“Era como uma tocha tornando alaranjada a entrada da noite, e os sapos saíam de onde quer que estivessem para olhar a luz deitar-se no lago e embriagarem-se com o caminho de fogo sobre as águas. O flautista de sucata, acomodado à sua cama torta sem colchão e com estrado feito por rodas empenadas de bicicletas quebradas, sempre iniciava, naquele momento diário, uma melodia algo alegre, algo fúnebre, em sua flauta dourada, e depois reunia os anfíbios ao redor do estropiado leito para contar uma história, ou para discursar a respeito da preciosidade do crepúsculo.
As estrelas iam aparecendo, quase uma por uma, reverberando a sabedoria de eras inacessíveis, acenando para o flautista, que, enquanto o vento frio soprava, tocava aquecido. Os sapos dançavam, e a eles juntavam-se espíritos saídos das profundezas do lago encantado, tão numerosos quanto os astros visíveis, tão exuberantes quanto eles.
O brinquedo partido jogado aos pés da cama levantou, e suas palmas ritmadas solitárias ecoaram através da floresta que guardava o recanto ainda intocado pela humanidade.
Manchas de óleo escorriam das articulações dos dedos do homem de sucata, e também pelos seus olhos vazios e cotovelos, mas as notas continuavam a fugir-lhe; num transe, ele se esforçava para acompanhá-las, erguido, rangendo com a música, refestelado de magia.
O dono da esfera lunar levou, como de costume, sua carruagem de dragões para os limites da lua, e assistiu, com sua corte, o espetáculo que se apresentava à beira do lago encantado.”
O jovem terminou de ler, e pôs na senhora de cabelos brancos acima dele os sofridos olhos marejados:
- Ele ficou bem o suficiente pra escrever isso?
- Ficou.
O rapaz guardou a folha de caderno no bolso e voltou mais uma vez o rosto para o leito hospitalar que servira de último descanso ao seu amado professor. Ele não conteve a lágrima que rolou, e só girou a cadeira de rodas para sair dali muito, muito tempo depois.
Sequer notou o toque carinhoso que a esposa do bom homem deu-lhe no ombro ao se despedir.
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