.
Aparentemente, uma das vĂ­timas tinha lido o seu livro. Quando chegou
o ataque, ele se trancou num banheiro. A coisa o pegou, de qualquer
forma. Mas ele teve tempo suficiente para rabiscar o seu nome e o tĂ­tulo
do seu livro no espelho!
Timothy perdera a fala. Havia uma cadeira junto ao telefone.
Sentiu uma sĂşbita necessidade de sentar-se. Sandler prosseguiu:
—

As autoridades na CalifĂłrnia nĂŁo compreendem o que

aconteceu. Nem se dĂŁo conta de que O inimigo antigo Ă© o tĂ­tulo de um
livro, e nĂŁo sabem a parte que o senhor desempenha em tudo isso. Eles
estão achando que foi um ataque com gás que afeta o sistema nervoso
ou um ato de guerra biológica ou até mesmo contato extraterrestre. Mas
o homem que escreveu o seu nome no espelho sabia que nĂŁo era isso. E
nós também. Conversaremos mais no carro.
— Carro? — perguntou Timothy.
— Meu Deus, espero que o senhor lenha um passaporte.
— É... tenho.
— Vou passar de carro para pegá-lo e levá-lo ao aeroporto.
Quero que vá para a Califórnia, dr. Flyte.
— Mas...
— Esta noite. Há uma vaga mim vôo partindo de Heathrow. Fiz
a reserva em seu nome.
— Mas eu não tenho como pagar...
— A sua editora vai pagar todas as despesas. Não se preocupe.
O senhor precisa ir para Snowfield. NĂŁo vai escrever apenas uma

popularização de O inimigo antigo. Agora não. Vai escrever uma história
bem trabalhada e humana sobre Snowfield, e todo o seu material sobre
os desaparecimentos em massa até hoje e as suas teorias sobre o
inimigo antigo reforçarão a sua narrativa. Está percebendo? Não vai ser
formidável?
— Mas seria correto eu correr para lá agora?
— Como assim? — indagou Sandler.
— Seria correto? — perguntou Timothy, preocupado. — Não iria
parecer que eu estava tentando tirar proveito de uma tragédia terrível?
—

Escute, dr. Flyte, vai haver uma centena de vigaristas em

Snowfield, todos com contratos para livros no bolso das calças. Eles
irĂŁo se apossar do seu material. Se o senhor nĂŁo escrever o livro sobre o
assunto, um deles o escreverá, à sua custa.
— Mas há centenas de mortos — disse Timothy. Sentia-se mal.
— Centenas. A dor, a tragédia...
Era evidente que Sandler estava impaciente com a hesitação do
professor.
— Ora... está bem. Pode ser que tenha razão. Pode ser que eu
nĂŁo tenha realmente parado para pensar no horror da coisa. Mas veja
bem: Ă© por isso que tem que ser o senhor a escrever o livro definitivo
sobre o assunto. Ninguém mais pode trazer ao projeto a sua erudição
ou compaixĂŁo.
— Bem...
Aproveitando-se da hesitação de Timothy, Sandler falou:
— Ótimo. Faça a mala rapidinho. Passo por aí dentro de meia
hora. Sandler desligou e Timothy ficou sentado por um momento,
segurando o fone, escutando o aparelho mudo. Aturdido.

À luz dos faróis do táxi, a chuva era prateada. Inclinava-se ao
vento, como milhares de tiras finas de um brilhante ouropel de Natal.
No chão, ela formava poças mercuriais.
O motorista do táxi era imprudente. O carro voava pelas ruas
escorregadias. Com uma das mãos, Timothy se agarrava com força à

barra de segurança da porta. Era evidente que Burt Sandler prometera
uma bela gorjeta como recompensa pela velocidade.
Sentado ao lado do professor, Sandler dizia:
— Vai haver uma escala em Nova York, mas não será longa. Um
dos nossos irá recebê-lo e acompanhá-lo. Não vamos alertar a mídia em
Nova York. Vamos guardar a entrevista coletiva para SĂŁo Francisco.
Portanto, esteja preparado para enfrentar um exército de repórteres
ansiosos quando saltar do aviĂŁo.
— Será que eu não posso ir discretamente para Santa Mira e me
apresentar às autoridades locais? — perguntou Timothy, desalentado.
— Não, não, não! — disse Sandler, evidentemente horrorizado à
menção desta idéia. — Temos que dar uma entrevista coletiva. O senhor
Ă© o Ăşnico que tem a resposta, dr. Flyte. Temos que deixar que todos
saibam quem é o senhor. Temos que começar a fazer propaganda do
seu prĂłximo livro antes que Norman Mailer deixe de lado o seu Ăşltimo
estudo de Marilyn Monroe e entre nessa jogada de cabeça!
— Ainda nem comecei a escrever este livro.
—

Deus, eu sei. E quando sair publicado, a procura será

fenomenal! O táxi dobrou uma esquina. Os pneus cantaram. Timothy
foi arremessado de encontro Ă  porta.
— Um agente de publicidade estará à sua espera no aeroporto,
em São Francisco. Ele o orientará durante a coletiva — continuou
Sandler. — De um jeito ou de outro ele o levará até Santa Mira. É uma
viagem meio longa, e talvez possa ser feita de helicĂłptero.
— Helicóptero? — disse Timothy, atônito.

O táxi passou por cima de uma poça funda, lançando ao ar
plumas de água prateada.
O aeroporto estava Ă  vista.
Burt Sandler estivera falando ininterruptamente desde que
Timothy entrara no carro. Agora, estava dizendo:
— Mais uma coisa. Na entrevista coletiva, conte a eles as
histĂłrias que me contou hoje de manhĂŁ. Sobre os maias desaparecidos.

E os trĂŞs mil soldados da infantaria chinesa que sumiram. E nĂŁo deixe
de fazer qualquer referĂŞncia possĂ­vel aos desaparecimentos em massa
ocorridos nos Estados Unidos, mesmo antes de existir o paĂ­s, mesmo
em eras geológicas anteriores. Isso agradará à imprensa americana.
Laços locais. Isso sempre ajuda. A primeira colônia britânica nos
Estados Unidos nĂŁo sumiu sem deixar vestĂ­gios?
— Foi. A colônia de Roanoke Island.
— Não deixe de mencioná-la.
—

Mas

eu

nĂŁo

posso

dizer

conclusivamente

que

o

desaparecimento da colônia de Roanoke tem ligação com o inimigo
antigo.
—

Mas será que existe alguma chance de que tenha tido?

Fascinado, como sempre, por este tĂłpico, Timothy foi capaz, pela
primeira vez, de desviar a sua atenção do comportamento suicida do
chofer de táxi.
— Quando uma expedição britânica, financiada por Sir Walter
Raleigh, retornou à colônia de Roanoke, em março de 1590, descobriu
que todo mundo sumira. Cento e vinte pessoas tinham desaparecido
sem deixar vestĂ­gios. Formularam-se inĂşmeras teorias quanto ao seu
destino. A mais popular delas, por exemplo, afirma que as pessoas em
Roanoke Island foram vĂ­timas dos Ă­ndios croatoan, que viviam prĂłximo
dali. A Ăşnica mensagem deixada pelos colonos foi o nome dessa tribo,
riscada às pressas num tronco de árvore. Mas os croatoan asseveraram
nada saber sobre o desaparecimento. E eram Ă­ndios pacĂ­ficos. Nem um
pouquinho belicosos. Na verdade, tinham até ajudado os colonos a se
instalar, no início. Além do mais, não havia sinais de violência no
povoado. Jamais se encontrou um sĂł corpo. Ou ossos. Ou covas.
Portanto, como vê, até mesmo a teoria mais aceita levanta um número
maior de perguntas do que de respostas.
O táxi fez outra curva alucinada, freou abruptamente para evitar
colidir com um caminhĂŁo.
Agora, porém, Timothy mal se dava conta da conduta temerária
do motorista. Ele continuou:

— Ocorreu-me que a palavra que os colonos tinham entalhado
na árvore — croatoan — podia não ter tido a intenção de apontar um
dedo acusador para os Ă­ndios. Podia significar que eles saberiam o que
tinha acontecido. Li os diários de diversos exploradores britânicos que
mais tarde falaram com os croatoan sobre o desaparecimento da
colĂ´nia, e existem evidĂŞncias de que os Ă­ndios realmente tinham uma
idéia do que acontecera. Ou pensavam que tinham. Mas não foram
levados muito a sério quando tentaram explicá-la ao homem branco. Os
croatoan relataram que, simultaneamente com o desaparecimento dos
colonos, houvera uma grande diminuição na quantidade de caça nas
florestas e campos em que a tribo caçava. Virtualmente todas as
espécies de animais selvagens tinham tido o seu número reduzido de
forma drástica. Um ou dois dos exploradores mais perceptivos
comentaram em seus diários que os índios encaravam o assunto com
temor supersticioso. Pareciam ter uma explicação religiosa para o
desaparecimento.

Infelizmente,

porém,

os

homens

brancos

que

conversaram com eles sobre os colonos desaparecidos nĂŁo estavam
interessados em superstições indígenas e não foram adiante com essa
linha de interrogatĂłrio.
—

Presumo que tenha pesquisado as crenças religiosas dos

croatoan — falou Burt Sandler.
— Sim — replicou Timothy. — Não é um assunto fácil, pois a
tribo está extinta há muitos e muitos anos. O que descobri foi que os
croatoan eram espiritualistas. Acreditavam que o espĂ­rito sobrevivia e
andava pela terra mesmo depois da morte do corpo, e que havia
"espíritos maiores" que se manifestavam nos elementos — vento, terra,
fogo, água e assim por diante. O mais importante de tudo, no que nos
diz respeito, é que eles também acreditavam num espírito mau, uma
fonte de todo o mal, um equivalente ao Satanás dos cristãos. Não me
lembro da palavra indígena exata para ele, mas a tradução é Aquele
Que Pode Ser Qualquer Coisa Mas Não É Nada.
— Meu Deus — disse Sandler. — Não é uma má descrição do
inimigo antigo.

—

Às vezes existem verdades ocultas nas superstições. Os

croatoan acreditavam que tanto os animais selvagens quanto os colonos
tinham sido levados por Aquele Que Pode Ser Qualquer Coisa Mas NĂŁo
É Nada. Assim, conquanto eu não possa dizer conclusivamente que o
inimigo antigo teve algo a ver com o desaparecimento dos colonos de
Roanoke Island, parece haver uma razĂŁo suficiente para levar a
possibilidade em consideração.
— Fantástico! — exclamou Sandler. — Conte tudo isso a eles na
coletiva em SĂŁo Francisco. Exatamente como me contou.
0 táxi parou brusca e ruidosamente na frente do terminal. Burt
Sandler enfiou algumas notas de cinco libras na mĂŁo do chofer. Depois,
lançou um olhar ao relógio de pulso.
— Dr. Flyte, vamos para o avião.
Do seu assento junto Ă  janela, Timothy Flyte ficou vendo as
luzes da cidade desaparecendo sob as nuvens tormentosas. O jato alçou
vĂ´o em meio Ă  chuva fina. Logo, subiram acima da coberta de nuvens; a
tempestade ficara abaixo deles, o céu claro acima. Os raios da lua
ricocheteavam no topo revolto das nuvens, e a noite que ficava para
além do avião enchia-se com uma luz suave, fantástica.
O aviso para apertar cintos foi desligado.
Ele soltou o seu, mas nĂŁo conseguiu relaxar. Sua mente estava
tĂŁo revolta quanto as nuvens tormentosas.
A comissária de bordo passou oferecendo bebidas. Ele pediu um
uĂ­sque.
Sentia-se como uma mola enroscada. Da noite para o dia, a sua
vida se modificara. Neste único dia ele tivera mais emoções do que no
ano passado inteiro.
A tensão que o acometia não era desagradável. Estava mais do
que feliz de se descartar da sua existĂŞncia monĂłtona; estava vestindo
uma vida nova e melhor com a mesma rapidez com que vestiria um
terno novo. Estava correndo o risco de cair no ridĂ­culo e de ver repetidas
todas as velhas acusações, ao tornar públicas de novo as suas teorias.
Mas também havia uma chance de que finalmente pudesse provar o seu

valor.
O uĂ­sque chegou, e ele o tomou. Pediu mais um. Lentamente foi
relaxando.
Para além do avião, a noite era vasta.

27

Fuga

Da janela gradeada da cela de detenção temporária, Fletcher
Kale tinha uma boa visĂŁo da rua. Durante toda a manhĂŁ ele viu os
repĂłrteres se reunindo. Acontecera alguma coisa realmente grande.
Alguns dos outros presos estavam trocando notĂ­cias, de cela
para cela, mas nenhum deles queria partilhar coisa alguma com Kale.
Eles o odiavam. Muitas vezes o insultavam, chamavam-no de
matador de bebês. Até mesmo na cadeia havia classes sociais, e
ninguém estava mais por baixo do que os assassinos de crianças.
Era quase engraçado. Até mesmo ladrões de carros, assaltantes,
ladrões comuns, assaltantes a mão armada e autores de desfalques
necessitavam sentir-se moralmente superiores a alguém. Então eles
abominavam e perseguiam qualquer um que fizera mal a uma criança,
e, de certa forma, aquilo fazia com que se sentissem como padres e
bispos, por comparação.
Idiotas. Kale os desprezava.
Não pediu a ninguém para compartilhar com ele a informação.
Não lhes daria a satisfação de vê-lo tentar uma aproximação.
Esticou-se no seu catre e ficou sonhando de olhos abertos com o

seu destino magnĂ­fico: fama, poder, fortuna...
Ă€s onze e meia ainda estava deitado no catre quando vieram
buscá-lo

para

levá-lo

ao

tribunal,

onde

seria

citado

por

dois

assassinatos. O guarda da detenção abriu a porta. Outro homem — um
delegado grisalho e barrigudo — entrou e colocou as algemas em Kale.
— Estamos com pouca gente hoje — disse ele a Kale. — Sou o
único destacado para isso. Mas não encha a cabeça com idéias idiotas
de que teria uma chance de tentar escapar. Você está algemado, e eu
estou armado, e nada me daria mais prazer do que lhe meter um tiro no
rabo.
Tanto nos olhos do guarda quanto nos do delegado, via-se asco.
Finalmente, a possibilidade de passar o resto da vida na prisĂŁo
tornou-se real para Kale. Para sua surpresa, ele começou a chorar
enquanto era conduzido para fora da cela.
Os outros prisioneiros vaiavam, riam e xingavam.
O barrigudo cutucou Kale nas costelas.
— Mexa-se.
Kale desceu o corredor com pernas trĂ´pegas, passou por um
portão de segurança que se abriu para eles, deixando para trás o setor
de celas, e entrou noutro corredor. O guarda permaneceu ali mesmo,
mas o delegado foi cutucando Kale na direção dos elevadores,
cutucando-o com freqüência demais e com força demais, mesmo
quando não era necessário. Kale sentiu a sua autopiedade ceder lugar à
raiva.
No elevador pequeno que descia lentamente, ele se deu conta de
que o delegado não mais considerava o prisioneiro uma ameaça. Estava
enojado, impaciente e embaraçado com o colapso emocional de Kale.
Quando as portas se abriram, uma mudança também já
ocorrera em Kale. Ainda chorava baixinho, mas as lágrimas não eram
mais genuínas, e estava tremendo de excitação, não de desespero.
Passaram por outro ponto de vistoria. O delegado apresentou
alguns papéis a um outro guarda, que o chamou de Joe. O guarda
olhou para Kale com desdém indisfarçável. Kale desviou o rosto como se

estivesse com vergonha de si mesmo. E continuou chorando.
E entĂŁo ele e Joe estavam do lado de fora, cruzando um grande
estacionamento na direção de uma fila de carros de polícia verde e
branco que se achavam enfileirados diante de uma cerca de proteção
contra ciclones. O dia estava quente e ensolarado.
Kale continuou a chorar e fingir que estava de perna mole.
Mantinha os ombros curvados e a cabeça baixa. Ia arrastando os pés,
apático, como se fosse um homem alquebrado, derrotado.
Excetuando ele prĂłprio e o delegado, o estacionamento estava
deserto. SĂł eles dois. Perfeito.
Durante todo o percurso até o carro, Kale ficou procurando o
momento certo de agir. Chegou até a pensar que ele não viria.
EntĂŁo Joe empurrou-o de encontro a um carro e virou-se
parcialmente para destrancar a porta — e Kale atacou. Jogou-se contra
o delegado enquanto o homem se inclinava para enfiar a chave na
fechadura. O delegado soltou uma exclamação e deu-lhe um soco.
Tarde demais. Kale abaixou-se, esquivando-se do soco, depois ergueuse rapidamente e jogou o outro de encontro ao carro, imprensando-o. O
rosto de Joe ficou branco de dor quando o trinco do carro bateu com
força na base de sua espinha. O molho de chaves voou da sua mão e,
enquanto caĂ­a, ele usou a mesma mĂŁo para tentar tirar o revĂłlver do
coldre.
Kale sabia que, com as mĂŁos algemadas, nĂŁo conseguiria
arrancar a arma do outro. TĂŁo logo o revĂłlver fosse sacado, a luta
estaria terminada.
EntĂŁo Kale partiu para cima da garganta do homem. Com os
dentes. Mordeu fundo, sentiu o sangue jorrando, mordeu de novo,
empurrou a boca na ferida, como um cĂŁo raivoso, e mordeu de novo, e o
delegado gritou, mas era apenas um ganido-gorgolejo-suspiro que
ninguém podia ter ouvido, e a arma caiu do coldre e da mão em
espasmos do delegado, os dois homens foram ao chĂŁo violentamente,
com Kale por cima, e o delegado tentou gritar de novo; entĂŁo Kale
enfiou-lhe o joelho na genitalia, e o sangue saía aos borbotões da

garganta do homem.
— Filho da mãe — disse Kale.
Os olhos do delegado se velaram. O sangue parou de jorrar da
ferida. Estava acabado.
Kale jamais se sentira tĂŁo poderoso, tĂŁo vivo.
Correu os olhos pelo estacionamento. Ainda ninguém à vista.
Foi pegar o molho de chaves, experimentou-as de uma em uma
até destrancar as algemas. Jogou-as sob o carro.
Rolou o cadáver do delegado para baixo do carro-patrulha
também, escondendo-o.
Limpou o rosto na manga. Sua camisa estava pintalgada e
manchada de sangue. NĂŁo havia nada que pudesse fazer a respeito.
Tampouco podia mudar o fato de estar usando roupas de prisĂŁo, azuis,
folgadas, de tecido áspero, e um par de alpargatas de lona e borracha.
Atravessou o beco e entrou noutro estacionamento, por trás de
um bloco de apartamentos grandes, de dois andares. Ergueu os olhos
para as janelas e torceu para que não houvesse ninguém vendo.
Havia talvez uns vinte carros no estacionamento. Um Datsun
amarelo estava com as chaves na ignição. Ele se sentou ao volante,
fechou a porta e soltou um suspiro de alĂ­vio. NĂŁo estava mais Ă  vista, e
tinha um meio de transporte.
Havia uma caixa de lenços de papel sobre o painel. Usando os
lenços e cuspe, ele limpou o rosto. Tendo retirado o sangue, olhou-se no
espelho retrovisor — e abriu um sorriso.

28
Contagem de corpos

Enquanto a unidade do general Copperfield realizava a autĂłpsia

e os testes no laboratĂłrio de campo mĂłvel, Bryce Hammond formou
duas equipes de busca e começou uma revista prédio-a-prédio na
cidade. Frank Autry liderava o primeiro grupo, e o major Isley ia junto
como observador para o projeto Skywatch. Da mesma forma, o capitĂŁo
Arkham se reuniu ao grupo de Bryce. Quadra por quadra, rua por rua,
as duas equipes nunca se deixavam ficar separadas por mais de um
prédio, e mantinham um contato constante por meio dos walkie-talkies.
Jenny acompanhava Bryce. Mais do que qualquer outra pessoa,
ela conhecia os residentes de Snowfield, e era a pessoa mais indicada
para identificar quaisquer corpos que fossem encontrados. Na maioria
dos casos, também poderia dizer-lhes quem morava em cada casa e o
número de pessoas em cada família — informação de que necessitavam
para fazer a lista dos desaparecidos.
Aborrecia-a ter que expor Lisa a outras cenas horripilantes, mas
nĂŁo podia se recusar a ajudar a equipe de busca. Tampouco podia
deixar a irmĂŁ sozinha no Hilltop. NĂŁo depois do que acontecera a
Harker. E a Velazquez. Mas a mocinha agĂĽentou bem a tensĂŁo da
revista de casa em casa. Ainda estava provando o seu valor a Jenny, e
esta se sentia cada vez mais orgulhosa da irmĂŁ.
Durante algum tempo nĂŁo encontraram corpo algum. As
primeiras lojas e casas em que entraram estavam desertas. Em várias
casas, a mesa estava posta para o jantar de domingo. Em outras, as
banheiras estavam cheias de água que esfriara. Em diversos lugares os
aparelhos de TV ainda estavam ligados, mas não havia ninguém para
assistir aos programas.
Em uma das cozinhas eles descobriram o jantar de domingo no
fogão elétrico. A comida nas três panelas tinha cozinhado por tantas
horas que toda a água se,evaporara. As sobras estavam secas, duras,
queimadas, empoladas, inidentificáveis. As panelas de aço inoxidável,
destruídas — preto-azuladas por dentro e por fora. Os cabos de plástico
das panelas tinham amolecido e derretido parcialmente. A casa inteira
recendia ao fedor mais acre e nauseante que Jenny já encontrara.
Bryce torceu os botões e desligou o fogão.

— É um milagre que a casa toda não tenha pegado fogo.
— Provavelmente teria, se o fogão fosse a gás — disse Jenny.
Acima das três panelas havia uma coifa de aço inoxidável com um
exaustor. Quando a comida pegara fogo, a coifa contivera a explosĂŁo de
chamas de curta duração e impedira que o fogo se alastrasse para os
armários vizinhos.
Novamente do lado de fora, todo mundo, exceto o major Arkham
no seu traje de descontaminação, inspirou profundamente o ar limpo da
montanha. Precisaram de alguns minutos para extirpar dos pulmões
aquela coisa asquerosa que tinham aspirado dentro da casa.
EntĂŁo, na rasa ao lado, eles encontraram o primeiro corpo do
dia. Era John Farley, dono da Mountain Tavern, que abria somente
durante a temporada de esqui. Estava na casa dos quarenta anos. Fora
um homem muito atraente, os cabelos pintalgados de preto e branco,
nariz grande e boca generosa que freqĂĽentemente se curvara num
sorriso imensamente cativante. Agora estava inchado e pisado, os olhos
saltando das Ăłrbitas, as roupas estourando nas costuras por causa do
inchaço do corpo.
Farley

se

achava

sentado

Ă 

mesa

do

café,

numa

das

extremidades da sua cozinha grande. Num prato Ă  sua frente havia uma
refeição de ravióli recheado com queijo e almôndegas. Havia também
um copo de vinho tinto. Farley estava sentado na cadeira, corpo ereto.
Uma das mĂŁos no colo, de palma para cima. A outra mĂŁo em cima da
mesa, agarrando uma cĂ´dea de pĂŁo. Sua boca estava parcialmente
aberta, e havia um naquinho de pĂŁo preso entre seus dentes. Ele
perecera no ato de mastigar; os mĂşsculos do maxilar nem haviam se
relaxado.
— Santo Deus — disse Tal —, ele nem teve tempo de cuspir fora
a comida, ou engoli-la. A morte deve ter sido instantânea.
— E ele também não a viu chegar — falou Bryce. — Olhe só
para o rosto dele. Não há expressão de horror ou surpresa ou choque,
como na maioria dos outros.
Fitando os maxilares retesados do morto, Jenny falou:

— O que eu não entendo é por que a morte não traz o menor
relaxamento dos músculos. É extraordinário.

Na igreja de Nossa Senhora da Montanha, a luz do sol varava os
vitrais, compostos predominantemente de azuis e verdes. Centenas de
manchas irregulares de azul-real, azul-celeste, turquesa, água-marinho,
verde-esmeralda e muitas outras tonalidades pingavam por sobre os
bancos

de

madeira

encerados,

empoçavam-se

nos

corredores

e

cintilavam nas paredes.
É como estar dentro d'água, pensou Gordy Brogan, seguindo
atrás de Frank Autry pela nave estranha e lindamente iluminada.
Logo além da nártex, um jato de luz carmesim iluminava a pia
de mármore branco que continha a água benta. Era o carmesim do
sangue de Cristo. O sol penetrava uma imagem de vitral do Sagrado
Coração de Jesus e lançava raios sangüíneos sobre a água que brilhava
na pia de mármore pálido.
Dos cinco homens da equipe de busca, apenas Gordy era
católico. Ele Umedeceu dois dedos na água benta, fez o sinal-da-cruz e
se ajoelhou.
A igreja era solene, silenciosa, quieta.
O ar era suavizado por um leve traço agradável de incenso.
Não havia fiéis nos bancos. A princípio parecia que a igreja
estava deserta.
EntĂŁo Gordy olhou mais atentamente para o altar e soltou uma
exclamação abafada.
Frank também o viu.
— Oh, meu Deus.
O santuário estava envolto em mais sombras do que o restante
da igreja, e por isso os homens nĂŁo tinham reparado imediatamente na
coisa horrenda — e sacrílega — acima do altar. As velas do altar tinham
ardido até o fim e se queimado.
Todavia, Ă  medida que os homens da equipe de busca
caminhavam hesitantes pelo corredor central, iam tendo uma visĂŁo

cada vez mais clara do crucifixo em tamanho natural que se erguia do
centro do altar, ao longo da parede dos fundos do santuário. Era uma
cruz de madeira, com uma figura de Cristo de gesso vitrificado, pintada
a mĂŁo, meticulosamente detalhada no lenho. No momento, grande parte
da imagem piedosa estava obscurecida por outro corpo que pendia na
sua frente. Um corpo de verdade, nĂŁo outra figura de gesso. Era o
padre, de batina; estava pregado, Ă  cruz.
Dois coroinhas ajoelhavam-se no chĂŁo diante do altar. Estavam
mortos, pisados, intumescidos.
A carne do padre começara a escurecer e a mostrar outros sinais
de decomposição iminente. Seu corpo não estava na mesma condição
bizarra dos que tinham sido encontrados até então. No caso dele, a
descoloração era o que se esperaria de um cadáver de um dia.
Frank Autry, o major Isley e os outros dois delegados
atravessaram a portinhola na grade do altar e entraram no santuário.
Gordy nĂŁo conseguiu entrar com eles. Estava abalado demais e
teve que se sentar no banco da frente para nĂŁo cair.
Depois de inspecionar o santuário e dar uma olhada pela porta
da sacristia, Frank usou o seu walkie-talkie para chamar Bryce no
prédio ao lado.
— Xerife, encontramos três aqui na igreja. Precisamos da dra.
Paige para as identificações. Mas a coisa é muito horripilante, portanto
Ă© melhor deixar Lisa no VestĂ­bulo com alguns homens.
— Estaremos aí em dois minutos — disse o xerife.
Frank saiu do santuário, atravessou a portinhola na grade e veio
sentar-se ao lado de Gordy. Segurava o aparelho transmissor-receptor
numa das mĂŁos e um revĂłlver na outra.
— Você é católico.
— Sou.
— Lamento que tenha sido forçado a ver isso.
— Tudo bem — falou Gordy. — Não é mais fácil para você só
porque nĂŁo Ă© catĂłlico.
— Conhece o padre?

—

Acho que o nome dele Ă© padre Callahan. Mas eu nĂŁo

frenqüentava esta igreja. Ia à missa na St. Andrew, lá em Santa Mira.
Frank largou o walkie-talkie e coçou o queixo.
— Por todos os indícios que ja tínhamos, parecia que o ataque
acontecera ontem Ă  noitinha, pouco antes da doutora e Lisa chegarem Ă 
cidade. Mas agora, isso... Se esses trĂŞs morreram de manhĂŁ, durante a
missa...
— Provavelmente foi durante a bênção — falou Gordy. — Não a
missa.
— Benção?
— A bênção do Sacramento Consagrado, o serviço religioso do
anoitecer de domingo.
—

Ah. EntĂŁo se encaixa direitinho com a hora em que

aconteceu com os outros. — Correu os olhos pelos bancos vazios. — O
que aconteceu aos fiéis? Por que só o padre e os coroinhas estão aqui?
— Bem, não é muita gente que comparece à bênção — explicou
Gordy. — Provavelmente havia mais duas ou três pessoas. Mas aquilo
certamente as levou.
— Por que não levou todo mundo? — Gordy não deu resposta.
— Por que tinha que fazer uma coisa dessas"! — insistiu Frank.
— Para nos ridicularizar. Para debochar de nós. Para roubar a
nossa esperança — disse Gordy, com profunda tristeza.
Frank o fitava. Gordy continuou:
— Talvez alguns de nós estivéssemos contando com Deus para
nos tirar com vida disso tudo. Provavelmente a maioria de nĂłs estivesse.
Eu

sei

que

tenho

rezado

muito

desde

que

chegamos

aqui.

Provavelmente você também. Aquilo sabia que faríamos isso. Sabia que
pedirĂ­amos ajuda a Deus. EntĂŁo, essa Ă© a sua maneira de nos mostrar
que Deus nĂŁo pode nos ajudar. Ou, pelo menos, Ă© o que quer que a
gente acredite. Por que esse Ă© o seu jeito. Instilar dĂşvidas sobre Deus.
Esse sempre foi o seu jeito.
Frank disse:
—

VocĂŞ fala como se soubesse exatamente o que estamos

enfrentando aqui.
— Talvez — replicou Gordy. Fitou o padre crucificado, depois se
voltou novamente para Frank. — Você não sabe? Não sabe mesmo,
Frank?

Depois que saĂ­ram da igreja e dobraram a esquina que levava Ă 
rua transversal, encontraram dois carros batidos.
Um Cadillac Seville percorrera o gramado fronteiro Ă  casa
paroquial, destruindo a vegetação rasteira no seu caminho, e fora
colidir com um poste da varanda num dos cantos da casa. O poste
quase fora rachado em dois. O telhado da varanda tinha cedido.
Tal Whitman espiou pelo vidro lateral do Cadillac.
— Tem uma mulher ao volante.
— Morta? — perguntou Bryce.
— É. Mas não do acidente.
Do outro lado do carro, Jenny tentou abrir a porta do motorista.
Estava trancada. Todas as portas estavam trancadas, os vidros
levantados até em cima.
Apesar disso, a mulher ao volante — Edna Gower; Jenny a
conhecia — estava como os outros cadáveres. Cheia de pisaduras
escuras. Inchada. Um grito de terror congelado no rosto retorcido.
— Como é que a coisa pôde entrar aí e matá-la? perguntou Tal
em voz alta.
—

Lembre-se do banheiro trancado na Candleglow — falou

—

E do quarto com barricadas na casa dos Oxleys — falou

Bryce.

Jenny. O capitĂŁo Arkham falou:
— É quase um argumento a favor da teoria do general quanto
ao gás que afeta o sistema nervoso.
EntĂŁo Arkham retirou do cinto de utilidades um contador Geiger
em miniatura e examinou o carro cuidadosamente. Mas nĂŁo fora
radiação o que matara a mulher lá dentro.
O segundo carro, a meia quadra de distância, era um Lynx

branco-perolado. No chĂŁo Ă s costas dele viam-se marcas pretas de
derrapagem. O Lynx estava atravessado no meio da rua, bloqueando-a.
A parte dianteira colidira com a lateral de um furgĂŁo Chevrolet amarelo.
Mas os danos nĂŁo tinham sido grandes porque o Lynx quase conseguira
frear completamente antes de atingir o veĂ­culo estacionado.
O motorista era um homem de meia-idade com fartos bigodes.
Estava usando jeans cortados Ă  altura dos joelhos e uma camiseta dos
Dodgers. Jenny também o conhecia. Marty Sussman. Há seis anos era o
administrador municipal de Snowfield. O simpático e interessado Marty
Sussman. Morto. Mais uma vez, a causa da morte evidentemente nĂŁo se
relacionava com a colisĂŁo.
As portas do Lynx estavam trancadas, os vidros levantados até
em cima, exatamente como no Cadillac.
— Parece que ambos estavam tentando escapar de alguma coisa
— falou Jenny.
— Talvez — disse Tal. — Ou podem ter apenas saído para dar
um passeio ou cumprir alguma tarefa quando chegou o ataque. Se
estavam tentando fugir, alguma coisa os deteve abruptamente,
forçando-os a sair da rua.
— Domingo foi um dia quente. Quente, mas não quente demais
— falou Bryce. — Não quente o suficiente para se rodar com os vidros
fechados e o ar-condicionado ligado. Era o tipo do dia em que a maioria
das pessoas arria os vidros, aproveitando o ar puro. Portanto, me
parece que, depois que eles foram forçados a parar, ergueram os vidros
e trancaram as portas, tentando impedir que algo entrasse.
— Mus esse algo os pegou, de qualquer maneira — disse Jenny.
Aquilo.

Ned e Sue Marie Bischoff eram donos de uma linda casa em
estilo Tudor, num lote de terreno duplo, aninhada entre imensos
pinheiros. Moravam ali com seus dois filhos. Lee Bischoff, aos oito anos,
tocava piano surpreendentemente bem, a despeito da pequenez das
suas mĂŁos, e certa feita dissera a Jenny que ia ser o prĂłximo Stevie

Wonder, "sĂł que sem ser cego". Terry, de seis anos, parecia-se
exatamente com um Pimentinha de pele negra, mas tinha bom gĂŞnio.
Ned era um artista bem-sucedido. As suas telas a Ăłleo eram
vendidas até por seis ou sete mil dólares, e as suas gravuras em edição
limitada custavam de quatrocentos a quinhentos dĂłlares cada.
Ele era paciente de Jenny. Embora tivesse apenas 32 anos e já
fosse um sucesso na vida, ela o tratava de Ăşlcera.
A Ăşlcera nĂŁo o incomodaria mais. Estava no estĂşdio, deitado no
chĂŁo na frente de um cavalete, morto.
Sue Marie estava na cozinha. Como Hilda Beck, a governanta de
Jenny, e como muitas outras pessoas por toda a cidade, Sue Marie
morrera enquanto preparava o jantar. Fora uma mulher bonita. NĂŁo era
mais.
Encontraram os dois meninos num dos quartos.
Era um quarto maravilhoso para crianças, espaçoso e arejado,
com camas beliche. Havia estantes embutidas cheias de livros infantis.
Das paredes pendiam os quadros que Ned pintara para os seus garotos,
cenas extravagantes e fantásticas, bem diferentes das telas que o
tornaram famoso: um porco de smoking, dançando com uma vaca de
vestido de baile; o interior da câmara de comando de uma nave
espacial, onde todos os astronautas eram sapos; uma cena sinistra mas
encantadora de um playground escolar Ă  noite, banhado pela luz da lua
cheia, vazio de crianças, mas com um lobisomem imenso e de aparência
monstruosa divertindo-se à grande nos balanços.
Os meninos estavam num canto, para além de um monte de
brinquedos espalhados. O mais moço, Terry, achava-se atrás de Lee,
que parecia ter feito um violento esforço para proteger o irmão menor.
Os meninos fitavam o quarto com olhos saltados, os olhares mortos
ainda fixos naquilo que os ameaçara na véspera. Os músculos de Lee
tinham se travado, deixando seus bracinhos finos na mesma posição
em que tinham estado nos Ăşltimos segundos de sua vida: erguidos
diante do corpo, protegendo-o, as mĂŁos espalmadas como que a impedir
golpes.

Bryce ajoelhou-se na frente das crianças. Levou uma mão
trĂŞmula ao rosto de Lee, como se nĂŁo quisesse acreditar que o menino
estivesse realmente morto.
Jenny ajoelhou-se ao lado dele.
— Estes são os dois filhos dos Bischoffs, — falou, sem conseguir
controlar a emoção na voz. — Então agora a família está completa.
As lágrimas escorriam pelo rosto de Bryce.
Jenny tentou se lembrar da idade do filho dele. Sete ou oito?
Mais ou menos a mesma idade de Lee Bischoff. O pequeno Timmy
Hammond estava deitado no hospital em Santa Mira neste exato
momento, em coma, do jeito que tinha estado neste ano que passara.
Era praticamente um vegetal. É, mas até uma coisa dessas era melhor
do que isto aqui. Qualquer coisa era melhor do que isto aqui.
Aos poucos, as lágrimas de Bryce foram secando. Ele estava
cheio de raiva agora.
— Vou pegá-los por isto — falou. — Seja quem for que fez isto...
vou fazĂŞ-los pagar.
Jenny jamais conhecera um homem como ele. Tinha força e
determinação masculinas consideráveis, mas também era capaz de
ternura.
Teve vontade de abraçá-lo. E de ser abraçada.
Porém, como sempre, era discreta demais quanto à expressão do
seu estado emocional. Se fosse mais aberta, como ele, jamais teria se
afastado da mĂŁe. Mas nĂŁo era assim, ainda nĂŁo, embora desejasse ser.
Assim, em resposta ao juramento dele de pegar os matadores dos filhos
dos Bischoffs, ela falou:
— Mas, e se o que os matou não for humano? Nem todo o mal
está nos homens. Existe o mal na natureza. A malignidade cega de um
terremoto. O mal indiferente do câncer. Isso aqui pode ser algo assim —
remoto e irresponsável. Não poderemos levá-lo aos tribunais se nem for
humano. E entĂŁo?
—

Seja quem diabo for ou o que diabo for, vou pegá-lo. Vou

detê-lo. Vou fazer com que pague pelo que foi feito aqui — falou ele,

teimosamente.
A equipe de busca de Frank Autry vasculhou mais trĂŞs casas
desertas depois de sair da igreja catĂłlica. A quarta casa nĂŁo estava
vazia. Encontraram Wendell Hulbertson, um professor de escola
secundária que trabalhava em Santa Mira mas optara por morar aqui
nas montanhas, numa casa que já pertencera à sua mãe. Gordy fora
aluno de inglĂŞs de Hulbertson cinco anos antes. O professor nĂŁo estava
inchado ou machucado como os outros cadáveres; tirara a própria vida.
Acuado num canto do seu quarto, ele pusera o cano de uma 32
automática na boca e puxara o gatilho. Evidentemente, a morte pelas
prĂłprias mĂŁos fora preferĂ­vel ao que aquilo estava prestes a fazer com
ele.
Depois de deixar a residĂŞncia dos Bischoffs, Bryce conduziu o
seu grupo por mais algumas casas, sem encontrar corpo algum. EntĂŁo,
na quinta casa, descobriram um casal idoso trancado no banheiro,
onde tinham tentado se esconder do assassino. A mulher estava largada
dentro da banheira. O marido, encolhido no chĂŁo.
—

Eram pacientes meus — disse Jenny. — Nick e Melina

Papandrakis.
Tal anotou os seus nomes na lista dos mortos.
Como

Harold

Ordnay

e

a

mulher

na

Candleglow,

Nick

Papandrakis tentara deixar uma mensagem que pudesse indicar o
assassino. Tirara um pouco de iodo do armário de remédios e usara-o
para escrever na parede. NĂŁo tivera chance de terminar ao menos uma
palavra. Havia apenas duas letras e parte de uma terceira:

PRi
—

Alguém consegue adivinhar o que ele queria escrever? —

perguntou Bryce.
Um de cada vez, entraram no banheiro e, passando por cima do
corpo de Nick Papandrakis, foram espiar as letras marrom-alaranjadas
na parede, mas nenhum deles teve um lampejo de inspiração.
— Balas.
Na casa ao lado da de Papandrakis, o chĂŁo da cozinha estava
coalhado de balas. NĂŁo cartuchos inteiros. Apenas dĂşzias de balas de
chumbo, sem os invĂłlucros de metal.
O fato de nĂŁo haver invĂłlucros ejetados em parte alguma
indicava que os disparos nĂŁo tinham sido feitos aqui. NĂŁo havia cheiro
de pólvora. Nenhum buraco de bala nas paredes ou armários.
Havia apenas balas espalhadas por todo o chĂŁo, como se
tivessem chovido magicamente, vindas do nada.
Frank Autry pegou do chão um punhado dos pedaços cinzentos
de metal. Não era um perito em balística, porém, como estranhamente
nenhuma das balas estava fragmentada ou muito deformada, ele pĂ´de
perceber que elas provinham de uma variedade de armas. A maioria
delas — dezenas e dezenas delas — parecia ser do tipo e do calibre de
munição que era disparada pelas metralhadoras portáteis com as quais
as tropas de apoio do general Copperfield estavam armadas.
Será que essas balas são da arma do sargento Harker?
questionou-se Frank. Será que são os tiros que Harker disparou no seu
assassino no frigorĂ­fico do Mercado Gilmartin?
Franziu o cenho, perplexo.
Largou as balas e elas caĂ­ram ruidosamente ao chĂŁo. Ele
apanhou dos ladrilhos diversas outras balas. Havia uma 22 e uma 32,
outra 22 e uma 38. Havia até mesmo um bocado de chumbo de
espingarda de caça.
Apanhou uma Ăşnica bala calibre 45 e examinou-a com interesse
especial. Era exatamente o tipo de munição que usava no seu revólver.
Gordy Brogran agachou-se ao seu lado.
Frank nĂŁo olhou para Gordy. Continuou a fitar atentamente a
bala. Estava se debatendo com um pensamento sinistro.

Gordy pegou algumas balas do piso da cozinha.
— Elas não estão nem um pouco deformadas.
Frank assentiu.
— Devem ter acertado em alguma coisa — continuou Gordy. —
Então, deveriam estar deformadas. Pelo menos algumas delas. — Fez
uma pausa, depois falou: — Ei, você está a um milhão de quilômetros
de distância. No que está pensando?
— Paul Henderson. — Frank ergueu a bala 45 diante do rosto
de Gordy. — Paul disparou três destas ontem à noite, lá na
subdelegacia.
— Contra o seu assassino.
— É.
— E daí?
— Daí que estou com o palpite maluco de que, se pedíssemos ao
laboratĂłrio para fazer um teste de balĂ­stica nela, eles descobririam que
saiu do revĂłlver de Paul.
Gordy pestanejou, fitando-o.
— E — continuou Frank — também acho que, se procurarmos
no meio de todas essas balas no chĂŁo, iremos encontrar mais duas
exatamente como esta. NĂŁo apenas mais uma. Nem tampouco mais
trĂŞs. SĂł mais duas, exatamente com as mesmas marcas desta aqui.
— Quer dizer, as mesmas três que Paul disparou ontem à noite.
— É.
— Mas como é que vieram de lá para cá?
Frank não respondeu. Em vez disso, ficou de pé e apertou o
botĂŁo do walkie-talkie.
— Xerife?
A voz de Bryce Hammond saiu vivamente do pequeno altofalante.
— O que é, Frank?
—

Ainda estamos aqui na casa dos Sheffields. Acho que Ă©

melhor o senhor vir até aqui. Há uma coisa que precisa ver.
— Mais corpos?

— Não, senhor. Hã... uma coisa meio esquisita.
— Já vamos para aí — falou o xerife. Depois, para Gordy, Frank
disse:
— O que eu acho é que... nestas duas últimas horas, depois que
o sargento Harker foi levado do Mercado Gilmartin, aquilo esteve aqui,
bem neste quarto. Livrou-se de todas as balas que levou ontem Ă  noite e
hoje de manhĂŁ.
— Os tiros que levou?
— É.
— Livrou-se delas? Sem mais nem menos?
— Sem mais nem menos — confirmou Frank.
— Mas como?
— Parece que simplesmente... as expeliu. Parece que deixou cair
as balas do mesmo jeito que um cĂŁo se sacode para deixar cair os, pĂŞlos
soltos.

29

Fugindo

Rodando por Santa Mira no Datsun roubado, Fletcher Kale
ouviu as notícias sobre Snowfield no rádio.
Embora tivessem prendido a atenção do restante do país, Kale
nĂŁo estava muito interessado. Nunca se interessava particularmente
pelas tragédias dos outros.
Estendeu a mão para desligar o rádio, já cansado de ouvir falar
em Snowfield, quando já tinha tantos problemas, ele próprio — e então

escutou um nome que significava algo para ele. Jake Johnson. Johnson
era um dos delegados que fora enviado para Snowfield na véspera.
Agora estava desaparecido, podia até estar morto.
Jake Johnson...
Um ano atrás, Kale vendera a Johnson uma cabana rústica de
madeira de construção sólida com cinco acres de terreno, nas
montanhas.
Johnson afirmara ser um caçador inveterado e fingira desejar a
cabana para esse fim. Todavia, por diversas coisas que o delegado
deixara escapar, Kale concluĂ­ra que Johnson era, na verdade, um
homem preocupado com a sobrevivĂŞncia, um daqueles pessimistas que
acreditam que o mundo está caminhando a largos passos para o
Armagedom e que a sociedade vai desmoronar, quer por causa da
inflação desenfreada, quer pela guerra nuclear ou outra catástrofe
qualquer. Kale ficara cada vez mais convencido de que Johnson queria
a cabana para servir de esconderijo, onde ele poderia estocar comida e
munição — um local facilmente defensável em épocas de convulsão
social.
A cabana era afastada o bastante para tal fim. Ficava na
Snowtop Mountain, do lado diametralmente oposto Ă  cidade de
Snowfield. Para se chegar lá, era preciso subir uma estrada de incêndio
municipal, uma pista de terra estreita que sĂł dava passagem,
virtualmente, a um veículo de tração nas quatro rodas, e depois passar
para uma outra trilha, ainda mais árdua. Os últimos quatrocentos
metros tinham que ser percorridos a pé.
Dois meses depois de Johnson ter adquirido a propriedade da
montanha, Kale se esgueirara até lá, numa cálida manhã de junho em
que sabia que o delegado estava de plantĂŁo em Santa Mira. Queria ver
se Johnson estava transformando a cabana numa fortaleza do deserto,
como ele supunha.
Encontrara a cabana intacta, mas descobrira que Johnson
estava trabalhando ativamente em algumas das cavernas de calcário
para as quais havia uma entrada nas suas terras. Do lado de fora das

cavernas havia sacos de cimento e areia, um carrinho de mĂŁo e uma
pilha de pedras.
Logo na entrada da primeira caverna, encontrara duas lanternas
a gás Coleman no piso de pedras, junto à parede. Pegara uma das
lanternas e penetrara nas câmaras subterrâneas.
A primeira caverna era longa e estreita, pouco mais do que um
túnel. No final dela, ele seguira por uma série de curvas abruptas
percorrendo antecâmaras irregulares de calcário, até que chegara à
primeira caverna do tamanho de um cĂ´modo.
Empilhadas de encontro a uma das paredes havia caixas
contendo latas de dois quilos, seladas a vácuo, de leite em pó
preservado Ă  base de nitrogĂŞnio, frutas e legumes desidratados, sopa
desidratada, ovos em pĂł, latas de mel, barris de cereais. Um colchĂŁo de
ar. E muito mais. Jake andara ocupado.
O primeiro aposento subterrâneo levava a outro. Neste, havia
um buraco de formação natural no chão, de cerca de 25cm de diâmetro,
e uns barulhos estranhos saĂ­am de dentro dele. Sussurros. Risos
ameaçadores. Kale quase dera meia-volta e correra, mas depois se dera
conta de que nĂŁo estava ouvindo nada mais sinistro do que o ruĂ­do da
água corrente. Um regato subterrâneo. Jake Johnson descera uma
mangueira de uma polegada para dentro do poço natural e montara
uma bomba manual ao lado dele.
Todos os confortos do lar.
Kale concluĂ­ra que Johnson nĂŁo era meramente cauteloso. O
homem era um obcecado.
Num outro dia no final do mesmo verão, lá para fins de agosto,
Kale retornara Ă  propriedade da montanha. Para sua surpresa, a
entrada da caverna, que tinha cerca de l,20m de altura por 1,50 de
largura, nĂŁo estava mais visĂ­vel. Johnson criara uma barreira eficaz de
vegetação para ocultar a entrada do seu esconderijo.
Kale se metera pelo meio da vegetação, tomando cuidado para
não esmagá-la.
Desta feita, trouxera a sua prĂłpria lanterna. Passara de gatinhas

pela entrada da caverna, ficara de pé depois de estar lá dentro, seguira
o túnel passando por três curvas abruptas — e de repente deparara
com um beco sem saĂ­da inesperado. Sabia que devia haver mais uma
passagem curta e sinuosa, e depois a primeira das cavernas grandes.
Em vez disso, havia somente uma parede de calcário, uma fachada que
isolava o restante das cavernas.
Por um momento Kale fitara a barreira, confuso. Depois
examinara atentamente até encontrar o segredo escondido. A rocha era,
na verdade, uma fina fachada que fora ligada com durepĂłxi a uma porta
que Johnson fixara habilmente na moldura natural entre a passagem
derradeira e a primeira das cavernas do tamanho de um aposento.
Naquele dia de agosto, encantando-se com a porta oculta, Kale
decidira que tomaria para si o esconderijo, caso algum dia necessitasse
dele. Afinal de contas, talvez aquele pessoal ligado em sobrevivĂŞncia nĂŁo
estivesse tĂŁo por fora. Quem sabe eles tinham razĂŁo. Quem sabe
aqueles idiotas no poder tentariam explodir o mundo, um dia desses. Se
assim fosse, Kale chegaria ao esconderijo em primeiro lugar, e quando
Johnson cruzasse a porta tĂŁo habilmente oculta, Kale simplesmente o
mandaria desta para melhor.
A idéia lhe dera prazer.
Fizera com que se sentisse sagaz. Superior.
Treze meses mais tarde, para sua surpresa e horror, ele via
chegar o fim do mundo. O fim do seu mundo. Trancafiado na cadeia
municipal, acusado de assassinato, ele sabia para onde iria, se tivesse
chance de escapar: para as montanhas, para as cavernas. Poderia ficar
lá por semanas, até que os tiras finalmente parassem de procurá-lo no
condado de Santa Mira e suas proximidades.
Obrigado, Jake Johnson.
Jake Johnson...
Agora, no Datsun amarelo roubado, a curta distância da cadeia
municipal, Kale ouviu no rádio a notícia sobre Johnson. Enquanto
escutava, começou a sorrir. A sorte estava do seu lado.
Depois de fugir, o seu maior problema era livrar-se das roupas

de prisioneiro e obter roupas apropriadas para as montanhas. NĂŁo
tinha muita certeza de como ia fazer isso.
Logo que ouviu o locutor do rádio dizer que Jake Johnson estava
morto — ou pelo menos longe dali, em Snowfield —, Kale soube que iria
direto para a casa de Johnson, aqui em Santa Mira. Johnson nĂŁo tinha
família. Era um esconderijo seguro e temporário. Johnson não era
exatamente do tamanho de Kale, mas a diferença não era muito grande
e ele poderia trocar o seu uniforme de prisioneiro pelas peças mais
adequadas do guarda-roupa do delegado.
E armas. Jake Johnson, tĂŁo ligado na sobrevivĂŞncia, sem dĂşvida
teria uma coleção de armas em algum lugar da casa.
O delegado morava na mesma casa de um pavimento e trĂŞs
quartos que herdara do pai, Big Ralph Johnson. NĂŁo era uma casa
grandiosa. Big Ralph nĂŁo gastara o seu dinheiro de suborno e
corrupção com abandono desenfreado; sabia muito bem como ser
discreto para não atrair a atenção do Imposto de Renda. Não que a casa
de Johnson fosse um barraco. Ficava na quadra central da Pine Sandow
Lane, uma vizinhança bem conceituada de casas maiores, terrenos bem
espaçosos e árvores antigas. A casa de Johnson, uma das menores,
tinha uma grande banheira térmica instalada na varanda dos fundos,
um enorme salĂŁo de jogos com uma mesa de sinuca antiga e diversos
outros bens materiais invisĂ­veis do lado de fora.
Kale estivera ali duas vezes na Ă©poca em que estava vendendo a
Johnson a propriedade da montanha. NĂŁo teve dificuldades em tornar a
encontrar a casa.
Entrou com o Datsun no acesso de automĂłveis, desligou o motor
e saltou. Esperava que nĂŁo houvesse nenhum vizinho olhando.
Dirigiu-se para a parte de trás da casa, quebrou uma das janelas
da cozinha e pulou para dentro.
Foi direto para a garagem. Tinha espaço suficiente para dois
carros, mas só havia ali uma perua com tração nas quatro rodas. Sabia
que Johnson tinha aquele jipe e esperava encontrá-lo ali. Abriu a porta
da garagem e trouxe para dentro o Datsun roubado. Quando a porta se

fechou de novo e o Datsun nĂŁo podia mais ser visto da rua, sentiu-se
mais seguro.
No quarto principal, ele vasculhou o armário de Johnson e
encontrou um par de botas resistentes apenas meio nĂşmero maior do
que o que ele usava. Johnson era uns cinco centĂ­metros mais baixo do
que Kale, portanto as calças não eram do comprimento certo, mas
metidas para dentro das botas nĂŁo ficaram mal. A cintura era grande
demais para Kale, mas ele apertou-a com um cinto. Escolheu uma
camisa esporte e experimentou-a. Dava para o gasto.
Depois que se vestiu, ele se olhou no espelho de corpo inteiro.
— Está legal — disse ao seu reflexo.
Depois foi revistar a casa Ă  procura de armas. NĂŁo encontrou
nenhuma.
Muito bem, entĂŁo elas estariam escondidas em algum canto. Se
fosse preciso, desmontaria a casa inteira até encontrá-las.
Começou no quarto principal. Esvaziou as gavetas da cômoda e
da escrivaninha. Nada de armas. Revistou os dois criados-mudos. Nada
de armas. Tirou tudo de dentro do closet: roupas, sapatos, malas,
caixas, uma mala-armário. Nada de armas. Levantou as pontas do
carpete e procurou algum esconderijo secreto debaixo dele. NĂŁo achou
nada.
Dali a meia hora, ele estava suado, mas nĂŁo se mostrava
cansado. Na verdade, sentia-se eufĂłrico. Correu os olhos pela
destruição que tinha feito e descobriu-se estranhamente satisfeito. O
quarto parecia ter sido bombardeado.
Entrou no quarto seguinte — devassando, rasgando, virando e
quebrando tudo no seu caminho.
Ele queria muito encontrar aquelas armas.
Mas também estava se divertindo.

30

Algumas respostas/mais perguntas

A casa era excepcionalmente arrumada e limpa, mas a
combinação de cores e o exagero na decoração deixaram Bryce nervoso.
Tudo era ou verde ou amarelo. Tudo. Os tapetes eram verdes e as
paredes amarelo-claras. Na sala de visitas, os sofás eram forrados de
um estampado floral amarelo e verde tĂŁo berrante que dava vontade de
sair correndo para um oftalmologista. As duas poltronas eram verdeesmeralda, e as duas cadeiras laterais, amarelo canário. Os abajures de
cerâmica eram amarelos com rabiscos verdes, e as cúpulas eram
chartreuse com borlas. Nas paredes havia duas grandes gravuras:
margaridas amarelas num campo verdejante. O quarto de casal era
pior: papel de parede de flores, mais berrante do que o tecido nos sofás
da sala; cortinas amarelo vivo com dossel festonado. Uma dĂşzia de
almofadas de enfeite estavam espalhadas sobre a extremidade superior
da cama; algumas eram verdes com debrum de renda amarela, as
outras, amarelas com debrum de renda verde.
Segundo Jenny, a casa era ocupada por Ed e Theresa Lange,
seus três filhos adolescentes e a mãe septuagenária de Theresa.
Nenhum dos ocupantes foi encontrado. NĂŁo havia corpos, e
Bryce deu graças por isso. De certa forma, um corpo pisado e inchado
ficaria ainda mais terrível aqui, no meio desta decoração quase
doentiamente alegre.
A cozinha também era verde e amarela.
Junto Ă  pia, Tal Whitman falou:
— Tem uma coisa aqui. É melhor dar uma olhada, chefe.
Bryce, Jenny e o capitão Arkham dirigiram-se até Tal, mas os
outros dois delegados permaneceram junto da porta, com Lisa entre

eles. Era difĂ­cil dizer o que poderia aparecer numa pia de cozinha nesta
cidade, em meio a este pesadelo lovecraftiano 1. A cabeça de alguém. Ou
outro par de mĂŁos cortadas. Ou pior.
Mas nĂŁo era pior. Era simplesmente estranho.
— Uma verdadeira joalheria — disse Tal.
A pia dupla estava cheia de jóias. Principalmente anéis e
relĂłgios. Havia relĂłgios de pulso femininos e masculinos: Timex, Seiko,
Bulova, até mesmo um Rolex. Alguns tinham correias flexíveis; outros
não tinham correias; nenhum deles tinha correias de couro ou plástico.
Bryce viu dezenas e dezenas de alianças e anéis de noivado; os
diamantes cintilavam. Havia também anéis com a pedra do signo:
granada, ametista, jaspe sangüíneo, topázio, turmalina; anéis com
lasquinhas de rubi e esmeraldas; Anéis de escolas secundárias e de
faculdades. Muita bijuteria estava misturada às peças de alto valor.
Bryce enfiou as mĂŁos numa das pilhas de jĂłias do mesmo modo que, no
cinema, o pirata sempre mete as mĂŁos no conteĂşdo da arca do tesouro.
Remexeu as peças brilhantes e viu outros tipos de jóia: brincos,
pulseiras de berloques, pérolas soltas de um colar partido, correntes de
ouro, um lindo pingente de camafeu...
— Tudo isso aí não pode pertencer aos Langes — disse Tal.
— Espere — falou Jenny. Retirou um dos relógios de pulso da
pilha e examinou-o atentamente.
— Está reconhecendo? — perguntou Bryce.
— Estou. Cartier. Não é um Cartier com algarismos romanos.
Este nĂŁo tem algarismos, e o mostrador Ă© preto. Sylvia Kanarsky deu-o
de presente ao marido, Dan, no seu quinto aniversário de casamento.
Bryce franziu a testa.
— De onde conheço este nome?
— São os donos da Candleglow — explicou Jenny.
— Ah, sim. Os seus amigos.
— Entre os desaparecidos — disse Tal.
1

H.P. Lovecraft — autor de histórias do sobrenatural. (N. da T.)

— Dan adorava este relógio — falou Jenny. — Quando Sylvia o
comprou, foi uma tremenda extravagância. A estalagem ainda estava se
firmando, e o relĂłgio custou 350 dĂłlares. Agora, Ă© claro, vale
consideravelmente mais. Dan costumava brincar que fora o melhor
investimento que já tinham feito.
Ela levantou o relĂłgio, para que Tal e Bryce pudessem ver a
parte de trás. No alto da base de ouro, acima do logotipo de Cartier,
estava gravado: PARA MEU DAN. Embaixo, sob o número de série, COM
AMOR, SYL.
Bryce baixou os olhos para a pia cheia de jĂłias.
—

Quer dizer que tudo isso aĂ­ provavelmente pertence aos

moradores de Snowfield.
— Bem, eu diria que pertence aos que estão desaparecidos —
falou Tal. — As vítimas que encontramos até agora ainda estavam
usando as suas jĂłias.
Bryce assentiu.
— Tem razão. Então, todos aqueles que desapareceram foram
despojados dos seus valores antes de serem levados para... para... bem,
para onde quer que tenham sido levados.
— Ladrões não deixariam valores como esses largados por aí —
disse Jenny. — Não iriam juntá-los e depois simplesmente jogá-los
dentro da pia de uma casa. Pegariam tudo e levariam com eles,
—

Então, o que todas essas jóias estão fazendo aqui? —

perguntou Bryce.
— E eu lá sei? — disse Jenny. Tal deu de ombros.
Nas duas pias, as jĂłias brilhavam e faiscavam.

Os gritos das gaivotas.
CĂŁes latindo.
Galen Copperfield ergueu os olhos do terminal do computador,
onde estivera examinando dados. Estava suando, dentro do traje de
descontaminação, sentia-se cansado e dolorido. Por um momento, não
teve certeza se estava realmente ouvindo as aves e os cĂŁes.

EntĂŁo um gato guinchou.
Um cavalo relinchou.
O general correu os olhos pelo laboratĂłrio mĂłvel, franzindo o
cenho.
Cascavéis. Muitas delas. O som familiar e mortal do seu
chocalhar. Abelhas zumbindo.
Os

outros

também

estavam

ouvindo.

Entreolharam-se,

inquietos. Roberts falou:
— Está vindo pelo rádio de macacão-a-macacão.
— Afirmativo — falou o dr. Bettenby, do segundo motor home.
Também estamos ouvindo aqui.
—

Tudo bem — falou Copperfield. — Vamos dar-lhe uma

oportunidade de representar. Se quiserem falar uns com os outros,
usem os sistemas de comunicação externos.
As abelhas pararam de zumbir.
Uma criança, de sexo indeterminado — andrógino —, começou a
cantar bem baixinho, de muito longe:

Jesus me ama, disso eu sei,
pois a BĂ­blia me diz que sim.
Chama a si os pequeninos.
Eles sĂŁo fracos, mas Ele Ă© forte.

A voz era doce. Melodiosa.
Ao mesmo tempo, era de gelar o sangue.
Copperfield jamais ouvira algo semelhante. Embora fosse uma
voz de criança, meiga e frágil, continha... algo que não devia existir
numa voz de criança. Uma profunda falta de inocência. Conhecimento,
talvez. É. Conhecimento em demasia de demasiadas coisas terríveis.
Ameaça. Ódio. Desprezo. Não era audível na superfície da canção
cadenciada, mas estava ali sob a superfĂ­cie, pulsante, sombria e
incomensuravelmente perturbadora.

Sim, Jesus me ama.
Sim, Jesus me ama.
Sim, Jesus me ama...
a BĂ­blia me diz que sim.

— Eles nos falaram disso — disse Goldstein. — A dra. Paige e o
xerife. Eles a ouviram ao telefone e saindo do ralo da cozinha, no hotel.
NĂłs nĂŁo acreditamos neles. Parecia bastante ridĂ­culo.
— Não parece ridículo agora — falou Roberts.
— Não — concordou Goldstein. Mesmo dentro do macacão
volumoso, notava-se que ele estava tremendo.
— Está transmitindo no mesmo comprimento de onda que os
rádios dos nossos macacões — falou Roberts.
— Mas como? — questionou-se Copperfield.
— Velazquez — disse Goldstein, de repente.
— Claro — falou Roberts. — O macacão de Velazquez tinha um
rádio. Está transmitindo pelo rádio de Velazquez.
A criança parou de cantar. Num fiozinho de voz, falou:
— É melhor rezarem. Rezem todos. Não se esqueçam de rezar.
Depois, soltou uma risadinha.
Eles esperaram por mais alguma coisa. Houve apenas silĂŞncio.
— Acho que aquilo estava nos ameaçando — disse Roberts.
— Porra, acabem com esse tipo de papo imediatamente — falou
Copperfield. — Não vamos entrar em pânico.
—

Notou que estamos falando aquilo, agora? — perguntou

Goldstein. Copperfield e Roberts olharam para ele e depois se
entreolharam, mas ficaram calados.
— Estamos falando aquilo do mesmo jeito que a dra. Paige, o
xerife e os delegados falam. EntĂŁo... passamos a pensar inteiramente
como eles?
Mentalmente, Copperfield ainda podia ouvir a voz obsedante da
criança, humana-porém-não-humana. Aquilo.
— Vamos — falou com aspereza. — Ainda temos muito trabalho

a fazer.
Voltou a atenção para o terminal do computador, mas teve
dificuldade em se concentrar.
Aquilo.
Por volta de 16:30 de segunda-feira, Bryce cancelou a busca de
casa em casa. Ainda restavam umas duas horas de luz do dia, mas
todos estavam exaustos. Exaustos de subir e descer escadas. Exaustos
de cadáveres grotescos. Exaustos de surpresas desagradáveis. Exaustos
da extensão da tragédia humana, do horror que entorpecia os sentidos.
Exaustos do nĂł de medo no peito. A tensĂŁo constante era tĂŁo cansativa
quanto o trabalho manual pesado.
Além disso, tornara-se aparente para Bryce que o serviço era
simplesmente grande demais para ser feito por eles. Em cinco horas e
meia, tinham coberto apenas uma pequena porção da cidade. Nesse
ritmo, confinados a trabalhar apenas durante o dia, e com o seu
nĂşmero limitado de homens, eles precisariam de pelo menos duas
semanas para realizar uma inspeção meticulosa em Snowfield. Além do
mais, se os desaparecidos não fossem encontrados até a hora do último
prédio ser explorado, e se não se pudesse encontrar uma pista para o
seu paradeiro, entĂŁo teria que ser feita uma busca ainda mais difĂ­cil na
floresta que cercava a cidade.
Na noite anterior, Bryce nĂŁo quisera a Guarda Nacional
invadindo a cidade. Agora, contudo, ele e o seu pessoal já tinham tido a
cidade sĂł para si praticamente por um dia, e os especialistas de
Copperfield haviam coletado as suas amostras e começado o seu
trabalho. TĂŁo logo Copperfield pudesse assegurar que a cidade nĂŁo fora
atacada por um agente bacteriolĂłgico, a Guarda poderia ser convocada
para dar assistĂŞncia aos homens de Bryce.
Inicialmente, pouco sabendo da situação aqui, ele estivera
relutante em ceder qualquer parte da sua autoridade numa cidade sob
a sua jurisdição. Agora, porem, embora não estivesse disposto a ceder
autoridade, sem dúvida estava disposto a compartilhá-la. Precisava de
mais homens. A cada hora que passava, a responsabilidade se tornava

um peso mais esmagador, e ele estava pronto para desviar um pouco
desse peso para outros ombros.
Ă€s 16:30 de segunda-feira, portanto, ele levou as suas duas
equipes de busca de volta para o Hilltop Inn, ligou para o gabinete do
governador e falou com Jack Retlock. Combinou-se que a Guarda
ficaria de prontidĂŁo, esperando um chamado, tĂŁo logo Copperfield
dissesse que estava tudo em ordem.
Mal desligara o telefone, Charlie Mercer, o sargento na delegacia
de Santa Mira, ligou para ele. Tinha novidades. Fletcher Kale tinha
escapado enquanto estava sendo levado para o tribunal municipal para
ser citado por duas acusações de assassinato em primeiro grau.
Bryce ficou furioso.
Charlie deixou-o esbravejar por algum tempo, e quando Bryce se
acalmou, Charlie disse:
— Ainda tem coisa pior. Ele matou Joe Freemont.
— Que merda — exclamou Bryce. — Já contaram a Mary?
— Já. Eu fui lá pessoalmente.
— Como está ela?
— Mal. Estavam casados há 26 anos. Mais morte.
Morte por toda a parte. Puta merda.
— E quanto a Kale? — perguntou Bryce a Charlie.
— Achamos que ele roubou um carro do bloco de apartamentos
do outro lado do beco. Sumiu um carro do estacionamento. EntĂŁo
armamos barreiras nas estradas tĂŁo logo soubemos da sua fuga, mas
acho que ele levava quase uma hora de vantagem.
— Então já sumiu.
— Provavelmente. Se não agarrarmos o filho da puta até as sete
horas, serei obrigado a cancelar os bloqueios. Estamos com tĂŁo pouco
pessoal — com tudo o que está acontecendo —, que não podemos ficar
prendendo os homens para bloquear as estradas.
— Faça o que achar melhor — disse Bryce, com voz cansada. —
E quanto Ă  polĂ­cia de SĂŁo Francisco? Sabe... sobre aquela mensagem
que Harold Ordnay deixou no espelho do banheiro?

— Esse foi o outro, motivo pelo qual eu telefonei. Eles finalmente
entraram em contato conosco.
— Alguma coisa que preste?
—

Bem, eles falaram com os empregados das livrarias de

Ordnay. VocĂŞ se lembra, eu lhe contei que uma das lojas trabalha
exclusivamente com livros esgotados e raros. A assistente do gerente da
loja, chamada CĂ©lia Meddock, reconheceu o nome de Timothy Flyte.
— Ele é um freguês? — perguntou Bryce.
— Não. Um autor.
— Autor? Do quê?
— De um livro. Adivinhe o título.
— Que diabo, como vou... Ah, é claro. O inimigo antigo.
— Acertou em cheio — disse Charlie Mercer.
— Do que trata o livro?
— Essa é a melhor parte. Segundo Célia Meddock, o livro trata
de desaparecimentos em massa ao longo da HistĂłria.
Por um momento, Bryce ficou sem fala. Depois:
— Está falando sério? Quer dizer que houve muitos outros?
— Acho que sim. Pelo menos um livro cheio deles.
— Onde? Quando? Como é que nunca ouvi falar deles?
— A tal Meddock falou qualquer coisa sobre o desaparecimento
de antigas populações maias...
(Algo veio à lembrança de Bryce. Um artigo que lerá numa velha
revista de ficção. Civilizações maias. Cidades abandonadas.)
— ... e a colônia Roanoke, que foi o primeiro povoado britânico
na América do Norte — concluiu Charlie.
— Disso eu ouvi falar. Está nos livros escolares.
—

Acho que talvez um bocado dos outros desaparecimentos

remontem a épocas passadas — disse Charlie.
— Pombas!
— É. Aparentemente, Flyte tem uma teoria qualquer para
explicar essas coisas — falou Charlie. — Está tudo no livro.
— Qual é a teoria?

— Meddock não sabia. Não leu o livro.
— Mas Harold Ordnay deve ter lido. E o que ele viu acontecendo
aqui em Snowfield deve ter sido exatamente aquilo que Flyte escreveu.
EntĂŁo Ordnay escreveu o tĂ­tulo no espelho do banheiro.
— É o que parece.
Tomado de excitação, Bryce perguntou:
— O departamento de polícia de São Francisco conseguiu um
exemplar do livro?
— Não. Meddock não tinha nenhum. Ela só sabia do assunto
porque Ordnay vendeu um exemplar recentemente... há umas duas ou
trĂŞs semanas.
— Podemos arranjar um exemplar?
— Está esgotado. Na verdade, nunca foi publicado neste país. O
exemplar que venderam era britânico, evidentemente a única edição que
o livro teve, e uma edição pequena. É um livro raro.
— E quanto à pessoa a quem Ordnay o vendeu? O colecionador.
Qual o nome e endereço dele?
—

Meddock nĂŁo se lembra. Disse que o sujeito nĂŁo costuma

comprar sempre com eles. Disse que Ordnay provavelmente saberia.
— O que não nos ajuda porra nenhuma. Ouça, Charlie, tenho
que conseguir um exemplar desse livro.
— Estou tentando — disse Charlie. — Mas talvez nem precise
dele. Vai poder saber a história toda diretamente da fonte. Flyte está
vindo de Londres para cá neste momento.
Jenny estava sentada na beira da mesa da central de operações
no meio do saguĂŁo, olhando boquiaberta para Bryce, que se reclinava
para trás na cadeira; estava atônita com o que ele contara.
— Ele está vindo de Londres para cá? Agora? Já? Quer dizer
que ele sabia que isso ia acontecer?
— Provavelmente não — disse Bryce. — Mas acho que, tão logo
escutou a notĂ­cia, entendeu que era um caso que se encaixava na sua
teoria.
— Seja ela qual for.

— Seja ela qual for.
Tal estava parado na frente da mesa.
— Quando é que ele deve chegar?
— Chegará em São Francisco pouco depois da meia-noite. A sua
editora americana marcou um entrevista coletiva para ele no aeroporto.
Depois ele virá diretamente para Santa Mira.
— Editora americana? — perguntou Frank Autry. — Pensei que
tinha dito que o livro dele nunca fora publicado aqui.
— Não foi — disse Bryce. — Evidentemente, está escrevendo um
novo.
— Sobre Snowfield? — perguntou Jenny.
— Não sei. Talvez. Provavelmente.
— Puxa, como ele trabalha depressa — comentou Jenny,
franzindo a testa. — Menos de um dia depois que a coisa acontece, ele
já tem um contrato para escrever um livro a respeito.
— Gostaria que trabalhasse ainda mais depressa. Adoraria que
estivesse aqui neste momento.
Tal falou:
— Acho que o que Doc quer dizer é que esse tal de Flyte pode
ser apenas mais um vigarista ladino doido para faturar uma grana.
— Exatamente — disse Jenny.
— Pode ser — admitiu Bryce. — Mas não se esqueçam de que
Ordnay escreveu o nome Flyte naquele espelho. De uma certa forma,
Ordnay Ă© a Ăşnica testemunha que temos. E, pelo recado dele, devemos
deduzir que o que aconteceu foi muito parecido com o que Timoty Flyte
escreveu.
— Droga — exclamou Frank. — Se Flyte realmente tem alguma
informação que nos possa ajudar, devia ter telefonado. Não devia ternos feito esperar.
— É — concordou Tal. — Podemos todos estar mortos até meianoite. Ele devia ter-nos ligado para dizer o que podemos fazer.
— Aí é que a coisa pega — disse Bryce.
— Como assim? — perguntou Jenny.

—

Bem — disse Bryce, soltando um suspiro —, tenho um

palpite de que Flyte teria nos telefonado se pudesse nos dizer como nos
proteger, É, acho que talvez ele saiba exatamente que tipo de criatura
ou força estamos enfrentando, mas tenho uma forte desconfiança de
que não tem a menor idéia do que fazer a respeito. Independentemente
do quanto ele possa nos contar, desconfio que não será capaz de nos
contar a única coisa que precisamos saber, acima de tudo — como
salvar a nossa pele.
Jenny e Bryce estavam tomando café à mesa de operações.
Conversavam sobre o que tinham descoberto durante a busca daquele
dia, tentando dar um sentido às coisas sem sentido: a crucificação
debochada do padre; as balas espalhadas por todo o chĂŁo da cozinha da
casa dos Sheffields; os corpos nos carros trancados...
Lisa estava sentada perto deles. Parecia totalmente absorta
numa revista de palavras cruzadas que tinha descoberto em algum
lugar, durante a busca. Subitamente, ergueu os olhos e falou:
— Eu sei por que as jóias estavam empilhadas naquelas duas
pias. — Jenny e Bryce olharam para ela, na expectativa. — Primeiro —
disse a mocinha, debruçando-se para a frente na cadeira —, vocês têm
que aceitar que todas as pessoas desaparecidas estĂŁo realmente
mortas. E estão. Mortas. Não há nenhuma dúvida a respeito.
— Mas há alguma dúvida a respeito, meu bem — falou Jenny.
— Elas estão mortas — disse Lisa, baixinho. — Eu sei. E vocês
também sabem. — Os olhos verdes da garota estavam quase febris. — A
coisa os pegou e os comeu.
Jenny

lembrou-se

da

reação

de

Lisa

na

véspera,

na

subdelegacia, depois que Bryce lhes contara sobre os gritos torturados
que ouvira quando aquilo estivera controlando a linha. Lisa dissera:
Quem sabe teceu uma teia em algum lugar, num lugar escuro, num porĂŁo
ou numa caverna, amarrou nela todas as pessoas desaparecidas, e
envolveu-as em casulos, vivas. Quem sabe está guardando-as só para
quando tiver fome de novo.
Na noite anterior todos tinham fitado a garota, com vontade de

rir, mas percebendo que poderia haver uma espécie de verdade maluca
no que ela dizia. NĂŁo necessariamente uma teia ou casulos ou uma
aranha gigante. Mas alguma coisa. Nenhum deles quisera admitir, mas
a possibilidade existia. O desconhecido. A coisa desconhecida. A coisa
desconhecida que comia gente.
E agora Lisa voltava a bater na mesma tecla.
— Aquilo os comeu.
— Mas como é que isso explica as jóias? — perguntou Bryce.
— Bem — respondeu Lisa —, depois que comeu as pessoas...
talvez... talvez apenas tenha cuspido fora todas as jĂłias... do jeito que a
gente cospe fora o caroço da cereja.
A dra. Yamaguchi entrou no Hilltop, parou para responder a
uma pergunta de um dos guardas na porta da frente e atravessou o
saguão na direção de Jenny e Bryce. Ainda vestia o traje de
descontaminação, mas não mais estava usando o capacete, o tanque de
ar comprimido ou a unidade de reciclagem de dejetos. Carregava umas
roupas dobradas e um maço grosso de papéis verde-claros.
Jenny e Bryce se ergueram para cumprimentá-la e Jenny
perguntou:
— Doutora, já suspenderam a quarentena?
— Você diz já? Me parece que estou presa neste macacão há
anos. — A voz da dra. Yamaguchi era diferente do que parecera ser
através do alto-falante. Era frágil e doce. Sua voz era ainda mais
miudinha do que a dona. — Que gostoso respirar o ar puro de novo.
—

A senhora preparou culturas de bactérias, não foi? —

perguntou Jenny.
— Comecei a preparar.
— Bem... os resultados só aparecem depois de 24 a 48 horas,
nĂŁo Ă©?
—

Exato. Mas decidimos que Ă© inĂştil esperar pelas culturas.

Não vamos desenvolver bactérias nelas — nem bactérias benignas nem
outras.
Nem bactérias benignas nem outras. Essa afirmação estranha

intrigou Jenny, mas antes que pudesse fazer qualquer pergunta, a
geneticista disse:
— Além do mais, Meddy nos disse que era seguro.
— Meddy?
— Diminutivo de Medanacomp — explicou a dra. Yamaguchi. —
Que, por sua vez, Ă© abreviatura de Medical Analysis and Computation
Systems. O nosso computador. Depois de assimilar todos os dados das
autĂłpsias e testes, ele nos deu um percentual de probabilidade para
causação biológica. Meddy disse que há uma chance de zero ponto zero
de que um agente biolĂłgico esteja envolvido nisso.
—

E vocês confiam na análise de um computador o bastante

para respirar ar puro — disse Bryce, nitidamente surpreso.
—

Em mais de oitocentas tentativas experimentais, Meddy

nunca errou.
—

Mais isto aqui não é uma tentativa experimental — disse

Jenny.
— É. Mas depois do que descobrimos nas autópsias e em todos
os testes de patologia... — A geneticista deu de ombros e entregou o
maço de papéis verdes a Jenny. — Tome. Está tudo nos resultados. O
general Copper field achou que a senhora gostaria de vĂŞ-los. Se tiver
alguma dúvida, eu explicarei. Enquanto isso, todos os homens estão lá
no laboratório de campo, tirando os trajes de descontaminação, e eu
estou ansiosa para fazer o mesmo. Muito ansiosa. — Ela sorriu e coçou
o pescoço. Os dedos enluvados deixaram leves marcas vermelhas na
pele macia de porcelana. — Será que há um lugar onde eu possa me
lavar?
Jenny falou:
— Temos sabonete, toalhas e uma bacia num canto separado da
cozinha. NĂŁo oferece muita privacidade, mas estamos dispostos a
sacrificá-la um pouco para não ficarmos sozinhos.
A dra. Yamaguchi assentiu.
— Compreensível. Como chego até essa bacia?
Lisa levantou-se de um salto da cadeira, deixando de lado as

palavras cruzadas.
— Eu lhe mostro. E vou providenciar para que os rapazes que
estĂŁo trabalhando na cozinha fiquem de costas para a senhora, e
olhando para o outro lado.
Os papéis verde-claros eram saídas impressas de computador
que tinham sido cortadas em páginas de 28 centímetros, numeradas e
grampeadas ao longo da margem esquerda com guarnição plástica de
pressĂŁo.
Com Bryce olhando por cima do seu ombro, Jenny folheou a
primeira parte do relatório, que era uma transcrição de computador das
anotações da autópsia feitas por Seth Goldstein. Goldstein notara
indĂ­cios de uma possĂ­vel asfixia, assim como sinais ainda mais
evidentes de uma severa reação alérgica a uma substância não
identificada, mas nĂŁo conseguira determinar a causa da morte.
E então a atenção de Jenny se fixou num dos primeiros testes de
patologia. Era um exame microscópico de bactérias sem coloração
numa longa série de preparados de gotas pendentes que tinham sido
contaminados com amostras de tecidos e lĂ­quidos do corpo de Gary
Wechlas; fora utilizada iluminação ultramicroscópica para identificar
até mesmo o menor dos microorganismos. Estavam procurando
bactérias que ainda vicejassem no cadáver. O que descobriram foi
espantoso.

PREPARADOS DE GOTAS PENDENTES
VARREDURA AUTOMĂTICA - MEDANACOMP
VERIFICAÇĂO VISUAL - BETTENBY
FREQÜÊNCIA DA VERIFICAÇĂO VISUAL - 20% DAS AMOSTRAS
IMPRIMIR

AMOSTRA 1 GĂŠNERO ESCHERICHIA
FORMAS PRESENTES:
NENHUMA FORMA PRESENTE
NOTA: DADOS ANORMAIS

NOTA: VARIANTE IMPOSSĂŤVEL - NENHUM E. COLI ANIMADO
NO INTESTINO - AMOSTRA CONTAMINADA


GĂŠNERO CLOSTRIDIUM FORMAS PRESENTES:
NENHUMA FORMA PRESENTE
NOTA: DADOS ANORMAIS
NOTA:

VARIANTE

IMPROVĂVEL

-

NENHUM

C.

WELCHII

ANIMADO NO INTESTINO - AMOSTRA CONTAMINADA


GĂŠNERO PROTEUS
FORMAS PRESENTES
NENHUMA FORMA PRESENTE
NOTA: DADOS ANORMAIS
NOTA: VARIANTE IMPROVĂVEL - NENHUM P. VULGARIS
NO INTESTINO - AMOSTRA CONTAMINADA

A saída impressa continuava a enumerar outras bactérias pelas
quais tanto o computador quanto o dr. Bettenby tinham procurado,
sempre com o mesmo resultado.
Jenny lembrou-se do que a dra. Yamaguchi dissera, a afirmação
que a intrigara e sobre a qual tivera vontade de indagar: nem bactérias
benignas nem outras. E aqui estavam os dados, tĂŁo inteiramente
anormais quanto o computador dizia que eram.
— Estranho — falou Jenny.
— Para mim é grego — falou Bryce. — Tradução?
— Bem, um cadáver é um excelente campo de reprodução para
todo tipo de bactérias — pelo menos a curto prazo. Decorrido todo este
tempo desde a morte de Gary Wechlas, seu cadáver deveria estar
fervilhando de Clostridium welchii, que está associado à gangrena
gasosa.
— E não está?
—

NĂŁo puderam encontrar nem um Ăşnico C. welchii vivo na

gotícula de água que foi contaminada com o material dos intestinos. E
esta é precisamente a amostra que devia estar infestada deles. Também
devia estar fervilhando de Proteus vulgaris, que é uma bactéria
saprofĂ­tica.
— Tradução? — perguntou ele, pacientemente.
— Desculpe. Saprofítico significa que viceja na matéria morta
ou em decomposição.
— E Wechlas está inquestionavelmente morto.
—

Inquestionavelmente. No entanto, nĂŁo existe nenhuma P.

vulgaris. Também deveria haver outras bactérias. Talvez Micrococcus
albus e Bacillus mesentericus. De qualquer maneira, não há qualquer
dos microorganismos associados com a decomposição, nem qualquer
das formas que se esperaria encontrar. E o que Ă© ainda mais estranho,
não há Escherichia coli vivos no corpo. Ora, pombas, elas teriam que
estar ali, vicejando, mesmo antes de Wechlas ser morto. E deviam estar
ali agora, ainda vicejando. Os E. coli habitam o cĂłlon. O seu, o meu, o
de Gary Wechlas, o de todo mundo. Contanto que fiquem contidos
dentro do intestino, em geral são organismos benignos. — Ela folheou o
relatório. — Agora, olhe só para isto aqui. Quando usaram corantes
gerais e diferenciais para procurar os microorganismos mortos,
encontraram um bocado de E. coli. Mas todos os espécimes estavam
mortos. Não existem bactérias vivas no corpo de Wechlas.
— E o que devemos concluir disso? — perguntou Bryce. — Que
o corpo não está se decompondo como deveria?
—
um

Não está absolutamente se decompondo. E tem mais. Algo

bocado

mais

estranho.

NĂŁo

está

se

decompondo

porque,

aparentemente, injetaram nele uma dose maciça de um agente
esterilizador e estabilizador. Uma substância preservativa, Bryce. Parece
que injetaram no corpo uma substância preservativa extremamente
eficaz.
Lisa trouxe uma bandeja para a mesa. Nela havia quatro
canecas de café, Colheres, guardanapos. A garota passou o café para a
dra. Yamaguchi, Jenny e Bryce. Ficou com a quarta caneca.

Eles estavam sentados no refeitĂłrio do Hilltop, perto das janelas.
Do lado de fora, a rua estava banhada pela luz do sol ouro-alaranjada
do final da tarde.
Daqui a uma hora, pensou Jenny, vai estar escuro de novo. E
entĂŁo teremos que passar mais uma longa noite.
Estremeceu. Bem que estava precisando do café quente.
Sara Yamaguchi estava usando agora jeans cotelĂŞ castanhoamarelados e uma blusa amarela. O cabelo comprido, sedoso, negro,
esparramava-se sobre os ombros.
— Bem — dizia ela —, acho que todo mundo já viu o bastante
daqueles antigos filmes de Walt Disney sobre animais selvagens para
saber que algumas aranhas e as vespas que constroem ninhos de barro,
além de certos outros insetos, injetam uma substância preservativa em
suas vĂ­timas e as reservam para consumo posterior ou para alimentar
os filhotes por nascer. A substância preservativa distribuída pelos
tecidos do sr. Wechlas é vagamente similar àquelas substâncias, porém
bem mais potente e sofisticada.
Jenny pensou na mariposa impossivelmente grande que atacara
e matara Stewart Wargle. Porém, não fora aquela criatura que
despovoara Snowfield. Definitivamente nĂŁo. Mesmo que houvesse
centenas daquelas coisas Ă  espreita em alguma parte da cidade, elas
não poderiam ter chegado até todo mundo. Nenhuma mariposa daquele
tamanho poderia ter penetrado em carros trancados, casas trancadas,
quartos com barricadas. Havia outra coisa lá fora.
— Está dizendo que foi um inseto que matou aquelas pessoas?
— perguntou Bryce a Sara Yamaguchi.
—

Na verdade, as evidĂŞncias nĂŁo indicam isso. Um inseto

empregaria um ferrão para matar e injetar a substância preservativa.
Haveria uma perfuração, por mais minúscula que fosse. Seth Goldstein,
contudo, examinou o cadáver de Wechlas com lente de aumento.
Literalmente. Cobriu cada centĂ­metro quadrado de pele. Duas vezes.
Usou até um creme depilatório para remover todos os pêlos do corpo a
fim de poder examinar a pele mais meticulosamente. No entanto, nĂŁo

achou uma perfuração ou qualquer outra marca na pele através da qual
se pudesse ter administrado uma injeção. Estávamos com medo de ter
dados atĂ­picos ou imprecisos. EntĂŁo, realizamos uma segunda autĂłpsia.
— Em Karen Oxley — falou Jenny.
— É. — Sara Yamaguchi debruçou-se para perto das janelas e
olhou para fora, procurando o general Copperfield e os outros. Quando
voltou o rosto para a mesa, falou: — Todavia, todos os testes deram a
mesma coisa. Nenhuma bactéria animada no cadáver. Decomposição
suspensa de modo inatural. Tecidos saturados com substância
preservativa. Novamente, eram dados estranhos. Mas tivemos certeza de
que nĂŁo eram dados atĂ­picos ou imprecisos.
—

Se a substância preservativa não foi injetada, como foi

administrada? — perguntou Bryce.
— A melhor resposta que pudemos achar é que ela é altamente
absorvĂ­vel e penetra no corpo pelo contato com a pele, depois circula
pelos tecidos em questĂŁo de segundos.
Jenny indagou:
—

Será que podia ser mesmo um gás que afeta o sistema

nervoso? Quem sabe este aspecto de preservação é apenas um efeito
colateral.
— Não — respondeu Sara Yamaguchi. — Não há o menor traço
nas roupas das vítimas, o que fatalmente ocorreria se estivéssemos
lidando com saturação por gás. E embora a substância tenha um efeito
tóxico, a análise química demonstra que ela não é primordialmente uma
toxina, como o seria um gás que afeta o sistema nervoso; ela é, na
verdade, primordialmente, um preservativo.
— Mas foi a causa da morte? — perguntou Bryce.
— Contribuiu. Mas não podemos apontar com precisão a causa.
A toxicidade da substância preservativa foi uma das causas, mas outros
fatores nos levam a crer que a morte resultou também da privação do
oxigĂŞnio. As vĂ­timas sofreram ou uma compressĂŁo prolongada ou um
completo bloqueio da traquéia.
Bryce se inclinou para diante.

— Estrangulamento? Asfixia?
— É. Mas não podemos precisar qual a forma.
— Mas como pode ser uma coisa ou outra? — perguntou Lisa.
— A senhora está falando de coisas que levam um minuto ou dois para
acontecer. E essa gente morreu depressa. Em um ou dois segundos.
— Além disso, se me lembro da cena na casa dos Oxleys, não
havia sinal algum de luta. Quem está sendo sufocado até a morte
geralmente se debate feito um doido, derruba coisas...
— É — falou a geneticista, concordando. — Não faz sentido.
— Por que todos os corpos estão inchados? — perguntou Bryce.
— Achamos que é uma reação tóxica à substância preservativa.
— As pisaduras também?
— Não. Isso é... diferente.
— Como?
Sara nĂŁo respondeu imediatamente. Franzindo o cenho, ficou
olhando para o café na caneca. Finalmente, falou:
— Os tecidos cutâneo e subcutâneo dos dois cadáveres indicam
claramente que as pisaduras foram causadas por compressĂŁo de uma
fonte externa; eram contusões clássicas. Em outras palavras, as
pisaduras não se deviam ao inchaço e não eram uma reação alérgica
desvinculada da substância preservativa. Parece que algo bateu nas
vítimas. Com força. Repetidamente. O que é uma loucura. Porque, para
causar tantas pisaduras, teria que haver pelo menos uma fratura, uma
sĂł fratura, em alguma parte. Mais outra loucura: o grau da pisadura Ă© o
mesmo por todo o corpo. Os tecidos estĂŁo danificados precisamente no
mesmo grau nas coxas, nas mĂŁos, no peito, por toda a parte. O que Ă©
impossĂ­vel.
— Por quê? — perguntou Bryce. Foi Jenny quem lhe respondeu:
— Se você espancasse alguém com uma arma pesada, algumas
áreas do corpo ficariam mais machucadas do que outras. Você seria
incapaz de dar cada golpe precisamente com a mesma força e
precisamente no mesmo ângulo, que é o que teria que ter feito para
criar o tipo de contusões nesses corpos.

—

Além disso — falou Sara Yamaguchi —, eles estão

machucados até em lugares onde um porrete não alcançaria. Nas
axilas. Entre as nádegas. E na planta dos pés! Muito embora, como no
caso da sra. Oxley, ela estivesse de sapatos.
— Obviamente — falou Jenny —, a compressão de tecidos que
resultou em machucaduras foi causada por outra coisa que nĂŁo
pancadas no corpo.
— Tal como? — indagou Bryce.
— Não tenho a menor idéia.
— E eles morreram rapidamente — lembrou Lisa aos demais.
Sara recostou-se na cadeira, apoiando-a nas pernas de trás, e olhou
novamente

pela

janela.

Ladeira

acima.

Na

direção

dos

laboratĂłrios. Bryce perguntou:
—

Dra. Yamaguchi, qual Ă© a sua opiniĂŁo? NĂŁo a sua opiniĂŁo

profissional. Pessoal, informalmente, o que acha que está acontecendo
aqui? Alguma teoria?
Ela se virou para ele, sacudiu a cabeça. Os cabelos negros se
movimentaram e os raios do sol de fim da tarde se refletiram neles,
fazendo com que breves ondulações de vermelho, verde e azul os
percorressem, do mesmo modo que a luz, cintilando na superfĂ­cie negra
do óleo, cria arco-íris ondulantes de curta duração.
— Não, nenhuma teoria, infelizmente. Nenhuma idéia coerente.
SĂł que...
— O quê?
— Bem... agora acredito que foi uma boa idéia Isley e Arkham
terem vindo conosco.
Jenny ainda estava cética quanto às conexões extraterrestres,
mas Lisa continuava a se interessar. A mocinha perguntou:
— Acha mesmo que é algo de um outro mundo?
— Pode haver outras possibilidades — disse Sara —, mas, no
momento, é difícil vislumbrar quais sejam. — Lançou um olhar ao
relógio de pulso, remexeu-se, inquieta, e falou: — Por que estão
demorando tanto? Voltou a fixar a atenção na janela. Lá fora, as árvores

estavam imĂłveis. Os toldos na frente das lojas pendiam frouxos. A
cidade estava quieta como a morte.
—

A senhora falou que estavam guardando os trajes de

descontaminação.
— É — confirmou Sara —, mas não levariam tanto tempo assim.
— Se tivesse havido algum problema, teríamos escutado tiros.
— Ou explosões — disse Jenny. — Aquelas bombas incendiárias
que fizeram.
—

Já deviam estar de volta pelo menos há cinco... talvez dez

minutos — insistiu a geneticista. — E ainda nem sinal deles.
Jenny

lembrou-se

de

como

aquilo

levara

Jake

Johnson

furtivamente. Bryce hesitou, depois empurrou para trás a sua cadeira.
— Suponho que não haverá mal em eu levar alguns homens e ir
dar uma olhada.
Sara Yamaguchi afastou-se da janela. As pernas dianteiras de
sua cadeira bateram com força no chão, fazendo um barulho vivo,
surpreendente. Ela falou:
— Há alguma coisa errada.
— Não, não. Provavelmente não — disse Bryce.
—

O senhor também está sentindo — falou Sara. — Estou

percebendo. Jesus.
— Não se preocupe — disse Bryce, com calma.
Todavia, os olhos dele nĂŁo estavam tĂŁo calmos quanto a sua voz.
Durante as Ăşltimas vinte e tantas horas, Jenny aprendera a entender
muito bem a expressĂŁo daqueles olhos encobertos. Agora, expressavam
tensão e um pavor gelado, aguçado.
—

Ainda é cedo demais para nos preocuparmos — disse ele.

Mas todos eles sabiam.
Não queriam acreditar, mas sabiam. O terror recomeçara.
Bryce escolheu Tal, Frank e Gordy para acompanhá-lo até o
laboratĂłrio. Jenny disse:
— Eu também vou.
Bryce nĂŁo queria que ela fosse. Temia mais por ela do que por

Lisa ou por seus homens ou mesmo por si mesmo.
Uma ligação rara e inesperada ocorrera entre eles. Ele se sentia
ajustado com ela, e acreditava que ela sentia a mesma coisa. NĂŁo queria
perdĂŞ-la.
EntĂŁo, falou:
— Preferia que você não fosse.
— Sou médica — replicou Jenny, como se isso fosse não apenas
uma profissão, mas também uma armadura que a protegesse de todo o
mal.
— Isto aqui é uma verdadeira fortaleza — disse ele. — É mais
seguro aqui.
— Não é seguro em parte alguma.
— Não falei seguro. Falei mais seguro.
— Podem precisar de um médico.
— Se foram atacados, estão mortos ou desaparecidos. Ainda não
encontramos nenhum ferido, nĂŁo Ă©?
— Há sempre uma primeira vez. — Jenny virou-se para Lisa. —
Vá pegar a minha maleta, meu bem.
A jovem correu para a enfermaria improvisada.
— Ela fica aqui, sem sombra de dúvida — disse Bryce.
— Não — disse Jenny. — Ela fica comigo. Exasperado, Bryce
falou:
—

Ouça, Jenny, estamos virtualmente numa situação de lei

marcial. Posso ordenar a vocĂŞ que fique aqui.
—

E vai fazer cumprir a ordem como? Me apontando uma

arma? — perguntou ela, mas sem antagonismo.
Lisa voltou com a maleta de couro preto.
Parada junto Ă s portas da frente do hotel, Sara Yamaguchi pediu
a Bryce:
— Depressa. Por favor, depressa.
Se

aquilo

tivesse

atacado

no

laboratĂłrio

de

campo,

provavelmente nĂŁo havia necessidade de pressa.
Olhando para Jenny, Bryce pensou: nĂŁo posso protegĂŞ-la, Doc.

NĂŁo entende? Fique aqui onde as janelas estĂŁo trancadas e as portas
vigiadas. NĂŁo confie em mim para protegĂŞ-la, porque, pode crer, eu vou
falhar. Como falhei com Ellen... e Timmy.
— Vamos indo — disse Jenny.
Dolorosamente consciente de suas limitações, Bryce conduziu-os
para fora do hotel e rua acima, na direção da esquina — para além da
qual aquilo bem que poderia estar Ă  espera deles. Tal seguia na frente
da procissĂŁo, ao lado de Bryce. Frank e Gordy fechavam a retaguarda.
Lisa, Sara Yamaguchi e Jenny iam no meio.
O dia quente estava começando a esfriar.
No vale abaixo de Snowfield, começava a se formar uma neblina.
Restavam menos de trĂŞs quartos de hora antes do escurecer. O
sol derramava um fluxo final de luz sangrenta pela cidade. As sombras
estavam extremamente longas, distorcidas. As janelas refulgiam com
fogo solar refletido, lembrando a Bryce os buracos dos olhos nas
lanternas recortadas em abĂłbora feitas para o Dia das Bruxas.
A rua parecia ainda mais agourentamente silenciosa do que na
noite passada. Os passos deles ecoavam como se estivessem cruzando o
chĂŁo de uma catedral vasta e abandonada.
Dobraram a esquina, cautelosamente.
Três trajes de descontaminação jaziam largados e amontoados
no meio da rua. Outro traje vazio jazia metade na sarjeta e metade na
calçada. Dois dos capacetes estavam rachados.
Metralhadoras portáteis estavam espalhadas por toda a parte, e
coquetéis Molotov intactos enfileiravam-se ao longo do meio-fio.
A parte traseira do caminhĂŁo estava aberta. Mais trajes de
descontaminação vazios e metralhadoras estavam empilhados ali. Nem
sinal de gente.
Bryce gritou:
— General? General Copperfield? Silêncio sepulcral.
SilĂŞncio de superfĂ­cie lunar.
—

Seth! — gritou Sara Yamaguchi. — Will? Will Bettenby?

Galen? Alguém responda, por favor.

Nada. Ninguém. Jenny falou:
— Não conseguiram disparar um único tiro. Tal falou:
—

Ou gritar. Os guardas na porta da frente do hotel teriam

escutado se eles ao menos tivessem gritado.
Gordy falou:
— Ah, merda.
As

portas

traseiras

de

ambos

os

laboratĂłrios

estavam

entreabertas.
Bryce teve a sensação de que algo estava à espera deles lá
dentro.
Teve vontade de dar meia-volta e ir embora. Mas nĂŁo podia. Era
o líder. Se entrasse em pânico, todos entrariam também. O pânico era
um convite Ă  morte.
Sara começou a andar na direção da traseira do primeiro
laboratĂłrio. Bryce a deteve.
— São meus amigos, porra — exclamou ela.
— Eu sei. Mas deixe-me olhar primeiro.
Por um momento, contudo, Bryce nĂŁo conseguiu se mover.
Estava imobilizado pelo medo.
NĂŁo conseguiu se mover um centĂ­metro.
Mas depois, Ă© claro, finalmente, conseguiu.

31

Jogos de computador

O revólver de Bryce já estava sacado e engatilhado. Ele agarrou a
porta com a outra mĂŁo e escancarou-a. Ao mesmo tempo, deu um salto

para trás, apontando a arma para dentro do laboratório.
Estava deserto. Dois trajes de descontaminação amassados
jaziam no ChĂŁo, e um outro estava jogado sobre uma cadeira giratĂłria
na frente de um terminal de computador.
Ele se dirigiu para a traseira do segundo laboratĂłrio.
Tal falou:
— Deixe esse comigo. Bryce sacudiu a cabeça.
—

Fique aqui. Proteja as mulheres. Elas nĂŁo tĂŞm armas. Se

alguma coisa sair daĂ­ quando eu abrir a porta, corram feito uns
desesperados.
O coração batendo forte, Bryce hesitou atrás do segundo
laboratĂłrio mĂłvel. Botou a mĂŁo na porta. Hesitou de novo. Depois
abriu-a ainda com mais cuidado do que tinha aberto a primeira porta.
Também estava deserto. Dois trajes de descontaminação. Nada
mais.
Enquanto Bryce espiava para dentro do laboratĂłrio, todas as
luzes do teto se apagaram, e ele recuou, surpreso, ante a sĂşbita
escuridĂŁo. Dali a um segundo, todavia, a luz se acendeu de novo, mas
nĂŁo no teto. Era uma luz estranha, uma luz verde que o deixou
sobressaltado. EntĂŁo, viu que eram apenas as trĂŞs telas dos terminais
que tinham se acendido todas de uma vez. Agora se apagaram. E se
acenderam. Apagar, acender, apagar, acender, apagar... A princĂ­pio isso
aconteceu simultaneamente, depois em seqĂĽĂŞncia, repetidas vezes.
Finalmente, todas as telas se iluminaram e assim permaneceram,
enchendo a área de trabalho, sem outro tipo de iluminação qualquer,
com um brilho fantasmagĂłrico.
— Vou entrar — avisou Bryce.
Os outros protestaram, mas ele já tinha subido e passado pela
porta. Dirigiu-se Ă  primeira tela do terminal, onde seis palavras ardiam
em letras verde-claras contra um fundo verde-escuro.

JESUS ME AMA - DISSO EU SEI.

Bryce lançou um olhar para as duas outras telas. Exibiam as
mesmas seis palavras.
Foram apagadas. Agora havia novas palavras.
POIS A BĂŤBLIA ME DIZ QUE SIM.
Bryce franziu o cenho.
Que tipo de programa seria esse? Era a letra de uma das
canções que saíram de dentro do ralo da cozinha, no hotel.
A BĂŤBLIA SĂ“ DIZ MERDA, disse-lhe o computador.
Apagar.
JESUS FODE CACHORROS.
As últimas três palavras permaneceram na tela por vários
segundos. Parecia a Bryce que a luz verde das telas dos terminais era
fria. Como n luz de uma lareira transmite um calor seco, assim essa
iluminação transmit ia uma friagem que o penetrava.
Aquele nĂŁo era nenhum programa comum sendo rodado nas
telas. Aquilo nĂŁo era coisa que o pessoal do general Copperfield tivesse
colocado no computador, nenhuma forma de cĂłdigo, nenhum exercĂ­cio
de lĂłgica, nenhum teste de sistemas de qualquer tipo.
Apagar.
JESUS ESTĂ MORTO. DEUS ESTĂ MORTO.
Apagar.
EU ESTOU VIVO.
Apagar.
QUER BRINCAR DE VINTE PERGUNTAS?
Fitando a tela, Bryce sentiu um terror supersticioso e primitivo
tomando conta de si; terror e assombro, retorcendo as suas entranhas e
agarrando a sua garganta. Mas nĂŁo sabia por quĂŞ. Num nĂ­vel profundo,
quase subconsciente, pressentia que estava na presença de algo
maligno, antigo e... familiar. Mas como poderia ser familiar? Nem sabia
o que era. E, no entanto... E, no entanto, talvez soubesse. Lá no fundo.
Instintivamente. Se pudesse buscar dentro de si mesmo, passando pelo
verniz civilizado que corporificava tanto ceticismo, se pudesse buscar na
sua memória de raça, poderia achar a verdade sobre a coisa que pegara

e chacinara o povo de Snowfield.
Apagar.
XERIFE HAMMOND?
Apagar.
QUER BRINCAR DE VINTE PERGUNTAS COMIGO?
O uso do seu nome sobressaltou-o. E depois seguiu-se uma
surpresa bem maior e mais perturbadora:
ELLEN.
O nome ardeu na tela, o nome da sua mulher morta, e cada
mĂşsculo de seu corpo ficou tenso, e ele esperou que mais alguma coisa
aparecesse; porém, durante longos segundos, ali ficou apenas o nome
precioso, e ele nĂŁo conseguia desviar os olhos dele, e entĂŁo...
ELLEN APODRECE.
Ele nĂŁo podia respirar.
Como aquilo podia saber de Ellen?
Apagar.
ELLEN ALIMENTA OS VERMES.
Que tipo de merda seria essa? Qual a finalidade de tudo isso?
TIMMY VAI MORRER.
A profecia brilhava, verde no verde.
Ele soltou uma exclamação abafada.
— Não — disse baixinho. No ano passado, ele tinha achado que
seria melhor se Timmy sucumbisse. Melhor do que ir se acabando aos
poucos. Até ontem, ele teria dito que a morte rápida do filho seria uma
bênção. Mas isso fora até ontem. Snowfield lhe ensinara que nada era
pior do que a morte. Nos braços da morte, não havia esperança. Mas
enquanto Timmy vivesse, havia uma possibilidade de recuperação.
Afinal de contas, os médicos tinham dito que o menino não sofrerá
danos cerebrais maciços. Portanto, se Timmy chegasse a acordar do seu
sono inatural, tinha uma boa chance de conservar as suas faculdades e
funções normais. Chance, promessa, esperança. Portanto, Bryce disse
para o computador:
Apagar.

NĂŁo, nĂŁo.

TIMMY

VAI

APODRECER.

ELLEN

APODRECE.

ELLEN

APODRECE NO INFERNO.
— Quem é você? — interpelou-o Bryce.
No momento em que falou, sentiu-se um tolo. NĂŁo podia
simplesmente conversar com um computador como se fosse um outro
ser humano. Se quisesse fazer uma pergunta, teria que datilografá-la.
VAMOS BATER UM PAPINHO?
Bryce deu as costas ao terminal. Dirigiu-se até a porta e
debruçou-se para fora.
Os outros pareceram aliviados ao vĂŞ-lo.
Pigarreando,

tentando

esconder

o

fato

de

que

estava

profundamente abalado, ele pediu:
— Dra. Yamaguchi, preciso de sua ajuda aqui.
Tal, Jenny, Lisa e Sara Yamaguchi entraram no laboratĂłrio
mĂłvel. Frank e Gordy continuaram do lado de fora, junto Ă  porta,
vigiando nervosamente a rua, de onde desaparecia rapidamente a luz do
dia.
Bryce mostrou a Sara as telas do computador.
VAMOS BATER UM PAPINHO?
Ele lhes contou o que aparecera nas telas, e antes de poder
terminar, Sara o interrompeu, dizendo:
—

Mas isso Ă© impossĂ­vel. Esse computador nĂŁo tem nenhum

programa, nenhum vocabulário que lhe permitisse...
— Alguma coisa assumiu o controle do seu computador — disse
ele. Sara fez uma careta.
— O controle? Como?
— Não sei.
— Quem?
— Quem, não — disse Jenny, abraçando a irmã. — Digamos o
quĂŞ.
— É — falou Tal. — Essa coisa, esse assassino, seja lá o que for,
assumiu o controle do seu computador, dra. Yamaguchi.
Obviamente incrédula, a geneticista sentou-se a uma das telas

dos terminais e acionou uma máquina de escrever automática.
—

É melhor termos uma saída impressa para o caso de

conseguirmos alguma coisa de concreto.
Ela hesitou, com as mĂŁos delicadas, quase infantis pairando
acima do teclado. Bryce ficou olhando por sobre o ombro dela. Tal,
Jenny e Lisa se voltaram para as duas outras telas — quando todas as
trĂŞs telas ficaram limpas. Sara fitou o campo liso de luz verde Ă  sua
frente; finamente datilografou o cĂłdigo de acesso, e depois uma
pergunta:
TEM ALGUÉM Al?
A máquina de escrever automática funcionou, iniciando-se a
saĂ­da impressa, e a resposta veio imediata:
SIM.
QUEM É VOCÊ ?
INĂšMEROS.
— O quer dizer isso? — perguntou Tal.
— Não sei! — respondeu a geneticista.
Sara repetiu a pergunta e recebeu a mesma resposta obscura:
INĂšMEROS.
— Pergunte como se chama — falou Bryce.
Sara datilografou, e as palavras que compĂ´s apareceram
instantaneamente nas trĂŞs telas dos terminais:
VOCĂŠ TEM UM NOME?
TENHO.
QUAL É O SEU NOME?
MUITOS.
TEM MUITOS NOMES?
TENHO.
QUAL É UM DOS SEUS NOMES?
CAOS.
QUE OUTROS NOMES VOCĂŠ TEM?
VOCÊ É UMA PUTINHA CHATA E BURRA. FAÇA OUTRA
PERGUNTA.

Visivelmente chocada, a geneticista ergueu os olhos para Bryce.
— Esta, definitivamente, não é uma palavra que se vá encontrar
em qualquer linguagem de computador.
Lisa falou:
— Não lhe pergunte quem é. Pergunte o que é.
—

É isso aí — falou Tal. — Veja se consegue uma descrição

—

Vai pensar que estamos pedindo-lhe para rodar testes

fĂ­sica.

diagnósticos sobre si mesmo — falou Sara. — Vai começar a apresentar
diagramas de seus circuitos elétricos.
— Não, não vai — falou Bryce. — Lembre-se de que não está
tendo um diálogo com o computador. É outra coisa. O computador é
apenas o meio de comunicação.
— Oh, é claro — falou Sara. — A despeito da palavra que usou,
ainda quero pensar nele como o bom e velho Meddy.
Depois de pensar um momento, ela datilografou:
OFEREÇA UMA DESCRIÇĂO FĂŤSICA DE SI MESMO.
EU ESTOU VIVO.
SEJA MAIS ESPECĂŤFICO, orientou Sara.
EU SOU, POR NATUREZA, INESPECĂŤFICO.
VOCÊ É HUMANO?
TAMBÉM ENCERRO ESTA POSSIBILIDADE.
—

Está brincando conosco — falou Jenny. — Divertindo-se.

Bryce passou a mĂŁo pelo rosto.
—

Pergunte-lhe o que aconteceu a Copperfield. ONDE ESTĂ

GALEN COPPERFIELD?
MORTO.
ONDE ESTA O CORPO DELE?
SUMIU.
SUMIU PARA ONDE?
PIRANHA CHATA.
ONDE ESTĂO OS OUTROS QUE ESTAVAM COM GALEN
COPPERFIELD?

MORTOS.
VOCĂŠ OS MATOU?
SIM.
POR QUE OS MATOU?
VOCĂŠS.
Sara bateu no teclado:
ESCLAREÇA.
VOCĂŠS ESTĂO
ESCLAREÇA.
VOCĂŠS ESTĂO TODOS MORTOS.
Bryce notou que as mĂŁos da mulher tremiam. No entanto,
moviam-se pelo teclado com habilidade e precisĂŁo:
POR QUE QUER NOS MATAR?
É PARA ISSO QUE EXISTEM.
ESTĂ DIZENDO QUE EXISTIMOS APENAS PARA SER MORTOS?
SIM. VOCĂŠS SĂO GADO. SĂO PORCOS. NĂO VALEM NADA.
COMO É O SEU NOME?
VAZIO.
ESCLAREÇA.
NADA.
COMO É SEU NOME?
LEGIĂO.
ESCLAREÇA.
ESCLAREÇA O CARALHO, SUA PIRANHA CHATA.
Sara enrubesceu e disse:
— Isso é uma loucura.
— Dá quase para senti-lo aqui com a gente, agora — disse Lisa.
Jenny apertou o ombro da irmĂŁ, encorajadoramente, e falou:
— Meu bem... O que quer dizer com isso? A voz da garota estava
tensa, trĂŞmula.
— Dá quase para sentir a sua presença. — Correu os olhos pelo
laboratório. — O ar parece mais espesso... não acham? E mais frio. É
como se alguma coisa fosse... se materializar bem aqui na nossa frente.

Bryce sabia o que ela estava querendo dizer.
Tal fitou os olhos de Bryce e meneou a cabeça. Ele também
estava sentindo.
Todavia, Bryce teve certeza de que o que estavam sentindo era
uma sensação subjetiva. Nada ia realmente se materializar. O ar não
estava nulls espesso do que era minuto atrás; parecia mais espesso
porque estavam todos tensos, e quando se estava rĂ­gido de tensĂŁo, era
naturalmente um tanto mais difĂ­cil inspirar. E se o ar estava mais frio...
bem, era apenas porque a noite vinha chegando.
As telas do computador ficaram limpas. EntĂŁo:
QUANDO ELE VIRĂ?
Sara datilografou.
ESCLAREÇA.
QUANDO VIRĂ O EXORCISTA?
—

Santo Cristo — exclamou Tal. — Que história é essa?

ESCLAREÇA, datilografou Sara.
TIMOTHY FLYTE.
— Santo Deus! — exclamou Jenny.
— A coisa conhece esse tal de Flyte — disse Tal. — Mas como?
E tem medo dele... ou o quĂŞ?
VOCĂŠ TEM MEDO DE FLYTE?
PIRANHA BURRA.
VOCĂŠ TEM MEDO DE FLYTE? insistiu ela, sem se alterar.
NĂO TENHO MEDO DE NADA.
POR QUE ESTĂ INTERESSADO EM FLYTE?
DESCOBRI QUE ELE SABE.
O QUE ELE SABE?
A MEU RESPEITO.
— Evidentemente — disse Bryce —, podemos descartar a
possibilidade de que Flyte seja apenas mais um vigarista.
Sara bateu nas teclas:
FLYTE SABE O QUE VOCÊ É?
SABE. EU O QUERO AQUI.

POR QUE VOCĂŠ O QUER AQUI?
ELE É MEU MATEUS.
ESCLAREÇA.
ELE É MEU MATEUS, MARCOS, LUCAS E JOĂO.
Franzindo a testa, Sara fez uma pausa, olhou para Bryce.
Depois, seus dedos voaram novamente sobre o teclado:
QUER DIZER QUE FLYTE É SEU APÓSTOLO?
NĂO. É MEU BIĂ“GRAFO. FAZ AS CRĂ”NICAS DA MINHA OBRA.
QUERO QUE ELE VENHA PARA CĂ.
QUER MATĂ-LO TAMBÉM?
NĂO. EU LHE DAREI SALVO-CONDUTO.
ESCLAREÇA.
TODOS VOCĂŠS MORRERĂO. MAS PERMITIREI QUE FLYTE
VIVA. DIGAM ISSO A ELE. SE ELE NĂO SOUBER QUE TEM SALVOCONDUTO, NĂO VIRĂ.
As mĂŁos de Sara tremiam mais do que nunca. Ela pulou uma
tecla, apertou uma letra errada, teve que cancelar tudo e começar de
novo. Perguntou:
SE TROUXERMOS FLYTE A SNOWFIELD, VOCĂŠ NOS DEIXARĂ
VIVER?
VOCĂŠS SĂO MEUS.
VOCĂŠ NOS DEIXARĂ VIVER?
NĂO.
Até então, Lisa fora mais corajosa do que se esperava, pela sua
pouca idade. Todavia, ver o seu destino declarado sem rodeios numa
tela de computador foi demais para ela. Começou a chorar baixinho.
Jenny consolou a jovem da melhor maneira possĂ­vel.
— Seja lá o que isso for — disse Tal —, sem dúvida é arrogante.
— Bem, ainda não estamos mortos — disse-lhes Bryce. — Ainda
há esperança. Sempre há esperança enquanto estivermos vivos.
Sara usou de novo o teclado.
DE ONDE VOCĂŠ VEM?
DE TEMPOS IMEMORIAIS.

ESCLAREÇA.
PIRANHA CHATA.
VOCÊ É EXTRATERRESTRE?
NĂO.
— Isso responde às perguntas de Isley e Arkham — disse Bryce,
antes de se dar conta de que Isley e Arkham já estavam mortos.
— A não ser que esteja mentindo — disse Jenny.
Sara repetiu uma pergunta que já tinha feito anteriormente:
O QUE É VOCÊ?
VOCĂŠ ME ENCHE.
O QUE É VOCÊ?
PUTA BURRA.
O QUE É VOCÊ?
NĂO ENCHE O SACO.
O QUE É VOCÊ?, datilografou ela de novo, batendo nas teclas
com tanta força que Bryce achou que ia quebrá-las. A sua raiva parecia
ter sobrepujado o seu medo.
SOU GLASYALABOLAS.
ESCLAREÇA.
ESTE Ă MEU NOME. SOU UM HOMEM ALADO COM DENTES
DE CĂO. A MINHA BOCA ESPUMA. FUI CONDENADO A ESPUMAR
POR TODA A ETERNIDADE.
Bryce fitou a tela, sem compreender. Será que falava sério? Um
homem alado com dentes de cão? É claro que não. Devia estar
brincando com eles, divertindo-se de novo. Mas o que havia de tĂŁo
divertido nisso?
As telas ficaram limpas.
Uma pausa.
Novas palavras apareceram, embora Sara nĂŁo tivesse feito
perguntas.
SOU HABORYM. SOU UM HOMEM DE TRÊS CABEÇAS: UMA
HUMANA, UMA FELINA, UMA DE SERPENTE.
— Mas que bosta é essa? — perguntou Tal, frustrado. O ar no

aposento estava definitivamente mais frio.
É só o vento, disse Bryce a si mesmo. O vento na porta, trazendo
consigo a friagem da noite que se aproxima.
EU SOU RANTAN.
Apagar.
EU SOU PALLANTRE.
Apagar.
EU

SOU

AMLUTIAS,

ALFINA,

EPYN,

FUARD,

BELIAL,

OMGORMA, NEBIROS, BAAL, ELIGOR E MUITOS OUTROS.
Os nomes estranhos brilharam nas trĂŞs telas por um momento,
depois se apagaram.
EU SOU TODOS E NENHUM. EU SOU NADA. EU SOU TUDO.
Apagar.
O trio de telas brilhou vivamente, verdemente, limpamente, por
um, dois, trĂŞs segundos. Depois escureceu.
As luzes do teto se acenderam.
— Fim da entrevista — disse Jenny.

Belial. Fora um dos nomes que ele dera a si mesmo.
Bryce nĂŁo era um homem fervorosamente religioso, mas era
suficientemente culto para saber que Belial ou era um dos nomes de
Satanás ou o nome de outro dos anjos caídos. Não estava bem certo.
Gordy Brogan era o mais religioso dentre eles, um catĂłlico
devoto. Quando Bryce saiu do laboratório de campo, o último a deixá-lo,
pedia a Gordy para dar uma olhada nos nomes no final da saĂ­da
impressa.
Eles estavam na calçada junto ao laboratório, no restinho da luz
do dia, enquanto Gordy lia as linhas pertinentes. Em vinte minutos,
talvez menos, estaria escuro.
— Aqui — disse Gordy. — Este nome. Baal. — Apontou-o no
papel de computador dobrado feito um acordeom. — Não sei
exatamente onde o vi antes. NĂŁo foi na igreja ou no catecismo. Talvez o
tenha lido em algum livro.

Bryce percebeu um tom e um ritmo estranhos na fala de Gordy.
Era mais do que simples nervosismo. Ele falava muito lentamente,
durante

algumas

palavras,

depois

muito

rapidamente,

depois

lentamente de novo, depois quase freneticamente.
— Um livro? — perguntou Bryce. A Bíblia!
— Não, acho que não. Não sou muito de ler a Bíblia. Devia ser.
Devia lĂŞ-la com regularidade. Eu vi esse nome foi num livro comum.
Num romance. NĂŁo me lembro direito.
— Então, quem é esse Baal? — perguntou Bryce.
— Acho que é um demônio muito poderoso — disse Gordy. E
havia algo de definitivamente errado com a voz dele; com ele.
— E quanto aos outros nomes — perguntou Bryce.
— Não significaria nada para mim.
— Pensei que podiam ser os nomes de outros demônios.
— Bem, como sabe, a Igreja Católica não é muito dada a
sermões ameaçadores com as penas do Inferno — disse Gordy, ainda
falando estranhamente. — Mas talvez devesse ser. É. Talvez devesse.
Porque eu acho que o senhor está com a razão. Acho que aqueles são os
nomes de demĂ´nios.
Jenny soltou um suspiro cansado.
— Quer dizer que aquilo estava apenas fazendo uma das suas
brincadeirinhas conosco. Era sĂł um jogo.
Gordy sacudiu a cabeça, vigorosamente.
— Não. Um jogo não. De maneira nenhuma. Estava dizendo a
verdade. Bryce franziu o cenho.
— Gordy, você não está realmente pensando que aquilo é um
demônio ou o próprio Satanás ou coisa parecida, não é?
— Isso tudo é bobagem — falou Sara Yamaguchi.
—

É — disse Jenny. — Todo o desempenho no computador,

essa imagem demonĂ­aca que quer projetar... Ă© sĂł para nos desorientar
ainda mais. Nunca vai nos dizer a verdade a seu respeito, porque, se a
conhecêssemos, então poderíamos achar um jeito de derrotá-lo.
— Como vocês explicam o padre que foi crucificado no altar da

Nossa Senhora das Montanhas? — perguntou Gordy.
— Mas isso era só mais uma parte da charada — disse Tal.
Os olhos de Gordy estavam estranhos. NĂŁo era apenas medo.
Eram os olhos de um homem que estava sofrendo aflição espiritual, até
mesmo agonia. Eu devia ter reparado antes que isso ia ocorrer,
repreendeu-se Bryce. Com voz baixa, mas com uma intensidade
fascinada, Gordy falou:
— Eu acho que talvez a hora tenha chegado. O fim. A hora do
fim. Finalmente. Como diz a BĂ­blia. Isso era algo em que eu nunca tinha
acreditado. Acreditava em todo o resto que a igreja pregava. Mas nĂŁo
nisso. NĂŁo no dia do JuĂ­zo. Eu achava que tudo ia continuar assim para
sempre. Mas agora chegou, não é? É. O Juízo Final. Não só para as
pessoas que moram em Snowfield. Para todos nĂłs. O final. EntĂŁo, venho
me perguntando como serei julgado. E estou com medo. Quero dizer, eu
recebi um dom, um dom muito especial, e o joguei fora. Eu recebi o
dom de São Francisco. Sempre tive jeito com os animais. É verdade.
Nenhum cĂŁo late para mim. Sabiam disso? Nenhum gato jamais me
arranhou. Os animais reagem bem a mim, confiam em mim. Quem sabe
até me amem. Nunca conheci um que não agisse assim. Até fiz com que
esquilos silvestres viessem comer na palma da minha mão. É um dom.
Então, meus pais queriam que eu fosse veterinário. Mas eu dei as
costas a eles e a meu dom. Virei tira. Peguei num revĂłlver. Num
revĂłlver. Eu nĂŁo nasci para pegar num revĂłlver. Eu nĂŁo. Nunca. Mas eu
agi assim em parte porque sabia que ia incomodar os meus pais. Estava
expressando a minha independĂŞncia, sabem? Mas eu esqueci, esqueci
do que diz na Bíblia: honrarás teu pai e tua mãe. O que eu fiz, em vez
disso, foi magoá-los. E voltei as costas ao dom que Deus me dera. Mais
do que isso. Pior do que isso. O que eu fiz foi cuspir no dom. Na noite
passada eu resolvi largar a polĂ­cia, deixar de lado o revĂłlver e me tornar
um veterinário. Mas acho que foi tarde demais. O Juízo já estava em
andamento, e eu nĂŁo tinha me dado conta. Cuspi no dom que Deus me
deu e agora... estou com medo.
Bryce não sabia o que dizer a Gordy. Seus pecados imaginários

estavam tĂŁo longe do mal genuĂ­no, que dava quase vontade de rir. Se
havia alguém aqui que estava destinado ao Céu era Gordy. Não que
Bryce acreditasse que tinha chegado o dia do JuĂ­zo. NĂŁo acreditava.
Mas nĂŁo conseguia pensar em nada para dizer a Gordy, pois o garoto
alto e graúdo já estava fora da faixa demais para que alguém o
trouxesse de volta Ă  realidade.
— Timothy Flyte é um cientista, não um teólogo — disse Jenny,
com firmeza. — Se Flyte tiver uma explicação para o que está
acontecendo aqui, será estritamente científica, não religiosa.
Gordy não a escutava. As lágrimas lhe escorriam pelo rosto. Os
olhos estavam vidrados. Quando inclinou a cabeça e olhou para o céu,
nĂŁo estava vendo o pĂ´r-do-sol. Estava vendo, aparentemente, uma
grande rodovia celestial pela qual logo desceriam os arcanjos e as
legiões do Céu em carruagens de fogo.
Ele não estava em condições de estar de posse de uma arma
carregada. Bryce tirou o revĂłlver de Gordy do coldre e ficou com ele. O
delegado nem pareceu reparar.
Bryce viu que a falação bizarra de Gordy tivera um sério efeito
sobre Lisa. Ela parecia muito abalada, aturdida.
— Está tudo bem — disse-lhe Bryce. — Não é realmente o fim
do mundo. Não é o dia do Juízo. Gordy está apenas... perturbado.
Vamos sair dessa muito bem. NĂŁo me acredita, Lisa? NĂŁo pode ficar
com esse lindo queixinho levantado? NĂŁo pode ser corajosa sĂł mais um
pouquinho?
Ela nĂŁo respondeu imediatamente. EntĂŁo, procurou dentro de si
mesma e encontrou mais uma reserva de força e coragem. Assentiu. Até
mesmo conseguiu dar um sorriso débil, incerto.
—

Você é uma garota e tanto — disse ele. — Um bocado

parecida com a sua irmĂŁ.
Lisa lançou um olhar para Jenny, depois voltou os olhos
novamente para Bryce.
— Você é um xerife e tanto — disse.
Ele se perguntou se o seu prĂłprio sorriso estaria tĂŁo trĂŞmulo

quanto o dela.
Sentiu-se encabulado com a confiança da mocinha, pois não era
digno dela.
Menti para você, menina, pensou. A morte ainda está conosco.
Vai atacar de novo. Talvez nĂŁo dentro de uma hora. Talvez nem mesmo
dentro de um dia inteiro. Porém, mais cedo ou mais tarde, ela atacará
de novo.
Na verdade, muito embora ele nĂŁo tivesse possibilidade de sabĂŞlo um deles morreria no minuto seguinte.

32

Destino

Em Santa Mira, Fletcher Kale passou a maior parte da tarde de
segunda-feira destroçando a casa de Jake Johnson, aposento por
aposento. Divertiu-se a valer.
Numa grande despensa junto à cozinha, onde até se podia
entrar, ele finalmente localizou o tesouro de Johnson. NĂŁo estava nas
prateleiras, que se achavam abarrotadas com suprimentos para um
ano, pelo menos, de comida enlatada e engarrafada, nem no chĂŁo, com
pilhas de outros mantimentos. NĂŁo, o verdadeiro tesouro estava debaixo
do piso da despensa: debaixo do linóleo solto, debaixo das tábuas, num
compartimento secreto.
Uma pequena coleção de armas, fantástica, cuidadosamente
selecionada, estava escondida ali; cada uma das armas embrulhada
individualmente

em

plástico

impermeável.

Sentindo-se

como

se

estivesse numa manhĂŁ de Natal, Kale desembrulhou todas elas. Havia

um par de Smith & Wesson Combat Magnums, talvez a melhor e mais
poderosa pistola do mundo. Carregada com balas calibre 357, era a
arma mais mortĂ­fera que um homem podia carregar, com potĂŞncia
bastante para deter um urso feroz; carregada com balas calibre 38, era
uma arma igualmente útil e extremamente precisa para caça de menor
porte. Uma espingarda de caça: uma Remington 870 Brushmaster,
calibre 12, com miras de rifle ajustáveis, coronha dobrável, uma
coronha de pistola, pente projetado e uma alça. Dois rifles. Uma M-l
semi-automática. Porém, melhor do que tudo, havia um Heckler & Koch
HK91, um soberbo rifle de ataque, completo, com oito pentes de trinta
disparos, já carregados, e uns dois mil cartuchos de munição adicional.
Durante quase uma hora Kale ficou sentado examinando os
rifles e brincando com eles. Acariciando-os. Se os tiras deparassem com
ele enquanto se dirigia para as montanhas, iam desejar ter olhado para
o outro lado.
O buraco sob a despensa também continha dinheiro. Muito
dinheiro. As notas estavam bem enroladas, presas com tiras de
borracha, depois enfiadas em cinco vidros de conserva bem lacrados.
Havia de trĂŞs a cinco rolos em cada vidro.
Ele levou os vidros para a cozinha e colocou-os sobre a mesa.
Procurou na geladeira uma lata de cerveja, teve que se contentar com
uma de Pepsi, sentou-se à mesa e começou a contar o seu tesouro.
Sessenta e trĂŞs mil, quatrocentos e quarenta dĂłlares.
Uma das lendas modernas mais duradouras do condado de
Santa Mira era a que dizia respeito Ă  fortuna secreta de Big Ralph
Johnson, construída (segundo os boatos) através de corrupção e
suborno. Obviamente, era isto o que restava dos ganhos ilĂ­citos de Big
Ralph. Exatamente o tipo de grana de que Kale precisava para começar
uma vida nova.
O irĂ´nico de tudo isso era que, se tivesse encontrado esta grana
na semana passada, nĂŁo precisaria ter matado Joanna e Danny. Isto
era mais do que o suficiente para sair das suas dificuldades com a
Investimentos High Country.

Um ano e meio atrás, quando se tornara sócio da High Country,
nĂŁo poderia ter previsto que aquilo daria em desastre. Naquela Ă©poca,
aquilo lhe parecera a oportunidade que ele sabia que estava destinada a
surgir na sua vida, mais cedo ou mais tarde.
Cada um dos sĂłcios da Investimentos High Country levantara
um sétimo dos fundos necessários para adquirir e subdividir um lote de
trinta acres na extremidade leste de Santa Mira, no alto da Highline
Ridge, e construir nele. Para entrar na jogada, Kale fora forçado a
investir cada dĂłlar disponĂ­vel em que pudesse deitar as mĂŁos, mas o
retorno em potencial parecera valer o risco.
Todavia, o projeto Highline Ridge acabou sendo um monstro
devorador de dinheiro com um apetite voraz.
Do jeito que a sociedade fora formada, cada sĂłcio devia entrar
com contribuições obrigatórias adicionais se o fundo comum inicial de
capital provasse ser inadequado Ă  tarefa. Se Kale (ou outro sĂłcio
qualquer) não conseguisse pagar a contribuição obrigatória necessária,
estava fora da Investimentos High Country imediatamente, sem
qualquer compensação pelo que já havia investido, muito obrigado e
adeus. Então os sócios restantes tornavam-se responsáveis por porções
iguais da sua contribuição — e adquiriam frações iguais da sua parte
no projeto. Era o tipo de arranjo que facilitava o financiamento do
projeto, atraindo (em geral) apenas aqueles investidores que tinham um
bocado de liquidez — mas também exigia um estômago de ferro e nervos
de aço.
Kale pensara que não haveria outras contribuições adicionais. O
fundo comum de capital original parecera-lhe mais do que suficiente.
Mas estava errado.
Quando a primeira das contribuições especiais, no valor de 35
mil dĂłlares, fora cobrada, ele ficara chocado, mas nĂŁo derrotado. Achou
que poderiam tomar emprestado dez mil dos pais de Joanna, a casa
deles podendo facilmente ser penhorada para render mais vinte mil. Os
Ăşltimos cinco mil poderiam ser arranjados aqui e ali.
O Ăşnico problema era Joanna.

Desde o começo, ela não quisera que ele se envolvesse na
Investimentos High Country. Achava que era demais para o bico dele,
que devia parar de tentar bancar o figurĂŁo cheio da grana.
Ele fora em frente, apesar de tudo, e então viera a contribuição e
ela gozara o desespero dele. NĂŁo abertamente, Ă© claro. Era esperta
demais para isso. Sabia que podia bancar melhor a mártir do que a
megera. Nunca falara eu-não-te-disse, não diretamente, mas a acusação
satisfeita estava no seu olhar, evidente de modo humilhante no jeito
como o tratava,
Finalmente, ele a convencera a usar a casa como garantia e
pedir um empréstimo aos pais dela. Não fora fácil.
Ele sorrira, balançara a cabeça e aceitara todos os conselhos
melosos e críticas disfarçadas deles, mas prometera a si mesmo que
acabaria por esfregar-lhes a cara em toda a bosta que tinham jogado
nele. Quando enriquecesse com a High Country, faria com que todos
rastejassem, especialmente Joanna.
EntĂŁo,

para

sua

consternação,

a

segunda

contribuição

obrigatĂłria especial fora cobrada dos sete sĂłcios. Era de quarenta mil
dĂłlares.
Ele também teria levantado esse dinheiro, se Joanna tivesse
desejado sinceramente que ele vencesse. Ela poderia ter tirado dinheiro
do fundo de fideicomisso. Quando a avĂł de Joanna, aquela bruxa velha,
morrera, cinco meses depois do nascimento de Danny, deixara quase
metade do seu espĂłlio (cinqĂĽenta mil dĂłlares) num fundo de
fideicomisso para o Ăşnico bisneto. Joanna fora nomeada a principal
administradora do fundo. Portanto, quando viera a segunda cobrança
da High Country, ela poderia ter tirado quarenta mil dĂłlares do fundo e
pago a conta. Mas Joanna se recusara. Ela dissera: "E se houver mais
outra contribuição obrigatória? Você perde tudo, Fletch, tudo, e Danny
também perde a maior parte do dinheiro do seu fundo."
Ele tentara fazer com que ela enxergasse que nĂŁo haveria uma
terceira cobrança. Mas, é claro, ela não dera ouvidos a ele porque não
queria realmente que ele tivesse ĂŞxito, porque queria vĂŞ-lo perder tudo e

ser humilhado, porque queria arruiná-lo, derrotá-lo.
Ele não tivera outra escolha senão matá-la e também a Danny.
Do jeito que o fundo fora estabelecido, se Danny morresse antes de
fazer 21 anos, o fundo seria dissolvido. O dinheiro, apĂłs o pagamento
dos impostos, tornar-se-ia propriedade de Joanna. E se Joanna
morresse, todo o seu espĂłlio passaria Ă s mĂŁos do marido. Era o que
constava do seu testamento. Assim, se ele se livrasse de ambos, o
dinheiro do fundo (e mais uma bonificação de vinte mil dólares
correspondentes Ă  apĂłlice do seguro de vida de Joanna) acabaria nas
suas mĂŁos.
A vaca nĂŁo lhe deixara outra escolha.
NĂŁo era culpa dele que estava morta.
Ela mesma fizera aquilo consigo. Ajeitara as coisas de tal forma
que nĂŁo havia outra saĂ­da para ele.
Sorriu, lembrando-se da expressĂŁo dela ao ver o corpo do garoto
— e quando o vira apontar a arma para ela.
Agora, sentado Ă  mesa da cozinha de Jake Johnson, Kale olhou
para todo aquele dinheiro e seu sorriso ficou ainda mais amplo.
Sessenta e trĂŞs mil, quatrocentos e quarenta dĂłlares.
Algumas horas antes ele estivera na cadeia, virtualmente sem
tostĂŁo, enfrentando um julgamento que poderia resultar em pena de
morte. A maioria dos homens teria ficado imobilizada pelo desespero.
Mas Fletcher Kale nĂŁo fora derrotado. Sabia que estava destinado a
grandes coisas. E aqui estava a prova. Num espaço de tempo
incrivelmente curto, ele passara da cadeia para a liberdade, da penĂşria
para 63.440 dĂłlares. Agora tinha dinheiro, armas, transporte e um
esconderijo seguro nas montanhas vizinhas. Finalmente começara. O
seu destino especial começara a se desenrolar.

33

Fantasmas

Bryce falou:
— É melhor voltarmos para o hotel.
Dentro do quarto de hora seguinte, a noite tomaria posse da
cidade.
As sombras cresciam com velocidade cancerĂ­gena, surgindo dos
esconderijos onde tinham passado o dia dormindo. Espalhando-se na
direção umas das outras, formando poças de escuridão.
O céu estava pintado de cores carnavalescas — laranja,
vermelho, amarelo, roxo —, mas lançava apenas uma luz débil sobre
Snowfield.
Eles se afastaram do laboratĂłrio mĂłvel, onde recentemente
tinham tido uma conversa com aquilo, por intermédio do computador, e
se dirigiam para a esquina, quando as luzes das ruas se acenderam.
No mesmo momento, Bryce escutou algo. Um ganido. Um
vagido. E depois um latido.
O grupo inteiro se virou, como se fosse uma sĂł pessoa, e olhou
para trás.
Atrás deles um cão vinha mancando pela calçada, passando pelo
laboratório móvel, tentando desesperadamente alcançá-los. Era um
airedale. A sua pata dianteira esquerda parecia quebrada. Estava de
língua de fora. O pêlo estava lambido e embaraçado; parecia
desgrenhado, esgotado. Deu mais um passo trĂ´pego, parou para lamber
a pata ferida e ganiu dolorosamente.
Bryce ficou petrificado com a súbita aparição do cachoro. Este
era o primeiro sobrevivente que tinham encontrado; nĂŁo estava em boas
condições, mas estava vivo.

Mas, por que estava vivo? O que havia de diferente nele que o
salvara, quando todo o resto perecera?
Se eles pudessem descobrir a resposta, ela poderia ajudá-los a
se salvarem.

Gordy foi o primeiro a agir.
A visĂŁo do airedale ferido afetou-o muito mais do que a qualquer
um dos outros. NĂŁo podia suportar ver um animal sofrendo. Preferia ele
próprio sentir a dor. Seu coração começou a bater mais forte. Desta vez,
a reação foi ainda mais forte do que normalmente, pois ele sabia que
este nĂŁo era uni cĂŁo comum precisando de ajuda e consolo. Este
airedale era um sinal de Deus. É. Um sinal de que Deus estava dando a
Gordon Brogan mais uma chance de aceitar o Seu dom. Ele tinha o
mesmo jeito com os animais que SĂŁo Francisco de Assis tivera, e nĂŁo
devia rejeitá-lo ou fazer pouco-caso dele. Se desse as costas ao dom de
Deus, como já fizera antes, desta feita certamente seria amaldiçoado.
Mas se resolvesse ajudar este cão... As lágrimas ardiam nos cantos dos
olhos de Gordy; escorriam por suas faces. Lágrimas de alívio e
felicidade. Ficou encantado com a misericĂłrdia de Deus. NĂŁo havia
dúvidas do que devia fazer. Andou rápido na direção do airedale, que
estava a uns seis metros de distância.
A princĂ­pio, Jenny ficou embasbacada com o cĂŁo. Fitou-o,
boquiaberta. E, entĂŁo, uma alegria violenta explodiu dentro dela. A vida
conseguira triunfar sobre a morte. Aquilo nĂŁo pudera pegar todas as
coisas vivas em Snowfield, afinal de contas. Esse cĂŁo (que se sentou,
cansado, quando Gordy se dirigiu para ele) sobrevivera, o que
significava que talvez eles também pudessem deixar esta cidade com
vida...
...e entĂŁo ela se lembrou da mariposa.
A mariposa fora uma coisa viva. Mas nĂŁo fora amistosa.
E o corpo reanimado de Stu Wargle.
Lá na calçada, no limiar das sombras, o cão pousou a cabeça no
chĂŁo e ganiu, pedindo para ser consolado.

Gordy se aproximou dele, agachando-se, falando em tom baixo,
encorajador:
—

NĂŁo tenha medo, amigo. Calma. Calminha. Que cĂŁozinho

bom que vocĂŞ Ă©. Tudo vai dar certo, amigo. Calma...
O horror tomou conta de Jenny. Ela abriu a boca para gritar,
mas os outros gritaram primeiro.
— Gordy, não — gritou Lisa.
— Volte! — berrou Bryce, assim como Frank Autry. Tal berrou:
— Afaste-se dele, Gordy!
Mas Gordy parecia não escutá-los.
Quando Gordy se acercou do cĂŁo, ele ergueu o queixo da
calçada, levantou a cabeça quadrada e emitiu uns ruídos baixos,
insinuantes. Era um belo espécime. Com a pata escura, o pêlo lavado e
escovado e brilhando, seria lindo.
Ele estendeu a mĂŁo para o cĂŁo.
O animal roçou-lhe a mão com o focinho, mas não o lambeu.
Gordy acariciou-o. O pobrezinho estava frio, incrivelmente frio, e
ligeiramente Ăşmido.
— Pobrezinho — falou Gordy.
O cĂŁo tinha um cheiro esquisito. Acre. Nauseante, na verdade.
Gordy jamais sentira um cheiro daqueles.
— Onde e que você se meteu? — perguntou ele ao cão. — Em
que tipo de sujeira andou rolando?
O cachorro ganiu e estremeceu.
Ă€s suas costas, Gordy escutava os outros gritando, mas estava
absorto demais com o airedale para prestar atenção. Envolveu o animal
com as duas mĂŁos, ergueu-o do chĂŁo, levantou-se e apertou-o junto ao
peito, com a perna ferida pendurada.
Jamais sentira um animal tĂŁo frio assim. NĂŁo era apenas porque
o pêlo dele estava molhado e, portanto, frio. É que parecia não vir
nenhum calor de sob o pêlo também.
O cĂŁo lambeu a mĂŁo dele.
A sua lĂ­ngua era fria.

Frank parou de gritar. Ficou apenas olhando. Gordy pegara do
chão o vira-lata, começara a acariciá-lo e abraçá-lo, e nada de terrível
acontecera. EntĂŁo quem sabe era mesmo sĂł um cachorro. Quem sabe...
EntĂŁo.
O cĂŁo lambeu a mĂŁo de Gordy, e uma expressĂŁo estranha surgiu
no rosto de Gordy, e o cão começou a... se modificar.
Cristo.
Era como uma porção de massa sendo manipulada velozmente
por um escultor invisível. O pêlo embaraçado pareceu se derreter e
mudar de cor, então a textura também se alterou, até que parecia mais
escamas do que outra coisa qualquer, escamas esverdeadas; a cabeça
começou a se afundar para dentro do corpo, que não era mais um
corpo, sĂł uma coisa informe, um bolo de tecido que se retorcia; as
pernas encurtaram e ficaram mais grossas; e tudo isso aconteceu em
apenas cinco ou seis segundos; entĂŁo...
Gordy fitou, em estado de choque, a coisa nas suas mĂŁos.
Uma cabeça de lagarto com olhos amarelos e perversos começou
a tomar forma na massa amorfa na qual o cĂŁo se tinha degenerado. A
boca do lagarto surgiu no tecido gelatinoso, e uma lĂ­ngua bipartida
apareceu; havia um bocado de dentinhos pontudos.
Gordy tentou jogar a coisa no chĂŁo, mas ela se agarrou a ele,
Jesus, agarrou-se com força a ele, como se tivesse se moldado ao redor
dos seus braços e mãos, como se as suas mãos estivessem dentro dela
agora.
EntĂŁo, a coisa deixou de ser fria. De repente ficou morna. E
depois quente. Dolorosamente quente.
Antes que tivesse saĂ­do completamente da massa latejante de
tecido, o lagarto começou a se dissolver, e um novo animal passou a
tomar forma, uma raposa, uma raposa que rapidamente se degenerou
antes de ficar inteiramente formada, transformando-se em esquilos,
dois deles, os corpos unidos como gĂŞmeos siameses, mas rapidamente
se separando e...
Gordy começou a gritar. Sacudia os braços para cima e para

baixo, tentando jogar a coisa fora.
O calor agora era como fogo. A dor era insuportável.
Jesus, por favor.
A dor foi subindo pelos seus braços, pelos ombros.
Ele gritava e soluçava; deu um passo cambaleante à frente,
sacudiu de novo os braços, tentou libertar as mãos, mas a coisa se
agarrava a ele.
Os esquilos semiformados se dissolveram e um gato começou a
aparecer no tecido amorfo que ele segurava e que o segurava, e entĂŁo o
gato rapidamente se desvaneceu e outra coisa surgiu... Jesus, nĂŁo, nĂŁo,
Jesus, nĂŁo... uma coisa tipo inseto, grande como o airedale, mas com
seis ou oito olhos no alto da cabeça malévola e um bocado de perninhas
finas e...
A dor o consumia. Ele tropeçou para o lado, caiu de joelhos,
depois de lado. Chutava e se debatia em agonia, se retorcia e ondulava
na calçada.
Sara Yamaguchi fitava a cena, incrédula. O monstro que atacava
Gordy parecia ter o controle total do seu ADN. Podia mudar a sua forma
quando bem queria, e com velocidade espantosa.
Nenhuma criatura daquelas podia existir. Ela tinha que saber;
era biĂłloga, geneticista. ImpossĂ­vel. No entanto, ali estava ela.
A forma de aranha se degenerou e nenhuma nova forma
fantasmagĂłrica tomou o seu lugar. No estado natural, a criatura parecia
ser apenas uma massa de tecido gelatinoso, mosqueada de cinzamarrom-vermelho, um cruzamento entre uma ameba aumentada e um
fungo repelente. Ela se grudava aos braços de Gordy...
...e de repente uma das mĂŁos de Gordy apareceu em meio ao
limo que a envolvia. Mas nĂŁo era mais uma mĂŁo. Santo Deus, nĂŁo.
Eram

somente

ossos.

Dedos

esqueletais,

duros

e

brancos,

completamente descarnados. A carne fora totalmente carcomida.
Ela sentiu engulhos, cambaleou para trás, virou-se para a
sarjeta, vomitou.
Jenny puxou Lisa dois passos para trás, para mais longe

daquela coisa com que Gordy se debatia.
A garota estava gritando.
O

limo

escorreu

pela

mĂŁo

ossuda,

reclamou

os

dedos

descarnados, envolveu-os, vestiu-lhes uma luva de tecido pulsante. Em
dois segundos os ossos também tinham desaparecido, dissolvidos, e a
luva se transformou numa bola e se incorporou Ă  parte principal do
organismo.

A

coisa

se

contorcia

obscenamente,

se

revolvia

internamente, inchava, saltava aqui, formava uma concavidade ali,
agora uma concavidade onde estivera a saliĂŞncia, agora um nĂłdulo
saltado onde a concavidade estivera, alterando-se febrilmente, como se
a imobilidade de um Ăşnico momento pudesse significar a morte. Ela foi
subindo pelos braços de Gordy, enquanto ele lutava desesperadamente
para se livrar dela, e à medida que progredia na direção de seus
ombros, não deixava nada para trás, nada, nem cotos, nem ossos;
devorava tudo. Começou a se espalhar pelo peito também, e onde quer
que passasse, Gordy simplesmente desaparecia dentro dela e nĂŁo saĂ­a
mais, como se estivesse afundando num tanque de ácido ferozmente
corrosivo.
Lisa afastou o olhar do moribundo e se agarrou a Jenny,
soluçando.
Os gritos de Gordy eram insuportáveis.
O revólver de Tal já estava na mão. Ele correu na direção de
Gordy. Bryce o deteve.
— Está maluco? Porra, Tal, não há nada que possamos fazer.
— Podemos acabar com o sofrimento dele.
— Não se aproxime daquela coisa maldita!
—

NĂŁo temos que nos aproximar demais para dar um tiro

certeiro. Os gritos de Gordy ficavam mais torturados a cada segundo;
agora ele começou a berrar pedindo a ajuda de Jesus, e tamborilava os
calcanhares no chĂŁo, arqueava as costas, vibrava com a tensĂŁo, fazendo
de tudo para se libertar do peso crescente do seu atacante medonho.
Bryce estremeceu.
— Está certo. Depressa.

Ambos se acercaram mais do delegado moribundo que se
debatia e abriram fogo. Vários tiros acertaram nele. Os gritos cessaram.
Eles recuaram rapidamente.
NĂŁo tentaram matar a coisa que estava se alimentando de
Gordy. Sabiam que as balas não a afetavam, e estavam começando a
entender por quê. As balas matam pela destruição de órgãos vitais e
vasos sangüíneos essenciais. Porém, pelo que dava para se ver, essa
coisa nĂŁo tinha ĂłrgĂŁos e nem sistema circulatĂłrio convencional.
Tampouco tinha esqueleto. Parecia ser uma massa de protoplasma nĂŁo
diferenciado, mas altamente sofisticado. Uma bala a penetraria, mas a
carne surpreendentemente maleável logo fluiria para o canal aberto pela
bala, e a ferida sararia num instante.
O monstro se alimentava mais alucinadamente do que antes,
num frenesi silencioso, e dentro de segundos nĂŁo havia mais nenhum
sinal de Gordy. Ele deixara de existir. Havia apenas o transmorfo, de
um tamanho maior, maior do que o cão que fora, maior até que Gordy,
cuja substância agora incorporava.
Tal e Bryce juntaram-se aos outros, mas nĂŁo correram para o
hotel. À medida que o crepúsculo ia sendo espremido lentamente para
fora do céu num torno de escuridão, eles ficaram olhando a coisa
amebóide na calçada.
Ela começou a tomar nova forma. Em segundos, todo o
protoplasma de forma livre tinha sido moldado num imenso e
ameaçador lobo cinzento, e a criatura lançou a cabeça para trás e uivou
para a lua.
EntĂŁo a sua cara ondulou, e os elementos da sua fisionomia
feroz mudaram de lugar; Tal pôde ver feições humanas tentando surgir
através da imagem do lobo. Olhos humanos substituíram os olhos do
animal, e havia parte de um queixo humano. Os olhos de Gordy? O
queixo de Gordy? A metamorfose licantrĂłpica durou apenas alguns
segundos, e depois as feições da coisa voltaram à sua forma de lobo.
Um lobisomem, pensou Tal.
Mas sabia que nĂŁo era nada daquilo. NĂŁo era coisa alguma. A

identidade do lobo, por mais real e assustadora que parecesse ser, era
tĂŁo falsa quanto todas as outras identidades.
Por um momento ele ficou ali parado, confrontando-os, deixando
a mostra os dentes enormes e terrivelmente afiados, muito maior do que
qualquer outro lobo que já tivesse percorrido as planícies ou florestas
deste mundo. Seus olhos ardiam com a cor pardacenta-sangrenta do
pĂ´r-do-sol.
Vai atacar, pensou Tal.
Atirou nele. As balas penetraram, mas nĂŁo deixaram nenhum
ferimento visĂ­vel, nĂŁo fizeram sangrar, nĂŁo causaram dor aparente.
O lobo se afastou de Tal, com uma espécie de fria indiferença ao
tiroteio, e depois se dirigiu para o orifĂ­cio de entrada para os
escoadouros, no qual os cabos elétricos do laboratório de campo
desapareciam.
Abruptamente, ergueu-se algo do orifĂ­cio aberto, algo vindo do
escoadouro debaixo da rua, ergueu-se e ergueu-se ao crepĂşsculo,
estremecendo, projetando-se no ar com uma potĂŞncia tremenda, uma
massa escura e pulsante, como um fluxo de águas de esgoto, exceto que
não era um fluido, mas uma substância gelatinosa que formava uma
coluna quase da mesma largura que o buraco do qual continuava a se
projetar num jorro obsceno, rĂ­tmico. Crescia e crescia: l,00m de altura,
2,00m, 3,00m...
Algo bateu nas costas de Tal. Ele deu um salto, tentou se voltar
e sĂł entĂŁo percebeu que tinha colidido com a parede do hotel. Nem se
dera conta de que estivera recuando para longe da coisa gigantesca que
saĂ­a da entrada para os escoadouros.
Ele agora via que a coluna pulsante e ondulante era outro corpo
de protoplasma de forma livre, como o airedale que se transformara
num lobo cinzento. Todavia, esta coisa era consideravelmente maior do
que li primeira criatura. Imensa. Tal ficou imaginando que parte dela
ainda estava oculta debaixo da rua, e teve um palpite de que o
escoadouro estava cheio dela, que o que eles estavam vendo aqui era
apenas uma pequena porção do monstro.

Quando chegou a uma altura de trĂŞs metros, a coisa parou de se
erguer e começou a se alterar. A metade posterior da coluna se alargou
para formar um capuz, um manto, e a coisa ficou parecendo com a
cabeça de uma cobra-capelo. Então, mais carne amorfa começou a sair
da coluna ondulante e brilhante e subir para o capuz, e este
rapidamente ficou Minis e mais largo, e logo nĂŁo era mais um capuz;
agora era um par de asas gigantescas, escuras e membranosas, como
as asas de morcego, saindo do tronco central (ainda informe). E entĂŁo o
segmento do corpo entre as asas começou a adquirir uma textura —
escamas ásperas, sobrepostas — e pernas pequenas e pés com garras
começaram a se formar. Estava se transformando numa serpente alada.
Bateu as asas.
O som foi como o estalar de um chicote.
Tal se apoiou de encontro Ă  parede.
A coisa bateu as asas.
Lisa se agarrou mais a Jenny.
Jenny abraçou com força a irmã, mas seus olhos, mente e
imaginação estavam fixos na coisa monstruosa que saíra de dentro do
escoadouro. Ela se flexionava, latejava e se contorcia ao crepĂşsculo, e
parecia quase como uma sombra que ganhara vida.
Bateu as asas de novo.
Jenny sentiu uma brisa fria, causada pelo bater das asas.
Este novo fantasma parecia que ia se destacar de qualquer
protoplasma adicional que houvesse dentro do escoadouro. Jenny
esperava que ele saltasse para o ar que escurecia e voasse para longe —
ou que viesse diretamente para cima deles.
Seu coração bateu com força; disparou.
Sabia que a fuga era impossĂ­vel. Qualquer movimento que
fizesse resultaria apenas em atrair a atenção indesejada daquilo. Não
havia por que desperdiçar energia na fuga. Não havia onde se esconder
de uma coisa como aquela.
Mais postes de rua se acenderam e as sombras se esgueiraram
fantasmagoricamente.

Jenny observou, assombrada, enquanto uma cabeça de serpente
tomou forma no alto da coluna de trĂŞs metros de tecido mosqueado. Um
par de olhos verdes cheios de Ăłdio projetou-se da carne informe; era
como observar o crescimento de dois tumores malignos por um
processo fotográfico. Olhos turvos, obviamente cegos, ovais, verdes,
leitosos;

rapidamente

eles

se

desanuviaram,

as

pupilas

negras

alongadas tornando-se visĂ­veis, e fitaram Jenny e os outros com
intenção malévola. Uma boca rasgada de 30cm de largura se abriu;
uma fieira de presas brancas e afiadas crescia das gengivas negras.
Jenny pensou nos nomes demonĂ­acos que tinham brilhado nas
telas dos terminais, nos nomes gerados no Inferno que a coisa dera a si
mesma. A massa de carne amorfa, transformando-se numa serpente
alada, era como um demônio convocado do além.
O lobo fantasma, que incorporara a substância de Gordy
Brogan, acercou-se da base da serpente gigantesca. Roçou contra a
coluna de carne pulsante — e simplesmente se fundiu nela. Em menos
de um piscar de olhos, as duas criaturas tinham se transformado numa
sĂł.
Evidentemente, o primeiro transmorfo nĂŁo era um indivĂ­duo em
separado. Era agora, e talvez sempre tivesse sido, uma parte da criatura
gargantuesca que circulava pelos escoadouros, debaixo das ruas.
Aparentemente, o maciço corpo-matriz podia destacar peças de si
mesmo, e despachá-las para cumprir tarefas próprias — como o ataque
a Gordy Brogan — e depois chamá-las de volta a seu bel-prazer.
A coisa bateu as asas e a cidade inteira ecoou com aquele som.
Então elas começaram a se fundir de novo com a coluna central e esta
ficou mais grossa Ă  medida que absorvia o tecido. O rosto da serpente
também se dissolveu. Cansara-se dessa atuação. As pernas e os pés de
três dedos e as garras ferozes retiraram-se para dentro da coluna, até
que nada restou senĂŁo uma massa revolvedora e limosa de tecido
mosqueado escuro, como antes. Durante vários segundos ela posou no
entardecer sombrio, uma visão do mal, depois começou a se afundar
para dentro dos escoadouros debaixo de si, a descer pelo orifĂ­cio aberto.

Logo desapareceu.
Lisa parara de gritar. Estava sem ar, procurando respirar, e
chorando.
Alguns dos outros estavam quase tĂŁo abalados quanto a garota.
Entreolhavam-se, mas nenhum deles falou.
Bryce parecia ter levado uma paulada.
Finalmente, falou:
— Vamos indo. Vamos voltar para o hotel antes que fique mais
escuro.
NĂŁo havia nenhum guarda na porta da frente.
— Encrenca — falou Tal.
Bryce assentiu. Atravessou as portas duplas com cuidado e
quase pisou num revĂłlver. Estava jogado no chĂŁo. O saguĂŁo estava
deserto.
— Droga — disse Frank Autry.
Revistaram o hotel, aposento por aposento. Ninguém no
refeitório. Ninguém no dormitório improvisado. A cozinha também
estava deserta. Nem um só tiro fora disparado. Ninguém soltara um
grito.

Ninguém

também

escapara.

Mais

dez

delegados

tinham

desaparecido. Lá fora, caíra a noite.

34

Despedindo-se

Os seis sobreviventes — Bryce, Tal, Frank, Jenny, Lisa e Sara —
estavam Ă s janelas do saguĂŁo do Hilltop. Do lado de fora, a Skyline
Road estava imóvel e silenciosa, representada em padrões severos de

sombras da noite e brilho dos lampiões de rua. A noite parecia
tiquetaquear baixinho, como uma bomba-relĂłgio.
Jenny estava se lembrando do corredor coberto na padaria dos
Liebermanns. Na noite anterior, ela pensara que havia algo nos caibros
do telhado e Lisa pensara que havia algo agachado junto Ă  parede;
provavelmente, ambas estavam com a razão. O transmorfo — ou pelo
menos parte dele — estivera ali, deslizando silenciosamente pelos
caibros e parede abaixo. Mais tarde, quando Bryce enxergara de relance
alguma coisa no ralo daquele corredor, sem dĂşvida vira um bolo escuro
do protoplasma arrastando-se pelo cano, quer de olho neles, quer
dedicado a alguma tarefa estranha e insondável.
Pensando também nos Oxleys no seu gabinete com barricadas,
Jenny falou:
— A questão dos quartos trancados de repente deixou de ser
um mistério. Aquela coisa podia se infiltrar sob um porta ou através de
um conduto de aquecimento. O menor dos buracos ou das fendas seria
o suficiente. Quanto a Harold Ordnay... depois que se trancou no
banheiro da Candleglow, a coisa provavelmente chegou até ele através
dos ralos da pia e da banheira.
— Isso vale também para os carros trancados com as vítimas
dentro
— disse Frank. — Ela podia cercar o carro, envolvê-lo e penetrar
pelos orifĂ­cios, pelos respiradouros.
—

Quando quer — disse Tal —, ela pode se mover bem

discretamente. Foi por isso que tanta gente foi pega de surpresa. Ela
estava atrás delas, infiltrando-se por baixo de um porta ou saindo por
um conduto de aquecimento, ficando cada vez maior, mas as pessoas
não sabiam que ela estava ali até que atacava.
Lá fora, uma neblina fina vinha subindo a rua, vinda do vale lá
embaixo. Auras imprecisas começaram a se formar em volta das luzes
de rua.
—

De que tamanho vocês acham que é? — quis saber Lisa.

Ninguém respondeu por um momento. Depois, Bryce falou:

— Grande.
— Talvez do tamanho de um casa — falou Frank.
— Ou do tamanho deste hotel inteiro — disse Sara.
— Ou talvez maior — falou Tal. — Afinal de contas, atacou em
todas as partes da cidade, aparentemente de modo simultâneo. Podia
ser como... como um lago subterrâneo, um lago de tecido vivo, debaixo
da maior parte de Snowfield.
— Como Deus — disse Lisa.
— Hein?
— Está em toda a parte — disse Lisa. — Vê tudo e sabe tudo.
Igualzinho a Deus.
—

Temos cinco carros-patrulha — disse Frank. — Se nos

separarmos,

pegarmos

todos

os

cinco

carros

e

sairmos

daqui

exatamente ao mesmo tempo...
— A coisa nos deteria — disse Bryce.
— Talvez não pudesse nos deter a todos. Talvez um dos carros
pudesse escapar.
— Deteve uma cidade inteira.
— Bem... é — concordou Frank, relutante. Jenny falou:
— Além do mais, provavelmente está nos escutando neste exato
minuto. Seríamos detidos antes que chegássemos aos carros.
Todos olharam para os condutos de aquecimento perto do teto.
Nada havia que se pudesse ver para além das grades de metal. Nada,
exceto a escuridĂŁo.
Eles se reuniram Ă  volta da mesa no refeitĂłrio da fortaleza que
não mais era uma fortaleza. Fingiram que queriam café, porque, de
certa forma, partilhar o café lhes dava sensação de comunhão e
normalidade.
Bryce não se deu ao trabalho de colocar alguém de guarda nas
portas da frente. Guardas eram inĂşteis. Se aquilo os quisesse, sem
dĂşvida os pegaria.
Para além das janelas, a neblina estava ficando mais espessa.
Comprimiu-se contra as vidraças.

Sentiam-se compelidos a falar sobre o que tinham visto.
Estavam todos cientes de que a morte viria buscá-los, e precisavam
entender por que e como deviam morrer. A morte já era aterradora;
todavia, a morte sem sentido era a pior de todas.
Bryce conhecia a morte sem sentido. Um ano atrás, um
caminhĂŁo desgovernado lhe ensinara tudo o que precisava saber sobre
esse assunto.
— A mariposa — disse Lisa. — Era como o cachorro, como a
coisa que... que matou Gordy?
— Era — disse Jenny. — A mariposa era apenas um fantasma,
um pedaço pequeno do transmorfo.
Tal falou, dirigindo-se a Lisa:
— Quando Stu Wargle veio incomodá-la, na noite passada, não
era realmente ele. O transmorfo provavelmente absorveu o corpo de
Wargle, depois que o deixamos no quarto de material de limpeza. EntĂŁo,
mais tarde, quando quis aterrorizá-la, assumiu a sua aparência.
— Evidentemente — disse Bryce —, o maldito pode personificar
qualquer pessoa ou animal de que se tenha alimentado.
Lisa franziu o cenho.
— Mas, e quanto à mariposa? Como poderia ter se alimentado
de algo como a mariposa? NĂŁo existe nada como aquilo.
— Bem — falou Bryce —, pode ser que insetos daquele tamanho
existissem há muito tempo, há dez milhões de anos, na época dos
dinossauros. Pode ser que tenha sido nesta Ă©poca que o transmorfo se
alimentou deles.
Os olhos de Lisa se arregalaram:
— Quer dizer que aquela coisa que saiu do buraco no chão pode
ter milhões de anos de idade?
— Bem — respondeu Bryce —, ela certamente não se conforma
as regras da biologia, tais como as conhecemos... nĂŁo Ă©, dra.
Yamaguchi?
— Exato — disse a geneticista.
— Então, por que também não poderia ser imortal? Jenny

parecia ter as suas dĂşvidas.
Bryce perguntou:
— Tem alguma objeção?
—

Ă€ possibilidade de que seja imortal? Ou praticamente

imortal? NĂŁo. Isso eu aceito. Pode ser algo vindo da era mesozĂłica,
concordo, algo tĂŁo auto-renovador que Ă© virtualmente imortal. Mas
como explicar a serpente alada? Acho difĂ­cil demais acreditar que algo
como aquilo tenha um dia existido. Se o transmorfo se torna apenas
aquelas coisas que ingeriu previamente, entĂŁo como Ă© possĂ­vel ter se
transformado em algo como a serpente alada?
—

Houve animais como aquele — disse Frank. — Os

pterodáctilos eram répteis alados.
—

Répteis, sim — disse Jenny —, mas não serpentes. Os

pterodáctilos eram os ancestrais dos pássaros. Mas aquela coisa era
nitidamente uma serpente, o que Ă© bem diferente. Parecia algo saĂ­do de
um conto de fadas.
— Não — disse Tal. — Era saído do vodu. Bryce se voltou para
Tal, surpreso.
— Vodu? E o que você entende de vodu?
Tal parecia nĂŁo conseguir olhar para Bryce, e falou com evidente
relutância.
— No Harlem, quando eu era garoto, havia uma mulher gorda e
enorme, Agatha Peabody, que morava no nosso prédio; ela era uma
boko, que é uma espécie de bruxa que usa o vodu com fins imorais ou
perversos. Ela vendia feitiços e encantamentos, ajudava as pessoas a se
vingarem de seus inimigos, esse tipo de coisa. Tudo besteira. Mas, para
um garoto, parecia emocionante e assustador. A sra. Peabody mantinha
o apartamento sempre aberto, cheio de clientes e bicões, que entravam
e saĂ­am dia e noite. Durante alguns meses eu passei um bocado de
tempo lá, escutando e observando. E havia um bocado de livros sobre
magia negra. Em alguns deles, vi desenhos das versões haitianas e
africanas de Satanás, dos demônios do vodu e da macumba. Um deles
era uma serpente alada, gigantesca. Preta, com asas de morcego. E

olhos verdes terrĂ­veis. Exatamente como a coisa que vimos esta noite.
Na rua, do outro lado das janelas, a neblina agora estava muito
espessa. Ela se revolvia pesadamente através da luz difusa dos postes
de rua.
Lisa perguntou:
— Será que é realmente o Diabo? Um demônio? Algo saído do
Inferno?
— Não — respondeu Jenny. — Isso é só uma... pose.
— Então, por que toma a forma do Diabo? — perguntou Lisa. —
E por que chama a si mesmo pelos nomes dos demĂ´nios?
— Eu acho que toda essa baboseira satânica é só algo que o
diverte
— disse Frank. — Mais uma maneira de nos provocar e
desmoralizar.
Jenny assentiu.
— Desconfio que ele não é limitado às formas de suas vítimas.
Pode assumir a forma de qualquer coisa que tenha absorvido e qualquer
coisa que possa imaginar. Assim, se alguma das vítimas era alguém
associado ao vodu, então foi ela que tirou a idéia de se tornar uma
serpente alada.
Essa idéia deixou Bryce sobressaltado.
—

Quer dizer que a coisa nĂŁo apenas absorve e incorpora a

carne de suas vítimas, mas também o conhecimento e as lembranças
delas!
— É o que parece — disse Jenny.
— Biologicamente, isso não é uma coisa desconhecida — disse
Sara Yamaguchi, penteando os longos cabelos negros com ambas as
mãos e prendendo-os por trás das orelhas delicadas. — Por exemplo...
Se pusermos um certo tipo de platelminto para percorrer várias vezes
um labirinto, com alimento numa das extremidades, finalmente ele
acabará aprendendo a chegar ao fim do labirinto com mais rapidez do
que das primeiras vezes. Depois, se o moermos e alimentarmos com ele
outro platelminto, este chegará rapidamente ao fim do labirinto, muito

embora nunca o tenha percorrido antes. De uma certa forma, comeu a
experiĂŞncia e o conhecimento do seu primo quando lhe comeu a carne.
— Então é por isso que o transmorfo sabe sobre Timothy Flyte
— falou Jenny. — Harold Ordnay sabia sobre Flyte, portanto, agora,
aquilo também sabe.
— Mas como, em nome de Deus, Flyte sabe sobre aquilo"? —
perguntou Tal.
—

Isso é uma pergunta que apenas Flyte pode responder —

disse Bryce, dando de ombros.
— Por que a coisa não pegou Lisa ontem à noite, no banheiro?
Aliás, por que não nos pegou a todos?
— Está apenas brincando conosco.
— Divertindo-se. Perversamente.
—

É isso. Mas acho também que nos manteve vivos para

podermos dizer a Flyte o que vimos e o atrairmos para cá.
— Quer que passemos a Flyte a oferta de salvo-conduto.
— Somos apenas isca.
— É.
— E quando tivermos cumprido nossa parte...
— É.
Algo bateu solidamente de encontro ao exterior do hotel. As
janelas chacoalharam e o prédio pareceu tremer.
Bryce se levantou tĂŁo rapidamente que derrubou a cadeira em
que estava sentado.
Outra batida. Mais forte, mais alta. Depois um barulho rascante.
Bryce prestou muita atenção, tentando identificar o som. Parecia
vir da parede norte do prédio. Começava ao nível do chão, mas começou
rapidamente a subir, afastando-se deles.
Um ruĂ­do estrepitoso. Um ruĂ­do de ossos. Como os esqueletos de
homens mortos há muito tempo, tentando sair de um sepulcro.
— Alguma coisa grande — disse Frank. — Subindo pelo lado do
prédio.
— O transmorfo — falou Lisa.

— Mas não na sua forma gelatinosa — disse Sara. — No seu
estado natural, escalaria a parede silenciosamente.
Todos ficaram fitando o teto, Ă  escuta, Ă  espera.
Que forma fantasma teria assumido desta vez? perguntou-se
Bryce.
Raspar. Bater. Retinir.
O som da morte.
A mĂŁo de Bryce estava mais fria do que o cabo de seu revĂłlver.
Os seis foram até as janelas e olharam para fora. A neblina
estava por toda a parte.
Então, rua abaixo, quase a uma quadra de distância, na
penumbra de uma lâmpada a vapor de sódio, algo se moveu. Entrevisto.
Uma sombra ameaçadora, distorcida pela neblina. Bryce teve a
impressĂŁo de um caranguejo do tamanho de um carro. Viu de relance
pernas aracnĂłides. Uma garra monstruosa com beiradas serrilhadas
surgiu rapidamente na luz, desaparecendo imediatamente na escuridĂŁo.
Bryce

viu

antenas

febris,

trĂŞmulas,

ansiosas.

Depois

a

coisa

desapareceu de novo dentro da noite.
— É isso o que está escalando o prédio — disse Tal. — Outro
maldito caranguejo como aquele. Uma coisa saĂ­da direto do delirium
tremens de um alcoĂłlatra.
Ouviram quando a coisa chegou ao telhado. Seus membros
quitinosos batiam e raspavam contra as telhas.
— O que ela quer? — perguntou Lisa, preocupada. — Por que
está fingindo ser o que não é?
—

Provavelmente gosta de fazer imitações — falou Bryce. —

Sabe... do mesmo jeito que algumas aves tropicais gostam de imitar
sons pelo puro prazer de escutar a si mesmas.
Os barulhos no telhado pararam. Os seis ficaram Ă  espera.
A noite parecia estar agachada como uma coisa selvagem,
examinando a sua presa, calculando a hora de atacar.
Eles estavam inquietos demais para sentar. Continuaram de pé,
junto Ă s janelas.

Do lado de fora, apenas a neblina se movia.
Sara Yamaguchi falou:
—

Agora

dá

para

entender

as

pisaduras

universais.

O

transmorfo envolvia as suas vĂ­timas e as apertava. Assim, as pisaduras
provinham de uma pressĂŁo brutal, contĂ­nua, universalmente aplicada.
Era assim que elas sufocavam também... presas dentro do transmorfo,
totalmente envoltas por ele.
—

Será — falou Jenny — que ele produz a substância

preservativa enquanto espreme as suas vĂ­timas?
— Provavelmente sim — respondeu Sara. — É por isso que não
há nenhum ponto visível de injeção nos dois corpos que examinamos. A
substância preservativa é provavelmente aplicada a cada centímetro
quadrado do corpo, espremida para dentro de cada poro. Como uma
aplicação por osmose.
Jenny pensou em Hilda Beck, a governanta, a primeira vĂ­tima
que ela e Lisa tinham encontrado. Estremeceu.
— A água — disse Jenny.
— O que é que tem? — perguntou Bryce.
—

Aquelas poças de água destilada que encontramos. O

transmorfo expeliu aquela água.
— Por que você pensa assim?
— O corpo humano é água, na sua maior parte. Então, depois
que a coisa absorveu as suas vĂ­timas, depois que aproveitou cada
miligrama de conteĂşdo mineral, cada caloria Ăştil, cada vitamina,
expeliu aquilo de que não necessitava: quantidades excessivas de água
absolutamente pura. Aquelas poças e tapetes encharcados que
encontramos foram tudo o que um dia teremos como restos mortais das
centenas que desapareceram. Nem corpos. Nem ossos. Apenas água...
que já se evaporou.
Os barulhos no telhado não recomeçaram. Reinava o silêncio. O
caranguejo fantasma tinha desaparecido.
No escuro, na neblina, na luz amarelada dos lampiões de rua,
nada se movia.

Eles finalmente se afastaram das janelas e voltaram para a
mesa.
— Será que aquela coisa maldita pode ser morta? — questionouse Frank.
— Sabemos com certeza que as balas não podem fazer o serviço
— disse Tal.
— Fogo? — disse Lisa.
— Os soldados tinham as bombas incendiárias — lembrou-lhes
Sara. — Mas é evidente que o transmorfo atacou tão repentina, tão
inesperadamente, que ninguém teve tempo de pegar as garrafas e
acender os pavios.
—

Além do mais — falou Bryce —, o fogo provavelmente não

será a solução. Se o transmorfo pegar fogo, poderá simplesmente...
bem... destacar-se da parte que está em chamas e levar a parte
principal de si mesmo para um lugar seguro.
— Os explosivos provavelmente também são inúteis — disse
Jenny.
— Tenho um palpite de que se você explodisse a coisa era mil
pedaços, teria apenas mil transmorfos menores, e eles todos se uniriam
ao seu bel-prazer, sem sofrer danos.
— Como é, então a coisa pode ou não ser morta? — perguntou
Frank outra vez
Ficaram calados, pensando.
EntĂŁo, Bryce respondeu.
— Não. Ao que me consta, não.
— Mas, então, o que podemos fazer?
— Não sei — disse Bryce. — Sinceramente não sei.
Frank Autry ligou para a mulher, Ruth, e conversou com ela
durante quase meia hora. Tal ligou para alguns amigos, no outro
telefone. Depois, Sara Yamaguchi falou num dos telefones durante
quase uma hora. Jenny ligou para várias pessoas, inclusive a tia em
Newport Beach, com quern Lisa também conversou. Bryce falou com
vários homens no QG de Santa Mira, delegados com quem trabalhava

há anos, e com quem formara laços quase fraternos; falou com os pais,
em Glendale, e com o pai de Ellen, em Spokane.
Todos os seis sobreviventes foram otimistas nas suas conversas.
Falavam em derrotar aquela coisa, em ir embora de Snowfield muito em
breve.
Contudo, Bryce sabia que estavam apenas fazendo boa cara ao
mau tempo. Sabia que aqueles nĂŁo eram telefonemas comuns; a
despeito do seu tom otimista, esses telefonemas tinham um Ăşnico
propĂłsito sombrio: os seis sobreviventes estavam se despedindo.

35

PandemĂ´nio

Sal Corello, o agente de publicidade que fora contratado para ir
receber Timothy Fly te no aeroporto internacional de SĂŁo Francisco, era
um homem pequeno e musculoso de cabelos amarelos como o milho e
olhos roxo-azulados. Parecia um astro de cinema. Se medisse l,90m em
vez de somente l,55m, seu rosto poderia ter sido tĂŁo famoso quanto o de
Robert Redford. Todavia, sua inteligĂŞncia, seu espĂ­rito e encanto
agressivo compensavam a sua baixa estatura. Sabia como obter o que
queria para si mesmo e seus clientes.
Geralmente, Corello conseguia até fazer com que os jornalistas
se comportassem bem, chegando a parecer gente civilizada; mas nĂŁo
esta noite. Esta matéria era grande demais e quente demais. Corello
nunca vira nada parecido: centenas de repĂłrteres e outros curiosos
correram para cima de Flyte no instante em que o viram, puxando e
agarrando o professor, enfiando microfones na sua cara, cegando-o com

as luzes das câmeras e beirando perguntas feito uns desesperados.
— Dr. Flyte...
— Professor Flyte...
— Flyte! ...
Flyte, Flyte, Flyte-Flyte-Flyte, FlyteFlyteFlyteFlyte... As perguntas
foram reduzidas a uma algaravia sem sentido pelo rugido das vozes
competitivas. Os ouvidos de Sal Corello doĂ­am. O professor pareceu
confuso, depois amedrontado. Corello segurou o velho pelo braço, com
força, e conduziu-o pelo meio da multidão alvoroçada, transformando a
si mesmo num arĂ­ete pequeno mas altamente eficaz. Quando chegaram
à pequena plataforma que Corello e os funcionários da segurança do
aeroporto tinham armado numa das extremidades da sala de espera dos
passageiros, o professor Flyte parecia estar prestes a expirar de medo.
Corello tomou do microfone e rapidamente silenciou a turba.
Instou com eles para que deixassem Flyte fazer uma breve declaração,
prometeu que mais tarde ele responderia a algumas perguntas,
apresentou o orador e se afastou.
Quando todos deram uma boa olhada em Timothy Flyte, nĂŁo
puderam disfarçar um súbito ataque de ceticismo, que percorreu a
multidĂŁo; Corello percebeu isso em seus rostos: uma apreensĂŁo bem
visĂ­vel de que Flyte os estivesse tapeando. Na verdade, Flyte parecia ser
um tantinho manĂ­aco. O cabelo branco era todo espetado, como se ele
tivesse acabado de enfiar o dedo numa tomada. Os olhos estavam
arregalados, tanto de medo quanto do esforço feito para disfarçar a
fadiga, e o seu rosto tinha o ar dissipado de um bĂŞbado velho. Precisava
fazer a barba. As roupas que vestia eram amassadas, enrugadas;
pendiam do seu corpo como um saco informe. Sua figura fazia Corello
pensar num daqueles fanáticos de rua declarando a iminência do
Armagedom.
Naquele mesmo dia, num telefonema de Londres, Burt Sandler,
o editor da Wintergreen e Wyle, preparara Corello para a possibilidade
de Flyte causar uma impressĂŁo negativa nos jornalistas, mas Sandler
nĂŁo precisava ter se preocupado. Os jornalistas ficaram inquietos

quando Flyte pigarreou meia dĂşzia de vezes, em tom alto, ao microfone,
mas quando ele finalmente começou a falar, ficaram fascinados dentro
de um minuto. Ele lhes falou sobre a colĂ´nia de Roanoke Island, sobre
as civilizações maias desaparecidas, sobre a redução misteriosa da
população marinha, sobre um exército que desaparecera em 1711. A
multidĂŁo ouvia em silĂŞncio. Corello se descontraiu.
Flyte lhes falou sobre a aldeia esquimĂł de Anjikuni, oitocentos
quilômetros a noroeste do posto da Real Polícia Montada do Canadá, em
Churchill. Numa tarde nevosa de novembro de 1930, um caçador e
comerciante franco-canadense, Joe LaBelle, chegou em Anjikuni... e
descobriu que todos que ali moravam tinham desaparecido. Todos os
pertences, inclusive preciosos rifles de caça, tinham sido abandonados.
As refeições estavam parcialmente comidas. Os trenós (sem os cães)
ainda estavam ali, o que significava que nĂŁo havia meios da aldeia
inteira ter se mudado por terra para outro local. O povoado estava, nas
palavras de LaBelle, "lúgubre como um cemitério na calada da noite". La
Belle correu para o posto da PolĂ­cia Montada em Churchill e logo foi
feita uma investigação em larga escala, mas nunca se encontrou o
menor vestĂ­gio dos anjikunianos.
Enquanto os repĂłrteres tomavam notas e levavam para junto de
Flyte os microfones dos gravadores, ele lhes contou a sua teoria tĂŁo
criticada: o inimigo antigo. Houve exclamações abafadas de surpresa,
expressões

incrédulas,

mas

nenhum

interrogatĂłrio

ruidoso

ou

descrença explicitamente expressa.
No instante em que Flyte terminou de ler a sua declaração
previamente preparada, Sal Corello fugiu Ă  sua promessa de uma
sessão de perguntas e respostas. Tomou Flyte pelo braço e arrastou-o
por uma porta que ficava por trás da plataforma improvisada onde
estava o microfone.
Os jornalistas

uivaram

de

indignação

ante

essa

traição.

Correram para a plataforma, tentando ir atrás de Flyte.
Corello e o professor entraram por um corredor de serviço onde
vários seguranças do aeroporto estavam à espera. Um dos guardas

bateu e trancou a porta Ă s costas deles, isolando os repĂłrteres, que
uivaram ainda mais alto do que antes.
— Por aqui — disse um segurança.
— O helicóptero está aqui — disse outro.
Atravessaram rapidamente um labirinto de corredores, desceram
um lance de escadas de concreto, cruzaram uma porta de incĂŞndio de
metal e saĂ­ram para uma pista varrida pelo vento onde os esperava um
helicĂłptero azul e de linhas elegantes. Era um helicĂłptero de executivos,
um Bell Jet Ranger, luxuoso e bem equipado.
— É o helicóptero do governador — disse Corello a Flyte.
— O governador? — indagou Flyte. — Ele está aqui?
— Não. Mas colocou o helicóptero dele à sua disposição.
Enquanto cruzavam a porta que levava ao confortável compartimento
de passageiros, as hélices lá em cima começaram a girar.
Com a testa apertada de encontro Ă  janela fresca, Timothy Flyte
viu SĂŁo Francisco desaparecer dentro da noite.
Estava excitado. Antes do aviĂŁo aterissar, ele se sentira
apalermado e esgotado; nĂŁo estava mais assim. Sentia-se alerta e
ansioso para saber mais sobre o que estava acontecendo em Snowfield.
O JetRanger voava bem rápido, para um helicóptero, e a viagem
até Santa Mira levou menos de duas horas. Corello — um sujeito
esperto, divertido, falante — ajudou Timothy a preparar outra
declaração para o pessoal dos meios de comunicação que estaria à
espera deles. A viagem passou depressa.
Aterrissaram com um solavanco no meio do estacionamento
cercado que ficava atrás da delegacia do xerife do condado. Corello
abriu a porta do compartimento de passageiros antes mesmo que as
hélices tivessem parado de girar; saltou do aparelho, voltou-se
novamente para a porta, açoitado pelo vento causado pelas hélices, e
estendeu a mĂŁo para Timothy.
Um contingente agressivo de jornalistas — em maior número
ainda do que em São Francisco — lotava o beco. Espremiam-se de
encontro à cerca de arame reforçado, berrando perguntas, apontando

microfones e câmeras.
— Nós lhes daremos uma declaração mais tarde, quando nos
convier — disse-lhe Corello, gritando para conseguir ser ouvido acima
de toda aquela balbúrdia. — Agora, a polícia daqui está esperando para
completar a ligação com o xerife em Snowfield, que quer lhe falar.
Dois delegados levaram Timothy e Corello para dentro do prédio,
subindo um corredor e entrando numa sala onde um outro homem
fardado estava Ă  espera deles. Chamava-se Charlie Mercer. Era robusto,
com as sobrancelhas mais fartas que Timothy já vira — e o jeitão vivo e
eficiente de um secretário executivo de primeira linha.
Timothy foi levado à cadeira por detrás da escrivaninha.
Mercer ligou para um nĂşmero em Snowfield, completando a
ligação com o xerife Hammond. O telefonema seria dado utilizando-se
um dispositivo que permitia que todos na sala pudessem ouvir ambos
os lados da conversa, e que dispensava Timothy de segurar o telefone.
Hammond desfechou o primeiro golpe tĂŁo logo ele e Timothy
tinham trocado cumprimentos.
— Dr. Flyte, vimos o inimigo antigo. Ou, pelo menos, acho que é
a coisa que o senhor imagina. Uma coisa maciça... amebóide. Um
transmorfo que pode imitar qualquer coisa.
As mãos de Timothy tremiam; ele agarrou os braços da cadeira.
— Meu Deus.
— Esse é o seu inimigo antigo? — perguntou Hammond.
— É. Um sobrevivente de outra era. Com milhões de anos de
idade.
— O senhor poderá nos dizer mais quando vier para cá — disse
Hammond. — Se eu puder persuadi-lo a vir.
Timothy escutava apenas parcialmente o que o xerife dizia.
Estava pensando no inimigo antigo. Tinha escrito a respeito dele;
acreditava verdadeiramente nele; no entanto, de certa forma, nĂŁo
estivera preparado para ter a sua teoria verdadeiramente confirmada.
Aquilo o abalou.
Hammond contou-lhe a morte pavorosa de um delegado

chamado Gordy Brogan.
Além do próprio Timothy, apenas Sal Corello parecia aturdido e
horrorizado com a histĂłria de Hammond. Era evidente que Mercer e os
outros tinham escutado aquilo tudo anteriormente.
—

Vocês viram isso e continuam vivos? — indagou Timothy,

espantado.
—

A coisa tinha que deixar alguns de nós vivos — falou

Hammond — para que tentássemos convencê-lo a vir para cá. Garantiunos o seu salvo-conduto.
Timothy mordiscou pensativo o lábio inferior.
Hammond falou:
— Dr. Fly te? Ainda está aí?
— O quê? Ah... sim. Ainda estou aqui. O que quer dizer com
isso de que ela garantiu o meu salvo-conduto?
Hammond contou-lhe a história espantosa da comunicação com
o inimigo antigo por meio do computador.
Enquanto o xerife falava, Timothy começou a suar. Viu uma
caixa de lenços de papel num canto da mesa à sua frente; agarrou um
punhado de lenços e enxugou o rosto.
Quando o xerife terminou, o professor inspirou fundo e falou,
com voz tensa.
—

Nunca imaginei... quero dizer... bem, nunca me ocorreu

que...
— O que foi? — perguntou Hammond. Timothy pigarreou.
—

Nunca me ocorreu que o inimigo antigo pudesse possuir

inteligĂŞncia ao nĂ­vel humano.
— Desconfio que possa ser até mesmo uma inteligência superior
— falou Hammond.
— Mas eu sempre pensei que fosse apenas um animal burro, de
autopercepção distintamente limitada.
— Não é.
— Isso o tornou mais perigoso. Meu Deus. Muito mais perigoso.
— O senhor virá até aqui? — indagou Hammond.

— Eu não pretendia me aproximar mais do que já me aproximei
— disse Timothy. — Mas se é inteligente... e se está me oferecendo
salvo-conduto...
Intrometeu-se na linha uma voz de criança, a voz doce de um
garotinho, talvez com cinco ou seis anos de idade:
—

Por favor, por favor, por favor, venha brincar comigo, dr.

Flyte. Por favor. Vamos nos divertir muito. Por favor.
E entĂŁo, antes que Timothy pudesse responder, surgiu a voz
suave e musical de uma mulher:
— Sim, caro dr. Flyte, não deixe de nos fazer uma visita. Será
mais do que bem-vindo. Ninguém lhe fará mal.
Finalmente, a voz de um velho entrou na linha, meiga e terna:
— O senhor tem muito que aprender comigo, dr. Flyte. Muita
sabedoria para adquirir. Por favor, venha e comece seus estudos. A
oferta de salvo-conduto Ă© sincera.
SilĂŞncio.
Confuso, Timothy falou.
— Alô? Alô? Quem está falando?
— Ainda estou aqui — respondeu Hammond. As outras vozes
nĂŁo voltaram.
—

Sou apenas eu, agora — continuou Hammond. Timothy

perguntou:
— Mas quem eram aquelas pessoas?
— Não são pessoas de verdade. São apenas fantasmas.
Imitações. Não percebeu? Em três vozes diferentes, aquilo lhe ofereceu
salvo-conduto novamente. O inimigo antigo, doutor.
Timothy olhou para os quatro outros homens na sala. Todos
fitavam intensamente a caixa preta com alto-falante de onde a voz de
Hammond — e as da criatura — tinha saído.
Agarrando um punhado de lenços de papel já ensopados numa
das mĂŁos, Timothy enxugou de novo o rosto encharcado de suor.
— Eu vou.
Agora, todos na sala olhavam para ele. Ao telefone, o xerife

Hammond falou:
— Doutor, não há nenhum bom motivo para acreditar que ele
vai manter a promessa. Depois que o senhor chegar aqui, poderá ser
um homem morto também.
— Mas se é inteligente...
— Isso não quer dizer que jogue limpo — falou Hammond. — Na
verdade, todos nĂłs aqui estamos certos de uma coisa: essa criatura Ă© a
prĂłpria essĂŞncia do mal. Do mal, dr. Flyte. O senhor confiaria na
promessa do Diabo?
A voz da criança entrou na linha de novo, ainda cadenciada e
doce:
—

Se o senhor vier, dr. Flyte, nĂŁo apenas o pouparei como

pouparei estas seis pessoas que estĂŁo presas aqui. Eu as deixarei ir, se
o senhor vier brincar comigo. Mas se nĂŁo vier, vou pegar esses porcos.
Vou esmagá-los. Vou espremer o sangue e a merda do corpo deles,
espremê-los até formar uma polpa e depois fazer bom uso deles.
As palavras foram ditas num tom de voz leve, inocente, infantil
— o que, de certa forma, as tornou ainda mais assustadoras do que se
tivessem sido gritadas com fĂşria num tom de baixo profundo.
O coração de Timothy batia com força.
— Está decidido — disse ele. — Eu vou. Não tenho escolha.
— Não venha por nossa causa — disse Hammond. — Ele pode
poupá-lo, porque o chama de seu São Mateus, seu Marcos, seu Lucas e
JoĂŁo. Mas pode apostar que nĂŁo vai nos poupar, nĂŁo importa o que
diga.
— Eu vou — insistiu Timothy. Hammond hesitou. Depois:
— Muito bem. Mandarei que um dos meus homens o leve de
carro até a barreira na estrada para Snowficld. Dali em diante, terá que
vir sozinho. NĂŁo posso arriscar mais nenhum homem. O senhor sabe
guiar?
— Sim, senhor — disse Timothy. — ü senhor dá o carro e eu
chegarei aĂ­ sozinho.
O telefone emudeceu.

— Alô? — disse Timothy. — Xerife? Nenhuma resposta.
— O senhor ainda está ai? Xerife Hammond? Nada.
Aquilo cortara a ligação.
Timothy ergueu os olhos para Sal Corello, Charlie Mercer e os
dois outros homens cujos nomes nĂŁo sabia.
Todos o fitavam como se já estivesse morto e deitado num
caixĂŁo.
Mas se eu morrer em Snowfield, se o transmorfo me pegar,
pensou ele, não haverá caixão. Nem túmulo. Nem paz eterna.
— Eu o levarei até a barreira na estrada — disse Charlie Mercer.
— Eu mesmo o levarei até lá.
Timothy concordou com a cabeça. Estava na hora de ir.

36

Cara a cara

Às 3:12 os sinos da igreja de Snowfield começaram a tocar.
No saguĂŁo do Hilltop, Bryce se levantou da cadeira. Os outros
fizeram o mesmo.
A sirene do corpo de bombeiros gemeu.
Jenny falou:
— Flyte deve estar aqui.
Os seis saĂ­ram do hotel.
As luzes das ruas estavam se acendendo e apagando, lançando
sombras fantoches saltitantes por entre a neblina espessa.
No sopé da Skyline Road, um carro dobrou a esquina, com os
faróis lançando suas luzes para cima, emprestando um brilho prateado

Ă  neblina.
As luzes das ruas pararam de piscar e Bryce se adiantou,
parando sob a cascata suave de luz amarela lançada por um dos
lampiões, esperando que Flyte pudesse enxergá-lo através dos véus de
neblina.
Os sinos continuavam a tocar, e a sirene a gritar, e o carro veio
se arrastando lentamente pela ladeira comprida. Era um carro-patrulha
verde e branco do departamento de polĂ­cia. Aproximou-se do meio-fio e
parou a trĂŞs metros de onde Bryce se encontrava. O motorista apagou
os farĂłis.
A porta do lado esquerdo se abriu e Flyte saltou. Ele nĂŁo era o
que Bryce esperava. Usava Ăłculos de lentes grossas que faziam seus
olhos parecerem anormalmente grandes. O cabelo branco, fino e
emaranhado arrepiava-se como um halo à volta da cabeça. Alguém na
delegacia lhe emprestara uma jaqueta acolchoada com o emblema do
departamento de polĂ­cia do condado de Santa Mira sobre o peito
esquerdo.
Os sinos pararam de tocar.
A sirene deu um Ăşltimo gemido rouco.
O silĂŞncio subseqĂĽente foi profundo.
Flyte correu os olhos pela rua envolta em neblina, Ă  escuta e Ă 
espera.
Finalmente, Bryce falou:
—

Aparentemente, ainda não está disposto a aparecer. Flyte

voltou-se para ele:
— Xerife Hammond?
— Sim. Vamos entrar e ficar à vontade enquanto esperamos.
O refeitório do hotel. Café quente.
MĂŁos trĂŞmulas largavam ruidosamente canecas de porcelana
sobre o tampo da mesa. MĂŁos nervosas enroscavam-se nas canecas
quentes, com firmeza, para se forçarem a ficar paradas.
Os seis sobreviventes se inclinavam para a frente, debruçados
sobre a mesa, para melhor ouvir as palavras de Timothy Flyte.

Lisa estava nitidamente fascinada pelo cientista britânico, mas
Jenny teve, a princípio, as suas sérias dúvidas. Ele parecia uma
caricatura escancarada do clássico professor distraído. Porém, quando
ele começou a falar das suas teorias, Jenny se viu forçada a abandonar
a sua opinião inicial e desfavorável, e logo estava tão fascinada quanto
Lisa.
Ele lhes contou dos exércitos desaparecidos na Espanha e na
China, das cidades maias abandonadas, da colĂ´nia de Roanoke Island.
E lhes contou de JĂłia Verde, um povoado na selva sulamericana que tivera um destino semelhante ao de Snowfield. JĂłia
Verde era um posto comercial no rio Amazonas, bem longe da
civilização. Em 1923, 605 pessoas — cada homem, cada mulher e
criança que viviam ali — desapareceram de Jóia Verde numa única
tarde, no intervalo entre as visitas regulares das barcaças fluviais, pela
manhĂŁ e Ă  noite. A princĂ­pio pensou-se que fossem Ă­ndios vizinhos,
normalmente

pacĂ­ficos

mas

que

podiam

ter

se

tornado

inexplicavelmente hostis e desfechado um ataque surpresa. Todavia,
nĂŁo foram encontrados corpos, nenhum indĂ­cio de luta, nenhum sinal
de saque. Descobriu-se uma mensagem no quadro-negro da escola da
missĂŁo: NĂŁo tem forma, no entanto tem todas as formas. Muitos que
investigaram o mistério de Jóia Verde logo descartaram as nove
palavras escritas a giz, achando que não tinham ligação com o
desaparecimento. Flyte acreditava justamente no contrário, e depois de
ouvi-lo, Jenny também passou a acreditar.
— Um tipo de mensagem também foi deixado numa das antigas
cidades maias — falou Flyte. — Os arqueólogos desencavaram parte de
uma oração, escrita em hieróglifos, da época do grande sumiço. — Ele
citou, de cor: — "Deuses perversos moram na Terra, o seu poder
adormecido na rocha. Quando acordam, erguem-se como a lava, mas
lava fria, fluindo, e assumindo muitas formas. EntĂŁo, homens
orgulhosos, ficamos sabendo que somos apenas vozes no trovĂŁo, rostos
no vento, para sermos dispersados como se nunca tivéssemos vivido."
— Os óculos de Flyte tinham escorregado nariz abaixo. Ele os recolocou

no lugar. — Ora, há quem diga que esta parte determinada da oração se
refere ao poder dos terremotos e vulcões. Eu acho que se refere ao
inimigo antigo.
—

Nós também encontramos uma mensagem aqui — disse

Bryce. — Parte de uma palavra.
—

Não conseguimos entender qual seria — falou Sara

Yamaguchi. Jenny contou a Flyte das duas letras — P e R — que Nick
Papandrakis pintara na parede do seu banheiro, usando um vidro de
iodo. — Também havia uma terceira letra. Podia ser o começo de um U
ou de um O.
—

Papandrakis — falou Flyte, balançando vigorosamente a

cabeça. — Grego. Sim, sim, sim... eis aí a confirmação do que estou
dizendo. Esse tal de Papandrakis tinha orgulho de sua origem?
— Sim — disse Jenny —, era extremamente orgulhoso dela. Por
quĂŞ?
—

Bem, se ele tinha orgulho de ser grego, devia conhecer a

mitologia grega. Sabem, na antiga mitologia grega havia um deus
chamado Proteu. Desconfio que era esta a palavra que o seu
Papandrakis estava tentando escrever na parede. Proteu. Um deus que
vivia na terra, se arrastava pelas suas entranhas. Um deus que nĂŁo
tinha forma prĂłpria. Um deus que podia assumir a forma que
quisesse... e que se alimentava de tudo e todos que desejasse.
Deixando transparecer na voz a sua frustração, Tal Whitman
falou—

O que Ă© toda essa histĂłria de sobrenatural? Quando nos

comunicamos com a coisa pelo computador, ela insistiu em dar a si
mesma os nomes de demĂ´nios.
Flyte explicou:
— O demônio amorfo, o deus informe e geralmente maligno que
pode assumir a forma que deseja... essas sĂŁo figuras relativamente
comuns na maioria dos sistemas mitolĂłgicos antigos, e na maioria das
religiões do mundo, senão em todas. Tal criatura mitológica aparece sob
dezenas de nomes em todas as culturas do mundo. Tomem como

exemplo o Antigo Testamento da Bíblia. Satanás aparece primeiro como
uma serpente, depois como um bode, um cervo, um besouro, uma
aranha, uma criança, um mendigo e muitas outras coisas. Entre outros
nomes, Ă© chamado de: Mestre do Caos e da Informidade, Mestre do
Engodo, a Besta de Muitas Caras. A Bíblia nos diz que Satanás é
"mutável como as sombras" e "tão esperto quanto a água, pois a água
pode se transformar em vapor ou gelo, e do mesmo modo Satanás pode
se transformar naquilo que deseja se transformar.
— Está querendo dizer que o transmorfo aqui em Snowfield é
Satanás?
—

Bem... de uma certa forma, sim. Frank Autry sacudiu a

cabeça.
— Não. Não sou um homem que acredita em assombrações, dr.
Flyte.
— Nem eu — assegurou-lhe o dr. Flyte. — Não estou discutindo
que esta coisa seja um ser sobrenatural. NĂŁo Ă©... Ă© real, uma criatura de
carne, embora nĂŁo de carne como a nossa. NĂŁo Ă© um espĂ­rito ou um
diabo. No entanto... de certa forma... creio que seja Satanás. Porque,
sabem, eu acredito que foi esta criatura, ou outra parecida com ela,
outra monstruosa sobrevivente da era mesozĂłica, que inspirou o mito
de Satanás. Nas épocas pré-históricas, os homens devem ter encontrado
uma dessas coisas, e alguns deles devem ter vivido para falar nela.
Naturalmente, descreveram as suas experiĂŞncias na terminologia do
mito e da superstição. Desconfio que a maioria das figuras demoníacas
das várias religiões do mundo são, na realidade, relatos desses
transmorfos, relatos passados de geração a geração, inúmeras vezes,
até que finalmente foram descritos em hieróglifos, pergaminhos e depois
na palavra impressa. Eram relatos de uma fera muito rara, muito real,
muito perigosa... porém descrita na linguagem do mito religioso.
Jenny achou esta parte da tese de Flyte a um sĂł tempo maluca e
brilhante, improvável mas convincente.
— A coisa consegue absorver o conhecimento e as lembranças
daqueles de quem se alimenta — disse ela —, e portanto sabe que

muitas de suas vítimas o encaram como sendo o Diabo, assim, obtém
uma espécie de prazer perverso em desempenhar este papel.
Bryce falou:
— Parece gostar de debochar de nós.
Sara Yamaguchi prendeu os longos cabelos por detrás das
orelhas e disse:
—

Dr. Flyte, que tal explicar tudo isso em termos cientĂ­ficos.

Como Ă© que uma criatura dessas pode existir? Como pode funcionar
biologicamente? Qual é a sua racionalização científica, a sua teoria?
Antes que Flyte pudesse responder, aquilo veio.
No alto de uma parede, perto do teto, uma grade de metal que
cobria um conduto de aquecimento soltou-se de seus parafusos. Voou
para dentro da sala, caiu em cima de uma mesa vazia, deslizou da mesa
para o chĂŁo ruidosamente.
Jenny e os outros levantaram-se de um salto das cadeiras onde
estavam sentados.
Lisa gritou, apontou.
O transmorfo saĂ­a de dentro do conduto. Ficou ali, pendendo da
parede. Escuro. Molhado. Pulsante. Como uma massa de ranho
brilhante e sangrenta suspensa da beirada de uma narina.
Bryce e Tal levaram a mĂŁo aos revĂłlveres, depois hesitaram. NĂŁo
havia absolutamente nada que pudessem fazer.
A coisa continuou a sair de dentro do conduto, inchando,
ondulando, formando uma massa obscena, informe, revolvedora, do
tamanho de um homem. Depois, ainda fluindo de dentro do buraco,
começou a deslizar parede abaixo. Formou um monte no chão. Agora,
muito maior do que um homem, ainda saindo de dentro do conduto.
Crescendo, crescendo.
Jenny olhou para Flyte.
O rosto do professor nĂŁo conseguia se firmar numa Ăşnica
expressĂŁo.
Experimentou espanto, depois terror, depois assombro, depois
nojo, depois assombro, terror e espanto de novo.

A massa viscosa, de protoplasma escuro sempre a se revolver,
era agora do tamanho de trĂŞs ou quatro homens, e maior quantidade
ainda da coisa nojenta continuava a jorrar do conduto de aquecimento,
num fluxo revoltante e nauseante.
Lisa teve ânsias de vômito e virou o rosto.
Mas Jenny nĂŁo conseguia tirar os olhos da coisa. Havia uma
fascinação grotesca que não podia ser negada.
Na aglomeração já enorme de tecidos informes que se projetara
para dentro da sala, começaram a se formar membros, muito embora
nenhum deles mantivesse a sua forma por mais de poucos segundos.
Braços humanos, tanto de homens quanto de mulheres, estendiam-se
como que buscando ajuda. Os braços finos e agitados de crianças
formavam-se no tecido gelatinoso, alguns deles com as mĂŁozinhas
abertas, como que numa súplica muda e patética. Era difícil raciocinar
que aqueles não eram braços de crianças presas dentro do transmorfo;
eram imitações, braços fantasmas, uma parte da coisa, não uma parte
de qualquer criança. E garras. Uma variedade espantosa e assustadora
de garras e patas de animais aparecia no caldo protoplásmico. Havia
também

partes

aterradoramente

de

insetos,

frenéticas

e

enormes,
ansiosas.

imensamente
Mas

tudo

exageradas,
isso

voltava

rapidamente a se fundir com o protoplasma informe praticamente logo
depois que tinha tomado forma.
O transmorfo se expandia pela largura da sala. Estava agora
maior do que um elefante.
Enquanto a coisa se entretinha naquele padrĂŁo contĂ­nuo,
implacável, misterioso de modificações aparentemente sem sentido,
Jenny e os outros recuaram para junto das janelas.
Lá fora, na rua, a neblina se agitava na sua própria dança
informe, como se fosse um reflexo fantasmagĂłrico do transmorfo.
Flyte falou com uma urgĂŞncia repentina, respondendo Ă s
perguntas que Sara Yamaguchi formulara, como se sentisse que nĂŁo lhe
sobrava muito tempo para responder.
—

Há uns vinte anos, me ocorreu que poderia haver uma

conexão entre os desaparecimentos em massa e a inexplicável extinção
de certas espécies nas eras geológicas pré-humanas. Como os
dinossauros, por exemplo.
O transmorfo pulsava e latejava, chegando quase ao teto,
lotando toda a extremidade oposta da sala.
Lisa se agarrou a Jenny.
Um odor vago mas repelente estava no ar. Com um leve cheiro
de enxofre. Como uma corrente de ar vinda do Inferno.
— Existem inúmeras teorias que tentam explicar a extinção dos
dinossauros — continuou Flyte —, mas não há uma única que
responda-a todas as perguntas. EntĂŁo, fiquei pensando... e se os
dinossauros tivessem sido exterminados por outra criatura, um inimigo
natural, um caçador e lutador superior? Teria que ter sido algo grande.
E teria que ter sido também algo com um esqueleto muito frágil, ou
talvez sem esqueleto nenhum, pois jamais encontramos registros de
fósseis de qualquer espécie que pudesse ter competido com aqueles
grandes sáurios.
Um arrepio percorreu toda a massa de limo tenebroso,
revolvedor. Por toda a sua extensão, dúzias de caras começaram a
aparecer.
—

E se — dizia Flyte — várias dessas criaturas amebóides

tivessem sobrevivido por milhões de anos...
Caras humanas e animais surgiram de dentro da carne amorfa,
cintilaram nela.
— ...vivendo em rios ou lagos subterrâneos...
Havia rostos que nĂŁo tinham olhos. Outros nĂŁo tinham bocas.
Mas,

entĂŁo,

os

olhos

apareceram,

se

abriram.

Eram

olhos

dolorosamente reais, penetrantes, cheios de dor, medo e sofrimento.
— ...ou em profundos fossos oceânicos...
E bocas se rasgaram naquelas fisionomias previamente sem
fendas.
— ...milhares de pés abaixo da superfície do mar... Lábios se
formaram em volta das bocas abertas.

— ...alimentando-se da vida marinha...
Os rostos fantasmas estavam berrando, no entanto nĂŁo emitiam
som algum.
—

...subindo Ă  tona infreqĂĽentemente para se alimentar...

Caras de gatos. Caras de cães. Fisionomias de répteis pré-históricos.
Erguendo-se como balões de dentro do limo.
—...e menos freqüentemente ainda alimentando-se de seres
humanos...
Para Jenny, os rostos humanos pareciam estar espiando do
outro lado de um espelho enfumaçado. Nenhum deles chegava a tomar
forma completamente. Tinham que se dissolver, pois havia inĂşmeros
novos rostos irrompendo e se aglutinando por baixo deles. Era um
espetáculo de sombras interminavelmente bruxuleantes dos perdidos e
amaldiçoados.
EntĂŁo os rostos pararam de se formar.
A massa imensa ficou quieta por um momento, pulsando lenta e
quase imperceptivelmente, porém, exceto por isso, imóvel.
Sara Yamaguchi gemia baixinho.
Jenny abraçava Lisa com força.
Ninguém falava. Durante diversos segundos, ninguém sequer
ousava respirar.
E então, numa nova demonstração de sua maleabilidade, o
inimigo antigo abruptamente fez brotar do corpo dezenas de tentáculos.
Alguns eram grossos, com ventosas de lula ou de polvo. Outros eram
finos, pegajosos; alguns destes eram lisos, alguns segmentados. Eram
ainda mais obscenos do que os tentáculos gordos e de aparência úmida.
Alguns desses apêndices deslizavam para a frente e para trás no chão,
derrubando cadeiras e afastando mesas do lugar, enquanto outros se
contorciam no ar, como cobras que dançassem ao som da música de
um encantador de serpentes.
EntĂŁo, aquilo atacou. Moveu-se rapidamente, adiantou-se.
Jenny deu um passo cambaleante para trás. Estava no canto da
sala.

Os muitos tentáculos vieram na direção deles, como chicotes,
cortando o ar com um som sibilante.
Lisa não podia mais deixar de olhar. Soltou uma exclamação
abafada ante o que viu.
Numa

fração

de

segundo,

os

tentáculos

cresceram

dramaticamente.
Uma corda de carne fria, escorregadia, totalmente estranha,
desabou sobre as costas da mĂŁo de Jenny. Enroscou-se no seu pulso.
NĂŁo!
Com um arrepio de alĂ­vio, ela se libertou. NĂŁo fora preciso muito
esforço para se libertar. Evidentemente, a coisa não estava realmente
interessada nela; nĂŁo agora; ainda nĂŁo.
Ela se agachou enquanto os tentáculos chicoteavam o ar acima
de sua cabeça, e Lisa se agachou junto dela.
Na sua pressa de sair do caminho da criatura, Flyte tropeçou e
caiu.
Um tentáculo se moveu na sua direção.
Flyte se arrastou para trás, até dar de encontro à parede.
O tentáculo seguiu-o, pairou acima dele, como se quisesse
golpeá-lo. Depois, afastou-se. Também não estava interessado em Flyte.
Embora o gesto fosse inĂştil, Bryce disparou o seu revĂłlver.
Tal gritou algo que Jenny nĂŁo compreendeu. Meteu-se na frente
dela e de Lisa, ficando entre elas e o transmorfo.
Depois de passar por Sara, a coisa agarrou Frank Autry. Era ele
que ela queria. Dois grossos tentáculos envolveram o tórax de Frank e o
afastaram dos demais.
Chutando, socando, arranhando a coisa que o agarrava, Frank
soltou um grito sem palavras, o rosto contorcido de horror.
Todos agora gritavam — até Bryce, até Tal.
Bryce foi atrás de Frank. Agarrou-lhe o braço direito. Tentou
arrancá-lo da fera, que, implacavelmente, puxava-o para junto de si.
— Tire isso de cima de mim! Tire isso de cima de mim! — berrou
Frank.

Bryce tentou arrancar um dos tentáculos de cima do delegado.
Outro dos apĂŞndices grossos e limosos levantou-se do chĂŁo,
rodopiou, chicoteou, atingiu Bryce com uma força tremenda, atirando-o
ao solo.
Frank foi erguido do chĂŁo e mantido em pleno ar. Seus olhos
saltaram ao olhar para o corpo escuro, limoso, mutável do inimigo
antigo. Ele chutava e se debatia em vĂŁo.
Outro pseudĂłpode brotou da massa central do transmorfo e se
ergueu no ar, vibrando com ansiedade selvagem. Ao longo de uma parte
da extensão repulsiva do tentáculo, a pele mosqueada cinza-marromvermelha-castanha pareceu se dissolver. O tecido em carne viva,
supurando, apareceu.
Lisa teve ânsias de vômito.
Não era apenas a visão da carne supurada que era abominável e
nauseante. O cheiro repulsivo também ficara mais forte.
Um liquido amarelado começou a pingar da ferida aberta no
tentáculo. Onde os pingos atingiam o chão, chiavam, espumavam e
dissolviam o ladrilho.
Jenny ouviu alguém dizer:
— Ăcido!
Os gritos de Frank tornaram-se uns guinchos penetrantes e
alucinados de terror e desesperança.
O tentáculo que pingava ácido envolveu sinuosamente o pescoço
do delegado e apertou-o como se fosse um garrote.
— Oh, Jesus, não!
— Não olhe — disse Jenny para Lisa.
O transmorfo estava mostrando a eles como decapitara Jakob e
Aida Liebermann. Como uma criança se exibindo.
O grito de Frank morreu num gorgolejo borbulhante, mucoso,
sanguinolento. O tentáculo devastador cortou o seu pescoço com
rapidez surpreendente. Apenas um ou dois segundos depois de Frank
ter sido silenciado, sua cabeça se soltou e caiu ao chão, chocando-se
contra os ladrilhos.

Jenny sentiu o gosto da bile no fundo da garganta, fez força para
engoli-la.
Sara Yamaguchi soluçava.
A coisa ainda segurava o corpo sem cabeça de Frank em pleno
ar. Agora, na massa de tecido informe de onde tinham brotado os
tentáculos, uma goela imensa e sem dentes abriu-se, esfomeada. Tinha
tamanho mais do que suficiente para engolir um homem inteiro. Os
tentáculos levaram o corpo decapitado do delegado até a boca rasgada e
escancarada. A carne escura ressumbrou ao redor do corpo. EntĂŁo, a
boca cerrou-se firmemente e deixou de existir.
Frank Autry também deixara de existir.
Bryce fitou, em choque, a cabeça cortada de Frank. Os olhos
sem visão olhavam para ele, através dele.
Frank estava morto. Frank, que sobrevivera a várias guerras,
que sobrevivera a uma vida de serviços perigosos, não sobrevivera a
isto.
Bryce pensou em Ruth Autry. Seu coração, que já batia feito
louco, retorceu-se de dor ao imaginar Ruth sozinha. Ela e Frank tinham
sido excepcionalmente ligados. Dar-lhe a notĂ­cia seria doloroso.
Os tentáculos voltaram a entrar para dentro do bolo pulsante de
tecido informe; dentro de um ou dois segundos, tinham desaparecido.
A imensa massa informe, ondulante, preenchia um terço do
aposento.
Bryce

podia

imaginá-la

ressumbrando

velozmente

pelos

pântanos pré-históricos, misturando-se com a lama, atacando as presas
furtivamente. É, seria mais do que páreo para os dinossauros.
Anteriormente, ele acreditara que o transmorfo o tinha poupado
e a alguns dos outros para que pudessem atrair Flyte para Snowfield.
Agora, dava-se conta de que nĂŁo era bem isso. A coisa poderia tĂŞ-los
consumido e depois imitado as suas vozes ao telefone, e Flyte teria sido
convencido a vir a Snowfield com a mesma facilidade. Ela os poupara
por algum outro motivo. Talvez os tivesse poupado apenas para matálos, um por um, na frente de Flyte, para que este pudesse ver

exatamente como funcionava.
Santo Deus.
O transmorfo se agigantava acima deles, tremendo feito gelatina,
toda aquela massa grotesca pulsando como que com as batidas nĂŁo
sincronizadas de uma dúzia de corações.
Numa voz ainda mais trĂŞmula do que Bryce se sentia, Sara
Yamaguchi falou:
— Gostaria que houvesse algum meio de obtermos uma amostra
do tecido. Daria qualquer coisa para poder estudá-la sob um
microscópio... ter alguma idéia da estrutura celular. Quem sabe
conseguirĂ­amos achar um ponto fraco... um modo de lidar com isso,
quem sabe até de derrotá-lo.
Flyte falou:
— Gostaria de estudá-lo... só para conseguir compreender... só
para saber.
Uma extrusĂŁo de tecidos ressumbrou do centro da massa
informe. Começou a adquirir forma humana. Bryce ficou chocado ao ver
Gordy Brogan se aglutinando Ă  sua frente. Antes do fantasma estar
inteiramente completo, enquanto o corpo ainda estava irregular e pouco
detalhado, o rosto não de todo terminado, a boca se abriu e a réplica de
Gordy falou. Mas nĂŁo com a voz de Gordy. A voz era de Stu Wargle, um
toque supremamente desconcertante.
— Vá ao laboratório — disse, a boca apenas parcialmente
formada, mas falando com perfeita clareza. — Eu lhe mostrarei tudo o
que quer ver, dr. Flyte. O senhor é meu Mateus. Meu Lucas. Vá ao
laboratório. Vá ao laboratório.
A imagem incompleta de Gordy Brogan dissolveu-se quase como
se tivesse sido composta de fumaça.
O bolo de tecido projetado, do tamanho de um homem, voltou a
fluir para dentro do bolo maior Ă s suas costas.
A massa inteira, pulsante e ondulante, começou a voltar na
direção da parede e do conduto de aquecimento.
Bryce imaginou, inquieto, que quantidade ainda haveria daquilo

dentro das paredes do hotel. Que quantidade daquilo estaria Ă  espera
nos escoadouros? De que tamanho seria o deus Proteu?
Enquanto a coisa ia se afastando deles, orifĂ­cios de formatos
estranhos foram se abrindo em toda a superfĂ­cie, nenhum maior do que
uma boca humana, uma dúzia deles, duas dúzias, e começaram a
emitir sons: o chilrear de pássaros, os gritos das gaivotas, o zumbido
das abelhas, rosnados, silvos, a risada doce de uma criança, canções
distantes, o piar de uma coruja, o chocalhar de advertĂŞncia de uma
cascavel. Esses ruĂ­dos, todos ecoando simultaneamente, formaram um
coro desagradável, irritante, decididamente agourento.
E entĂŁo o transmorfo desapareceu pelo buraco da parede.
Apenas a cabeça cortada de Frank e a grade entortada do conduto de
aquecimento permaneciam como prova de que algo nascido no Inferno
estivera ali.
Segundo o relógio elétrico de parede, eram 3:44.
A noite estava praticamente no fim.
Quanto tempo ainda resta até o alvorecer? perguntou-se Bryce.
Uma hora e meia? Uma hora e quarenta minutos, ou mais?
Supunha que isso não tinha importância.
De qualquer forma, nĂŁo esperava estar vivo para ver o sol
nascer.

37

Ego

A porta do segundo laboratĂłrio se achava escancarada. As luzes
estavam acessas. As telas do computador brilhavam. Tudo estava

pronto para eles.
Jenny estivera tentando se agarrar à crença de que ainda
poderiam resistir, de que ainda tinham uma chance, embora pequena,
de influenciar o curso dos acontecimentos. Agora, essa crença frágil e
preciosa fora destroçada. Estavam impotentes. Podiam fazer apenas o
que aquilo queria, ir apenas aonde aquilo permitia.
Os seis entraram no laboratĂłrio.
— E agora? — quis saber Lisa.
— Esperamos — disse Jenny.
Flyte, Sara e Lisa sentaram-se diante das trĂŞs telas de terminal
iluminadas. Jenny e Bryce se apoiaram num balcĂŁo, e Tal ficou junto Ă 
porta aberta, olhando para fora.
A neblina passava espumando pela porta.
Esperamos, Jenny dissera a Lisa. Mas esperar não era fácil.
Cada segundo era uma provação de expectativas tensas e mórbidas.
De onde viria a morte, a seguir?
E sob que forma fantástica?
E para quem chegaria, desta vez?
Finalmente, Bryce falou:
—

Dr. Flyte, se essas criaturas pré-históricas sobreviveram

durante milhões de anos em lagos e rios subterrâneos, nos fossos
marítimos mais profundos... ou seja lá onde for... e se sobem à
superfĂ­cie para se alimentar... por que entĂŁo os desaparecimentos em
massa nĂŁo sĂŁo mais comuns?
Flyte ficou puxando o queixo com uma mĂŁo magra e de dedos
longos e falou:
— Porque elas raramente encontram seres humanos.
— Mas por que raramente?
— Duvido que mais de um punhado desses animais tenha
sobrevivido. Pode ter havido mudanças climáticas que mataram a
maioria e levaram os restantes a uma existência subterrânea e
suboceânica.
— Apesar disso, mesmo alguns deles...

— Raros deles — enfatizou Flyte — espalhados por toda a terra.
E talvez, se alimentem apenas de tempos em tempos. Vejam, por
exemplo, a jibĂłia. Esta cobra se alimenta apenas uma vez a cada
período de várias semanas. Então, quem sabe essa coisa se alimenta
irregularmente, quem sabe uma vez a cada perĂ­odo de diversos meses,
ou mesmo uma vez a cada dois anos. O seu metabolismo Ă© tĂŁo
totalmente distinto do nosso que praticamente qualquer coisa pode ser
possĂ­vel.
— Será que o seu ciclo vital pode incluir períodos de hibernação
— perguntou Sara — que durem não apenas uma estação ou duas, mas
anos de cada vez?
— Sim, sim — concordou Flyte, meneando a cabeça. — Muito
bom. Muito bom, mesmo. Isso também ajudaria a explicar por que a
coisa encontra homens apenas em certos perĂ­odos. E deixe que lhes
lembre que a humanidade habita menos de um por cento da superfĂ­cie
do planeta. Mesmo que o inimigo antigo se alimentasse com certa
freqĂĽĂŞncia, raramente se depararia conosco.
— E quando se deparasse — falou Bryce —, provavelmente nos
encontraria no mar, porque a maior parte da terra é coberta de água.
—

Exatamente — falou Flyte. — E, se levasse todo mundo a

bordo do navio, nĂŁo haveria testemunhas, jamais saberĂ­amos desses
contatos. A história dos mares está repleta de histórias de navios
desaparecidos e navios fantasmas cujas tripulações desapareceram.
— O Mary Celeste — disse Lisa, lançando um olhar para Jenny.
Jenny lembrou-se de quando a irmĂŁ mencionara o Mary Celeste pela
primeira vez. Fora no domingo Ă  noitinha, quando tinham ido Ă 
casa vizinha dos Santinis e encontraram a mesa posta para o jantar.
— O Mary Celeste é um caso famoso — concordou Flyte. — Mas
nĂŁo

Ă©

o

Ăşnico.

Literalmente

centenas

e

centenas

de

navios

desapareceram sob circunstâncias misteriosas desde que se vêm
mantendo registros náuticos confiáveis. Com tempo bom, em épocas de
paz, sem nenhuma explicação "lógica". No total, as tripulações
desaparecidas devem somar dezenas de milhares de homens.

Do seu posto junto Ă  porta aberta do laboratĂłrio, Tal disse:
— Aquela área do Caribe onde tantos navios desapareceram...
— O Triângulo das Bermudas — disse Lisa, rapidamente.
— É — disse Tal. — Seria possível que...?
—

Fosse

obra

do

transmorfo?

—

disse

Flyte.

—

Sim.

Possivelmente. Ao longo dos anos tem havido também uma redução
drástica na quantidade de peixe nessa área, portanto a teoria do inimigo
antigo é aplicável.
As seguintes palavras apareceram nas telas dos terminais: EU
LHE ENVIO UMA ARANHA.
—

O que será que isso quer dizer? — indagou Flyte. Sara

datilografou: ESCLAREÇA.
A mesma mensagem foi repetida: EU LHE ENVIO UMA ARANHA.
ESCLAREÇA.
OLHE AO SEU REDOR.
Foi Jenny quem a viu primeiro. Estava parada na superfĂ­cie de
trabalho Ă  esquerda do terminal que Sara estava usando. Uma aranha
preta. Não tão grande quanto uma tarântula, mas muito maior do que
uma aranha comum.
Ela voltou a formar um bolo, retraindo as pernas compridas.
Modificou-se. A princĂ­pio, emitiu um brilho opaco. O colorido preto foi
substituído pelo cinza-marrom-vermelho já conhecido do transmorfo. A
forma de aranha se dissolveu. O bolo de carne amorfa assumiu outro
formato, mais comprido: transformou-se numa barata, uma barata
medonha, irrealisticamente grande. E depois num camundongo, com
bigodes que se contorciam.
Novas palavras surgiram nas telas dos terminais.
EIS AQUI A AMOSTRA DE TECIDO QUE O SENHOR PEDIU, DR.
FLYTE.
— Pombas, como está cooperando, de repente — falou Tal.
— Porque sabe que nada que a gente descubra a seu respeito
ajudará a destruí-lo — retrucou Bryce, taciturno.
— Tem que haver uma maneira — insistiu Lisa. — Não podemos

perder a esperança. Não podemos.
Jenny ficou olhando, fascinada, enquanto o camundongo se
dissolvia e voltava a ser uma massa de tecido informe.
ESTE É MEU CORPO SAGRADO, QUE VOS DOU, disse a coisa,
continuando a zombar deles com referĂŞncias religiosas.
A massa ondulou e se revolveu dentro de si mesma, formando
concavidades e convexidades minĂşsculas, nĂłdulos e buracos. NĂŁo
conseguia ficar inteiramente parada, do mesmo modo que a massa
maior, aquela que matara Frank Autry, parecera incapaz de ou
relutante em ficar imĂłvel mesmo que fosse por um segundo.
EIS 0 MILAGRE DA MINHA CARNE, POIS É APENAS EM MIM
QUE PODEIS ALCANÇAR A IMORTALIDADE. NĂO EM DEUS. NĂO EM
CRISTO. APENAS EM MIM.
— Estou vendo o que vocês querem dizer quando falam que a
criatura tem prazer em debochar e ridicularizar — disse Flyte.
A tela piscou. Nova mensagem apareceu: VOCĂŠS PODEM TOCĂLA. Apagar.
NENHUM MAL LHES ACONTECERà SE A TOCAREM. Ninguém
se adiantou para a massa trĂŞmula de carne estranha. TIREM
AMOSTRAS

PARA

SEUS

TESTES.

FAÇAM

COM

ELA

O

QUE

QUISEREM. Apagar.
QUERO QUE ME COMPREENDAM. Apagar.
QUERO QUE CONHEÇAM AS MINHAS MARAVILHAS.
Não apenas tem autopercepção; parece possuir também um ego
muito desenvolvido — falou Flyte.
Finalmente, hesitante, Sara Yamaguchi estendeu a mĂŁo, colocou
a ponta do dedo no pequeno bolo de protoplasma.
—

Não é quente como a nossa carne. É fresca. Fresca e um

pouco... gordurosa.
O pequeno pedaço do transmorfo tremia, agitadamente. Sara
retirou a mĂŁo, rapidamente.
— Vou ter que cortá-lo.
— É — disse Jenny. — Vamos precisar de um ou dois cortes

transversais finos para a microscopia de luz.
— E mais outro para o microscópio de elétron — falou Sara. —
E de um pedaço maior para a análise da composição química e mineral.
Através do computador, o inimigo antigo os encorajava.
PROSSIGAM, PROSSIGAM, PROSSIGAM, PROSSIGAM
PROSSIGAM
PROSSIGAM
PROSSIGAM

38

Uma possibilidade de ĂŞxito, depois da
longa luta

Mechas de neblina penetravam pela porta aberta, invadindo o
laboratório. Sara estava sentada a um balcão de trabalho, debruçada
sobre um microscĂłpio.
— Incrível — falou baixinho.
Jenny estava sentada diante de outro microscĂłpio, ao lado de
Sara, examinando outra lâmina do tecido do transmorfo.
— Nunca vi uma estrutura celular como esta.
— É impossível... no entanto aí está — disse Sara.
Bryce achava-se parado atrás de Jenny. Estava ansioso para que
ela o deixasse dar uma olhada na lâmina. Não significaria muito para
ele, é claro. Não sabia a diferença entre a estrutura celular normal e a
anormal. Apesar disso, tinha que dar uma olhada naquilo.
Embora o dr. Flyte fosse um cientista, nĂŁo era um biĂłlogo; a

estrutura celular significaria para ele pouco mais do que significava
para Bryce. No entanto, ele também se sentia ansioso para dar uma
espiadinha. Estava atrás do ombro de Sara, à espera. Tal e Lisa também
se achavam por perto, igualmente ansiosos para dar uma olhada no
Diabo numa lâmina de vidro.
Ainda olhando atentamente pelo microscĂłpio, Sara falou:
— A maior parte do tecido não tem estrutura celular.
— O mesmo acontece com esta amostra — falou Jenny.
— Mas toda matéria orgânica tem que ter estrutura celular —
disse Sara. — A estrutura celular é virtualmente uma definição da
matéria orgânica, um requisito de todos os tecidos vivos, planta ou
animal.
— A maior parte disto aqui me parece inorgânico — disse Jenny
—, mas é claro que não pode ser.
Bryce concordou:
— É. Todos sabemos bem demais o quanto aquilo está vivo.
— Vejo umas células aqui e ali — falou Jenny. — Não muitas;
sĂł algumas.
—

Há algumas nesta amostra também — falou Sara. — Mas

cada célula parece existir independentemente das outras.
— Estão bem separadas, é verdade — disse Jenny. — Parece
que estão nadando num mar de matéria não diferenciada.
— Paredes celulares muito flexíveis — disse Sara. — Um núcleo
trifurcado. Isso é estranho. E ocupa quase metade do espaço celular
inferior.
— O que significa isso? — perguntou Bryce. — É importante?
—

Não sei se é importante ou não — respondeu Sara,

afastando-se do microscópio e franzindo o cenho. — Só não sei a que
conclusĂŁo chegar.
Em todas as trĂŞs telas do computador uma pergunta apareceu:
NĂO ESPERAVAM QUE A CARNE DE SATANĂS FOSSE MISTERIOSA?
O transmorfo lhes mandara uma amostra da sua carne do
tamanho de um camundongo, mas até agora ela não fora toda utilizada

nos diversos testes. Metade dela permanecia numa placa de Petri, sobre
o balcĂŁo.
Ela tremia gelatinosamente.
Transformou-se de novo numa aranha e rodeou a placa,
inquieta.
Transformou-se numa barata e começou a correr de um lado
para o outro por algum tempo.
Transformou-se numa lesma.
Num grilo.
Num besouro verde com um padrĂŁo vermelho rendado na
carapaça.
Bryce e o dr. Flyte estavam agora sentados em frente aos
microscĂłpios, enquanto Lisa e Tal esperavam a sua vez.
Jenny e Sara encontravam-se na frente de um VDT, onde
realçada pelo computador uma representação de uma varredura
automática de microscópio de elétron estava em andamento. Sara
dirigira o sistema para focalizar e fixar-se no núcleo de uma das células
completamente dispersas do transmorfo.
— Alguma idéia? — perguntou Jenny.
Sara fez que sim, mas nĂŁo afastou os olhos da tela.
— A esta altura, posso apenas dar um palpite. Mas diria que a
matéria não diferenciada, claramente o grosso da criatura, é aquilo que
pode imprimir qualquer estrutura celular que deseje; Ă© o tecido que faz
as imitações. Pode se formar em células de cão, células de coelho,
células humanas... Mas quando a criatura está em repouso, aquele
tecido não tem estrutura celular própria. Quanto às poucas células
dispersas que vemos... bem, de alguma forma elas devem controlar o
tecido amorfo. As células dão as ordens; produzem enzimas ou sinais
quĂ­micos que dizem ao tecido desestruturado no que deve se
transformar.
—

Então, essas células dispersas permaneceriam imutáveis o

tempo todo, independentemente da forma que a criatura assumisse.
— Sim, é o que parece. Se o transmorfo se tornasse um cão, por

exemplo, e se tirássemos amostras do tecido do cão, veríamos células de
cĂŁo. Mas aqui e ali, espalhadas pela amostra, depararĂ­amos com estas
células flexíveis com seu núcleo trifurcado, e teríamos prova de que não
era absolutamente um cĂŁo.
—

E isso nos diz alguma coisa que possa ajudar a nossa

salvação? — indagou Jenny.
— Ao que me consta, não.
Na placa de Petri, o pedaço de tecido amorfo tinha voltado a
assumir a identidade de uma aranha. Depois a aranha se dissolveu e
apareceram dĂşzias de pequenas formigas, correndo pela placa e se
atropelando umas Ă s outras. As formigas se uniram para formar uma
única criatura — uma minhoca. A minhoca se retorceu por um
momento e se transformou num bicho-de-conta muito grande. O bichode-conta virou um besouro. O ritmo das modificações parecia estar
aumentando.
— E quanto a um cérebro? — perguntou-se Jenny em voz alta.
Sara indagou:
— O que quer dizer com isso?
— A coisa tem que ter um centro de intelecto. Sem dúvida, as
suas lembranças, conhecimento, capacidade de raciocínio não estão
armazenados nestas células dispersas.
— Você provavelmente tem razão — disse Sara. — Em algum
lugar da criatura é provável que exista um órgão análogo ao cérebro
humano. NĂŁo igual ao nosso, Ă© claro. Muito, muito diferente. Mas com
alguma função similar. Ele provavelmente controla as células que
vimos, e elas, por sua vez, controlam o protoplasma informe.
Cada vez mais empolgada, Jenny falou:
— As células cerebrais teriam pelo menos uma coisa importante
em comum com as células espalhadas pelo tecido amorfo: jamais
mudariam de forma.
—

Isso provavelmente é verdade. É difícil imaginar como as

lembranças, a função lógica e a inteligência possam ser armazenadas
em qualquer tecido que nĂŁo tenha uma estrutura celular permanente,

relativamente rĂ­gida.
— Assim o cérebro seria vulnerável — falou Jenny. A esperança
brotou nos olhos de Sara.
— Se o cérebro não é um tecido amorfo — continuou Jenny —
.então não pode se recompor quando é danificado. Faça um buraco
nele, e o buraco permanecerá ali. O cérebro ficará permanentemente
danificado. Se sofrer um dano grande o bastante, não poderá controlar
o tecido amorfo que forma o seu corpo, e o corpo também morrerá.
Sara a fitava.
— Jenny, acho que talvez você tenha descoberto algo. Bryce
falou:
— Se pudéssemos localizar o cérebro e déssemos uns tiros nele,
deteríamos a coisa. Mas como vamos localizá-lo? Algo me diz que o
transmorfo conserva o seu cérebro bem protegido, escondido de nós,
embaixo da terra.
A empolgação de Jenny desapareceu. Bryce tinha razão. O
cérebro podia ser o ponto fraco da coisa, mas eles não teriam
oportunidade de testar essa teoria.
Sara consultava os resultados da análise mineral e química da
amostra de tecido.
— Uma lista extremamente variada de hidrocarbonetos — falou.
— E alguns são mais do que simples traços. Um teor muito elevado de
hidrocarbonetos.
— Os carbonos são um elemento básico de todo tecido vivo —
disse Jenny. — O que há de diferente nisso?
— O grau. Há uma abundância muito grande de carbono em
forma bem diferente...
— E isso nos ajuda, de alguma forma?
—

Não sei — respondeu Sara, pensativa. Folheou as saídas

impressas, examinando o resto dos dados.

Bicho-de-conta.
Gafanhoto.

Lagarta.
Besouro. Formigas. Lagarta. Bicho-de-conta.
Aranha, centopéia, barata, lacraia, aranha.
Besouro-minhoca-aranha-lesma-centopéia.
Lisa fitava o bolo de tecido na placa de Petri. Ele sofria uma série
rápida de modificações, muito mais depressa do que antes, cada vez
mais depressa, a cada minuto que se passava
Havia algo errado.
— Petrolato — disse Sara. Bryce perguntou:
— O que é isso?
— Geléia de petróleo — explicou Jenny.
—

Quer dizer... como vaselina? — indagou Tal. E Flyte disse

para Sara:
— Mas, sem dúvida, você não está dizendo que o tecido amorfo
Ă© algo tĂŁo simples quanto o petrolato.
—

Não, não, não — replicou Sara rapidamente. — Claro que

nĂŁo. Este Ă© um tecido vivo. Mas existem similaridades no teor de
hidrocarbonetos. A composição do tecido é bem mais complexa do que a
composição do petrolato, é claro. Uma lista mais comprida de minerais
e substâncias químicas do que se encontraria num corpo humano. Uma
série de ácidos e alcalinos... Não consigo entender como é que se nutre,
como respira, como funciona sem um sistema circulatĂłrio, sem sistema
nervoso aparente, ou como cria novos tecidos sem usar um formato
celular. Mas esses valores de hidrocarbonetos extremamente elevados...
Sua voz foi sumindo. Os olhos pareceram ficar fora de foco, e ela
nĂŁo estava mais fitando os resultados dos testes.
Observando a geneticista, Tal teve a sensação de que ela ficara,
de repente, empolgada com alguma coisa. NĂŁo transparecia no seu rosto
ou em qualquer aspecto de seu corpo ou postura. No entanto, havia
nela algo de definitivamente novo que dizia a Tal que ela descobrira
uma coisa importante.
Tal lançou um olhar para Bryce. Seus olhos se encontraram. Ele
viu que Bryce também se apercebera da mudança em Sara.

Quase inconscientemente, Tal cruzou os dedos.
— É melhor virem dar uma olhada nisto — disse Lisa, com
urgência. Estava junto à placa de Petri que continha a porção da
amostra de tecido que ainda nĂŁo haviam usado.
— Depressa, venham cá! — chamou Lisa, quando não vieram
prontamente.
Jenny e os outros se reuniram e fitaram a coisa na placa de
Petri. Gafanhoto-minhoca-lacraia-lesma-centopéia.
—

Está se alternando cada vez mais depressa — disse Lisa.

Aranha-minhoca-lacraia-aranha-lesma-aranha-minhoca-aranhaminhoca...
É depois mais depressa ainda.
.. .aranhaminhocaranhaminhocaranhaminhocaranha...
— Mal se transforma em minhoca e já começa a se transformar
em aranha de novo — disse Lisa. — Feito uma desesperada, Estão
vendo? Há alguma coisa acontecendo com ela.
— Parece que perdeu o controle, que enlouqueceu — disse Tal.
—

Está

tendo

uma

espécie

de

colapso

—

falou

Flyte.

Abruptamente, a composição da pequena porção de tecido amorfo se
modificou. Um lĂ­quido leitoso escorreu dela; depois ficou sendo apenas
um monte de papa mole e sem vida.
NĂŁo se mexeu.
NĂŁo assumiu outra forma.
Jenny teve vontade de tocar nela; nĂŁo teve coragem.
Sara pegou uma pequena colher de laboratĂłrio, cutucou a coisa
na placa.
Ela nĂŁo se moveu.
Sara remexeu-a com a colher.
O tecido se liqüefez ainda mais, porém não teve nenhuma outra
reação.
— Está morto — disse Flyte, baixinho.
Bryce pareceu ficar eletrizado com o acontecimento. Virou-se
para Sara.

— O que havia na placa de Petri antes de você colocar nela a
amostra do tecido?
— Nada.
— Devia haver um resíduo.
— Não.
— Pense, droga. Nossas vidas dependem disso.
— Não havia nada na placa. Eu a retirei do aparelho
esterilizador.
— Algum traço de uma substância química...
— Estava perfeitamente limpa.
— Espere, espere, espere. Algo na placa deve ter reagido com o
tecido do transmorfo — falou Bryce. — Certo? Não está claro?
— E seja o que for que estava na placa — falou Tal —, é a nossa
arma.
— É o material que vai matar o transmorfo — disse Lisa.
—

Não necessariamente — falou Jenny, detestando ter que

destroçar as esperanças da jovem.
— Parece fácil demais — concordou Flyte, penteando os cabelos
brancos desgrenhados com uma mão trêmula. — Não vamos tirar
conclusões apressadas.
—

Especialmente quando há outras possibilidades — falou

Jenny.
— Tais como? — quis saber Bryce.
—

Bem... sabemos que a massa principal da criatura pode

destacar peças de si mesma na forma que quiser, pode dirigir as
atividades destas partes destacadas, e pode chamá-las de volta como
chamou a parte que enviou para matar Gordy. Mas suponhamos que
uma porção destacada do transmorfo possa sobreviver apenas por um
período relativamente curto quando está sozinho, longe do corpo-matriz.
Suponhamos que o tecido amorfo necessite de um suprimento contĂ­nuo
de uma determinada enzima para manter a sua coesĂŁo, uma enzima
que

nĂŁo

Ă©

fabricada

naquelas

células

de

independentemente, espalhadas por todo o tecido...

controle

situadas

—

...uma enzima que é produzida apenas pelo cérebro do

transmorfo — disse Sara, continuando o fio do pensamento de Jenny.
—

Exatamente — concordou Jenny. — Portanto... qualquer

porção destacada teria que se reintegrar à massa principal a fim de
repor o seu suprimento de enzima vital, ou seja lá que substância for.
— Isso não é improvável — falou Sara. — Afinal de contas, o
cérebro humano produz enzimas e hormônios sem os quais os nossos
corpos não poderiam sobreviver. Por que o cérebro do transmorfo não
poderia ter uma função semelhante?
—

Tudo bem — disse Bryce. — O que esta descoberta pode

significar para nĂłs?
—
falou

Se for uma descoberta e não apenas um palpite errado —

Jenny

—,

entĂŁo

isso

significa

que

poderĂ­amos

destruir

definitivamente o transmorfo inteiro se pudéssemos destruir o seu
cérebro. A criatura não seria capaz de se separar em diversas partes, se
arrastar para longe e continuar vivendo em outras encarnações. Sem as
enzimas essenciais fabricadas pelo cérebro — ou hormônios ou seja lá o
que for —, as partes separadas acabariam por se dissolver numa papa
sem vida, como se dissolveu a coisa na placa de Petri.
Bryce descaiu de desapontamento.
—

Voltamos à estaca zero. Temos que localizar o cérebro da

coisa antes de termos qualquer chance de dar um golpe mortal, mas ela
nunca vai deixar que o façamos.
— Não voltamos à estaca zero — disse Sara. Apontando para o
limo sem vida na placa de Petri, falou: — Isto nos diz outra coisa
igualmente importante.
— O quê? — perguntou Bryce, a voz cheia de frustração. — É
algo útil, algo que pode nos salvar... ou é mais uma informação bizarra?
Sara falou:
—

Sabemos agora que o tecido amorfo existe num delicado

equilĂ­brio quĂ­mico que pode ser rompido.
Deixou que suas palavras produzissem efeito. Os profundos
vincos de preocupação no rosto de Bryce se suavizaram um pouco.

Sara continuou:
—

A carne do transmorfo pode ser danificada. Ele pode ser

morto. A prova está aqui, na placa de Petri.
— Como vamos utilizar esse conhecimento? — indagou Tal. —
Como vamos romper o equilĂ­brio quĂ­mico?
— É o que temos que descobrir — respondeu Sara.
— Tem alguma idéia? — perguntou Lisa à geneticista.
— Não, nenhuma.
Mas Jenny teve, de repente, a sensação de que Sara Yamaguchi
estava mentindo.
Sara queria contar-lhes o plano que lhe ocorrera, mas nĂŁo podia
dizer uma palavra. Primeiro, porque a sua estratégia oferecia apenas
um frágil fio de esperança. Não queria dar-lhes esperanças irreais, para
depois vĂŞ-las frustradas de novo. O que era ainda mais importante: se
lhes contasse o que estava pensando e se, por milagre, tivesse
realmente descoberto um meio de destruir o transmorfo, este escutaria
o que ela ia dizer, ficaria conhecendo os seus planos e a deteria. NĂŁo
havia lugar algum em que ela pudesse discutir em segurança os seus
planos com Jenny, Bryce e os outros. A esperança deles era manter o
inimigo antigo convencido e complacente.
Mas ela precisava arranjar tempo, várias horas, para poder
colocar em ação o seu plano. O transmorfo tinha milhões e milhões de
anos, era virtualmente imortal. O que eram algumas horas para esta
criatura? Sem dĂşvida ela atenderia ao pedido de Sara. Sem dĂşvida.
Sentou-se a um dos terminais de computador, os olhos ardendo
de cansaço. Precisava dormir. Todos eles precisavam dormir. A noite
estava quase no fim. Sara passou uma das mĂŁos pelo rosto, como se
pudesse afastar o cansaço. Depois, datilografou: VOCÊ ESTà AÍ?
ESTOU.
COMPLETAMOS DIVERSOS TESTES, datilografou ela, enquanto
os demais se agrupavam ao seu redor.
EU SEI, replicou o transmorfo.
ESTAMOS FASCINADOS. GOSTARĂŤAMOS DE SABER MAIS

COISAS.
É CLARO.
QUEREMOS REALIZAR OUTROS TESTES.
POR QUĂŠ?
PARA PODERMOS SABER MAIS A SEU RESPEITO.
ESCLAREÇA, respondeu a coisa, provocadoramente.
Sara pensou por um momento, depois datilografou: O DR.
FLYTE PRECISA DE DADOS ADICIONAIS PARA PODER ESCREVER A
SEU RESPEITO COM AUTORIDADE.
ELE É MEU MATEUS.
PRECISA DE MAIS DADOS PARA CONTAR A SUA HISTĂ“RIA
COMO DEVE SER CONTADA.
A criatura mandou uma resposta em trĂŞs linhas no centro da
tela do terminal:

— UMA FANFARRA DE TROMBETAS –
A MAIOR HISTĂ“RIA QUE JĂ FOI CONTADA
— UMA FANFARRA DE TROMBETAS —

Sara nĂŁo tinha certeza se ela estava simplesmente zombando
deles ou se o seu ego era, na verdade, tĂŁo grande que ela podia
seriamente comparar a sua histĂłria Ă  histĂłria de Cristo.
A tela piscou. Novas palavras apareceram: PROSSIGAM COM
SEUS TESTES.
PRECISAMOS MANDAR PEDIR MAIS EQUIPAMENTOS DE
LABORATĂ“RIO.
POR QUĂŠ? VOCĂŠS TĂŠM UM LABORATĂ“RIO TOTALMENTE
EQUIPADO.
As mĂŁos de Sara estavam Ăşmidas. Ela as enxugou nos jeans
antes de dar a sua resposta.
ESTE LABORATÓRIO É TOTALMENTE EQUIPADO APENAS
PARA UMA ĂREA LIMITADA DE PESQUISAS CIENTĂŤFICAS: A ANĂLISE
DE AGENTES DE GUERRA QUĂŤMICA E BACTERIOLĂ“GICA. NĂO

ESPERĂVAMOS

ENCONTRAR

UM

SER

DA

SUA

NATUREZA.

PRECISAMOS DE OUTROS EQUIPAMENTOS DE LABORATĂ“RIO PARA
PODER FAZER UM TRABALHO ADEQUADO.
PROSSIGAM.
LEVARĂ VĂRIAS HORAS PARA QUE MANDEM PARA CĂ OS
EQUIPAMENTOS, disse ela Ă  criatura.
PROSSIGA.
Ela fitou a palavra, verde sobre verde, mal ousando acreditar
que ganhar tempo seria assim tão fácil. Bateu no teclado:
PRECISAREMOS

VOLTAR

PARA

O

HOTEL

E

USAR

O

TELEFONE DE LĂ:
PROSSIGA, SUA PIRANHA CHATA. PROSSIGA, PROSSIGA,
PROSSIGA, PROSSIGA.
As mĂŁos dela estavam Ăşmidas de novo. Ela as enxugou nos
jeans e se pôs de pé.
Pelo modo como os outros a olhavam, ela percebeu que sabiam
que estava ocultando alguma coisa e que compreendiam o motivo do
seu silĂŞncio.
Mas, como Ă© que eles sabiam? Estaria sendo assim tĂŁo Ăłbvia? E
se eles sabiam, será que a coisa também estava sabendo?
Ela pigarreou:
— Vamos embora — disse, com voz trêmula.
— Vamos embora — disse Sara Yamaguchi, como voz trêmula,
mas Timothy falou:
— Esperem. Só um ou dois minutos, por favor. Preciso tentar
uma coisa.
Sentou-se ao terminal do computador. Embora tivesse dormido
um pouco nos aviões, não estava com a mente tão aguçada quanto
deveria estar. Sacudiu a cabeça e inspirou fundo diversas vezes, depois
datilografou:
AQUI É TIMOTHY FLYTE.
EU SEI.
PRECISAMOS TER UM DIĂLOGO.

PROSSIGA.
PRECISAMOS REALIZĂ-LO ATRAVÉS DO COMPUTADOR?

É MELHOR DO QUE O EVÔNIMO-DA-AMÉRICA.

Por um ou dois segundos, Timothy nĂŁo percebeu o que ele
queria dizer. Quando entendeu a piada, quase riu alto. O maldito tinha
o seu senso de humor perverso. Datilografou:
A SUA ESPÉCIE E A MINHA DEVEM VIVER EM PAZ.
POR QUĂŠ?
PORQUE PARTILHAMOS A TERRA.
COMO O FAZENDEIRO PARTILHA A TERRA COM O SEU GADO.
VOCĂŠS SĂO O MEU GADO.
NÓS SOMOS AS DUAS ÚNICAS ESPÉCIES INTELIGENTES
SOBRE A TERRA.
VOCĂŠS ACHAM QUE SABEM DEMAIS. NA VERDADE SABEM
MUITO POUCO.
DEVEMOS COOPERAR, insistiu Flyte, teimosamente.
VOCĂŠS SĂO INFERIORES A MIM.
TEMOS MUITO O QUE APRENDER UM COM O OUTRO.
NĂO TENHO NADA QUE APRENDER COM A SUA ESPÉCIE.
PODEMOS SER MAIS ESPERTOS DO QUE VOCĂŠ IMAGINA.
VOCĂŠS SĂO MORTAIS. NĂO É VERDADE?
É.
PARA MIM, AS SUAS VIDAS SĂO TĂO BREVES E SEM
IMPORTĂ‚NCIA QUANTO AS VIDAS DAS EFEMÉRIDAS O SĂO PARA
VOCĂŠS.
SE É ASSIM QUE SE SENTE, POR QUE SE IMPORTA QUE EU
ESCREVA OU NĂO A SEU RESPEITO?
DIVERTE-ME QUE ALGUÉM DA SUA ESPÉCIE TENHA CRIADO
UMA TEORIA SOBRE A MINHA EXISTÊNCIA. É COMO UM MIQUINHO
DE ESTIMAÇĂO APRENDENDO UM TRUQUE DIFĂŤCIL.
NĂO CREIO QUE SEJAMOS INFERIORES A VOCĂŠ, datilografou
Flyte, corajosamente.

GADO.
ACREDITO QUE VOCĂŠ QUER QUE SE ESCREVA A SEU
RESPEITO PORQUE ADQUIRIU UM EGO BEM HUMANO.
ESTĂ ERRADO.
ACREDITO QUE SĂ“ SE TORNOU UMA CRIATURA INTELIGENTE
DEPOIS

QUE

COMEÇOU

A

SE

ALIMENTAR

DE

CRIATURAS

INTELIGENTES, DE HOMENS.
A SUA IGNORĂ‚NCIA ME DESAPONTA.
Timothy continuou a desafiar o transmorfo.
ACREDITO QUE, JUNTAMENTE COM O CONHECIMENTO E AS
LEMBRANÇAS

QUE

FORAM

ABSORVIDAS

DE

SUAS

VĂŤTIMAS

HUMANAS, VOCÊ TAMBÉM ADQUIRIU INTELIGÊNCIA. DEVE A SUA
EVOLUÇĂO A NĂ“S.
NĂŁo obteve resposta.
Timothy limpou a tela e escreveu mais:
A

SUA

MENTE

PARECE TER

UMA

ESTRUTURA

MUITO

HUMANA; EGO, SUPEREGO E ASSIM POR DIANTE.
GADO, replicou a coisa.
Apagar.
PORCOS, disse.
Apagar.
ANIMAIS ABJETOS, disse.
Apagar.
VOCĂŠS ME ENCHEM, disse.
E entĂŁo todas as telas escureceram.
Timothy recostou-se na cadeira e soltou um suspiro.
O xerife Hammond falou:
— Gostei de ver, dr. Flyte.
— Quanta arrogância — falou Timothy.
— Como convém a um deus — disse a dra. Paige. — E é mais ou
menos isso que a criatura se considera.
—

De uma certa forma — falou Lisa Paige —, é isso o que

realmente Ă©.

—

É — concordou Tal Whitman —, para todos os fins e

propĂłsitos, bem que pode ser um deus. Tem todos os poderes de um
deus, nĂŁo Ă©?
— Ou de um diabo — disse Lisa.
Para além dos postes de luz e acima da neblina, a noite agora
estava cinzenta. O primeiro brilho impreciso da aurora iluminava o céu,
ao longe.
Sara gostaria que o dr. Flyte nĂŁo tivesse desafiado o transmorfo
tĂŁo abertamente. Ela estava com medo de que ele tivesse antagonizado
a criatura e que ela agora voltasse atrás na sua promessa de lhes dar
mais tempo.
Durante a curta caminhada do laboratório móvel até o Hilltop,
ela ficara esperando ver surgir de dentro da neblina um fantasma
grotesco para atacá-los. Aquilo não podia pegá-los agora. Não agora.
Não quando havia, finalmente, uma pontinha de esperança.
Noutros cantos da cidade, em meio Ă  neblina e Ă s sombras,
ouviam-se estranhos sons animais, sinistros gritos ululantes como Sara
jamais escutara antes. Aquilo ainda se entretinha com as suas
imitações

incessantes.

Um

guincho

infernal,

assustadoramente

prĂłximo, fez com que os sobreviventes se agrupassem rapidamente.
Mas nĂŁo foram atacados.
As ruas, embora nĂŁo silenciosas, estavam quietas. NĂŁo havia
uma brisa sequer, a neblina pairava imĂłvel no ar.
Nada estava Ă  espera no hotel, tampouco.
À mesa da central de operações, Sara sentou-se e discou o
nĂşmero da base da Unidade da Defesa Civil da CBW, em Dugway, Utah.
Jenny, Bryce e os demais reuniram-se Ă  volta dela para escutar.
Por causa da crise em andamento em Snowfield, nĂŁo havia
apenas o costumeiro sargento do plantĂŁo noturno no quartel-general de
Dugway. O capitão Daniel Tersch, médico do Corpo Médico do Exército,
um especialista na contenção de moléstias contagiosas, terceiro na
escala de encarregados da unidade, estava de prontidĂŁo para dirigir
quaisquer operações de apoio que se fizessem necessárias.

Sara lhe contou sobre suas últimas descobertas — os exames
microscĂłpicos do tecido do transmorfo, os resultados das diversas
análises minerais e químicas — e Tersch ficou fascinado, embora isso
fugisse Ă  sua especialidade.
— Petrolato? — indagou a certa altura, surpreso pelo que ela
lhe havia contado.
— O tecido amorfo se parece com o petrolato apenas porque tem
uma mistura meio semelhante de hidrocarbonetos que registra valores
multo elevados. Mas, naturalmente, Ă© muito mais complexo, muito mais
sofisticado.
Ela enfatizou esta descoberta em particular, pois queria ter
certeza de que Tersch a passaria aos outros cientistas da equipe da
CBW em Dugway. Se outro geneticista ou um bioquĂ­mico levasse em
consideração estes dados e depois desse uma olhada na lista de
materiais que ela ia pedir, era praticamente certo que soubesse qual o
seu plano. Se alguém na unidade da CBW percebesse o que ela estava
pretendendo, montaria a arma para ela antes de mandá-la para
Snowfield, poupando-lhe o serviço perigoso e demorado de montá-la
com o transmorfo olhando por cima de seu ombro.
Simplesmente

nĂŁo

podia

dizer

a

Tersch

o

que

estava

pretendendo, pois tinha certeza de que o inimigo antigo estava
escutando a conversa. Havia um som sibilante e estranho, muito de
leve, na linha...
Finalmente, ela falou que precisaria de equipamentos de
laboratĂłrio adicionais.
—

A maioria das coisas que pedi podem ser tomadas de

empréstimo dos laboratórios industriais e universitários aqui mesmo na
Califórnia do Norte — disse ela a Tersch. — Preciso apenas que vocês
usem o pessoal, o transporte e a autoridade do Exército para reunir o
pacote e trazĂŞ-lo para mim o mais rapidamente possĂ­vel.
— Do que precisa? — perguntou Tersch. — É só me dizer e terá
tudo dentro de cinco ou seis horas.
Ela recitou uma lista de equipamentos nos quais nĂŁo tinha

nenhum interesse real, e depois terminou, dizendo:
— Também vou precisar do máximo que for viável mandar da
quarta geração do pequeno milagre do dr. Chakrabarty. E ainda de
duas ou trĂŞs unidades de dispersĂŁo de ar comprimido.
— Quem é Chakrabarty? — indagou Tersch, intrigado.
— O senhor não saberia quem é.
— O que é o seu pequeno milagre? O que quer dizer com isso?
—

Basta escrever, Chakrabarty, quarta geração — disse ela,

soletrando o nome para ele.
— Não tenho a mais vaga idéia do que seja — disse ele. Ótimo,
pensou Sara, com alívio considerável. Perfeito.
Se Tersch soubesse o que era o pequeno milagre do dr. Ananda
Chakrabarty, poderia ter deixado escapar alguma coisa antes que ela
pudesse detĂŞ-lo. E o inimigo antigo ficaria prevenido.
— Fica fora da sua área de especialização — retrucou Sara. —
Não há motivo para o senhor reconhecer o nome ou conhecer o
dispositivo. — Ela agora falava às pressas, tentando mudar de assunto
o mais discreta e rapidamente possível. — Não tenho tempo para
explicar, dr. Tersch. Outras pessoas no projeto CBW saberĂŁo o que
quero, sem dĂşvida alguma. Vamos andar logo com isso. O dr. Flyte
deseja muito continuar os seus estudos sobre a criatura, e precisa de
todos os itens da minha lista o mais rápido possível. Cinco ou seis
horas, o senhor falou?
— Devem ser o bastante — disse Tersch. — Como devemos fazer
a entrega?
Sara lançou um olhar a Bryce. Ele não ia querer arriscar mais
outro de seus homens para trazer o material até a cidade. Para o
capitĂŁo Tersch, ela falou:
— Podem trazer o material de helicóptero do Exército?
— Positivo.
—

Diga ao piloto que nĂŁo tente pousar. O transmorfo pode

pensar que estamos tentando fugir. Sem dúvida atacaria a tripulação e
nos mataria a todos no momento em que o helicĂłptero pousasse. Basta

que fiquem pairando aqui em cima e desçam o pacote por um cabo.
— O embrulho pode ser bem grande — falou Tersch.
— Tenho certeza de que poderão baixá-lo — retrucou Sara.
—

Bem... está certo. Vou tratar disso imediatamente. E boa

sorte para vocĂŞs.
— Obrigada — falou Sara. — Vamos precisar. Desligou.
—

De repente, cinco ou seis horas parecem um tempão —

comentou Jenny.
— Uma eternidade — disse Sara.
Estavam todos nitidamente ansiosos para escutar o seu plano,
mas sabiam que ele nĂŁo podia ser discutido. Mesmo no seu silĂŞncio,
porém, Sara detectava uma nota de otimismo.
NĂŁo esperem demais, pensou ela, ansiosa.
Havia uma chance do plano dela nĂŁo se concretizar. Na verdade,
as probabilidades eram contra eles. E se o plano falhasse, o transmorfo
saberia o que tinham tentado fazer e acabaria com eles de algum modo
especialmente brutal.
Lá fora, a aurora despontara.
A neblina perdera o seu brilho pálido. Agora a névoa era
ofuscante, branquíssima, refulgindo com as refrações da luz matinal do
sol.

39

A aparição

Fletcher Kale acordou a tempo de ver o raiar da aurora.
A floresta ainda estava escura, na sua maior parte. A luz Jeitosa

do dia descia em lanças pelos furos espalhados no dossel verde formado
pelos galhos densamente entrelaçados das árvores imensas. A luz do sol
ficava difusa pela neblina, e pouco revelava.
Ele passara a noite na perua que pertencera ao falecido Jake
Johnson. Agora saltara do veĂ­culo e estava parado ao seu lado,
escutando os sons dos bosques, alerta a qualquer sinal de perseguição.
Na noite anterior, poucos minutos depois das onze, dirigindo-se
para o retiro secreto de Jake Johnson, Kale subira a Mount Larson
Road, entrara com a perua na trilha de incêndio sem pavimentação que
levava às encostas agrestes setentrionais de Snowtop — e dera de cara
com encrenca. Dali a seis metros, os farĂłis iluminaram cartazes
colocados nos dois lados da estrada: letras vermelhas e grandes num
fundo branco diziam

QUARENTENA.

Como ele ia depressa demais, dobrou

a curva; diretamente Ă  sua frente havia uma barricada policial, um
carro-patrulha atravessado no meio da estrada. Dois delegados
começaram a saltar do carro.
Ele se lembrou de ter ouvido falar de uma zona de quarentena
rodeando Snowfield, mas pensou que sĂł estava funcionando do outro
lado da montanha. Meteu o pé no freio, desejando, ao menos por essa
vez, ter prestado mais atenção ao noticiário.
Havia um alerta geral circulando com a sua foto. Esses homens
o reconheceriam, e dentro de algumas horas ele estaria de volta Ă 
cadeia.
A surpresa era a sua única esperança. Eles não estariam
esperando encrenca. Manter um posto de controle de quarentena seria
uma tarefa fácil, tranqüila.
O rifle de ataque HK91 estava no assento ao seu lado, coberto
com uma manta. Ele agarrou a arma, saltou do carro e abriu fogo
contra os policiais. A arma semi-automática trovejou e os delegados
executaram uma dança da morte, breve e errática, figuras espectrais na
neblina.
Ele rolou os corpos para dentro de uma vala, tirou o carropatrulha do caminho e passou com a perua para o outro lado do posto

de controle. Depois, voltou e recolocou o carro em posição, para que
parecesse que o assassino dos delegados nĂŁo tinha prosseguido
montanha acima.
Rodou os quase cinco quilĂ´metros pela trilha de incĂŞndio
irregular, até que chegou a uma trilha ainda mais irregular, cheia de
vegetação. Um quilômetro e meio depois, no final da trilha, ele
estacionou o carro num tĂşnel de arbustos e saltou.
Além do HK91, ele tinha um saco cheio das outras armas da
casa de Johnson, mais os 63.440 dĂłlares que estavam distribuĂ­dos
pelos sete bolsos com zíper da jaqueta de caça que usava. A única outra
coisa que levava era uma lanterna elétrica, e realmente não precisava
de mais nada, pois as cavernas de calcário estariam bem estocadas com
outros suprimentos.
Os Ăşltimos quatrocentos metros tinham que ser percorridos a
pé, e ele pretendia terminar prontamente a viagem, mas logo descobriu
que, mesmo com a lanterna, a floresta era confusa Ă  noite, na neblina.
Perder-se era quase uma certeza. Depois de perdido neste deserto,
podia-se ficar andando em cĂ­rculos, a poucos metros do destino, sem
jamais descobrir o quanto se estava perto da salvação. Depois de dar
apenas alguns passos, Kale voltara para junto do carro, a fim de
esperar a luz do dia.
Mesmo que os dois delegados mortos no bloqueio fossem
descobertos antes do amanhecer, e ainda que os tiras concluĂ­ssem que
o assassino subira a montanha, não iriam começar a caçada humana
antes do dia clarear. Quando os policiais chegassem até aqui, amanhã,
Kale já estaria bem escondido nas cavernas.
Dormira no banco da frente do carro. Podia nĂŁo ser o Hotel
Plaza, mas era mais confortável do que a cadeia.
Agora, parado ao lado do carro, na débil luz do amanhecer, ele
prestava atenção para ver se ouvia os ruídos de uma equipe de busca.
NĂŁo ouviu nada. NĂŁo esperava mesmo ouvir nada. NĂŁo era o seu destino
apodrecer na prisĂŁo. O seu futuro era dourado. Tinha certeza disso.
Bocejou, espreguiçou-se, depois mijou de encontro ao tronco de

um grande pinheiro.
Dali a trinta minutos, quando havia mais luz, ele seguiu a
vereda de pedestres que nĂŁo conseguira encontrar na noite anterior. E
notou algo que não fora evidente na escuridão: a vegetação estava
extensamente pisada. Tinha passado gente por aqui, recentemente.
Ele seguiu com cautela, apoiando o HK91 no braço direito,
pronto para mandar para o espaço qualquer um que tentasse atacá-lo.
Em menos de meia hora ele saiu do meio das árvores, chegou à
clareira que rodeava a cabana rústica — e viu por que a vereda de
pedestres estava toda pisada. Oito motocicletas se achavam enfileiradas
ao lado da cabana, oito Harleys grandes, nas quais estava gravado o
nome DEMON CHROME.
O bando de desajustados de Gene Terr. NĂŁo todos. Cerca de
metade da gangue, ao que parecia.
Kale agachou-se junto a um afloramento de calcário e examinou
a cabana envolta em névoa. Não havia ninguém à vista. Ele remexeu
silenciosamente na sacola que trouxera, localizou um pente para o
HK91, colocou-o no lugar.
Como é que Terr e seus amiguinhos sádicos tinham chegado até
aqui? Uma viagem de moto montanha acima teria sido difĂ­cil,
loucamente perigosa, uma motocross de deixar os nervos Ă  flor da pele.
É claro que aqueles filhos da mãe malucos curtiam adoidado o perigo.
Mas que diabo estavam fazendo aqui? Como tinham encontrado
a cabana, e por que tinham vindo?
Enquanto ficava atento a uma voz, a algum indĂ­cio de onde
estavam os motoqueiros, e do que estavam fazendo, Kale se deu conta
de que nĂŁo havia nenhum som de animal ou de inseto. Nenhuma ave.
Absolutamente nada. Era fantasmagĂłrico.
E entĂŁo, Ă s suas costas, um farfalhar no matagal. Um som
suave. Naquele silĂŞncio sobrenatural, era como se fosse um tiro de
canhĂŁo.
Kale estivera ajoelhado no chĂŁo. Com rapidez felina, caiu para
um lado, rolou de costas, ergueu o HK91.

Estava preparado para matar, mas nĂŁo para o que viu. Era Jake
Johnson, a uns oito metros de distância, saindo de dentro das árvores e
da neblina. Despido. Nuzinho da silva.
Outro movimento. À esquerda de Johnson. Um pouco mais
adiante, no limiar das árvores.
Kale percebeu-o com o canto dos olhos e girou rapidamente a
cabeça, virando o rifle naquela direção.
Outro homem saiu dos bosques, através da névoa, com a grama
alta se agitando ao redor das pernas nuas. Também estava despido, e
com um largo sorriso.
Mas isso nĂŁo era o pior. O pior era que o segundo homem
também era Jake Johnson.
Kale olhou de um para o outro, sobressaltado e confuso. Eles
eram tĂŁo perfeitamente iguais quanto um par de gĂŞmeos idĂŞnticos.
Mas Jake era filho único — não era? Kale nunca soubera de
gĂŞmeo algum.
Uma terceira figura avançou das sombras por baixo dos ramos
frondosos de um grande abeto vermelho. Também esta era Jake
Johnson. Kale nĂŁo conseguia respirar.
Talvez houvesse uma chance fortuita de que Johnson tivesse um
irmĂŁo gĂŞmeo, mas era absolutamente certo que nĂŁo tinha dois.
Havia algo horrivelmente errado. De repente, nĂŁo eram apenas
os trigĂŞmeos impossĂ­veis que assustaram Kale. De repente, tudo parecia
ameaçador: a floresta, a névoa, os contornos pedregosos da montanha...
Os trĂŞs Jake Johnson subiram lentamente a encosta em que
Kale estava esparramado, aproximando-se dele de ângulos diferentes.
Tinham olhos estranhos e bocas cruéis.
Kale se pôs de pé, o coração aos saltos.
— Parados aí!
Mas eles nĂŁo pararam, muito embora ele brandisse o rifle de
ataque.
— Quem são vocês? O que são vocês? O que significa isso? —
vociferou Kale.

Eles nĂŁo responderam. Continuaram vindo. Como zumbis.
Ele agarrou a sacola que estava cheia de armas e recuou rápida
e desajeitadamente, fugindo daquele trio de pesadelo.
NĂŁo. NĂŁo era mais um trio. Era um quarteto. Encosta abaixo,
um quarto Jake Johnson saiu do meio das árvores, nu em pêlo, como
os demais.
O medo de Kale estava quase virando pânico.
Os quatro se moveram na direção de Kale praticamente sem
fazer ruído; folhas secas sob os pés; nada mais. Não se queixavam das
pedras, ervas daninhas cortantes e carrapichos que deviam estar
magoando seus pés. Um deles começou a lamber os lábios, com ar
faminto. Os outros imediatamente também começaram a lamber os
lábios.
Um tremor de pavor gelado percorreu as entranhas de Kale e ele
se perguntou se teria perdido o juĂ­zo. Mas esse pensamento teve curta
duração. Pouco habituado a ter dúvidas sobre a sua pessoa, não se
deteve por muito tempo nelas.
Largou a sacola, agarrou o HK91 nas duas mĂŁos e atirou,
descrevendo um arco com a boca da arma que cuspia fogo. As balas
acertaram o alvo. Ele as viu entrando nos quatro homens, viu as feridas
se abrindo. Mas nĂŁo havia sangue. E mal as feridas desabrochavam,
logo murchavam; fechavam, sumiam dentro de segundos.
Os homens continuavam vindo.
NĂŁo, homens nĂŁo. Outra coisa.
Alucinações? Há muitos anos, na escola secundária, Kale
consumira muito tĂłxico. Agora ele se lembrava de que, mesmo depois
de se ter parado de fazer uso do LSD, podia-se ter alucinações durante
meses, até anos. Ele nunca tivera alucinações por causa do LSD antes,
mas já tinha ouvido falar nelas. Será que era isso que estava
acontecendo agora?
Talvez.
Por outro lado — os quatro homens estavam cintilando, como se
a neblina matinal estivesse se condensando na sua pele nua, e isso nĂŁo

era . o tipo de detalhe que se notava numa alucinação. E toda esta
situação era muito diferente de qualquer experiência com drogas que ele
já tivera.
Ainda sorrindo amplamente, o Doppelganger

2

mais prĂłximo

ergueu um dos braços e apontou para Kale. De modo incrível, a carne
daquela mĂŁo se abriu e foi se descolando dos dedos, da palma. A carne
parecia que ia voltando para dentro do braço, sem sangrar, como se
fosse cera se derretendo e fugindo de uma chama. O pulso engrossou
com esse tecido e a mĂŁo ficou sendo apenas ossos, ossos brancos. Um
dedo descarnado apontava para Kale.
Apontava com raiva, desdém e acusação.
Kale ficou estonteado.
Os outros trigêmeos tinham sofrido transformações ainda mais
macabras. Um deles perdera a carne da parte do rosto. Um osso malar
estava à mostra, uma fieira de dentes. O olho direito, sem pálpebra e
sem todo o tecido circundante, brilhava umidamente na Ăłrbita caiada.
Ao terceiro homem faltava um pedaço de carne do tórax; dava para se
ver as suas costelas e os órgãos pulsando sombriamente lá dentro. O
quarto caminhava sobre uma perna normal e outra que era apenas
ossos e tendões.
Enquanto iam se aproximando de Kale, fechando o cerco, um
deles falou:
— Assassino de bebês.
Kale berrou, largou o rifle e correu. Parou de chofre ao ver mais
dois Johnsons idênticos se aproximando, por detrás, vindos da cabana.
Não havia para onde fugir. Exceto para os altos afloramentos de calcário
acima da cabana. Ele se mandou para aquele lado, ofegando e
resfolegando, chegou ao matagal, choramingando, meteu-se pelo meio
dele até chegar à entrada da caverna, olhou para trás, viu que os seis
ainda vinham atrás dele e se meteu caverna adentro, na escuridão,
2

Do alemão — um sósia fantasmagórico de uma pessoa real,

especialmente um que vive assombrando o ser em carne e osso. (N. da T.)

desejando não ter largado a lanterna elétrica; colocou uma mão contra
a parede, andou arrastando os pés, tateando, tentando se lembrar de
como era o local, achando que era mais ou menos um tĂşnel longo que
terminava numa série de curvas abruptas — e de repente se deu conta
de que este poderia nĂŁo ser um lugar seguro; podia era ser uma
armadilha; é, tinha certeza disto; eles queriam que ele viesse para cá —
ele olhou para trás, viu dois homens em decomposição na entrada,
ouviu-se gemer e entrou depressa, cada vez mais depressa, na
escuridĂŁo profunda, porque nĂŁo havia outro lugar para onde ir, mesmo
que fosse uma armadilha; arranhou a mão na projeção aguçada de uma
rocha, tropeçou, quase caiu, continuou em frente, chegou às curvas
abruptas, uma depois da outra, e depois Ă  porta; cruzou-a, fechou-a
atrás de si, mas sabia que isso não os impediria de entrar; então se deu
conta de uma luz, na câmara seguinte, e se dirigiu para lá entorpecido
de terror, passando por pilhas de suprimentos e equipamentos.
A luz vinha de uma lanterna Coleman.
Kale entrou na terceira câmara.
À luz pálida e fria, ele viu algo que o fez ficar petrificado.
Erguera-se do rio subterrâneo, subindo pelo chão da caverna, saindo
pelo buraco em que Jake Johnson montara a bomba-d'agua. Contorciase. Revolvia-se, pulsava, ondulava. Carne escura, mosqueada de
sangue. Informe.
Asas começaram a se formar, depois se dissolveram.
Um cheiro de enxofre, nĂŁo forte, mas nauseante.
Olhos se abriram ao longo de toda a coluna de dois metros de
limo. Focalizaram Kale.
Ele recuou fugindo deles, foi de encontro a uma parede, agarrouse Ă  pedra como se fosse a realidade, um Ăşltimo lugar para se segurar
no precipĂ­cio da loucura.
Alguns dos olhos eram humanos. Outros nĂŁo. Fixaram-se nele
— depois se fecharam e desapareceram.
Bocas se abriram onde antes nĂŁo havia nenhuma. Dentes.
Presas. Línguas bipartidas lambiam lábios negros. De outras bocas,

tentáculos parecidos com vermes brotaram, contorceram-se no ar,
retrocederam. Como as asas e os olhos, as bocas acabaram por
desaparecer na carne informe.
Um homem estava sentado no chão. Achava-se a curta distância
da coisa pulsante que brotara de sob a caverna, sentado na penumbra
deixada pela luz da lanterna, o rosto nas sombras.
Percebendo que Kale reparara nele, o homem se inclinou para a
frente ligeiramente, colocando o rosto na luz. Tinha l,90m ou mais,
longos cabelos crespos e barba. Usava um lenço colorido enrolado na
cabeça, e um brinco de ouro pendurado. Deu o sorriso mais estranho
que Kale já vira e ergueu uma das mãos para cumprimentá-lo; na
palma da mĂŁo havia um globo ocular tatuado em vermelho e amarelo.
Era Gene Terr.

40

Guerra biolĂłgica

O helicóptero do Exército chegou três horas e meia depois que
Sara falou com Daniel Tersch em Dugway, duas horas antes do que ele
prometera. Evidentemente, fora despachado de uma base da CalifĂłrnia,
e evidentemente os seus colegas no projeto CBW tinham concluĂ­do qual
era o plano de guerra dela. Tinham se dado conta de que ela nĂŁo
precisava realmente da maior parte do equipamento que solicitara, e
haviam

reunido

apenas

aquilo

que

necessitava

para

atacar

o

transmorfo. Caso contrário, não teriam sido tão rápidos.
Por favor, Deus, que seja verdade, pensou Sara. Eles devem ter
trazido o material certo. Devem ter trazido.

Era um helicĂłptero grande, pintado para camuflagem, com dois
jogos completos de hélices a girar. Pairando cerca de 20 metros acima
da Skyline Road, ele revolvia o ar matinal, criava uma corrente de ar
descendente turbulenta e desfazia o pouco de bruma que restava.
Enviava ondas de som fortes ecoando pela cidade.
Uma porta se abriu no lado do helicĂłptero e um homem se
inclinou para fora do porĂŁo de carga, olhando para baixo. Nem tentou
gritar para eles, pois as hélices e o motor ruidosos teriam dispersado as
suas palavras. Em vez disso, fez uma série de sinais manuais
incompreensĂ­veis.
Finalmente, Sara percebeu que a tripulação estava esperando
um sinal qualquer de que aquele era o local para largar a mercadoria.
Com seus prĂłprios sinais manuais, ela instou a todos que formassem
um cĂ­rculo com ela no meio da rua. NĂŁo se deram as mĂŁos, mas
deixaram um espaço de cerca de dois metros entre cada um. O círculo
tinha um diâmetro de aproximadamente quatro metros.
Um pacote envolto em lona, um pouco maior do que um homem,
foi empurrado para fora do helicĂłptero. Estava preso a um cabo, que
desceu por meio de um guincho elétrico. Inicialmente, o pacote desceu
lentamente, depois mais lentamente, pousando finalmente no chĂŁo no
meio do círculo, tão suavemente que parecia que a tripulação do
aparelho pensava estar entregando ovos crus.
Bryce se destacou do cĂ­rculo antes que o pacote tocasse o chĂŁo e
foi o primeiro a chegar até ele. Já tinha localizado o elo de mola e
soltado o cabo quando Sara e os outros se reuniram a ele.
Enquanto puxava o cabo, o helicóptero guinou na direção do
vale lá embaixo, saiu da zona de perigo e foi ganhando altitude
enquanto se afastava.
Sara agachou-se ao lado do pacote e começou a soltar a corda de
náilon que estava enfiada pelos ilhoses da lona. Trabalhou febrilmente,
e dentro de alguns segundos, tinha deixado Ă  mostra o conteĂşdo.
Havia duas caixas de metralha azuis com palavras e nĂşmeros
escritos. Sara soltou um suspiro de alĂ­vio quando as viu. O seu recado

fora

devidamente

interpretado.

Havia

também

trĂŞs

tanques

pulverizadores de aerosol lembrando em tamanho e aparĂŞncia aqueles
usados para espalhar inseticida e exterminadores de ervas daninhas
num gramado. SĂł que estes nĂŁo eram movidos por uma bomba manual,
mas sim por cilindros de ar comprimido. Cada pulverizador era
equipado com um arnĂŞs que permitia seu transporte Ă s costas. Uma
mangueira flexĂ­vel de borracha, que terminava numa extensĂŁo de metal
de l,20m com um esguicho de alta pressĂŁo, permitia que se ficasse a
uma distância de cerca de quatro metros do alvo que se desejava
pulverizar.
Sara ergueu um dos tanques pressurizados. Estava pesado, já
cheio do mesmo fluido que estava nas duas caixas de metralha azuis
sobressalentes.
O helicóptero foi sumindo no céu ocidental e Lisa perguntou:
— Sara, isso não é tudo o que você pediu... é?
— Isto é tudo de que precisamos — respondeu Sara, evasiva.
Olhou ao seu redor, nervosa, esperando ver o transmorfo aparecer
correndo na direção deles. Mas não havia sinal dele. Ela disse:
—

Bryce, Tal, se quiserem fazer o favor de pegar dois desses

tanques...
O xerife e seu delegado pegaram duas das unidades, enfiaram os
braços pelas aberturas do arnês, afivelaram as tiras do peito, moveram
os ombros para ajeitar os tanques o mais confortavelmente possĂ­vel.
Sem que se lhes tivesse sido dito, os dois homens perceberam
nitidamente que os tanques continham uma arma que poderia destruir
o transmorfo. Sara sabia que deviam estar ardendo de curiosidade, e
ficou impressionada pelo fato de nĂŁo terem feito perguntas.
A sua intenção era usar ela própria o terceiro pulverizador, mas
este era consideravelmente mais pesado do que ela imaginava.
Esforçando-se, conseguiria carregá-lo, mas não seria capaz de operá-lo
com a devida presteza. E, durante a prĂłxima hora, ou um pouco mais, a
sobrevivĂŞncia dependeria da velocidade e agilidade.
Outra pessoa teria que usar a terceira unidade. NĂŁo Lisa; nĂŁo

era maior do que Sara. NĂŁo Flyte; sofria de artrite na mĂŁo, queixara-se
dela na noite anterior, ©parecia frágil. Só sobrava Jenny. Ela era
apenas uns dez centĂ­metros mais alta do que Sara e cerca de oito quilos
mais pesada, mas parecia estar em excelentes condições físicas. Era
praticamente certo que poderia cuidar do pulverizador.
Flyte protestou, mas acabou cedendo depois de tentar levantar o
tanque.
—

Devo estar mais velho do que imagino — falou, com voz

cansada. Jenny concordou que a mais adequada Ă  tarefa era ela
mesma; Sara ajudou-a a vestir o arnĂŞs, e ficaram prontos para a
batalha.
Ainda nĂŁo se via sinal do transmorfo. Sara enxugou o suor da
testa.
— Pois bem. No instante em que ele aparecer, pulverizem-no.
NĂŁo percam um sĂł segundo. Pulverizem-no, saturem-no, fiquem
recuando, se possĂ­vel, tentando atrair a maior parte dele do seu
esconderijo, e pulverizem, pulverizem, pulverizem.
— Isto é uma espécie de ácido... ou o quê? — perguntou Bryce.
—

Não é ácido — disse Sara. — Embora o efeito seja muito

parecido... isto Ă©, se funcionar.
— Então, se não é um ácido, o que é? — perguntou Tal.
— Um microorganismo único, altamente especializado.
—

Micróbios? — indagou Jenny, arregalando os olhos de

surpresa.
— É. Estão suspensos numa cultura de proliferação líquida.
— Vamos deixar o transmorfo doente! — indagou Lisa, franzindo
o cenho.
— Tomara Deus que sim — respondeu Sara.
Nada se movia. Nada. Mas havia algo ali, e provavelmente estava
escutando. Com os ouvidos do gato. Com os ouvidos da raposa. Com
ouvidos altamente sensĂ­veis que eram especificamente seus.
—

Muito, muito doente, se tivermos sorte — disse Sara. —

Porque a moléstia parece ser a única maneira de matá-lo.

Agora as vidas deles estavam em perigo, porque aquilo sabia que
eles o haviam enganado.
Flyte balançou a cabeça.
—

Mas o inimigo antigo Ă© tĂŁo completamente estranho, tĂŁo

diferente dos homens e dos animais... moléstias perigosas para outras
espécies não teriam absolutamente nenhum efeito nele.
— Certo — concordou Sara. — Mas este micróbio não é uma
moléstia comum. Na verdade, não é absolutamente um organismo
causador de moléstias.
Snowfield enfeitava a encosta da montanha, imĂłvel como um
cartĂŁo-postal.
Olhando Ă  sua volta, temerosa, alerta para qualquer movimento
dentro e ao redor dos prédios, Sara falou-lhes de Ananda Chakrabarty e
de sua descoberta.
Em 1972, em nome do dr. Chakrabarty, seu empregador — a
General Electric — solicitou a primeira patente na História de uma
bactéria feita pelo homem. Usando técnicas sofisticadas de fusão de
células, Chakrabarty tinha criado um microorganismo que podia se
alimentar, digerir e, desta forma, transformar os compostos de
hidrocarboneto do petrĂłleo bruto.
O micróbio de Chakrabarty tinha pelo menos uma aplicação
comercial Ăłbvia: podia ser utilizado para limpar os vazamentos de Ăłleo
no mar. As bactérias literalmente comiam as manchas de óleo,
tornando-o inofensivo ao meio ambiente.
Depois de uma série de contestações legais vigorosas de muitas
fontes, a General Electric adquiriu o direito de patentear a descoberta
de Chakrabarty. Em junho de 1980, a Suprema Corte tomou uma
decisĂŁo histĂłrica, decretando que a descoberta de Chakrabarty "nĂŁo era
obra da natureza, mas dele prĂłprio, sendo, desta forma, perfeitamente
válido patenteá-la".
— Claro — falou Jenny —, li sobre esse caso. Foi uma matéria
importante, naquele mĂŞs de junho... o homem competindo com Deus e
todo o resto.

— Originariamente — continuou Sara —, a GE não pretendia
comercializar o germe. Era um organismo frágil que não podia
sobreviver fora de condições de laboratório rigidamente controladas.
Solicitaram a patente para testar a questĂŁo legal, para resolver o
assunto antes que outros experimentos em engenharia genética
produzissem descobertas mais aproveitáveis e mais valiosas. Depois da
decisão do tribunal, porém, outros cientistas passaram alguns anos
trabalhando com o organismo, e agora obtiveram uma variedade mais
forte, que resiste de doze a dezoito horas fora do laboratĂłrio. Na
realidade, o germe foi comercializado com o nome de Biosan-4, e tem
sido usado com ĂŞxito para limpar manchas de Ăłleo no mundo todo.
— Então é isso o que há nos tanques? — perguntou Bryce.
— É. Biosan-4. Numa solução pulverizável.
A cidade estava sepulcral. O sol lançava seus raios de um céu
azul, mas o ar permanecia frio. A despeito do silĂŞncio irreal, Sara tinha
a sensação inabalável de que aquilo vinha vindo, de que escutara e
vinha vindo, e estava muito, muito perto mesmo.
Os outros sentiram a mesma coisa. Olharam Ă  sua volta,
inquietos.
Sara disse:
— Lembra-se do que descobrimos quando estudamos o tecido
do transmorfo?
— Está se referindo aos teores elevados de hidrocarbonetos? —
falou Jenny.
— Exato. Mas não apenas os hidrocarbonetos. Todas as formas
de carbono. Teores muito elevados, do começo ao fim.
Tal falou:
— Você disse que era igual ao petrolato.
—

Não igual. Lembrava o petrolato, em certos aspectos —

continuou Sara. — O que temos aqui é tecido vivo, muito estranho, mas
complexo e vivo. E com um teor de carbono tĂŁo extraordinariamente
elevado... Bem, o que quero dizer Ă© que o tecido dessa coisa se parece
com um primo orgânico, metabolicamente ativo, do petrolato. Assim,

estou torcendo para que o micrĂłbio de Chakrabarty...
Vem vindo algo. Jenny falou:
— Você está torcendo para que ele consuma o transmorfo do
mesmo modo que consome uma mancha de Ăłleo.
Algo... algo...
— É — disse Sara, nervosamente. — Estou torcendo para que
ataque o carbono e afete o tecido. Ou que, pelo menos, interfira o
suficiente com o delicado equilĂ­brio quĂ­mico para...
Vindo, vindo...
—

...hã, para desestabilizar o organismo inteiro — terminou

Sara, tomada de uma profunda sensação de desastre iminente.
Flyte perguntou:
— Esta é a melhor chance que temos? De verdade?
— Acho que é.
Onde está? De onde está vindo? perguntou-se Sara, olhando
para os prédios desertos, a rua vazia, as árvores imóveis.
— Me parece muito fraquinha — disse Flyte, em dúvida.
—

É muito fraquinha — disse Sara. — Não é lá essas coisas

como chance, mas Ă© a Ăşnica que temos.
Um barulho. Um barulho sibilante, chilreante, de deixar o cabelo
em pé.
Eles ficaram petrificados. Esperaram.
Novamente, porém, a cidade se envolveu num manto de silêncio.
O sol da manhã lançava seu reflexo cor de fogo em algumas
janelas e refulgia no vidro curvo dos lampiões de rua. Os telhados de
ardĂłsia negra pareciam ter sido lustrados durante a noite; o restinho da
bruma tinha se condensado nessas superfĂ­cies lisas, deixando nelas um
brilho Ăşmido.
Nada se movia. Nada acontecia. O barulho nĂŁo continuou.
O rosto de Bryce Hammond estava toldado de preocupação.
— Esse Biosan... suponho que não seja daninho para nós.
— Totalmente inofensivo — tranqüilizou-o Sara.
O barulho de novo. Uma explosĂŁo curta. Depois silĂŞncio.

— Vem vindo algo — disse Lisa baixinho. Que Deus nos ajude,
pensou Sara.
— Vem vindo algo — disse Lisa, baixinho, e Bryce também teve a
mesma sensação. De um horror próximo. O ar ficando mais espesso e
mais fresco. Uma nova qualidade predatĂłria para a imobilidade.
Realidade? Imaginação? Não podia ter certeza. Só sabia que tinha essa
sensação.
O barulho explodiu de novo, um guincho constante, nĂŁo apenas
um breve ruĂ­do. Bryce se crispou. Era penetrantemente agudo.
Zumbindo. Gemendo. Como uma furadeira elétrica. Mas ele sabia que
nĂŁo era algo tĂŁo comum e inofensivo.
Insetos. A frialdade do som, a qualidade metálica fez com que
pensasse

em

insetos.

Abelhas.

Sim.

Era

o

zumbir-guinchar

grandemente amplificado de vespões.
Bryce falou:
—

Os

trĂŞs

de

vocĂŞs

que

nĂŁo

estĂŁo

armados

com

os

pulverizadores fiquem aqui no meio.
— É — disse Tal. Ficaremos rodeando vocês, dando um pouco
de proteção.
Uma proteção de nada, se este Biosan não funcionar, pensou
Bryce.
O barulho estranho foi ficando cada vez mais forte.
Sara, Lisa e o dr. Flyte ficaram juntos, enquanto Bryce, Jenny e
Tal os rodeavam, dando-lhes as costas.
EntĂŁo, rua abaixo, perto da padaria, algo monstruoso apareceu
no céu, quase roçando no alto dos prédios, pairando por alguns
segundos acima da Skyline Road. Uma vespa. Um fantasma do
tamanho de um pastor alemĂŁo. Nada remotamente parecido com este
inseto existira durante os dez milhões de anos em que o transmorfo
vivera. Isto sem dúvida era algo que brotara da sua imaginação
perversa, uma invenção horrível. Asas opalescentes de quase dois
metros se agitavam furiosamente no ar, brilhando com cores do arcoíris. Os olhos negros multifacetados eram enviesados na cabeça

estreita, pontuda, maligna. Havia quatro pernas que se contorciam, com
os pés em pinças. O corpo enroscado, segmentado, branco como o mofo,
terminava num ferrĂŁo de trinta centĂ­metros com uma ponta fina feito
uma agulha.
Bryce sentiu que os seus intestinos pareciam estar virando água
gelada.
A vespa deixou de pairar. Atacou.
Jenny gritou quando a vespa se lançou sobre eles, mas não
correu. Mirou o esguicho do pulverizador e apertou a alavanca de
disparo de pressão. Uma névoa leitosa, cônica, jorrou até uma distância
de cerca l,80m.
A vespa estava a seis metros de distância e se aproximando cada
vez mais depressa.
Jenny apertou a alavanca até o fim. A névoa tornou-se um jato,
esguichando até cerca de cinco metros.
Bryce soltou um jato de seu pulverizador. Os dois jatos de
Biosan se cruzaram, se firmaram, miraram no mesmo ponto, fluĂ­ram
juntos em pleno ar.
A vespa entrou no seu raio de ação. Os jatos de alta pressão a
atingiram, deixaram opaco o colorido de arco-Ă­ris das asas, empaparam
o corpo segmentado.
O inseto parou abruptamente, hesitou, voou mais baixo, como se
incapaz de manter a altitude. Pairou. O seu ataque fora interrompido,
embora ainda os encarasse com os olhos cheios de Ăłdio.
Jenny sentiu uma onda de alívio e esperança.
— Funciona! — gritou Lisa.
E então a vespa se lançou novamente contra eles.
Justo quando Tal imaginava que estavam a salvo, a vespa se
lançou novamente contra eles, voando em meio à névoa de Biosan-4,
voando lentamente, mas ainda voando.
— Abaixem-se! — gritou Bryce.
Eles se agacharam e a vespa voou por cima deles, pingando um
lĂ­quido leitoso das pernas grotescas e da ponta do ferrĂŁo.

Tal se pôs de pé de novo, para poder lançar um belo jorro sobre
a coisa, agora que ela estava no raio de ação do pulverizador.
Ela se voltou para ele, mas antes que Tal pudesse disparar, a
vespa hesitou, agitou-se desesperadamente, depois desabou ao chĂŁo.
Remexia-se e zumbia iradamente. Tentou se levantar. NĂŁo conseguiu.
Depois se modificou.
Modificou-se.
Juntamente com os outros, Timothy Flyte se aproximou mais da
vespa e viu quando ela se dissolveu numa massa informe de
protoplasma. As patas traseiras de um cão começaram a se formar, e o
focinho. Ia ser um doberman, a julgar pelo focinho. Um dos olhos
começou a se abrir. Mas a criatura não conseguiu completar a
transformação; as feições do cão desapareceram. O tecido amorfo
estremeceu e pulsou de um jeito diferente de qualquer outro que
Timothy já tivesse visto.
— Está morrendo — falou Lisa.
Timothy olhava, assombrado, enquanto a estranha carne
entrava em convulsões. Este ser até então imortal conhecia agora o
significado e o medo da morte..
A massa informe se abriu em pĂşstulas, deixando vazar um
lĂ­quido fino e amarelo. A coisa tinha espasmos violentos. Feridas
adicionais se abriram em horrenda profusão, lesões de todas as formas
e tamanhos que se abriam, rachavam e estouravam por sobre a
superfĂ­cie pulsante. EntĂŁo, como acontecera com o pedacinho de tecido
na placa de Petri, este fantasma se degenerou numa poça sem vida de
papa aguada e fedorenta.
— Por Deus, você conseguiu! — exclamou Timothy, voltando-se
para Sara.
Tentáculos. Três deles. Atrás dela.
Tinham saĂ­do de dentro de um bueiro na sarjeta, a uns cinco
metros de distância. Cada um deles tinha a espessura do pulso de
Timothy. As suas pontas irrequietas já tinham deslizado pelo chão e
estavam a menos de um metro de Sara.

Timothy soltou um grito de advertĂŞncia, que chegou tarde
demais.
Flyte gritou, Jenny rodopiou. Aquilo estava no meio deles.
Três tentáculos ergueram-se do solo com uma velocidade
chocante, adiantaram-se com malevolĂŞncia sinuosa e caĂ­ram sobre
Sara. Num instante, um deles envolveu as pernas da geneticista, o
outro a sua cintura, e o terceiro o seu pescoço esguio.
Cristo, é rápido demais, rápido demais para nós, pensou Jenny.
Apontou o esguicho do seu pulverizador enquanto se virava,
praguejando, apertando a alavanca, inundando Sara e os tentáculos de
Biosan-4.
Bryce e Tal se adiantaram, usando os seus pulverizadores, mas
todos foram lentos demais, chegaram atrasados demais.
Os olhos de Sara se arregalaram; a sua boca se abriu num grito
mudo. Ela foi erguida no ar e...
NĂŁo! orou Jenny.
... jogada de um lado para o outro como se fosse uma boneca.
NĂŁo!
... e então a cabeça lhe caiu dos ombros e atingiu o calçamento
com um baque surdo e nauseante.
Com ânsias de vômito, Jenny recuou, aos tropeções.
Os tentáculos subiram cerca de três metros no ar. Retorciam-se,
ondulavam e espumavam, abrindo-se em feridas enquanto as bactérias
destruíam a estrutura de ligação do tecido amorfo. Como Sara esperava,
o Biosan afetava o transmorfo quase da mesma maneira que o ácido
sulfĂşrico afetava o tecido humano.
Tal passou velozmente por Jenny, dirigindo-se diretamente para
os três tentáculos, e ela gritou para ele que parasse.
Em nome de Deus, o que ele estava fazendo?
Tal correu por entre as sombras oscilantes lançadas pelos
tentáculos em movimento e rezou para que nenhum deles caísse em
cima dele. Quando chegou ao bueiro de onde as coisas estavam se
projetando, pĂ´de ver que os trĂŞs apĂŞndices estavam se separando do

corpo principal do protoplasma escuro e latejante no encanamento lá
embaixo. O transmorfo estava se desfazendo do tecido infectado antes
que as bactérias pudessem alcançar a massa do corpo principal. Tal
enfiou o esguicho do pulverizador por entre as grades do bueiro e soltou
o Biosan-4 para dentro do escoadouro.
Os tentáculos se soltaram do resto da criatura. Agitavam-se e
retorciam-se na rua. No escoadouro, o limo ressumbrante fugia dos
jatos, desfazendo-se de outro pedaço de si próprio, que começou a
espumar, ter espasmos e morrer.
Até mesmo o Diabo podia ser ferido. Até mesmo Satanás era
vulnerável.
EufĂłrico, Tal disparou mais fluido para dentro do escoadouro.
O tecido amorfo se retirou, fugindo das vistas dele, arrastandose cada vez mais para as profundezas das passagens subterrâneas, sem
dúvida se desfazendo de mais pedaços de si mesmo.
Tal se afastou do bueiro e viu que os tentáculos partidos tinham
perdido a sua definição. Eram agora somente cordas longas e
emaranhadas de tecido em supuração. Batiam-se e baliam umas nas
outras em agonia aparente e rapidamente se degeneraram naquela papa
fedorenta e sem vida.
Ele olhou para o outro bueiro, para os prédios silenciosos, para
o céu, imaginando de onde viria o próximo ataque.
De repente o calçamento roncou e ondulou sob os seus pés. Na
sua frente, Flyte foi lançado ao chão, estilhaçando os óculos. Tal
tropeçou para o lado e quase atropelou Flyte.
A rua saltou e estremeceu de novo, com mais força ainda do que
antes, como se estivesse sofrendo um terremoto. Mas isso nĂŁo era um
terromoto. Aquilo vinha vindo — não apenas um fragmento, não outro
fantasma, mas a parte maior da coisa, talvez ela inteira, vindo em
direção à superfície com poder inimaginável e destrutivo, erguendo-se
como um deus atraiçoado, trazendo sua ira e vingança medonhas
contra

os

homens

transformando-se

e

numa

mulheres

que

tinham

massa

enorme

de

ousado

fibra

atacá-lo,

musculosa

e

empurrando, empurrando, até que o asfalto se estufasse e rachasse.
Tal foi jogado ao chão. Bateu com o queixo na rua, com força;
ficou atordoado. Tentou se levantar, para poder usar o pulverizador
quando a criatura aparecesse. Chegou a ficar de quatro. A rua ainda
estava balançando muito. Deitou-se de novo para esperar o balanço
passar.
Vamos morrer, pensou.
Bryce estava de cara no chão, abraçando-se ao calçamento.
Lisa estava ao seu lado. Ela podia estar gritando ou chorando.
Ele nĂŁo conseguia ouvi-la; havia barulho demais de outro tipo.
Ao longo de todo este quarteirĂŁo da Skyline Road, uma sinfonia
atonal de destruição atingia um crescendo de arrebentar os tímpanos:
sons de guinchar, de ranger, de rachar, de fender; o prĂłprio mundo se
partindo. O ar estava cheio de poeira que brotava das fissuras cada vez
mais amplas no calçamento.
O leito da rua se inclinava com uma força tremenda. Pedaços
dele eram lançados ao ar. A maior parte era do tamanho de cascalho,
mas alguns eram do tamanho de punhos. Havia até os maiores que
isso, blocos de concreto de vinte, cinqĂĽenta e noventa quilos, saltando a
uma altura de dois ou três metros, enquanto a criatura multiforme lá
embaixo abria caminho implacavelmente em direção à superfície.
Bryce puxou Lisa para junto de si e tentou protegĂŞ-la. Podia
sentir os tremores violentos que a percorriam.
A terra debaixo deles se ergueu. Caiu com estrondo. Ergueu-se e
caiu de novo. Fragmentos de rocha do tamanho de cascalho choviam
sobre eles, ricocheteavam no tanque pulverizador preso Ă s costas de
Bryce, batiam de encontro Ă s suas pernas, chocavam-se contra a sua
cabeça, fazendo com que ele se encolhesse.
Onde estava Jenny?
Olhou ao seu redor, num desespero sĂşbito.
A rua se rachara em dois, formando uma crista no meio da
Skyline. Aparentemente, Jenny estava do outro lado do cume,
agarrando-se Ă  rua daquele lado.

Ela está viva, ele pensou. Está viva. Cristo, tem que estar!
Um bloco enorme de concreto se projetou do leito da rua Ă 
esquerda deles e foi lançado aos ares, a uma altura de dois ou três
metros. Ele teve certeza de que ia desabar em cima deles, e agarrou Lisa
com quantas forças tinha, embora nada que ele pudesse fazer fosse
capaz de salvá-los se o bloco os atingisse. Mas foi a Timothy Flyte que
ele atingiu. Caiu com força sobre as suas pernas, fraturando-as,
prendendo o cientista, que uivou de dor, tĂŁo alto que Bryce pĂ´de ouvi-lo
acima do estrondo feito pelo calçamento que se desintegrava.
Os tremores ainda continuavam. A rua se alçou ainda mais.
Dentes irregulares de concreto coberto de macadame mordiam o ar
matinal.
Dentro de segundos, aquilo irromperia e estaria sobre eles antes
que tivessem uma chance de se levantar e lutar.
Um mĂ­ssil de concreto do tamanho de uma bola de beisebol,
cuspido no ar pela emergência vulcânica do transmorfo do escoadouro,
voltou a cair sobre o calçamento, batendo a menos de dez centímetros
do rosto de Jenny. Uma lasca de concreto furou-lhe a face, tirou um
filete de sangue.
Então, a pressão formadora da crista que vinha lá de baixo
cessou repentinamente. A rua deixou de tremer. Deixou de se erguer.
Os sons da destruição sumiram. Jenny pôde ouvir a sua própria
respiração irregular.
A curta distância dali, Tal Whitman começou a se pôr de pé.
Do outro lado do calçamento em crista, alguém gemia, agoniado.
Jenny nĂŁo podia ver quem era.
Tentou se levantar, mas a rua estremeceu mais uma vez e ela foi
lançada de novo de cara no chão.
Tal também caiu de novo, praguejando em voz alta.
Abruptamente, a rua começou a afundar. Emitiu um som
torturado, e pedaços começaram a se soltar ao longo das linhas de
fratura. Blocos caíam no vazio lá embaixo. Vazio demais; parecia que as
coisas estavam caindo num abismo, nĂŁo apenas num escoadouro.

Então toda a seção que formara a crista desabou com um rugido
trovejante, e Jenny se encontrou na beirada.
Ficou deitada de barriga para baixo, cabeça erguida, esperando
que algo surgisse das profundezas, temendo ver qual a forma que o
transmorfo assumiria desta vez.
Mas ele nĂŁo veio. NĂŁo saiu nada daquele buraco.
A cova tinha trĂŞs metros de largura, pelo menos quinze de
comprimento. Do lado oposto, Bryce e Lisa estavam tentando se pĂ´r de
pé. Jenny quase gritou de alegria ao vê-los. Estavam vivos!
E entĂŁo ela enxergou Timothy. Suas pernas estavam presas sob
um bloco imenso de concreto. Pior ainda — ele estava preso num
pedaço precário do leito da rua que se projetava sobre a beirada do
buraco, sem apoio nenhum por baixo. A qualquer momento o pedaço
poderia se soltar e cair na cova, levando-o junto.
Jenny se adiantou alguns centĂ­metros e espiou para dentro do
buraco. Tinha pelo menos nove metros de profundidade, sendo
provavelmente bem mais profundo em alguns lugares. NĂŁo podia
calcular direito, pois havia muitas sombras ao longo da sua extensĂŁo de
quinze metros. Aparentemente, o inimigo antigo nĂŁo brotara apenas dos
escoadouros.

Erguera-se

de

algumas

cavernas

de

calcário,

anteriormente estáveis, que ficavam bem abaixo da terra sólida na qual
fora construĂ­da a rua.
Mas

que

grau

de

força

fenomenal,

que

tamanho

inimaginavelmente imenso devia possuir para ser capaz de destruir nĂŁo
apenas a rua, mas também as formações rochosas naturais lá embaixo!
E para onde fora?
O buraco parecia vazio, mas Jenny sabia que aquilo devia estar
lá embaixo em algum lugar, nas regiões mais profundas, nos túneis
subterrâneos, escondendo-se do Biosan, à espera, à escuta.
Ela ergueu os olhos e viu Bryce se dirigindo para Flyte.
Um ruĂ­do vivo, um estalo, rompeu o ar. O poleiro de concreto de
Flyte mudou de posição. Ia se soltar e cair no abismo.
Bryce percebeu o perigo. Escalou um bloco inclinado de

calçamento tentando alcançar Flyte a tempo.
Jenny achou que nĂŁo conseguiria.
Então o calçamento sob seu corpo gemeu, estremeceu, e ela se
deu conta de que também estava em território perigoso. Começou a se
levantar. Debaixo dela, o concreto se partiu com uma explosĂŁo de som.

41

LĂşcifer

As sombras nas paredes da caverna modificavam-se a toda hora;
igualmente aquele que fazia as sombras. No brilho meio lunar da
lanterna a gás, a criatura era como uma coluna de fumaça densa,
retorcendo-se, informe, escura como sangue.
Embora Kale quisesse acreditar que era apenas fumaça, sabia
bem que nĂŁo era. Ectoplasma. Era isso que devia ser. Aquele material
do outro mundo de que se dizia que eram compostos os demĂ´nios, os
fantasmas e os espĂ­ritos.
Kale jamais acreditara em fantasmas. O conceito da vida depois
da morte era uma muleta para os homens mais fracos, nĂŁo para
Fletcher Kale. Mas agora...
Gene Terr estava sentado no chão, fitando a aparição. O seu
Ăşnico brinco de ouro brilhava.
Kale estava com as costas pressionadas de encontro a uma
fresca parede de calcário. Sentia-se como se estivesse fundido com a
rocha.
O cheiro repelente de enxofre ainda pairava no ar Ăşmido.
Ă€ esquerda de Kale, um homem cruzou a abertura que vinha do

primeiro cômodo do retiro subterrâneo. Não; não era um homem. Era
um dos sĂłsias de Jake Johnson. Aquele que o chamara de assassino de
bebĂŞs.
Kale emitiu um som pequeno e desesperado.
Aquela era a versão demoníaca do Johnson cujo crânio estava
semi-desprovido de carne. Um olho úmido, sem pálpebra, aparecia na
Ăłrbita ossuda, fitando Kale malevolamente. EntĂŁo o demĂ´nio se voltou
para aquela monstruosidade limosa no centro da câmara. Caminhou
até a coluna de limo ondulante, abriu os braços, abraçou a carne
gelatinosa — e simplesmente se fundiu com ela.
Kale ficou olhando, sem compreender.
Mais outro Jake Johnson apareceu. Aquele que nĂŁo tinha carne
no flanco. Para além das costelas expostas, latejava o coração
sangrento; os pulmões se expandiam. No entanto, os órgãos não se
projetavam pelas aberturas entre as costelas. Tal coisa era impossĂ­vel.
Só que isso era uma aparição, uma presença nascida do Inferno que
subira das Profundezas — bastava sentir o cheiro do enxofre, o odor de
Satanás! —, e, portanto, qualquer coisa era possível.
Kale agora acreditava.
A única alternativa para a crença era a loucura.
De um em um, os quatro sĂłsias restantes de Johnson entraram,
olhando para Kale, depois foram absorvidos pelo limo ressumbrante,
ondulante.
A lanterna Coleman emitia um som sibilante macio, contĂ­nuo.
Da carne gelatinosa do visitante do outro mundo começaram a
brotar asas negras, terrĂ­veis.
O ruĂ­do da lanterna ecoava, sibilante, nas paredes de pedra.
As asas parcialmente formadas degeneraram para dentro da
coluna de limo de que tinham brotado. Pernas insetóides começaram a
tomar forma.
Finalmente, Gene Terr falou. Quase parecia estar em transe —
sĂł que havia um brilho animado nos seus olhos.
— A gente vinha para cá, eu e alguns dos meus rapazes, duas

ou trĂŞs vezes por ano, sabe? Isto aqui Ă© um lugar perfeito para uma
festa de foder e apagar. Ninguém para escutar nada. Ninguém para ver.
Sabe?
Afinal, Jeeter desviou o olhar da criatura e fitou os olhos de
Kale. Este perguntou:
— Que porra é essa de... festa de foder e apagar?
— Ah, de dois em dois meses, às vezes até menos, uma mina
aparece e quer entrar para o Chrome, quer ser a mulher de alguém, não
importa quem, ou se contenta em ser uma piranha pra-toda-obra, que
todos os caras podem comer quando querem variar de boceta. Sabe? —
Jeeter estava sentado com as pernas cruzadas numa posição de ioga.
As mãos jaziam imóveis no colo. Parecia um Buda perverso. — Às vezes,
um de nĂłs pode estar querendo uma companheira nova, ou entĂŁo a
mina Ă© realmente um estouro, aĂ­ a gente aceita ela. Mas isso nĂŁo
acontece muitas vezes. De um modo geral, a gente manda elas darem o
fora.
No centro da caverna, as pernas insetĂłides se dissolveram na
coluna ressumbrante de limo. Dúzias de mãos começaram a se formar,
os dedos se abrindo como as pétalas de flores estranhas.
Jeeter continuou:
— Mas uma vez ou outra aparece uma mina que é uma gatona,
só que a gente não está precisando dela nem querendo ela com a
gente... o que a gente esta querendo Ă© sĂł se divertir com ela. Outras
vezes, a gente vĂŞ uma garota que fugiu de casa, sabe, um brotinho de
dezesseis anos, pedindo carona; entĂŁo a gente pega ela, nĂŁo importa se
ela quer vir ou não. A gente dá um pó ou um baseado pra ela, deixa ela
numa boa, depois traz ela para cá, bem longe de tudo, e fode ela até
arrebentar durante uns dois dias, virando a mina pelo avesso; depois,
quando nenhum de nĂłs consegue mais levantar o pau, a gente apaga
ela, de maneiras realmente interessantes.
A presença demoníaca no centro do aposento alterou-se ainda
outra vez. A infinidade de mĂŁos se dissolveu. Dezenas de bocas se
abriram em toda a sua extensĂŁo, cada uma delas cheia de presas

afiadas como navalhas.
Gene Teer lançou um olhar para esta manifestação mais recente,
mas nĂŁo pareceu assustado. Na verdade, sorriu para ela.
— Apagam elas? — perguntou Kale. — Vocês as matam?
— É. De maneiras interessantes. A gente enterra elas por aqui
também. Quem é que vai achar os corpos neste fim de mundo? É
sempre um barato. Uma curtição. Até domingo. No domingo à tardinha
a gente está muito bem na grama ao lado da cabana, bebendo e
currando uma guria, e de repente Jake Johnson sai do meio do bosque,
de bunda de fora, como se também estivesse querendo foder a piranha.
Primeiro eu pensei que poderíamos nos divertir com ele também, achei
que a gente podia apagar ele quando apagasse a garota, livrar-se da
testemunha, sabe, mas antes que a gente pudesse agarrar ele, um outro
Jake sai do meio do bosque, depois um terceiro...
— Foi isso mesmo que aconteceu comigo — disse Kale.
— ...e mais outro e mais outro. A gente atirou neles, acertou em
cheio no peito, na cara, mas eles nĂŁo caĂ­am, nem ao menos paravam,
continuavam vindo. Então Little Willie, um dos meus braços direitos,
parte para cima do mais prĂłximo e usa uma faca, mas nĂŁo adianta
nada. Em vez disso, aquele Johnson agarra o Willie e ele nĂŁo consegue
se soltar, e então de repente... bem... Johnson não é mais Johnson. É
apenas essa coisa, essa coisa danada sem forma nenhuma. A coisa
consome o Willie... consome ele como... bem, porra, ela dissolve o Willie,
cara. E a coisa fica cada vez maior, e depois vira o maior lobo da
parĂłquia...
— Jesus — falou Kale.
—

...o maior lobo que já se viu, e depois os outros Jakes se

transformaram em outras coisas, como lagartos grandes com bocas
horrĂ­veis, mas um deles nĂŁo era um lobo ou um lagarto, era uma coisa
que nem consigo descrever, e eles todos vem atrás da gente. Não
podemos pegar as nossas motos, cara, porque essas coisas estĂŁo entre
a gente e elas, e entĂŁo elas matam mais dois dos meus rapazes, e depois
começam a dirigir a gente morro acima.

—

Para as cavernas — disse Kale. — Foi isso o que fizeram

comigo.
— A gente nem sabia dessas cavernas — falou Terr. — Então a
gente entra aqui, na maior escuridão, e as coisas começam a matar
mais de nĂłs, cara, matar a gente no escuro... As bocas cheias de presas
sumiram.
— ...e há uma gritaria danada, sabe, e eu não podia ver onde
estava, entĂŁo me enfiei num canto para me esconder, torcendo para que
nĂŁo me achassem, embora tivesse a certeza de que achariam.
O tecido manchado de sangue pulsava, ondulava.
— ...e depois de algum tempo a gritaria acaba. Está todo mundo
morto. Tudo quieto... e entĂŁo eu escuto alguma coisa se mexendo.
Kale estava escutando o que Terr dizia, mas de olho na coluna
de limo. Um tipo de boca diferente apareceu, como se fosse uma
sugadora, do tipo que se veria num peixe exĂłtico. Ficou aspirando o ar
sofregamente, como que em busca de carne.
Kale estremeceu. Terr sorriu.
Outras bocas sugadoras começaram a se formar por toda a
criatura.
Ainda sorrindo, Jeeter falou;
— Então, eu estou no escuro e escuto um movimento, mas não
vem nada para cima de mim. Em vez disso, vem uma luz. Fraquinha, no
começo, depois mais forte. É um dos Johnsons, com uma lanterna
Coleman. Ele manda eu ir com ele. Eu nĂŁo quero ir. Ele agarra o meu
braço, e a mão dele é fria, cara. Forte. Ele não me solta, me faz vir até
aqui, onde tem aquela coisa saindo de dentro do chĂŁo, e eu nunca vi
nada parecido na vida, nunca, em parte alguma. Quase me borro. Ele
me faz sentar, deixa a lanterna comigo, depois vai para dentro daquele
limo ali, se funde com ele, e eu fico aqui sozinho com a coisa, que
começa imediatamente a sofrer todo tipo de modificação.
Ainda estava sofrendo modificações, segundo Kale via. As bocas
sugadoras desapareceram. Chifres pontudĂ­ssimos formaram-se ao longo
dos flancos revolvedores da criatura; dĂşzias de chifres, farpados ou nĂŁo,

numa variedade de texturas e cores, erguendo-se da massa gelatinosa.
— Então — continuou Terr —, tem mais ou menos um dia e
meio que eu estou sentado aqui, olhando para ela, exceto quando
cochilo ou vou até o outro cômodo comer qualquer coisa. De vez em
quando a coisa fala comigo. Parece saber quase tudo que Ă© possĂ­vel
saber a meu respeito, coisas que sĂł os meus irmĂŁos motoqueiros mais
chegados sabiam. Sabe de todos os corpos enterrados aqui, e sabe
daqueles filhos da mĂŁe mexicanos que apagamos quando tiramos o
ponto de tĂłxico deles, e sabe do tira que cortamos em pedacinhos faz
dois anos, e, sabe, nem os outros tiras desconfiam que tivemos alguma
coisa a ver com isso. Essa coisa aĂ­, essa coisa estranha e linda, sabe de
todos os meus segredinhos, cara. E o que nĂŁo sabe pede para ouvir, e
escuta de verdade. E aprova o que faço, cara. Nunca pensei que ia
realmente

encontrá-lo.

Sempre

desejei,

mas

nunca

pensei

que

encontraria. Há anos que o venho adorando, cara, e a turma toda
costumava rezar essas missas negras uma vez por semana, mas eu
nunca pensei que ele realmente fosse aparecer para mim. A gente
ofereceu sacrifícios para ele, até sacrifícios humanos, e cantamos todos
os cânticos certos, mas nunca fomos capazes de fazer aparecer nada.
Então isso aqui é um milagre. — Jeeter riu. — A minha vida toda eu fiz
as obras dele, homem. Rezei para ele a vida toda, rezei para a Besta.
Agora ela está aqui. É uma porra dum milagre. Kale não queria
compreender.
— Estou perdidão. Terr fitou-o.
— Não, não está. Você sabe do que estou falando, cara. Você
sabe. — Kale ficou calado. — Você estava pensando que isso devia ser
um demĂ´nio, algo vindo do Inferno. E vem do Inferno, cara. Mas nĂŁo Ă©
nenhum demônio. É Ele. Ele. Lúcifer.
Por entre as dĂşzias de chifres pontiagudos, pequenos olhos
vermelhos se abriam na carne tenebrosa. Uma infinidade de olhinhos
penetrantes brilhavam escarlates com Ăłdio e conhecimento maligno.
Terr fez sinal a Kale para se aproximar.
— Ele permite que eu continue vivo porque sabe que sou Seu

discĂ­pulo verdadeiro.
Kale não se mexeu. Seu coração batia com força. Não era o medo
que libertava a adrenalina nele. NĂŁo apenas o medo. Havia outra
emoção que o balançava, que o assoberbava, uma emoção que ele não
conseguia identificar direito.
—

Ele me deixou viver — repetiu Jeeter — porque sabe que

sempre faço a Sua obra. Alguns dos outros... talvez não fossem
devotados com tanta pureza quanto eu Ă s Suas obras, entĂŁo Ele os
destruiu. Mas eu... eu sou diferente. Ele está me deixando viver para
fazer a Sua obra. Talvez me deixe viver para sempre, cara.
Kale pestanejou.
—

E está deixando você viver pelo mesmo motivo, sabe —

continuou Jeeter. — Claro. Deve ser. Claro. Porque você faz a Sua obra.
Kale fez que não com a cabeça.
— Nunca fui um... um adorador do Diabo. Nunca acreditei.
—

NĂŁo importa. Ainda faz a Sua obra, e curte o que faz. Os

olhos vermelhos fitavam Kale.
—

Você matou a sua mulher — disse Jeeter. Kale assentiu,

muda-mente. — Cara, matou até mesmo o seu filhinho. Se isso não é a
Sua obra, o que Ă© entĂŁo?
Nenhum dos olhos brilhantes piscou, e Kale começou a
identificar a emoção que brotava dentro dele. Euforia, respeito... êxtase
religioso.
— Sabe-se lá o que mais você fez em todos esses anos — disse
Jeeter. — Deve ter feito um bocado de coisas que eram a Sua obra.
Quem sabe quase tudo o que vocĂŞ fez foi obra Sua. VocĂŞ Ă© igual a mim,
cara. Nasceu para ser seguidor de Lúcifer. Você e eu, está nos nossos
genes. Nos nossos genes, cara.
Finalmente, Kale afastou-se da parede.
— É isso aí — falou Jeeter. — Venha para cá. Venha para perto
do Mestre.
Kale estava dominado pela emoção. Sempre soubera que era
diferente dos outros homens. Melhor. Especial. Sempre soubera, mas

não esperara por isso. No entanto, cá estava, a prova irrefutável de que
era um escolhido. Uma alegria feroz lhe fez expandir o coração.
Ajoelhou-se ao lado de Jeeter, perto da presença milagrosa.
Finalmente, chegara.
Chegara o seu momento.
Eis aqui, pensou Kale, o meu destino.

42

O outro lado do inferno

Por baixo de Jenny, o concreto estalou com um som como um
disparo de canhĂŁo.
Bum!
Ela recuou, atropeladamente, mas nĂŁo foi suficientemente
rápida. O calçamento se moveu e começou a cair de sob o seu corpo.
Ela ia cair no buraco, Cristo, nĂŁo, se nĂŁo morresse da queda,
entĂŁo aquilo sairia do seu esconderijo e a pegaria, arrastando-a bem
para o fundo e devorando-a antes que qualquer um pudesse tentar
salvá-la.
Tal Whitman agarrou os tornozelos dela com firmeza. Ela estava
pendurada na cova, de cabeça para baixo. O concreto desabou para
dentro do buraco, caindo no fundo com um estrondo. O calçamento sob
os pés de Tal balançou, começou a ceder, e ele quase soltou Jenny.
EntĂŁo ele recuou, puxando-a consigo, para longe da beirada que
desmoronava. Quando ela ficou novamente em terra firme, Tal ajudou-a
a ficar de pé.
Embora ela soubesse que era biologicamente impossĂ­vel o seu

coração subir até a garganta, ainda assim o engoliu.
— Meu Deus — exclamou, ofegante. — Obrigada! Tal, se você
nĂŁo tivesse...
—

Serviço de rotina — retrucou ele, embora quase a tivesse

acompanhado na queda.
Foi uma sopa, pensou Jenny, lembrando-se da histĂłria que
Bryce lhe contara sobre Tal.
Viu que Timothy Flyte, do outro lado do buraco, nĂŁo ia ter a
mesma sorte que ela tivera. Bryce não ia conseguir alcançá-lo a tempo.
O calçamento sob o corpo de Flyte cedeu. Um bloco de uns dois
metros de comprimento caiu para dentro do buraco, levando consigo o
arqueólogo. Não desabou até o fundo, como acontecera com o concreto
do lado de Jenny. Do lado oposto, o buraco tinha uma parede inclinada,
e o bloco desceu por ela, deslizou nove metros até a base e acabou
pousando num monte de pedregulhos.
Flyte ainda estava vivo. Gritava de dor.
— Temos de tirá-lo de lá depressa — falou Jenny.
— Nem vale a pena tentar — disse Tal.
— Mas...
— Olhe!
Aquilo veio buscar Flyte. Explodiu de dentro de um dos tĂşneis
que pontilhavam o fundo do buraco e que, aparentemente, levavam a
cavernas profundas. Um pseudópode maciço de protoplasma amorfo
ergueu-se (rĂŞs metros no ar, estremeceu, caiu ao chĂŁo, libertou-se do
corpo-matriz escondido lá embaixo e transformou-se numa aranha
obscenamente gorda, do tamanho de um pĂ´nei. Estava apenas a trĂŞs ou
quatro metros de Timothy Flyte, e foi escalando os blocos destruĂ­dos do
calçamento, dirigindo-se para ele com intenção assassina.
Esparramado no trenĂł de concreto que o fizera descer para
dentro da cova, impotente, Timothy viu a aranha vir vindo. A sua dor foi
afogada numa onda de terror.
As pernas negras, longas e finas moviam-se com facilidade nas
ruĂ­nas irregulares, e a coisa andou com muito mais rapidez do que o

faria um homem. Havia milhares de pêlos negros eriçados feito arame
naquelas pernas frágeis. A barriga bulbosa era macia, lustrosa, pálida.
TrĂŞs metros; dois metros e meio.
Fazia um ruĂ­do de gelar o sangue, parte guincho, parte silvo.
Dois metros. Um metro e meio.
A aranha parou na frente de Timothy, e ele se viu fitando um par
de mandĂ­bulas imensas, maxilares quitinosos de ponta afiada.
A porta entre a loucura e a sanidade começou a se abrir na sua
mente.
De repente, uma chuva leitosa caiu em cima de Timothy. Por um
instante ele pensou que a aranha estivesse esguichando veneno em
cima dele. Depois, deu-se conta de que era o Biosan-4. Eles estavam lá
em cima, na beirada do buraco, apontando para baixo os seus
pulverizadores.
O fluido também respingou na aranha. Manchas brancas
começaram a pintar o seu corpo negro.
O pulverizador de Bryce fora danificado por um pedregulho. NĂŁo
conseguia soltar uma gota do fluido de dentro dele.
Praguejando, ele desafivelou o arnĂŞs e se livrou dele, largando o
tanque na rua. Enquanto Tal e Jenny esguichavam o Biosan do outro
lado do buraco, Bryce correu até a sarjeta e apanhou as duas caixas de
metralha sobressalentes cheias de solução rica em bactérias. Elas
tinham rolado pelo calçamento, para longe do concreto em erupção,
vindo parar junto ao meio-fio. Cada caixa de metralha tinha uma alça, e
Bryce agarrou as duas. Eram pesadas. Ele correu de volta Ă  beirada do
buraco, hesitou, depois foi em frente e desceu a encosta até o fundo.
Deu um jeito de se manter de pé e de não largar nenhuma das duas
caixas de metralha. NĂŁo se dirigiu para Flyte. Jenny e Tal estavam
fazendo tudo o que era possĂ­vel para destruir a aranha. Em vez disso,
Bryce foi serpenteando em meio aos pedregulhos caĂ­dos, dirigindo-se
para o buraco de onde o transmorfo tinha despachado este fantasma
mais recente.
Timothy Flyte, apavorado, viu a aranha que o acossava

metamorfosear-se num cĂŁo imenso. NĂŁo era simplesmente um cachorro;
era um CĂŁo dos Infernos, com um rosto parcialmente canino e
parcialmente humano. Seu pĂŞlo (onde nĂŁo estava respingado com
Biosan) era bem mais preto do que fora a aranha; suas patas grandes
tinham garras farpadas, e seus dentes eram do tamanho dos dedos de
Timothy. O seu hálito fedia a enxofre e a algo pior.
As lesões começaram a aparecer no cão enquanto a bactéria
consumia a carne amorfa, e Timothy sentiu nascer a esperança.
Olhando para ele, o cĂŁo falou com uma voz que parecia cascalho
descendo por uma rampa de lata:
— Eu pensei que você fosse meu Mateus, mas você foi meu
Judas.
As mandĂ­bulas imensas se abriram.
Timothy berrou.
Enquanto sucumbia aos efeitos degenerativos das bactérias, a
coisa conseguiu cerrar os dentes e morder-lhe selvagemente o rosto.
Parado na beirada da cova, olhando para baixo, Tal teve a
atenção dividida entre o medonho espetáculo do assassinato de Flyte e
a missĂŁo suicida de Bryce com as caixas de metralha.
Flyte. Embora o cĂŁo fantasma estivesse se dissolvendo enquanto
as bactérias faziam o seu efeito ácido, não estava morrendo com rapidez
suficiente. Mordeu Flyte no rosto, depois no pescoço.
Bryce. A seis metros do Cão dos Infernos, Bryce alcançara o
buraco de onde brotara o protoplasma alguns minutos antes. Ele
começou a desatarraxar a tampa de uma das caixas de metralha.
Flyte. O cão devorava vorazmente a cabeça de Flyte. As patas
traseiras do animal já tinham perdido a sua forma e estavam
espumando enquanto se decompunham, mas o fantasma fazia força
para manter a sua forma, para poder retalhar e mastigar Flyte o
máximo de tempo possível.
Bryce. Tirou a tampa da primeira caixa de metralha. Tal escutou
o ruído que ela fez ao bater num pedaço de concreto, quando Bryce a
jogou fora. Tal tinha certeza de que algo ia saltar de dentro do buraco,

subindo das cavernas lá embaixo, e agarrar Bryce num abraço mortal.
Flyte. Parara de gritar.
Bryce. Inclinou a caixa de metralha e derramou a solução de
bactérias dentro dos túneis subterrâneos que ficavam sob o piso da
cova.
Flyte estava morto.
A única coisa que restava do cão era a sua imensa cabeça.
Embora sem corpo, embora se abrindo em feridas e supurando, ele
ainda continuava mordendo o arqueĂłlogo morto.
Lá embaixo, Timothy Flyte se transformara em restos mortais
sangrentos.
Parecia ser um velhinho tão simpático.
Tremendo de repulsĂŁo, Lisa, que estava sozinha no seu lado da
cova, afastou-se da beirada. Chegou Ă  sarjeta, andou por ela,
finalmente se deteve, ficou ali parada, tremendo...
...até que se deu conta de que estava em pé sobre um bueiro.
Lembrou-se dos tentáculos que tinham surgido de dentro do bueiro,
prendendo e matando Sara Yamaguchi. Deu um pulo rápido para cima
da calçada.
Lançou um olhar aos prédios às suas costas. Estava perto de um
dos corredores de serviço cobertos entre duas lojas. Fitou o portão
fechado com apreensĂŁo.
Será que havia algo à espreita neste corredor? De olho nela?
Lisa já ia voltar para a rua de novo, viu o bueiro, e ficou em cima
da calçada.
Deu um passo hesitante para a esquerda, depois moveu-se para
a direita, depois hesitou de novo. Havia portas e portões de serviço dos
dois lados. NĂŁo fazia sentido mudar de lugar. Nenhum outro era mais
seguro.
Enquanto começara a derramar o Biosan-4 da caixa de metralha
azul dentro do buraco no piso da cova, Bryce pensou ter visto um
movimento na penumbra lá embaixo. Esperou ver um fantasma brotar e
agarrá-lo, levando-o para o seu covil subterrâneo. Mas esvaziou todo o

conteúdo do cilindro dentro do buraco e nada veio atrás dele.
Puxando o segundo cilindro, suando em bicas, foi abrindo
caminho por entre os blocos irregulares e as pontas agudas de concreto
e o encanamento quebrado. Rodeou com cuidado um cabo de luz
elétrica arrebentado e crepitante, saltou sobre uma pequena poça que
tinha se formado ao lado de um cano de água que vazava. Passou pelo
corpo destroçado de Flyte e pelos restos fedorentos do fantasma
decomposto que o matara.
Quando alcançou o buraco seguinte no piso da cova, agachouse, desatarraxou a tampa da segunda caixa de metralha e derramou
todo o conteúdo na câmara lá embaixo. Vazio. Jogou fora o cilindro,
afastou-se do buraco e correu. Estava ansioso para sair da cova antes
que um fantasma viesse em seu encalço como aquele outro viera no
encalço de Flyte.
Estava na terça parte da subida da parede inclinada da cova,
achando a escalada consideravelmente mais difĂ­cil do que imaginara,
quando escutou algo terrĂ­vel Ă s suas costas.
Jenny estava observando Bryce na sua difĂ­cil escalada para a
superfície. Prendia a respiração, com medo de que ele não fosse
conseguir.
De repente, seu olhar foi atraĂ­do para o primeiro buraco no qual
ele derramara o Biosan. O transmorfo brotou de sob a terra, jorrou
sobre o piso da cova. Parecia uma onda de águas de esgoto espessas,
solidificadas. Exceto onde fora atingido pela solução de bactérias,
estava agora mais escuro do que fora antes. Ondulava, retorcia-se e
revolvia-se mais agitadamente do que nunca, o que talvez fosse um
sinal de degeneração. A mancha leitosa da infecção estava se
espalhando visivelmente pela criatura: bolhas se formavam, inchavam,
estouravam; feridas feias se abriam e deixavam vazar um fluido amarelo
aguado. Dentro de poucos segundos, pelo menos uma tonelada de carne
amorfa jorrara do buraco. Toda ela estava aparentemente tomada pela
moléstia, e ainda assim ela continuava vindo, mais rápido ainda, como
a lava de um vulcão em ebulição, um jorrar alucinado de tecido vivo e

gelatinoso. A criatura começou também a emergir de outro buraco. A
grande massa ressumbrante se espalhava sobre o entulho, formava
pseudópodes — braços informes que se agitavam — que se erguiam nos
ares mas logo caĂ­am ao chĂŁo, espumando, em espasmos. E entĂŁo, de
outros buracos ainda, saiu um som medonho: as vozes de milhares de
homens, mulheres e crianças e animais, todos gritando de dor, horror e
puro desespero. Era um lamento agoniado de tanto sofrimento que
Jenny não podia suportar — especialmente quando algumas vozes
pareciam estranhamente familiares, como velhos amigos e bons
vizinhos. Ela levou as mĂŁos aos ouvidos, mas de nada adiantou; o
rugido da multidĂŁo que sofria ainda penetrava. Era, Ă© claro, o grito de
morte de apenas uma criatura, o transmorfo, mas como aquilo nĂŁo
tinha voz própria, era forçado a empregar as vozes de suas vítimas,
expressando suas emoções e terror inumanos intensamente humanos.
A coisa foi cruzando o entulho. Na direção de Bryce.
A meio caminho da encosta, Bryce ouviu o barulho Ă s suas
costas mudar do lamento de mil vozes solitárias para um rugido de
Ăłdio.
Teve a coragem de olhar para trás. Viu que três ou quatro
toneladas do tecido amorfo tinham jorrado para dentro da cova, e que
um volume ainda maior continuava esguichando, como se os intestinos
da terra estivessem se esvaziando. A carne do inimigo antigo estava
estremecendo, saltando, explodindo em lesões leprosas. Tentou criar
fantasmas alados, mas estava fraco ou instável demais para imitar
qualquer coisa com competĂŞncia. As aves e insetos semiformados ou se
decompunham numa matéria semelhante ao pus ou desabavam de
volta dentro da poça de tecido debaixo deles. Mesmo assim, o inimigo
antigo vinha vindo na direção de Bryce, vindo num frenesi trêmulo e
revolvedor. Tinha fluído quase até a base da encosta, e agora estava
enviando tentáculos que se degeneravam, mas que ainda tinham poder,
na direção dos seus calcanhares.
Ele lhe deu as costas e redobrou os seus esforços para chegar à
beirada do abismo.

As duas grandes janelas do Towne Bar and Grille, na frente do
qual Lisa estava parada, explodiram sobre a calçada. Um fragmento de
vidro cortou a sua testa, mas, fora disso, ela nĂŁo se machucou, pois a
maior parte dos fragmentos caiu na calçada entre ela e o prédio.
Uma massa obscena e imprecisa se projetava pelas janelas
quebradas.
Lisa recuou, tropeçando, e quase caiu do meio-fio.
A carne fétida e limosa parecia preencher o prédio inteiro de
onde se projetara.
Algo se enroscou no tornozelo de Lisa.
MĂ©dias de tecido amorfo tinham se esgueirado pela grade do
bueiro, na sarjeta Ă s suas costas. Tinham segurado Lisa.
Aos

berros,

ela

tentou

se

soltar

—

e

notou

que

foi

surpreendentemente fácil fazê-lo. Os tentáculos finos, semelhantes a
minhocas, caíram ao chão. Lesões se abriram em toda a sua extensão.
Fenderam-se,

e

em

segundos

estavam

reduzidos

a

uma

papa

inanimada.
A massa repulsiva que se projetara do bar também sucumbia às
bactérias. Pedaços grandes de tecido espumoso se soltavam e se
espalhavam pela calçada. Mesmo assim ele continuava a jorrar,
formando tentáculos, e os tentáculos cortavam os ares, à procura de
Lisa, mas do modo tentativo com que o faria algo doente e cego.
Tal viu as janelas do Towne Bar and Grille explodirem do outro
lado da rua, mas antes que pudesse dar um passo para ajudar Lisa, as
janelas às suas costas também explodiram, no saguão e no refeitório do
Hilltop, e ele se voltou, surpreso; entĂŁo as portas da frente do hotel se
escancararam, e tanto das portas quanto das janelas saĂ­ram toneladas
do protoplasma que pulsava (Oh, Jesus, mas que tamanho tinha essa
coisa amaldiçoada? O tamanho da cidade inteira? O tamanho da
montanha de onde tinha saĂ­do? Infinito?) e se agitava, fazendo brotar
dezenas de tentáculos inquietos enquanto se adiantava, marcado pela
moléstia mas notavelmente mais ativo do que a extensão de si próprio
que mandara no encalço de Bryce na cova; antes que Tal pudesse

erguer o esguicho do seu : pulverizador e apertar a alavanca de disparo
de pressão, os tentáculos frios o encontraram e agarraram com força
desalentadora; então ele estava sendo arrastado pelo chão na direção do
hotel, na direção da parede ressumbrante de limo que ainda irrompia
das janelas estilhaçadas, e os tentáculos começaram a queimar através
das suas roupas, ele sentiu a pele ardendo, empolando, soltou um uivo;
os ácidos digestivos estavam lhe carcomendo a carne, ele sentiu ferros
de marcar em brasa no peito e nos braços, sentiu uma linha de fogo ao
longo da coxa esquerda, lembrou-se de como um tentáculo decapitara
Frank Autry por meio do ácido através do pescoço do homem, lembrouse de sua tia Becky, e...
Jenny se desviou de um tentáculo que tentara pegá-la.
Borrifou Tal e todos os apêndices sinuosos — três deles — que o
mantinham preso.
Tecido em decomposição caiu dos tentáculos, mas eles não se
degeneraram inteiramente.
Mesmo onde ela nĂŁo tinha borrifado, a carne da criatura se abria
em novas feridas. O monstro todo estava contaminado; estava sendo
consumido de dentro para fora. NĂŁo podia durar mais muito tempo.
Talvez apenas o tempo suficiente para matar Tal Whitman.
Ele gritava, se debatia.
Desesperada, Jenny largou a mangueira do pulverizador e se
acercou mais de Tal. Agarrou um dos tentáculos que o seguravam e
tentou livrá-lo dele.
Outro tentáculo tentou agarrá-la.
Ela se livrou da sua tentativa desajeitada e se deu conta de que,
se podia desviar-se dele com tanta facilidade, a criatura devia estar
perdendo rapidamente a sua batalha contra as bactérias.
Pedaços do tentáculo saíam nas suas mãos, nacos de tecido
morto que fediam terrivelmente.
Com engulhos, ela o dilacerou com mais força ainda, e o
tentáculo finalmente libertou Tal; então os outros dois fizeram o mesmo,
e ele desabou como um trapo no chĂŁo, arfando e sangrando.

Os tentáculos cegos e tateantes não tinham tocado em Lisa.
RetraĂ­ram-se para dentro da massa nojenta que se derramara pela
frente do Towne Bar and Grille. Agora, aquela monstruosidade
arquejante sofria de espasmos e ia lançando fora nacos infectados e
espumantes de si mesma.
—

Está morrendo — disse Lisa em voz alta, embora não

houvesse ninguém por perto o suficiente para escutá-la. — O Diabo está
morrendo.
Bryce se arrastou de barriga durante o resto do trajeto quase
vertical na parede da cova. Finalmente chegou Ă  beirada e conseguiu se
içar para fora.
Olhou para baixo, para o local de onde viera. O transmorfo nĂŁo
tinha chegado perto dele. Um lago incrivelmente grande, do tecido
amorfo, gelatinoso, jazia no fundo da cova, derramando-se por cima e
ao redor do entulho, mas estava virtualmente inativo. Umas poucas
formas humanas e animais ainda tentaram se erguer, mas o inimigo
antigo estava perdendo o seu talento para a imitação. Os fantasmas
eram imperfeitos e apáticos. O transmorfo ia desaparecendo lentamente
sob uma camada do seu próprio tecido morto e em decomposição.
Jenny se ajoelhou ao lado de Tal.
Os braços e o peito dele estavam marcados por feridas lívidas.
Uma ferida que purgava também cobria toda a extensão da sua coxa
esquerda.
— Está doendo? — perguntou ela.
— Quando a coisa estava me segurando, doía, e muito. Agora
nem tanto — disse ele, embora a sua expressão não deixasse dúvidas de
que ainda estava sofrendo.
O monte enorme de limo que se projetara do Hilltop agora estava
começando a se retirar, retraindo-se para dentro dos encanamentos de
onde se erguera, deixando para trás os resíduos fedorentos de sua
carne em decomposição.
Uma retirada mefistofélica. De volta ao outro mundo. De volta ao
outro lado do Inferno.

Ciente de que nĂŁo estavam correndo nenhum perigo iminente,
Jenny examinou mais atentamente as feridas de Tal.
— Muito ruim? — perguntou ele.
— Não tão ruim quanto eu imaginaria. — Forçou-o a se deitar.
— A pele foi consumida em alguns lugares. E um pouco do tecido
adiposo . por baixo.
— Veias? Artérias?
—

NĂŁo. Ele estava fraco quando o pegou, fraco demais para

queimar tĂŁo fundo. Um bocado de veias capilares danificadas no tecido
superficial. Esta é a causa do sangramento. Mas nem há tanto sangue
quanto seria de se esperar. Vou pegar a minha maleta logo que
acharmos que é seguro entrar, e prevenir uma infecção. Acho que você
talvez deva ter que ficar no hospital por uns dois dias, em observação,
só para termos certeza de que não há nenhuma reação alérgica
retardada ao ácido ou a qualquer toxina. Mas estou achando que você
vai ficar Ăłtimo.
— Sabe de uma coisa? — perguntou ele.
— O quê?
— Você está falando como se estivesse tudo terminado.
Jenny pestanejou. Olhou para o hotel. Podia ver o refeitĂłrio
através das janelas estilhaçadas. Não havia sinal do inimigo antigo.
Virou-se e olhou para o outro lado da rua. Lisa e Bryce estavam
vindo para o lado de cá da cova.
—
terminado.

Acho que está — disse para Tal. — Acho que está tudo

43

ApĂłstolos

Fletcher Kale nĂŁo estava mais com medo. Sentou-se ao lado de
Jeeter e ficou vendo a carne satânica metamorfoseando-se em formas
ainda mais bizarras.
Aos poucos, tomou consciĂŞncia de que a barriga da sua perna
direita

estava

coçando.

Ficou

coçando

o

local

continuada

e

distraidamente, enquanto observava a transformação verdadeiramente
milagrosa do visitante demonĂ­aco.
Confinado nas cavernas desde domingo, Jeeter nada sabia do
que se tinha passado em Snowfield. Kale contou o pouco que sabia, e
Jeeter ficou fascinado.
— Sabe o que é, é um sinal. O que Ele fez em Snowfield é como
um sinal dizendo ao mundo que Ă© chegada a Sua hora. O Seu reinado
vai começar em breve. Vai governar a terra por mil anos. A própria
BĂ­blia diz isso, cara... mil anos de Inferno na terra. Todo mundo vai
sofrer... menos vocĂŞ e eu e outros como nĂłs. Porque somos os
escolhidos, cara. Somos os Seus apĂłstolos. Vamos governar a terra com
LĂşcifer e ela vai nos pertencer, e vamos poder fazer qualquer porra com
qualquer pessoa que tivermos vontade. Qualquer pessoa. E ninguém vai
tocar na gente, ninguém, nunca. Está compreendendo? — perguntou
Terr, incisivamente, agarrando o braço de Kale, a voz se alteando de
emoção, tremendo de paixão evangélica, uma paixão que facilmente se
comunicou a Kale e fez nascer nele um ĂŞxtase perverso, estonteante.
Com a mão de Jeeter no braço, Kale imaginou que podia sentir o
olhar quente do olho tatuado de vermelho e amarelo. Era um olho
mágico, que espiava para dentro da sua alma e reconhecia um certo
parentesco sombrio.

Kale pigarreou, coçou o tornozelo, coçou a barriga da perna.
Falou:
— É. É, estou compreendendo. De verdade.
A coluna de limo no centro do aposento começou a formar uma
cauda feito um chicote. Asas emergiram, abriram-se, agitaram-se uma
vez. Braços cresceram, grandes e sinuosos. As mãos eram enormes,
com dedos potentes que terminavam em garras. No alto da coluna, um
rosto se formou na massa ressumbrante: queixo e maxilares como
granito esculpido; uma boca rasgada de lábios finos, dentes tortos e
amarelos, presas viperinas; um nariz como o focinho de um porco; olhos
alucinados, carmesim, nem ao menos remotamente humanos, como os
olhos em prisma de uma mosca. Chifres brotaram na testa, uma
concessão às concepções dos mitos cristãos. O cabelo parecia feito de
vermes;

brilhavam,

gordos

e

preto-esverdeados,

retorcendo-se

continuamente em nĂłs emaranhados.
A boca cruel se abriu. O Diabo falou:
— Vocês acreditam?
— Sim — disse Terr, com adoração. — Você é meu senhor.
— Sim — disse Kale, com voz trêmula. — Acredito. — Coçou a
barriga da perna direita. — Acredito.
— Vocês são meus? — perguntou a aparição.
— Sim, para sempre — disse Terr, e Kale concordou.
— Alguma vez me abandonarão? — perguntou.
— Não.
— Nunca.
— Querem me agradar?
— Sim — respondeu Terr, e Kale falou:
— Qualquer coisa que queira.
— Daqui a pouco eu partirei — disse a manifestação. — Ainda
não chegou a minha hora de governar. Esse dia chegará. Em breve. Mas
há condições a serem atendidas, profecias a serem cumpridas. Então eu
voltarei de novo, nĂŁo apenas para dar um sinal para toda a
humanidade, mas para ficar por mil anos. Até lá, eu deixarei vocês com

a proteção do meu poder, que é vasto; ninguém será capaz de ferir ou
frustrar vocĂŞs. Eu lhes darei a vida eterna. Prometo que, para vocĂŞs, o
Inferno será um local de grande prazer e recompensas enormes. Em
troca, vocĂŞs terĂŁo que completar cinco tarefas.
Ele lhes disse o que queria que fizessem para provar o seu valor
e agradá-lo. Enquanto falava, abriu-se em pústulas, erupções e lesões
que purgavam um lĂ­quido fino e amarelo.
Kale ficou pensando o que poderiam significar todas aquelas
feridas, depois se deu conta de que LĂşcifer era o pai de todas as
moléstias. Talvez esse fosse um lembrete nada sutil das pestes terríveis
que poderia infligir a eles se nĂŁo estivessem dispostos a cumprir as
cinco tarefas.
A carne espumou, se dissolveu. Pedaços dela caíram ao chão.
Outros foram lançados contra as paredes enquanto a figura se agitava e
se retorcia. A cauda do Diabo se soltou do corpo principal e se
contorceu no chĂŁo; dentro de segundos estava reduzida a uma papa
inanimada que fedia a morte.
Quando terminou de dizer o que queria deles, Ele perguntou:
— Temos um trato?
— Sim — disse Terr, e Kale falou:
— Sim, um trato.
O rosto de Lúcifer, coberto de feridas que purgavam, dissolveuse. Os chifres e as asas também se derreteram. Revolvendo-se, vazando
uma pasta tipo pus, a coisa meteu-se pelo chĂŁo adentro, desapareceu
no rio lá embaixo.
Estranhamente, o tecido morto malcheiroso nĂŁo desapareceu. O
ectoplasma devia desaparecer quando a presença sobrenatural tinha
desaparecido, mas permanecia ali: nojento, nauseante, brilhando Ă  luz
da lanterna de gás.
Aos poucos, o êxtase de Kale foi desaparecendo. Ele começou a
sentir o frio irradiando-se do calcário, penetrando pelos fundilhos das
suas calças.
Gene Terr tossiu:

— Ora... ora, vejam só... não foi um barato?
Kale cocava a barriga da perna. Por baixo da coceira, havia agora
um pontinho latejante de dor.
A criatura chegara ao fim do seu período de alimentação. Na
verdade, alimentara-se em excesso. Pretendia mover-se na direção do
mar ainda hoje, mais tarde através de uma série de cavernas, canais e
cursos d'água subterrâneos. Queria viajar para além do limiar do
continente, para dentro dos fossos oceânicos. Inúmeras vezes antes
passara por seus períodos de letargia — que às vezes duravam muitos
anos — nas profundezas frescas e escuras do mar. Lá embaixo, onde a
pressão era tão grande que poucas formas de vida podiam sobreviver, lá
embaixo onde a falta de luz e o silĂŞncio absoluto forneciam pouco
estĂ­mulo, o inimigo antigo conseguia tornar mais lentos os seus processos
metabólícos; lá embaixo, podia entrar num estado semelhante ao sonho
que tanto desejava, no qual podia ruminar em perfeita solidĂŁo.
Mas jamais alcançaria o mar. Nunca mais. Estava morrendo.
O conceito de sua prĂłpria morte era tĂŁo novo que a criatura nĂŁo se
adaptara ainda Ă  realidade sombria. Na subestrutura geolĂłgica da
Snowtop Mountain, o transmorfo continuou a largar pedaços infectados
de si mesmo. Ele foi penetrando cada vez mais fundo, cruzando o rio do
outro mundo que corria na escuridĂŁo tenebrosa, mais fundo ainda,
descendo cada vez mais para as regiões infernais da terra, para as
câmaras de Orcus, Plutão, Osíris, Érebo, Minos, Loki, Satanás. Cada vez
que acreditava estar livre do microorganismo devorador, uma sensação
estranha de formigamento surgia em algum lugar do tecido amorfo, uma
sensação de coisa errada, e então vinha uma dor bem diferente da dor
humana, e ele era forçado a se livrar de mais carne infectada. Foi ainda
mais fundo, penetrou na Geena, no Sheol, no Abadon, no Inferno. No
decorrer dos séculos, assumira ansiosamente o papel de Satanás e de
outras figuras malignas que os homens lhe atribuĂ­ram, e se divertia
brincando com as superstições deles. Agora, estava condenado a um
destino consistente com a mitologia que ajudara a criar. Tinha uma
consciĂŞncia amarga desta ironia. Fora arremessado para baixo. Fora

amaldiçoado. Viveria na escuridão e no desespero pelo resto da vida...
que poderia ser medido em horas.
Pelo menos deixara para trás dois apóstolos. Kale e Terr. Eles
continuariam a sua obra mesmo depois que ele tivesse deixado de
existir. Espalhariam o terror e se vingariam. Eram perfeitamente
adequados para o serviço.
Agora, reduzido somente a um cérebro e um mínimo de tecido de
apoio, o transmorfo se encolheu num nicho etoniano de rochas
densamente agrupadas e ficou esperando o fim. Passou os seus Ăşltimos
minutos espumando de Ăłdio, furioso com toda a humanidade.
Kale levantou a perna da calça e olhou para a panturrilha de sua
perna direita. À luz da lanterna, viu dois pontinhos vermelhos. Estavam
inchados, cocavam e eram muito sensĂ­veis.
— Mordidas de insetos — falou. Gene Terr olhou.
— Carrapatos. Eles se enfiam sob a pele. A coceira só vai passar
quando você tirar eles daí. Faça eles virem para fora com um cigarro.
— Tem algum?
— Tenho uns baseados — riu-se Terr. — Funciona do mesmo
jeito, cara, e os carrapatos vĂŁo morrer felizes.
Eles fumaram os baseados e Kale usou a ponta ardente do seu
para trazer para fora os carrapatos. NĂŁo doeu muito.
—

No mato — falou Terr —, fique com as pernas das calças

enfiadas nas botas.
— Elas estavam enfiadas nas minhas botas.
— É? Então como é que os carrapatos se meteram por baixo?
— Não sei.
Depois de fumarem mais um pouco de erva, Kale franziu o cenho
e falou:
— Ele prometeu que ninguém poderia nos ferir ou nos deter.
Falou que ficaríamos sob a Sua proteção.
— É isso aí, cara. Invencíveis.
— Então como é que tenho que aturar mordidas de carrapatos?
— perguntou Kale.

— Qual é, cara, isso não é nenhum fim do mundo.
— Mas se nós estamos realmente protegidos...
— Escute, quem sabe as mordidas de carrapato são o Seu jeito
de selar o trato que vocĂŞ fez com Ele. Com um pouco de sangue. Sacou?
— Então por que você não tem mordidas de carrapatos? Jeeter
deu de ombros.
— Não é importante, cara. Além disso, as porras dos carrapatos
morderam vocĂŞ antes de vocĂŞ fazer o seu trato... nĂŁo foi?
— Ah. — Kale assentiu, meio doidão com a maconha. — É. É
verdade.
Ficaram calados por algum tempo. EntĂŁo, Kale perguntou:
— Quando acha que vamos poder sair daqui?
— Provavelmente ainda estão procurando você adoidado.
— Mas se não podem me ferir...
—

NĂŁo vale a pena tornar as coisas mais difĂ­ceis para nĂłs

mesmos — falou Terr.
— Acho que tem razão.
— Ficamos na nossa por alguns dias. Até lá, a pressão maior já
terá acabado.
— Então fazemos as cinco coisas como ele quer. E depois disso?
— Seguimos em frente, cara. Nos mandamos por aí, deixando as
nossas marcas.
— Para onde?
—

Algum lugar. Ele nos mostrará o caminho. — Terr ficou

calado por algum tempo. Depois falou: — Me conte. Me conte como foi
matar : a sua mulher e o seu filho
— O que quer saber?
— Tudo que há para saber, cara. Me conte qual foi a sensação.
Que tal foi acabar com a sua patroa. Principalmente, me conte sobre o
garoto. Qual foi a sensação de apagar uma criança? Hein? Eu nunca
matei um assim tĂŁo pequeno, cara. VocĂŞ matou ele depressa ou foi aos
pouquinhos? Foi diferente de matar ela? O que vocĂŞ fez exatamente com
o garoto?

— Só o que eu precisava fazer. Eles estavam no meu caminho
— Te atrapalhando, não é?
— Os dois.
— Claro. Estou entendendo. Mas o que você fez?
— Atirei nela.
— Atirou no garoto também?
— Não. Fiz ele em pedaços. Com um cutelo de açougueiro.
— É sério, cara?
Fumaram mais baseados; a lanterna sibilava, e o sussurrorisada do rio subterrâneo chegava até eles pelo buraco no chão; Kale
falou como matara Joanna, Danny e os delegados do condado.
Lá uma vez ou outra, pontuando as palavras com uma risadinha
de quem está doidão, Jeeter dizia:
— Ei, cara, como vamos nos divertir. Como vamos nos divertir
juntos, vocĂŞ e eu. Me conte. Me conte mais. Cara, como vamos nos
divertir.

44

VitĂłria?

Bryce estava parado na calçada, examinando a cidade. À escuta.
Ă€ espera. NĂŁo havia sinal do transmorfo, mas ele relutava em acreditar
que estivesse morto. Estava com medo de que fosse saltar em cima dele
tĂŁo logo baixasse a guarda.
Tal Whitman estava deitado no calçamento. Jenny e Lisa
limparam as queimaduras do ácido, polvilharam-nas com um pó antiséptico e aplicaram ataduras temporárias.

Snowfield permanecia tĂŁo silenciosa como se estivesse no fundo
do mar.
Quando acabou de cuidar de Tal, Jenny falou:
—

Devemos levá-lo imediatamente para o hospital. As feridas

não são profundas, mas pode haver uma reação alérgica retardada a
uma das toxinas do transmorfo. De repente ele pode ficar com
dificuldades respiratórias ou problemas de pressão. O hospital está
equipado para as piores possibilidades. Eu, nĂŁo.
Correndo os olhos pela extensĂŁo da rua, Bryce falou:
— E se ficarmos presos no carro em movimento, e aquilo voltar?
— Levamos os pulverizadores conosco.
— Pode não haver tempo para usá-los. Ele pode sair de dentro
de um buraco no chĂŁo, fazer o carro capotar e nos matar dessa forma,
sem sequer nos tocar, sem nos dar uma chance de usar os
pulverizadores.
Eles ficaram de ouvido atento Ă  cidade. Nada. Apenas a brisa.
Finalmente, Lisa falou:
— Está morto.
— Não podemos ter certeza — disse Bryce.
—

Vocês não estão sentindo? — insistiu Lisa. — Sinta a

diferença. A coisa se foi! Morreu. Dá para a gente sentir a mudança no
ar.
Bryce se deu conta de que a mocinha tinha razĂŁo. O transmorfo
não fora apenas uma presença física, mas também espiritual; Bryce
pudera sentir a sua perversidade, uma malevolĂŞncia quase tangĂ­vel.
Aparentemente, o inimigo antigo emitira emanações sutis — vibrações?
Ondas psíquicas? — que não podiam ser vistas ou ouvidas, mas que
eram registradas num nĂ­vel instintivo. Deixavam uma mancha na alma.
E agora essas vibrações tinham desaparecido. Não havia mais ameaça
no ar.
Bryce inspirou fundo. O ar estava limpo, fresco, doce.
Tal falou:
—

Se ainda nĂŁo estĂŁo querendo entrar num carro, nĂŁo se

preocupem. Podemos esperar um pouco, eu estou legal. Vou ficar bem.
— Mudei de idéia — disse Bryce. — Podemos ir. Nada vai nos
deter. Lisa tem razão. A coisa está morta.
No carro-patrulha, enquanto Bryce ligava o motor, Jenny falou:
— Vocês se lembram do que Flyte falou sobre a inteligência da
criatura? Quando estava falando com ela, por meio do computador,
disse-lhe que provavelmente tinha adquirido a sua inteligĂŞncia e
autopercepção somente depois de começar a consumir criaturas
inteligentes.
— Eu me lembro — disse Tal, do banco de trás, onde estava
sentado com Lisa. — Ela não gostou de escutar isso.
— E então? — indagou Bryce. — Aonde está querendo chegar,
Doc?
—

Bem, se ela adquiriu a sua inteligência pela absorção de

nosso conhecimento e mecanismos cognitivos... então será que também
adquiriu a sua crueldade e perversidade de nós, da humanidade? — Viu
que a pergunta deixara Bryce constrangido, mas foi em frente. —
Quando se pensa bem a respeito, talvez os Ăşnicos diabos verdadeiros
sejam os seres humanos. Não todos nós. Não a espécie como um todo;
apenas aqueles que sĂŁo pervertidos, que jamais conseguem adquirir
empatia ou compaixão. Se o transmorfo era o Satanás da mitologia,
talvez o mal nos seres humanos nĂŁo seja um reflexo do Diabo; talvez o
Diabo seja apenas um reflexo da selvageria e brutalidade da nossa
espécie. Talvez o que tenhamos feito tenha sido... criar o Diabo à nossa
prĂłpria imagem.
Bryce ficou calado. Depois falou:
— Você pode ter razão. Desconfio que tenha. Não vale a pena
desperdiçar energia tendo medo de diabos, demônios e coisas que
assombram Ă  noite... porque, no final das contas, jamais encontraremos
algo mais aterrorizante do que os monstros que existem em nĂłs. O
Inferno está onde o fazemos.
Foram descendo a Skyline Road. Snowfield parecia serena e
bela. Nada tentou detĂŞ-los.

45

O bem e o mal

Domingo Ă  noitinha, uma semana depois que Jenny e Lisa
encontraram Snowfield no seu silĂŞncio sepulcral, cinco dias depois da
morte do transmorfo, elas estavam no hospital em Santa Mira, visitando
Tal Whitman. Ele sofrerá, afinal de contas, uma reação tóxica a algum
fluido secretado pelo transmorfo e também tivera uma leve infecção,
mas nunca estivera verdadeiramente em perigo. Agora estava quase
novo em folha... e ansioso para voltar para casa.
Quando Lisa e Jenny entraram no quarto de Tal, ele se achava
sentado numa cadeira junto Ă  janela, lendo uma revista. Estava
fardado. O revĂłlver e o coldre estavam numa mesinha ao lado da
cadeira.
Lisa o abraçou antes que ele pudesse se levantar, e Tal a
abraçou de volta.
— Está com boa cara — disse ela.
— Está com bela cara — disse ele.
— Parecendo um gato.
— Parecendo uma gatinha.
— Vai deixar as senhoras de cabeça virada.
— E você vai deixar os rapazes plantando bananeiras.
Era um ritual a que se dedicavam todos os dias, uma pequena
cerimônia de afeição que sempre trazia um sorriso aos lábios de Lisa.
Jenny adorava vĂŞ-lo. Lisa raramente sorria, ultimamente. Na Ăşltima
semana nĂŁo rira nenhuma vez, nem uma sĂł.

Tal se levantou, e Jenny também o abraçou. Ela disse:
— Bryce está com Timmy. Já vai subir.
—

Sabe — disse Tal —, ele parece estar enfrentando essa

situação bem melhor. Neste último ano, dava para se ver que o estado
de Timmy o estava matando. Agora, parece ser capaz de lidar com ele.
Jenny assentiu.
—

Ele tinha metido na cabeça que para Timmy seria melhor

estar morto. Mas, lá em Snowfield, mudou de opinião. Acho que
concluiu que, afinal de contas, não há nenhum destino pior do que a
morte. Onde há vida, há esperança.
— É o que dizem.
— Daqui a mais um ano, se Timmy ainda estiver em coma, Bryce
poderá mudar de opinião de novo. Mas no momento, sente-se grato
apenas por poder sentar ao lado do garoto um pouquinho cada dia,
segurando-lhe a mãozinha quente. — Olhou Tal de alto a baixo e
perguntou: — A troco de quê o uniforme?
— Estou recebendo alta.
— Fantástico! — exclamou Lisa.
O companheiro de quarto de Timmy atualmente era um homem
de oitenta anos que tomava soro e estava ligado a um monitor cardĂ­aco
e a uma máscara respiratória.
Embora Timmy estivesse apenas tomando soro, estava entregue
a um alheamento tão completo quanto o coma do octogenário. Uma ou
duas vezes em cada hora, nunca mais do que isso, as pálpebras do
menino adejavam ou seus lábios se retorciam ou um músculo saltava
na sua face. Isso era tudo.
Bryce estava sentado ao lado da cama, a mĂŁo enfiada pela grade
lateral, segurando suavemente a mĂŁo do filho. Desde Snowfield, este
simples contato era o bastante para satisfazĂŞ-lo. A cada dia ele se
retirava sentindo-se melhor.
NĂŁo havia muita luz, agora que o entardecer tinha chegado. Na
parede, à cabeceira da cama, havia uma lâmpada fraca que lançava um
brilho suave somente até os ombros de Timmy, deixando o seu corpinho

envolto no lençol na sombra. Naquela débil iluminação, Bryce pôde ver
como seu filho definhara, perdendo peso apesar da alimentação
intravenosa. As maçãs do rosto estavam salientes demais. Ele tinha
olheiras. O queixo e a linha dos maxilares pareciam pateticamente
frágeis. O filho sempre fora miúdo para a idade. Mas agora a mão que
Bryce segurava parecia pertencer a uma criança muito mais jovem do
que Timmy. Parecia a mĂŁo de um bebĂŞ.
Mas era quente. Era quente.
Dali a um pouco, relutante, Bryce soltou-a. Alisou o cabelo do
menino, endireitou o lençol, afofou o travesseiro.
Estava na hora de ir, mas ele nĂŁo podia ir; ainda nĂŁo. Estava
chorando. Não queria sair para o corredor com lágrimas no rosto.
Tirou alguns lenços de papel de uma caixa na mesinha-decabeceira, levantou-se, foi até a janela e ficou olhando para Santa Mira.
Embora chorasse todos os dias quando vinha aqui, estas eram
lágrimas diferentes das que chorara anteriormente. Estas escaldavam,
lavavam

com

elas

o

sofrimento,

e

curavam.

Aos

pouquinhos,

lentamente, curavam-no.
— Alta? — perguntou Jenny, de cara feia. — Quem falou? Tal
abriu um sorriso.
— Eu.
— E desde quando você se tornou o seu próprio médico?
— Eu achei que uma segunda opinião se fazia necessária, então
chamei a mim mesmo para uma consulta e me recomendei que fosse
para casa.
— Tal...
— Verdade, Doc estou ótimo. O inchaço acabou. Há dois dias
que nĂŁo tenho febre. Sou um excelente candidato para a alta. Se tentar
fazer com que eu fique mais tempo aqui, a minha morte será
responsabilidade sua.
— Morte?
— A comida do hospital sem dúvida irá me matar.
— Ele parece pronto para ir dançar — disse Lisa.

—

E quando foi que a senhorita se formou em medicina? —

perguntou Jenny. Para Tal, falou: — Bem... deixe-me dar uma olhada.
Tire a camisa.
Ele tirou a camisa rápida e facilmente, sem a mesma rigidez do
dia anterior. Jenny soltou as ataduras com cuidado e viu que ele tinha
razão: não havia inchaço e as feridas estavam fechadas.
— Vencemos — assegurou ele à médica.
— Em geral, não damos alta aos paciente à noite. As ordens são
dadas pela manhĂŁ; a alta acontece entre dez horas e meio-dia.
— As regras foram feitas para serem descumpridas.
— Que coisa feia para um policial dizer — implicou ela. — Olhe,
Tal, eu preferiria que vocĂŞ ficasse aqui mais uma noite, por via das
dĂşvidas...
—

E eu preferiria não ficar, caso contrário vou pirar de ficar

confinado aqui.
— Está mesmo resolvido?
— Ele está mesmo resolvido — disse Lisa. Tal falou:
— Doc, eles puseram o meu revólver no cofre deles, junto com o
estoque de drogas do hospital. Tive que chatear, suplicar, implorar e
provocar uma doce enfermeira chamada Paula para que ela o pegasse
para mim hoje Ă  tarde. Disse a ela que era certo vocĂŞ me deixar sair
esta noite. Sabe, Paula é uma alma irmã, uma moça muito atraente,
solteira, disponĂ­vel, deliciosa...
—

Não se empolgue demais — falou Lisa. — Há menores

presentes.
— Gostaria de sair com Paula — continuou Tal. — Gostaria de
passar a eternidade com Paula. Mas agora, Doc, se disser que eu nĂŁo
posso ir para casa, entĂŁo terei que devolver o meu revĂłlver para o cofre,
e talvez a supervisora de Paula descubra que ela o entregou para mim
antes que a minha alta fosse definitiva, e entĂŁo Paula pode perder o
emprego, e se ela o perder por minha causa, nunca sairei com ela. Se
nĂŁo sair com ela, nĂŁo poderei me casar com ela, e se nĂŁo me casar com
ela não haverá nenhum Tal Whitman pequenino correndo por aí,

nunca, porque eu vou me retirar para um mosteiro e virar celibatário, já
que decidi que Paula Ă© a Ăşnica mulher para mim. Assim, se nĂŁo me der
alta, não apenas estará arruinando a minha vida, como privando o
mundo de um Einsteinzinho negro, ou quem sabe um Beethovenzinho
negro.
Jenny riu e sacudiu a cabeça.
— Está bem, está bem. Vou dar a ordem de alta por escrito e
vocĂŞ pode ir para casa hoje mesmo.
Ele a abraçou e começou rapidamente a vestir a camisa.
— A Paula que tome cuidado — disse Lisa. — Você tem lábia
demais para ficar solto no meio das mulheres sem um sino ao redor do
pescoço.
—

Eu? Lábia? — Ele afivelou o cinturão do coldre. — Sou

apenas o velho Tal Whitman, um pouco acanhado. Fui tĂ­mido a vida
toda.
— OH, como eu acredito — falou Lisa. Jenny disse:
— Se você...
E, de repente, Tal endoidou. Empurrou Jenny para um lado,
derrubou-a no chão. Ela bateu com o ombro no pé da cama e caiu com
força no chão. Ouviu um tiro e viu Lisa cair; não sabia se a garota fora
ferida ou se estava sĂł procurando se proteger. Por um instante, pensou
que Tal estava atirando nelas. EntĂŁo viu que ainda tentava tirar o
revĂłlver do coldre.
Enquanto o tiro ainda ressoava pelo quarto, ela ouviu o ruĂ­do de
vidro se estilhaçando. Era a janela às costas de Tal.
— Largue! — berrou Tal.
Jenny virou a cabeça, viu Gene Terr parado no vão da porta,
uma silhueta iluminada pela luz mais forte no corredor do hospital Ă s
costas dele.
Parado nas profundas sombras junto Ă  janela, Bryce terminou
de secar as lágrimas e fez uma bola com o lenço de papel ensopado.
Ouviu um ruído suave no quarto, atrás de si, pensou que era uma
enfermeira, virou-se

— e viu Fletcher Kale. Por um momento, Bryce ficou petrificado
de incredulidade.
Kale estava parado ao pé da cama de Timmy, mal identificável à
luz muito fraca. Não tinha visto Bryce. Observava o menino — e sorria,
o rosto transtornado pela loucura. Estava segurando um revĂłlver.
Bryce se afastou da janela, buscando o prĂłprio revĂłlver. Tarde
demais se deu conta de que nĂŁo estava de uniforme, nĂŁo estava com a
arma no lugar costumeiro. Tinha um 38 que usava num coldre no
tornozelo quando não se achava de serviço; abaixou-se para pegá-lo.
Mas Kale já o vira. A arma na mão de Kale se levantou, trovejou
uma, duas, três vezes, em rápida sucessão.
Bryce sentiu uma marreta atingi-lo no alto e no lado esquerdo, e
todo o seu peito foi tomado de dor. Enquanto caĂ­a ao chĂŁo, ouviu a
arma do assassino trovejar mais trĂŞs vezes.

— Largue! — berrou Tal, e Jenny viu Jeeter; outro tiro
ricocheteou na grade da cama e deve ter furado o teto, porque dois
quadrados de tijolo acĂşstico desabaram no chĂŁo.
Agachado, Tal disparou duas vezes. O primeiro tiro atingiu
Jeeter na coxa esquerda. O segundo atingiu-o na barriga, ergueu-o e
lançou-o de costas num canto, onde caiu numa nuvem de sangue. Não
se mexeu.
— Mas que diabo! — exclamou Tal.
Jenny chamou por Lisa e rodeou a cama de gatinhas,
imaginando se a irmĂŁ ainda estaria viva.

Há cerca de duas horas que Kale estava doente. Tinha febre.
Seus olhos ardiam, pareciam cheios de areia. Ficara assim de repente.
Também estava com dor de cabeça e, parado ali ao pé da cama do
garoto, começou a ficar nauseado. As pernas ficaram fracas. Não
compreendia; devia estar protegido, ser invencĂ­vel. Claro, talvez LĂşcifer
estivesse impaciente com ele por ter esperado cinco dias antes de sair
das cavernas. Quem sabe esta doença era um aviso para continuar a

Sua obra. Os sintomas provavelmente desapareceriam no minuto em
que o garoto estivesse morto. É. Era o que provavelmente aconteceria.
Kale abriu um sorriso olhando para a criança em coma, começou a
erguer o revĂłlver e se encolheu quando uma pontada lhe retorceu as
entranhas.
Foi entĂŁo que notou movimento nas sombras. Afastou-se da
cama. Um homem. Vindo em sua direção. Hammond. Kale abriu fogo,
disparando seis vezes, para nĂŁo correr riscos. Sentia-se tonto, sua visĂŁo
se achava nublada, o braço estava fraco e mal conseguia segurar a
arma; mesmo assim tĂŁo de perto, nĂŁo podia confiar na sua mira.
Hammond caiu no chão com força e ficou imóvel.
Rindo de contentamento, imaginando quando a doença o
abandonaria, agora que completara uma das tarefas que LĂşcifer lhe
dera, Kale foi oscilando na direção do corpo, pretendendo dar o golpe de
misericĂłrdia. Mesmo que Hammond estivesse mortinho da silva, Kale
queria enfiar uma bala naquela cara convencida, falsa, queria
arrebentar bem com ela.
Depois cuidaria do garoto.
Era isso o que LĂşcifer queria. Cinco mortes. Hammond, o filho,
Whitman, a dra. Paige e a garota.
Chegou junto de Hammond, começou a se abaixar — e o xerife
se moveu. A mĂŁo dele foi veloz como um raio. Tirou uma arma de um
coldre no tornozelo; Kale viu o clarĂŁo do disparo antes que pudesse
reagir.
Foi atingido. Tropeçou, caiu. O revólver lhe voou das mãos.
Ouviu quando retiniu ao bater na perna de uma das camas.
Isto nĂŁo pode estar acontecendo, falou consigo mesmo. Estou
protegido. Ninguém pode me fazer mal.

Lisa estava viva. Quando caíra atrás da cama, não fora atingida,
estava apenas buscando se proteger. Jenny abraçou-a com força.
Tal se encontrava agachado junto a Gene Terr. O lĂ­der dos
motoqueiros estava morto, um buraco aberto no tĂłrax.

Uma

multidĂŁo

já

se

formara:

enfermeiras,

ajudantes

de

enfermagem, médicos, um ou dois pacientes de roupão e chinelos.
Um servente ruivo apareceu correndo. Parecia em estado de
choque.
— Também teve tiroteio no segundo andar!
—

Bryce — disse Jenny, e uma lâmina gelada de medo a

penetrou...
— O que está acontecendo! — falou Tal.
Jenny correu para a porta de saĂ­da no fim do corredor,
atravessou-a voando, desceu as escadas de dois em dois degraus. Tal a
alcançou quando ela chegava ao final do segundo lance. Abriu a porta e
os dois juntos irromperam no corredor do segundo andar.
Outro grupo se reunira diante do quarto de Timmy. O coração
disparando, Jenny abriu caminho por entre os espectadores.
Um corpo estava caĂ­do no chĂŁo, com uma enfermeira agachada
ao lado.
Jenny pensou que fosse Bryce. EntĂŁo o viu numa cadeira. Outra
enfermeira cortava sua camisa Ă  altura do ombro. Estava apenas ferido.
Bryce forçou um sorriso.
—

É melhor tomar cuidado, Doc. Se chegar ao local sempre

assim tão depressa, vão começar a acusá-la de correr atrás de
pacientes.
Ela chorou. NĂŁo pĂ´de se conter. Nunca sentira tanta alegria ao
ouvir alguma coisa quanto ao ouvir a voz dele.
— Só um arranhão — disse ele.
— Agora você está parecendo o Tal falando — disse ela rindo em
meio às lágrimas. — Timmy está bem?
— Kale ia matá-lo. Se eu não estivesse aqui...
— Esse aí é Kale?
— É.
Jenny enxugou os olhos com a manga e examinou o ombro de
Bryce. A bala o atravessara, entrando pela frente e saindo pelas costas.
NĂŁo havia motivo para se pensar que houvesse se fragmentado, mas de

qualquer modo, ela tencionava mandar radiografar aquilo. O ferimento
sangrava profusamente, embora nĂŁo estivesse esguichando, e ela
mandou a enfermeira estancar o fluxo com gaze ensopada com ácido
bĂłrico.
Ele ia ficar bom.
Depois de ter-se certificado do estado de Bryce, Jenny voltou-se
para o homem caĂ­do no chĂŁo. Seu estado era mais grave. A enfermeira
rasgava a sua jaqueta e a camisa; ele fora atingido no peito. Tossiu, e o
sangue vivo manchou os seus lábios.
Jenny mandou a enfermeira ir buscar uma maca e chamar um
cirurgiĂŁo para uma emergĂŞncia. Foi entĂŁo que notou que Kale estava
com febre. Sua testa se achava quente, o rosto afogueado. Quando foi
tomar o seu pulso, notou que estava coberto de manchas vermelhas.
Subiu a manga e viu que as manchas cobriam metade do braço.
Também as havia no outro pulso. Nenhuma no rosto ou no pescoço.
Tinha notado manchas vermelho-claras no seu peito, mas pensara que
eram gotas de sangue. Examinando-as com mais atenção, viu que eram
como as manchas dos pulsos.
Sarampo? NĂŁo. Outra coisa. Pior do que o sarampo.
A enfermeira voltou com dois serventes e uma maca sobre rodas;
Jenny falou:
— Vamos ter que colocar todo este andar de quarentena. E o
que fica acima dele. Temos uma moléstia aqui, e não estou bem certa
do que seja.

Depois dos raios X e depois que o seu ferimento fora tratado,
Bryce foi colocado num quarto prĂłximo do de Timmy. A dor no ombro
ficou pior, não melhor, quando os nervos em choque começaram a
recobrar a sua função. Ele recusou analgésicos, pretendendo manter a
cabeça desanuviada até saber o que acontecera, e por quê.
Jenny veio vĂŞ-lo meia hora depois que fora posto na cama.
Estava com ar exausto, no entanto o cansaço não diminuía a sua
beleza. A simples visão dela era todo o remédio de que ele precisava.

— Como está Kale? — perguntou.
— A bala não lhe atingiu o coração. Pegou num pulmão, passou
de raspão numa artéria. Normalmente, o prognóstico não seria dos
piores. Mas nĂŁo Ă© apenas da cirurgia que ele tem que se recuperar;
também tem que enfrentar um caso de febre maculosa das Montanhas
Rochosas.
Bryce pestanejou.
— Febre maculosa?
— Há duas queimaduras de cigarro na sua panturrilha direita,
ou melhor, as cicatrizes de duas queimaduras, quando ele se livrou dos
carrapatos. Os carrapatos dos bosques sĂŁo os transmissores da
moléstia. A julgar pela aparência das cicatrizes, eu diria que ele foi
mordido há cinco ou seis dias, que é mais ou menos o tempo de
incubação da febre maculosa. Os sintomas devem ter aparecido nas
Ăşltimas horas. Ele deve ter estado tonto, gelado, com as juntas fracas...
— Então era por isso que a mira dele estava tão ruim — disse
Bryce. — Ele disparou de perto três vezes e só me acertou uma.
— É melhor agradecer a Deus por ter mandado aquele carrapato
se enfiar pela perna da calça dele.
Bryce pensou um pouco, depois falou:
— Parece mesmo um ato de Deus, não é? Mas o que ele e Terr
estavam tramando? Por que se arriscariam a vir até aqui com armas?
Posso entender que Kale tenha querido me matar, e até mesmo a
Timmy. Mas por que vocĂŞ, Tal e Lisa?
— Você não vai acreditar — disse ela. — Desde a última terçafeira de manhã, Kale estava mantendo um registro por escrito daquilo
que ele chama de "Os Acontecimentos Posteriores Ă  Epifania". Parece
que Kale e Terr fizeram um trato com o Diabo.

Ă€s quatro horas da manhĂŁ de segunda-feira, somente seis dias
depois da epifania sobre a qual havia escrito, Kale morreu no hospital
do condado. Antes de deixar esta vida, abriu os olhos, fitou
alucinadamente a enfermeira, depois olhou para além dela e viu algo

que o apavorou, algo que a enfermeira não podia ver. Achou forças para
erguer as mĂŁos, como se estivesse se protegendo, e gritou; era um grito
fraco, de estertores finais.
Quando a enfermeira tentou acalmá-lo, ele falou:
— Mas este não é o meu destino. E então se foi.

No dia 31 de outubro, mais de seis semanas depois dos
acontecimentos de Snowfield, Tal Whitman e Paula Thorner (a
enfermeira que ele estava namorando) deram uma festa de Dia das
Bruxas a fantasia na casa de Tal, em Santa Mira. Bryce foi de vaqueiro,
Jenny de vaqueira. Lisa estava de bruxa, com um chapéu alto e
pontudo, e um bocado de rĂ­mel preto. Tal abriu a porta e falou:
— Có-có-ró-có.
Vestia uma fantasia de galinha.
Jenny nunca vira uma fantasia mais ridĂ­cula. Riu com tanto
gosto que levou algum tempo para perceber que Lisa também estava
rindo.
Era a primeira vez que a mocinha ria nas Ăşltimas seis semanas.
Anteriormente, o máximo que conseguia dar era um sorriso. Agora, ria
até as lágrimas lhe escorrerem pelas faces.
—

Qual é, um minutinho só — falou Tal, fingindo estar

ofendido. — Você também está uma bruxa bem ridícula.
Piscou para Jenny e ela soube que ele tinha escolhido a fantasia
de galinha por causa do efeito que teria sobre Lisa.
— Pelo amor de Deus — disse Bryce —, saia logo dessa porta e
nos deixe entrar, Tal. Se o pĂşblico o vir nessa fantasia, vai perder o
pouco respeito que ainda tem pelo departamento policial.
Naquela noite, Lisa participou da conversa e dos jogos, e riu um
bocado. Era um novo começo.
Em agosto do ano seguinte, no primeiro dia de sua lua-de-mel,
Jenny encontrou Bryce na sacada do seu quarto de hotel, que dava
para a praia de Waikiki. Estava de cenho franzido.
— Não está preocupado de estar tão longe de Timmy, não é? —

indagou ela.
—

NĂŁo. Mas Ă© em Timmy que estou pensando. Ultimamente

tenho tido a sensação de que tudo vai dar certo, afinal. É estranho.
Como uma premonição. Tive um sonho ontem à noite. Timmy acordou
do estado de coma, disse alĂ´ e pediu um Big Mac. SĂł que... nĂŁo foi
como nenhum outro sonho que eu tivesse tido antes. Foi bastante real.
— Bem, você nunca perdeu a esperança.
—

Perdi, durante algum tempo. Mas voltei a recuperá-la.

Ficaram em silêncio por algum tempo, deixando que o vento cálido que
vinha do mar os embalasse, escutando o ruĂ­do das ondas quebrando na
praia.
Depois, voltaram a fazer amor.
Naquela noite, jantaram num bom restaurante chinĂŞs em
Honolulu. Tomaram champanhe a noite toda, muito embora o garçom
tivesse sugerido cortesmente que trocassem para chá durante a
refeição, para que seus paladares não ficassem "maculados".
Enquanto comiam a sobremesa, Bryce falou:
—

Havia mais outra coisa que Timmy dizia no seu sonho.

Quando eu fiquei surpreso por ele ter saĂ­do do estado de coma, ele
falou: "Mas, papai, se existe um Diabo, então também tem que existir
um Deus. Você já não tinha percebido isso quando conheceu o Diabo?
Deus nĂŁo ia deixar que eu passasse o resto da vida dormindo."
Jenny fitou-o, insegura. Ele sorriu, e continuou:
—

NĂŁo se preocupe, nĂŁo vou fraquejar com vocĂŞ. NĂŁo vou

começar a mandar dinheiro para aqueles pregadores charlatães da TV,
pedindo que orem pelo Timmy. Pombas, não vou nem mesmo começar a
freqĂĽentar a igreja. Domingo Ă© o Ăşnico dia em que posso dormir Ă 
vontade! NĂŁo estou falando de religiĂŁo padrĂŁo, tipo beatice...
— É, mas não era realmente o Diabo — disse ela.
— Não era?
— Era uma criatura pré-histórica que...
— Não podia ser as duas coisas?
— Aonde você está querendo chegar?

— A uma discussão filosófica.
— Na nossa lua-de-mel?
— Casei com você em parte pela sua cabeça.
Mais tarde, na cama, pouco antes de pegarem no sono, ele falou:
— Bem, tudo que eu sei é que o transmorfo fez com que eu me
desse conta de que existe muito mais mistério neste mundo do que eu
imaginava anteriormente. Hoje em dia eu nĂŁo duvido de nada. E,
olhando para trás, considerando tudo a que sobrevivemos em
Snowfield, considerando que Tal acabara de afivelar o cinturĂŁo com a
arma quando Jeeter entrou, considerando que a febre maculosa acabou
com a mira de Kale... bem, parece que estávamos destinados a
sobreviver.
Eles dormiram, acordaram quase ao amanhecer, fizeram amor,
dormiram de novo.
De manhĂŁ, ela falou:
— De uma coisa estou certa.
— Do quê?
— Nós estávamos destinados a nos casar.
— Sem dúvida alguma.
— Houvesse o que houvesse, o destino teria feito com que nos
encontrássemos, mais cedo ou mais tarde.
Ă€ tarde, enquanto passeavam na praia, Jenny achou que as
ondas pareciam rodas imensas, ribombantes. O som fez com que ela
pensasse no velho ditado de que as rodas dos moinhos do CĂ©u moem
lentamente.

O

ribombar

das

ondas

reforçava

essa

imagem

e,

mentalmente, ela pĂ´de ver imensas rodas de pedra de moinho girando
umas contra as outras.
Falou:
— Você acha que tem um sentido, então? Um significado? Ele
nĂŁo teve que perguntar o que ela queria dizer.
—

Acho. Todo volteio e toda curva da vida. Um sentido, um

propĂłsito.
O mar espumava na areia.

Jenny escutava as rodas do moinho e se perguntava que
mistérios e milagres, que horrores e alegrias estavam sendo moídos
naquele mesmo instante, para serem servidos nas Ă©pocas vindouras.

Comentário para o leitor

Como todos os personagens deste romance, Timothy Flyte Ă© uma
criação ficcional, mas muitos dos desaparecimentos em massa a que ele
se refere não surgiram da imaginação do autor. Aconteceram de
verdade. O desaparecimento da colĂ´nia de Roanoke Island, a aldeia
esquimó de Anjikuni, misteriosamente abandonada, a população maia
desaparecida, a perda sem explicação de milhares de soldados
espanhóis em 1711, a perda igualmente misteriosa dos batalhões
chineses em 1939 e certos outros casos mencionados em Fantasmas
sĂŁo acontecimentos histĂłricos e fartamente documentados.
Do mesmo modo, existe um dr. Ananda Chakrabarty de verdade.
Em

Fantasmas,

os

detalhes

da

sua

descoberta

do

primeiro

microorganismo patenteado sĂŁo tirados do registro pĂşblico. Como foi
dito neste livro, a bactéria do dr. Chakrabarty era frágil demais para
sobreviver fora de um laboratĂłrio. O Biosan-4, nome comercial de uma
variedade supostamente mais forte do micrĂłbio de Chakrabarty, Ă© uma
criação ficcional. Ao que eu saiba, não se fez nenhum esforço para
refinar e aperfeiçoar a descoberta do dr. Chakrabarty, e ela permanece
sendo uma famosa raridade de laboratĂłrio, principalmente por causa do
seu papel na decisĂŁo da Suprema Corte, que abre precedentes.
E, naturalmente, o inimigo antigo é produto da imaginação do
autor. Mas, e se...

.•.•´‾`•.•. ( FIM ) .•.•´‾`•.•.




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