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Não seria louvado nem no banquete fúnebre
Aquiles Rapassi

Meio século e mais um quarto de vida e a representação de um grande desencontro terreno. Poeta, fidalgo, mestre, alquimista e outros tantos títulos que definiram na sua trajetória, hoje enclausurados em alguma remota paisagem. Lá está você (e essa cena reluta em deixar minha memória) deitado, esquálido, sobre uma cama amorfa fruto de doação. Seu único movimento com o tronco é quando se gira a manivela reguladora e metade das esquadrias de aço se contraem, levando a aproximação das faces anteriores do seu corpo. Ah, quanta amargura, meu amigo.

Não faz muito, seus olhos eram soberanos, agora são diáfanos e neles há um matiz macilento que nos invoca ao seu orgulho fátuo. Homem de camisas bem passadas, colarinhos domados pela goma, calças vincadas ao melhor estilo europeu, sapatos jabuticalmente negros e automóvel sempre disponível na garagem. Seu carro roubaram e nunca mais foi visto. A única camisa que você usa agora é uma cheia de respingos de sopa e gotas mal sorvidas pela boca obsoleta. As calças perderam os vincos, os sapatos nunca mais saíram do armário. No pé, agora, somente meias grossas para evitar um resfriado.
Lembro-me bem das suas compenetradas penteadas em frente ao espelho lá de casa, enquanto aguardava o meu pai na sala. Cabelos timidamente finos, tingidos de um vermelho brando e jogados para a direita. Você nunca foi de uma compleição robusta, é verdade, mas portava-se como um nobre (bem à socapa).
Hoje em seu leito frio, uma masmorra de lamentos, seus fios caem como que fugindo de uma cabeça decadente e degenerada prestes a libertar os piolhos doentios que habitam as raízes do pensamento. Seu fim é amargo como a carne mal passada da sua esposa e nítido como os dentes que incrustam o seu sorriso bissexto. Mas não se preocupe, você que nunca foi de astúcias de amor. Não serão tantas, sequer algumas, as que chorarão o seu último suspiro.

E esse relato é de um pesar profundo, pela consciência tardia que virá quando nós todos nos tocarmos da saudade controversa que você deixará. Prestaremos condolências à sua viúva cor de areia, quando quererá ela esconder a dor de não ter sido a mulher que poderia. E também se conformará, deduzindo a certeza de que o marido não concebeu o que deveria. E será uma resignação triste de conformismo. Ao passo dos pêsames frescos, suas palmas estarão rendidas sobre o peito, talvez na singular demonstração de humildade em toda a vida (ou morte).

Uns mais maldosos dizem que foram encomendados dois caixões para o seu enterro, um para o corpo e outro para o ego. Se for verdade a opção cogitada de cremação, há quem acredite que o distinto eqüino do seu filho poderia acompanhá-lo. Até que fosse vivo mesmo. Quanta diferença teria feito um unigênito mais comprometido com a lealdade familiar, não é verdade? Na sua predisposição para falar besteiras alheias a esmo, aconteceu de nos criticar fartamente, inclusive ao meu pai, que com silêncio ouvia e elaborava algumas boas réplicas morais para te adestrar a língua beluína. Dentro da sua casa o rebento nunca foi agradecido pelo feno fresco e a água farta. Queria mais, mais e mais até que bingo, tudo se perdeu! Nesse momento faço preces para que o seu patrimônio tenha se diluído com os anos, para que ele não tenha de herança mais do que as suas fronhas suadas com os estertores lúgubres do fim. Peço a vênia, amigo.

Desde o início de sua decadência, nossa família sempre foi muito preocupada com a derrocada trágica que se iniciava. Para precisar bem, meu pai lhe presenteava com o pão e água que os seus bolsos não alcançavam mais. A sua barba ia crescendo híspida e monocromática, enquanto o pélago do destino engolia a sua vida lentamente.

E se vai, até aqui, mais de um ano que deitou seu físico em repouso, já se acostumando ao sono eterno que se aproxima atroz. Seu ocaso é estreito ao nosso tempo. Não nos resta outro lamurio se não o de sustentar as alças pesadas de sua armadura final enquanto percorremos com angústia os ladrilhos desse campo de terra acinzentada e ácida, no qual se escondem da eternidade aqueles que se foram antes mesmo de morrer.


Biografia:
aquiles.rapassi@gmail.com
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