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Adolescência
Júlio Cezar dos Reis Almeida

Era menino quando cheguei ao Rio de Janeiro
(Vinha de Feira de Santana, Bahia).
Lá, a coragem de uma mulher me permitiu
Viver adolescência rica de sol e de rua.

Naquela época havia muitas ruas de chão batido.
Os loteamentos cresciam rapidamente.

De cada casa recém-construída
Saía um e às vezes dois meninos como eu.
Com eles vivi a aventura de ser criança
Completamente alheia às coisas do mundo.

Não me lembro de ter ouvido falar de nenhuma guerra.
As grandes batalhas que travei foram com as bolas de gude,
Com as pipas e com o pião.

Realengo, Realengo... Como já fui feliz.
Aí conheci o trem.
Realengo à Central do Brasil, viagem
Que os trabalhadores faziam diariamente.

Nos trens havia de tudo e todo tipo de comércio:
Pipoca, bala, amendoim, picolé, biscoito e muito mais.

Realengo, Magalhães de Bastos, Vila Militar e Deodoro.
Aí, já com a evolução, pegava-se o parador.

Porque te amo,
Porque te quero,
Porque te espero.

Quanta vida se gastava naqueles trens.
Era raro não avariar, mas tinha magia.

Em Realengo as tardes eram imensas e repletas de sol.
Ali fui menino e vivi a minha adolescência
Cheia de rua e de fantasia.

Na rua Dr. Oreily, cujo número já não sei,
Eu morei.
Era casa de quatro cômodos:
Quarto, sala, cozinha e banheiro,
Que podiam ser percorridos
Com não mais de seis passos.

Ali três meninos cresceram
Às custas da mãe costureira,
Que trabalhava como negra do tempo da escravidão.

A vida, sempre muito cara,
Tudo que a operária ganhava:

A comida levava,
O aluguel tirava, a luz
E o diabo-a-quatro mais consumia.

A minha mãe era escrava do ofício e dos filhos.
Errou em não tê-los colocado

Para aprender profissão ainda cedo,
Para melhor prepará-los para a vida
E para aliviar a sua carga.

E permitiu-nos viver todas aquelas tardes
De sol e fantasia.

Naquela rua de chão batido e avermelhado,
Li o primeiro verso e entreguei
À destinatária feliz.

Ali, conheci A Estrela da Vida Inteira,
O Cortiço, O Mulato, Meu Pé de Laranja-lima,
Don Casmurro, Os Meninos da Rua Paulo,
O Feijão e o Sonho e muitos outros.
Conheci também os heróis dos gibis.

Ali, conheci a luta entre o ter e o ser.

À noite, nós meninos brincávamos de bandeirinha,
De pic-esconde, de chicotinho queimado,
De pêra-uva-maçã-ou-jaca, de bola-de-gude
E de outras tantas brincadeiras.

Até a hora em que os pais nos chamavam.
Era hora de dormir.
O dia seguinte era sempre dia de branco.
Era preciso acordar cedo,
Pois trem que vem de Santa Cruz
Não espera por ninguém.

Porque te amo,
Porque te quero,
Porque te espero.

De Realengo à Central do Brasil era uma boa viagem.
O trem sacoleja e balança;
E é preciso segurar a chupeta com força.
Em cada vagão iam e voltavam grupos de amigos.

Na volta, em cada estação, quem saltava deixava
Convicto -até amanhã!
Quase sempre seguido por uma descida de carreirinha.

Lá ia o trem:

Cascadura, Madureira, Osvaldo Cruz
Cascadura, Madureira, Osvaldo Cruz
Cascadura, Madureira, Osvaldo Cruz

Quem tiver pressa que vá de ônibus,
Pois trem avaria.

O jeito é levar baralho, porque nada como uma partidinha de sueca
para combater a irritação
E a bronca certa do patrão.

-Cuidado! jogar ronda é proibido!
Nos trens, também tinha batuque e samba.
No vai-e-vem dos trens muita menina sonhou e quando acordou
Estava na hora de enfrentar a dureza do dia.

O trem da Central do Brasil vez por outra fazia vítima
Que tinha como honra
A sua foto estampada na manchete do jornal.

Êh...Juquinha...Êh amendoim...Olha o picolé!

Um trem descarrilou no meu peito
E quase me matou de saudade.

Porque te amo,
Porque te quero,
Porque te espero.

O trem também vai a Japeri,
Passa por Duque de Caxias e por Nova Iguaçu.
Quanto menino viveu a infância
Dentro dos trens da Central do Brasil.
De Campo Grande a Marechal,
De Japeri à Central,
De Senador Camará a Quintino Bocaiúva.

No Jabour não havia estação,
Era preciso caminhar até Senador Camará.
Daí até Bangu,
Guilherme da Silveira e Padre Miguel,
Onde se podia fazer a “fezinha” do dia
Em qualquer boteco.

Engenho de Dentro, São Cristóvão.
Quantos anos eu cruzei A Quinta da Boa Vista,
Casa do Imperador. O Rio Imperial
Cercado de casas penduradas nos morros.
Mangueira e Venceslau Brás.

É do que me recordo, do muito que aí já vivi.
Fui menino pobre, mas rico de alegrias.
Tive mãe costureira e dois irmãos, crianças como eu.

Uma ou duas vezes fui a Paquetá.
Ao longo da travessia vi filhotes de cação
Brincando atrás do barco.
Senti medo profundo,
E solidão assustadora
Pois estava longe da terra firme.
Preferi mil vezes o trem cheio da Central do Brasil.

Porque te amo,
Porque te quero,
Porque te espero.

As estações se parecem, mas todas são diferentes.
De Santa Cruz à Central.

Realengo, te conheci com os meus pés meninos.
Senti o teu calor e sorvi as tuas tardes de sol intenso.
Aí deixei as páginas não escritas da minha infância.

Hoje te olho, mas não te reconheço,
Porque ambos mudamos.
Já não sou menino,
As tuas ruas já não são de chão batido.
A grande maioria ganhou asfalto.
As crianças de ontem se espalharam

Pelo Brasil inteiro.
Mas é possível ver alguns que aí permaneceram.

Em Realengo deixei um rio caudaloso
De sonho e saudade.

Voltar lá pouco resolve, pois ambos mudamos.
Embora tenhamos nos nossos corações um mundo inteiro
De emoções e de lembranças
Gravadas no subterrâneo da memória.

Realengo
A cada ano que passa perde a sua antiga identidade,
Mas vai consolidando outra.
Os seus velhos amigos vão-se reencontrando
No Jardim da Saudade ou no Murundu.

A fábrica de cartuchos acabou,
Mas permanecem firmes os quartéis
E a Pracinha dos Canhões.

O Campo de Marte acabou,
Mas a cavalaria permaneceu.

-Os meus amigos onde estarão?
- Por que não conseguiram resistir
Como os muros dos quartéis?
- Por que deixaram o Realengo da nossa infância?
A verdade é que
A vida nos chamou para algo maior e mais arriscado:
A realidade da maioridade.

-Realengo perdeu a sua infância,
Mas tinha que doer logo em mim?
-Não havia outro para chorar esta dor?
Ao que tudo indica, um trem chamado Realengo
Entrou no meu peito e nunca mais parou de correr
As estações da minha vida.
E assim vai levando de estação em estação
A minha saudade, a minha inocência perdida
E o meu amor.

Graças a Deus este trem não descarrilou e, até agora,
Só fez uma vítima: o meu coração que não para de doer.

Dor de quem cresce, dor de quem amadurece,
Dor de quem ficou velho,
Mas não esquece e ainda se enternece.

- Realengo, mudei pouco,
Continuo o menino de pés no chão.
A diferença é a calvície,
Os fios brancos de cabelo que me restaram
E o bigode ralo.
Mas te afirmo que a ilusão é a mesma
De Capitu e de Bentinho; a dos Meninos da Rua Paulo
E a dos meninos com os quais vivi.
Enfim, Realengo, é lembrar, sofrer e resignar-se,
Pois é assim que a vida é.


Biografia:
Nascimento: 27.07.1956; Feira de Santana , Bahia.
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