Sábado, 13 de janeiro, noite chuvosa e a solidão invencível. A certa altura o pensamento trabalha ininterruptamente a fim encontrar o que fazer. Chega uma hora em que a taça de vinho passa a olhar com um cálido sorriso, seduzindo a ser cada vez mais entornada. Para não terminar a madrugada errando as teclas do computador, apesar de saírem ótimos “computadoruscritos”, melhor dar outra vazão à criatividade. Foi numa noite com essas características que um certo amigo jura ter vivido a situação que passo a narrar.
Eis que o indivíduo (reservo o tratamento em terceira pessoa no início do texto) já maior de idade e cheio de coragem, decide por sair e fazer algo sensacional, quem sabe um show de imitações em praça pública, o que seria deveras apreciável. Ou então ligar os faróis do carro, ativar o limpador de pára-brisas e lamber o asfalto buscando lazer. Bares, música ao vivo, chopp, o mesmo serviço precário de atendimento nos restaurantes e muitas cabeças ocas perambulando pela cidade sem o porte de armas ou sequer coleira.
Bem melhor seria abrir as portas de casa, colocar um Vinicius no aparelho de som, chamar os parceiros mais queridos e servir aquele strogonoff com filé flambado no whisky, uma iguaria que o homem faz ou para seduzir a garota que está na mira ou, em ápice de empolgação, reunir a turma para um comer bem que rasgue horas.
Mas que nada, não há festa porque os amigos não se encontram por perto, nem lazer noturno devido à falta de companhia. Desgastado pelo fato de ter deixado o otimismo na calça que seguiu para a lavanderia, o cidadão opta por sair de seu quartel general para ir comprar uma inocente e flatulenta coca-cola. Haja coragem para renunciar a tanta perdição.
Pela proximidade e pela eventual possibilidade de se interessar por algum filme, nosso herói resolve por ir até a vídeo-locadora do quarteirão. Veste a roupa e trava um desafiador monólogo investigativo consigo mesmo, frente ao espelho.
- Então vai ficar bebendo refrigerante sozinho, em casa? Um programaço, heim?
- Salva se eu disser que será com gelo e meio limão espremido? Até faço uma Cuba Libre!
- Você quer enganar a quem, me fala?
- Bah...
- Vai, deixa de conversa e já que estragou tudo, arruma esse cabelo e sai da minha frente de uma vez!
É surpreendente como o ser humano (o mais normal deles) tem em sua essência o instinto de criar uma dupla personalidade, seja para conversar no espelho, para atormentar antes de dormir ou, nos casos mais agudos, para botar a culpa quando d-e-s-a-p-a-r-e-c-e a fatia de bolo que deveria ter dormido tranquilamente na geladeira. “Você comeu bolo essa noite, Arnaldo?” “Quem, eu? Não faria isso sem sua permissão, benzinho! Só se aconteceu algo quando fui dominado por um espírito sonâmbulo que reside em meu subconsciente!”. E haja óleo de peroba.
Mas, voltando aos fatos, após uma experiência introspectiva no banheiro, aquele homem em posse de suas vontades vai ao encontro despretensioso do refresco. Ao abrir a transparente porta de vidro (não diga!) da locadora, nota alguns westerns à direita, umas comédias à esquerda, vários hambúrgueres pré-preparados no refrigerador e, no mesmo baú frio, a bebida negra mais isenta de racismo no mundo, ostentando seu rótulo vermelho sangue e suas letras caiadas. Ao colocar a compra sobre o balcão, uma névoa merecidamente encantadora envolve nosso personagem. 1,70m, cabelos presos, rosto levemente maquiado, um sorriso tão extenso quanto a muralha da China, orelhas fanaticamente mais lindas do que a árvore de natal do Rockfeller Center e uma persistente, linda, fúlgida e aromática (tetra elogiável) cor morena distribuída em todo o território da atendente mais bela que já trabalhou naquele lugar. Sua tonalidade é doce, vibrante, como se toda manhã ela mergulhasse em profunda banheira cheia de uma loção preparada a base de pó de canela, aquele entretom semelhante a mais fértil e virginal terra que os campos do sul reservam. Vestia um vestido verde claro, inspirando nos mortais toda a saúde que se esvaía de seus poros, inundando as bocas alheias com muita saliva. Ele então suspirou silenciosamente e pensou: “Ah quem dera eu fosse o vento, feito louco a planar nos sopros de Éolo e pôr em flâmula as bordas inalcançáveis dos vestidos femininos quando, no clímax da ousadia, levantaria os panos tímidos dessas angelicais representações de cabelos encrespados”.
Igo, meu estimado amigo, permite que lhe faça um comentário nesse aparte em pleno decorrer da história? Bem, nessa sua reflexão quando conheceu a tal morena, o que é que você quis dizer relacionando na mesma frase os panos do vestido e cabelos encrespados? Não que eu ache que você tenha sido indelicado, muito pelo contrário, foi de uma sutileza tremenda para ser ambíguo. Sabe-se lá se suas aspirações eram no Norte ou no Sul daquela tenra garota.
Voltando aos fatos, ao encontrar o olhar daquela Iracema do cerrado travou-se a partir daí um diálogo cinéfilo e audacioso, que reporto assim como me foi contado, na primeira pessoa do singular:
- “Todos dizem eu te amo”?
- O senhor vai me desculpar, mas precisa aprender “Como conquistar as mulheres”.
- Perdoe-me, mas me refiro ao filme “Todos dizem eu te amo”, já um pouco antigo, você o tem?
- Ah, sim, como não? Woody Allen, Julia Roberts... “Crimes e pecados”, que tal para você? (olhou-me com um olhar efêmero)
- Sou cristão, meu bem, já passei por “Poucas e boas” e por isso repilo o convite, compreenda.
- Seu bobo (nesse ponto já estava toda íntima), trata-se de outra película do Allen.
- Quase me leva aos pecados capitais guria, ainda mais agora “No calor da noite”.
- Bom, você conhece “O homem que sabia demais”?
- Além do Roberto Jefferson, não conheço mais ninguém.
(longos risos)
- Direção de Alfred Hitchcock, concorda que suspense “Melhor é impossível”?
- Sem dúvida, prefiro esse à “História de nós dois”.
- Nem começamos ainda e já me esnoba?
- Faço alusão ao DVD que está ao lado de seu ombro esquerdo, sua “Engraçadinha”!
- Pois não, comédia romântica cheia de clichês, uma chatice.
- Um bom filme necessita de uma boa companhia. Escolhida a atração, gostaria de jantar comigo? Perfumarei meus contornos faciais com a fragrância Fahrenheit, que apesar de não ser 11 de Setembro, lhe causará tremores. Iremos ao mais fino restaurante, olharei em seus “Olhos famintos” quando então, comprometo-me, serei um cavalheiro a pedir: “Dança comigo?”.
- “Dinheiro, pra que dinheiro?” “Quero-te como és” para enfim saber “Quando um homem é homem”.
- Agora sim não seremos mais uns “Perdidos na noite”. Telefonarei para você em “24 horas”.
- Mas há um “Grande Problema”.
- Qual é o seu “Medo”?
- “O bebê de Rosemary”, que é como minha irmã trata o seu namorado, viajou e ela estará sozinha a noite toda. Sabe, ela é novinha, ficar assim desamparada “Aos treze” não é justo. Tenho receio que ela queira fazer alguma bagunça e chame os amigos para “Os embalos de sábado à noite”.
- Perdão, mas ainda não sei seu nome.
- Maria Isolda.
- Pois então, creio que “Hoje é dia de Maria” e você aí, cheia de “Psicose”, preocupada com “Quem vai ficar com Mary?”?
- Insensível, “Se eu fosse você” não colocaria o “Amor em jogo”. Caso o contrário, viro as costas ao nosso encontro e você passará a noite em tristeza superlativa!
- Que bela coincidência formaríamos: “Tristão e Isolda”!
Mais risos da parte da boa moça. Agora incontidos e engasgados. Na verdade, quase se afogou na própria saliva de tanto gargalhar, quando tive que apartar a briga entre os seus brônquios (deveriam ser uns 9, tamanha a tosse). Recuperado o ar, retomou:
- Aguardarei sua visita amanhã, “Antes do anoitecer”.
- E onde fica a sua morada?
- Conhece a famosa história do “Milagre na Rua 34”? Pois moro na mesma 34 do fato, aliás, sou vizinha da casa. E pensar que você já é “O terceiro homem” a me dedicar investidas só hoje. E olha que comecei meu turno às 17h00. Um italiano, que nunca aluga filme algum mas adora me paquerar, disse que “A vida é bela” só quando me vê perambular entre as estantes dessa loja. Acredita? Um outro rapaz magrinho, mas de poesia completa, escreveu-me versos em soneto. Perfumou o manuscrito e me presenteou. Toda feliz, coloquei sobre a escrivaninha do meu quarto para que pudesse sentir o vigor daquele onanista adolescente. Qual azar, deixei a janela aberta “E o vento levou”. Um outro menos romântico, apesar de que “Os brutos também amam”...
- Basta!
- Calma, ainda nem te falei que levarei uma amiga, não é? Pois bem, “Adivinhe quem vem para jantar?” A “Matilda”, moradora da “Casablanca” que dá de fundos para a minha!
- Acha que me aplica esse “Golpe de mestre”? Vê a mim como um documentário do Cirque du Soleil, cheio de palhaços sorridentes? Onde já se viu... Saio em “Defesa da honra” e não quero mais sair com você, nem se dançasse comigo “O último tango em Paris”.
- Pois agora me apaixonei, já que “Nunca fui santa” por seus encantos me entregaria “De olhos bem fechados”.
- Atrevida! Com sua irmã “Lolita” já até “Sei o que vocês fizeram no verão passado”. E eu que pensei em levar você para provar o café que faço após o jantar, quando a noite se torna madrugada e o espresso borbulha na xícara, meu famoso “Espresso da meia-noite”. Quer saber da verdade? Vou encontrar com meu analista, o bom “Doutor Jivago”! Para você, “Boa noite e boa sorte”.
|