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Depois da Quarta Guerra
Yuri Mayal

Não foi a terceira guerra que nos destruiu. Foi a quarta. Eu era só um garoto, vivia com a minha família e fazia coisas que os garotos fazem, sem preocupações. Sabe, eu não dava a mínima para nada, e um dia, enquanto eu mandriava no alto da colina, sempre gostei de ir lá, observar a cidade inteira e me deleitar com as histórias de Alice, minha amiguinha do coração e eterno interesse amoroso, eu vi.
     Vi o cogumelo.
     Nunca cheguei a saber quem cometeu a atrocidade, só lembro do agudo grito doloroso de Alice ecoando em meus ouvidos, da força que tive de fazer para contê-la, das lágrimas, dos arranhões, da expressão desesperada que até hoje me acorda.
     Na terceira guerra eles se contiveram; ainda havia algum senso de moral, alguma distinção acerca de certo e errado, e por mais feias que as coisas ficassem, sabíamos que as mais poderosas armas já criadas pelo homem não seriam utilizadas. Mas agora os países estão destruídos e nada mais importa.
     O que eu sei é que estou sozinho, lutando para sobreviver. Recuso-me a buscar guarida numa das chamadas cidades caídas e ser governado por “leis” brutais, a ficar ao sabor de tiranos em troca de suposta proteção. Que os idiotas fiquem por lá, posso me proteger sozinho. Eu entendo que reste a dúvida, para quem estiver lendo, sobre do que ou de quem eu teria que me defender, já que a humanidade foi dizimada.
     Dos aliens, lógico.
Eles foram sábios. Pacientemente esperaram a nossa mútua destruição, e quando ela aconteceu, invadiram, arrogantes, senhores absolutos de nosso mundo quebrado.
     Acontece que guerras não são exclusividade da raça humana.
     Os Grundloks, a espécie que esperava ansiosa para nos escravizar, poucos anos após a invasão foram pegos de surpresa pelos Orbius, que destruíram a nave mãe dos adversários, impossibilitando seu retorno. A briga nos céus foi ferrenha, pude assistir a boa parte dela, contudo, o resultado não foi bom para ninguém. Grundloks e Orbius ficaram presos no planeta, e enquanto aguardam a chegada da cavalaria, o que pode levar décadas, infernizam com mais fúria ainda os habitantes naturais daqui.
     Só que, com os invasores enfraquecidos, muitos homens decidiram também combatê-los. Outros grupos formaram alianças com as raças rivais, e desde então o caos na Terra, cujo aumento eu julgava impossível, alçou alturas inimagináveis.
     As cidades caídas se ergueram, humanas ou não, e fora delas, só há morte e destruição.
     Eu tenho facilidade em fazer amizades, nunca fico sem armas, e o segredo para a minha sobrevivência é bem simples: Não paro quieto. Jamais durmo duas noites no mesmo lugar, e toda vez que é possível, troco de veículo. Às vezes acho umas carcaças abandonadas no deserto e consigo consertá-las, às vezes monto cavalos ou zebras.
     Ao contrário do que se poderia imaginar, é mais seguro viajar durante o dia. Entretanto, já me vi obrigado a sair por aí à noite e não é agradável.
     Numa das inúmeras vezes nas quais pensei que iria, enfim, morrer, eu havia achado refúgio num shopping canadense abandonado. A vegetação rastejava e subia contornando antigas molduras de vitrines, vidro por toda parte, rachaduras, escadas cobertas de escombros, crateras nos tetos, vira-latas nos corredores, esqueléticos, sofredores.
     Pela primeira vez em anos pensei que poderia, finalmente, fixar residência, o que queria dizer basicamente ficar no mesmo lugar por uma semana ou pouco mais. Tinha um rio bem perto dali, certamente acharia lugares confortáveis para dormir. Olhei para os cães e gatos. A alimentação seria nutritiva.
Cansado de viver fugindo das sombras, convenci-me de que podia e precisava dar um tempo, pôr a cabeça em ordem. Arriei a mochila e a escopeta dentro de uma loja de móveis, sentei e pus-me a verificar a velha Glock que tanto me servira.
     À noite, os gritos de Alice vieram normalmente. Eu aprendera a conviver com aquele estridente horror, muito embora por ele fosse acordado em certas ocasiões, a última memória que me restava de minha amiga, já que não mais a vi depois do maldito dia.
     Junto com a dor da criança desesperada, vieram também ganidos.
     Levantei, já preparando a espingarda, atento, como o animal excessivamente instintivo que virei. Escondi-me atrás de uma coluna e espiei a imensidão arrasada do shopping tocada pelo luar, ouvindo ganidos, ossos quebrados, carne rasgada e um idioma que não era terrestre.
     Estiquei a vista para frente. Bom, minha Harley ainda estava lá, intacta. Não era uma Harley de verdade, eu a fiz ficar parecida com uma dessas, mas para um trabalho de sucata, não fui mal.
     Vi-os, ao fundo, espalhando estilhaços de ferro e pedras. Grundloks. Não sei qual das duas tribos alienígenas é a mais repugnante, mas a concorrência é dura. Os Grundloks eram altos, possuíam quatro braços, sendo os inferiores ligeiramente atrofiados, e cabeça em forma de lua crescente. O tom de pele variava do cinza ao negro, e por todo o corpo deles brilhava uma luzinha tímida, como se vagalumes estivessem cravados em seus troncos e pernas.
     Porém, a coisa mais perturbadora neles não era a aparente falta de olhos, mas sim a estranha simbiose entre orgânico e não orgânico que caracterizava sua compleição.
Deixe-me ser mais claro: A qualquer momento, as costas dos monstros podiam abrir, e de lá descia um tipo de suporte horizontal. As pernas, então, encolhiam e transformavam-se em rodas ao mesmo tempo em que as mãos superiores entravam nos braços e saíam transfiguradas em pequenos canhões de plasma.
     Eu desisti de tentar entender o fato desde a primeira vez em que encarei o absurdo.
     Um dilema me assombrava. Sair dali a pé, tentando não chamar atenção, ou montar na moto e me preparar para o combate certo? A pé, se fosse pego, não teria a mínima chance, mas a possibilidade de eu não atraí-los sobre mim existia. Eu teria que abandonar a moto. Dane-se, eu faria isso cedo ou tarde. Olhei para ela. Ah, ficou tão perfeita...
     Só me lembro depois de estar numa louca corrida através dos corredores destruídos, seis Grundloks na minha cola, estrelas ao céu, animais abandonados saindo assustados de nosso caminho, e dos tiros. Meus e deles. Quando eles chegavam lado a lado, eu disparava a escopeta, e ao conseguir deixá-los para trás, a Glock fazia o serviço.
     Eles atiravam com raridade, poupando energia, provavelmente, mas quando o faziam, eu jogava a Harley para o canto em manobras quase suicidas. Explosões tingiam de laranja o mármore.
     Numa dessas acabei deixando cair minhas armas, e eu só havia abatido dois deles. Dois! Desgraçados blindados! E para completar, os putos ainda emitiam um barulho que soava como chiado de rádio, garfo raspando na panela e guincho de corvo!
     Eu já estava pedindo perdão pelos meus pecados quando tive a insana ideia de usar um monte de escombros particularmente grande como rampa de alcance para o telhado. Talvez a moto não aguentasse e eu deslizasse para trás de modo patético e infeliz, mas se nada tentasse, acabaria morto de qualquer jeito.
Castiguei o pulso e acelerei como nunca na vida, os outros logo atrás. Tudo tremeu, a poeira subiu, mas vi o céu salpicado de estrelas e corri alucinado pelo telhado. Três deles ainda estavam atrás de mim, um, obviamente, não lograra êxito na escalada. Eu tinha perfeita noção de para onde ia. O rio.
     Jogaria-me lá, a velocidade tinha que ser suficiente, senão...
     Ouvi o plasma carregando, o medo surgiu, dilacerante. Meus braços doíam e eu não queria forçar minha pobre amiga em mais manobras impossíveis. Se atirassem, acertariam e o fim chegaria para mim. Quase lá.
     Aproveitei uma porta derrubada sobre uma amurada e pulei um segundo antes da mortal explosão. Daria certo, iria para a água.
     Nunca tomei um banho tão refrescante quanto aquele. Os desgraçados não me seguiram, devem ter ficado lá em cima, frustrados, observando. Pode até ser que tenham ido me caçar, mas mal saí do rio, embrenhei-me pela cidade fantasma a fim de buscar abrigo noutro lugar.
Essa é a existência que eu levo. Uma hora a sorte há de acabar. Repetidamente me questiono por que continuo a viver, se a esperança já foi erradicada deste planeta.
     Não sei. Acho que para continuar ouvindo os gritos de Alice.








Publicado na coletânea "Nada será como antes" da editora Darda.


Biografia:
Não vivo sem escrever.
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