- Que pintura mais estranha. Quem teria mau gosto suficiente para comprar uma obra tão grotesca?
O comentário de Elizabeth não tirou o ar absorto de Gustave que mostrava sua impaciência em visitar a galeria de arte de Max W. Elizabeth insistira tanto que Gustave a acompanhasse em tal passeio que ele apenas aceitou para se ver livre das horas de reclamações que seriam certas, caso as vontades dela não fossem cumpridas. A obra nº 23, com o título de "ao Desespero", à primeira vista não chamara nenhuma atenção de Gustave, mas Elizabeth se demorava em criticar a pintura.
- Que coisa engraçada, não encare como ofensa, Gus, mas parece você em tempos passados. Quando você cultivava as longas madeixas e uma barba nem sempre bem aparada. Era seu estilo desleixado que conquistara aquele monte de menininhas que você diz ter amado na faculdade? Venhas Gustave, vejas que incrível semelhança guarda este quadro com a sua feição de jovem e deixa este ar senil esvair-se de seu semblante.
Gustave dignou-se a prestar melhor atenção na obra já que agora ela servia de comparação a ele; e qualquer coisa que se comparasse a ele merecia o mínimo de preocupação. Melhor se não o tivesse feito, assim não sofreria os longos tempos que estariam por vir. Ao fixar melhor a imagem da obra nº 23, Gustave estremeceu. Sentia como se uma enorme lufada de ar frio penetrasse em suas entranhas e o despisse de suas roupas e até de suas carnes, fazendo com que mil olhos o espevitasse mortalmente e secassem seu corpo de líquidos vitais. O momento parecia congelado e a tal obra "ao Desespero" havia produzido um turbilhão de emoções na mente de Gustave no espaço de um átimo de segundo mais profundo que todas as obras juntas de Max W. Aos poucos sentiu novamente o sangue correndo nas veias e tentou disfarça seu desespero - ó tarefa ingrata.
- Mas que besteira, Liz. Em nada se parece comigo tal pintura - Gustave tentava controlar o desespero em sua voz, mas era facilmente notado - É óbvio que, na juventude, eu tinha proporções mais grandiosas que a deste simples rascunho. E minha cabeleira ruiva de outrora era muito mais ardente do que as pobres tintas do singelo Max.
Elizabeth estranhou o modo grosseiro que Gustave referia-se à obra de seu amigo Max. Ela e Max eram amigos de muitos anos, desde os tempos dos primeiros clubes de artes e literatura que foram fundados na cidade. Eles se conheceram nos encontros que discutiam a arte impressionista da França e desde então compartilham os mesmos gostos culturais. Mesmo apesar da amizade de longa data, não fora fácil para Elizabeth conseguir acesso à noite de inauguração da Galeria MMX, onde Gustave, no momento, não parece nem um pouco contente.
- Sei que não entendes muito da arte de meu querido, mas poderia pelo menos disfarçar uma ponta de gratidão por ele ter-nos conseguido tão difícil acesso? Seria bom que te relacionasse com o público que aqui se encontra. Sabes que são pessoas muito ligadas a vários tipos de artes. Quem sabe não encontras algum produtor interessado na peça que estás escrevendo?
- Não preciso correr atrás de produtor. Quando minha obra estiver pronta, eles que correrão atrás de mim. Cansei desta gente arrogante, preciso de ar fresco, vamos até a sacada dar uma espiadela nas estrelas da noite.
O anti-socialismo foi o melhor meio que Gustave achou para afastar-se do demônio que era aquela obra. Arrastou Elizabeth até a varanda mais próxima e ali afrouxou um pouco o colarinho que lhe sufocava. O ar frio da noite invadiu suas narinas e rodeou sua cabeça, dando-lhe um pouco de alívio.
- Que drama, Gus. Para que toda esta encenação?
- Não é nada minha amiga, creio que eu tenha errado na escolha do terno para hoje. Achei que estaria mais frio, esta meia-estação está me matando.
- Sim, sim, não és o único a sofrer. Se não te importas, darei uma volta pela galeria, há pessoas que há muito tempo não vejo, e sabes, recordar é viver. Se o ar da noite não lhe curar do mau humor e ainda quiseres ir embora mais cedo, peças para Lauro te levar para casa e depois retornar para me buscar.
- Sim, talvez eu faça isso.
Mas ele não conseguiria ir embora, não com aquela monstruosidade sendo exposta ali. A semelhança era aterradora, e ele se sente na obrigação de vigiar a obra e o autor. De nada adiantaria fugir e se esconder agora, é certo de Max sabe de algo, senão, de onde teria tirado inspiração para pintar aquilo?
Gustave passou o resto da noite se esgueirando pelos cantos, tentando fugir de todos os olhares e sempre vigiando o autor e sua obra. Talvez um confronto direto fosse o modo mais rápido de acabar com todo este drama. "Mas, e se for apenas uma incrível coincidência? Não, impossível, fantástico demais." As horas corriam e com elas morria o público da galeria enquanto Gustave seguia perdido em seus devaneios e tentando achar uma solução para seu estranho caso. A única alternativa a que ele chegava era sumir com o quadro, mas o procedimento não fora decidido. Rouba-lo lhe traria mais atenção do que o necessário, mas compra-lo - dinheiro não seria problema, já que era, de certo modo, sustentado por Elizabeth - também não lhe parecia uma alternativa muito boa. Mas era a única que lhe restava. Decidira falar com o responsável pelas vendas da galeria. Disfarçadamente levara-o para um canto e perguntara o preço. Gustave nem quis negociar, apenas pediu sigilo quanto ao seu nome, pois queria fazer uma surpresa. Deu-lhe seu endereço, onde a obra deveria ser entregue em dia e hora marcados, quando Gustave estivesse sozinho em casa. Que Max soubesse da compra, tudo bem, certamente ele já tinha conhecimento de todo o fato, senão não o teria pintado. Porém, ter Max escondido a verdade de todos por tanto tempo, fez com que Gustave desconfiasse de algum plano maquiavélico a gotejar na cabeça do pintor. "Aos poucos, ele certamente quer me enlouquecer. Estou certo de seu ciúme quanto a minha posição em relação a Liz e, assim que me conheceu, concebeu esta obra planejando mostrá-la nesta galeria, diante de todos os amigos dela. Ainda fez um certo charme mostrando dificuldade em colocar nossos nomes na lista de presença desta odiosa inauguração. Maldito, tem tudo muito bem planejado. Certamente ele previu todos meus atos e eu estou fazendo todo o jogo dele. Me resta esperar qual sua próxima ação".
Após a negociação da obra, Gustave procurou Liz pela galeria e a encontrou segurando um whisky na mão direita e a mão esquerda pendurada no braço de Max.
- Guuuus – gritou Liz ao ver o amigo – venha, querido, dê os cumprimentos a Max por sua excelente exposição.
Gustave seguiu na direção dos dois. Liz parecia um pouco cambaleante, pois logo depois de se separar de Gus, havia se juntado aos seus amigos apreciadores do ultra-romantismo e com isso entornara alguns mililitros destilados. Max mantinha sua posição sóbria e fria de sempre, mas nem um pouco embaraçado com as atitudes da amiga. Gustave aproximou-se e resmungou um cumprimento.
- Parabéns pela exposição, está tudo nos conformes.
- Conformes? Não, caro amigo, está tudo mais do que os conformes. Está tudo perfeito. Já soube de excelentes propostas recebidas pelas minhas criações. Não que elas tivessem um preço, são inestimáveis, é uma caridade que faço trocá-las por algumas míseras peças de metais para alegrar esses pobres mortais.
Gustave nunca vira a arrogância de Max com tanta satisfação. Estava certo de receber uma sutil espetada em relação à maldita obra 23, mas o fato de Max não ter tocado no assunto deixou Gustave aliviado, fazendo-o crer que tudo fora obra do acaso.
- Querido Max, como você é generoso - Liz desfazia-se em risos e sorrisos.
- Liz - disse Gustave com suavidade, já demonstrando certo alívio - minha doce alma, vamos embora, creio que sua tolerância a destilados já fora atingida. Ligarei para Lauro trazer o carro até a porta de entrada.
Gustave deu o braço para Liz, conduzindo-a até a porta de saída. Com a cabeça fizera um aceno para Max, um sinal de despedida. Max retribuira-lhe levantando a cabeça e olhando-lhe por cima. Neste instante Gustave juraria ter notado uma piscadela do olho esquerdo de Max, fazendo com que todo o alívio que sentira caísse por terra.
No caminho de casa, Elizabeth não opôs resistência ao peso das pálpebras e em sono caiu profundamente. Já Gustave, mesmo que estivesse amortecido por infinitas doses de sonífero, não conseguiria relaxar após os eventos da noite passada. Um susto, um alívio e depois, uma quase confirmação da tragédia. Quase? Não, naquele momento Gustave tinha certeza do que estava acontecendo. O olhar de Max na saída lhe dizia tudo. Ou estaria ele imaginando? Teria ele, devido ao adiantado da hora e o desconforto do terno, se enganado quanto à piscadela de Max? Uma inquietação tomava conta de seus pensamentos. Arrependeu-se de não ter confrontado Max diretamente e colocado tudo às claras. De um jeito ou de outro, não estaria sofrendo ele agora com o fantasma da angústia.
Lauro apontou o carro no portão do nº 129 da rua Flamboyant. Ao saber que estava no pátio de casa, Gustave acordou Elizabeth:
- Liz, acorde – sacudindo-a grosseiramente pelo ombro – estamos em casa.
- Hum? Pára com isso. Me deixa aqui.
- Pare de besteira. Vamos entrar em casa. Você passou da conta hoje.
Elizabeth, cambaleante, saiu do carro resignada. O efeito do álcool ainda era demasiado em seu organismo. Gustave a conduziu pelo braço pelas escadas de entrada até ultrapassar a porta da frente. Quase que teve que carrega-la pela escada que surge logo após o hall de entrada e depois leva-la até seu quarto no segundo andar da mansão. Deixou-a desabar em sua cama e depois partiu para seu quarto, duas portas depois, à esquerda. Entrou trancou a porta, despiu-se e deitou na cama, mas o sono iria não o inundaria naquela noite. Passaria a noite acordado sendo assombrado pela imagem do quadro infernal, trazendo-lhe as lembranças de tempos passados, os quais ele pensava que nunca mais voltariam.
Durante toda a semana, Gustave permaneceu soturno. Elizabeth o abordava, questionando-o sobre a sua repentina mudança de humor. Ele desconversava, alegando odiar esta meia-estação. No final, ela acabava concordando que a mudança de tempo estava realmente infernal e Gustave se aliviava de não ter que dar mais explicações. Na sexta-feira, uma encomenda chegou na mansão Talisnky, nomeada a Gustave Faulsen. Era o fatídico quadro. Habilmente, Gustave conseguiu mantê-lo longe da vista de todos, menos de Jonas, o mordomo, mas uma simples mentira conseguiu tira-lo de seu caminho. Correu para o seu quarto abraçado no embrulho e trancou-se. Colocou o pacote em cima de sua escrivaninha e ficou a mira-lo pensativamente.
A cena retratada na pintura, mesmo que ele não a estivesse vendo, era clara em sua mente. A bela Marília, a quem Gustave amou ensandecidamente estava perfeitamente retratada, assim como ele próprio, ao seu lado, na cama, em todos seus mínimos retoques. Nem acreditou que conseguira enganar Elizabeth quanto a semelhança do homem do quadro com ele; era inconfundível. Marília e ele se amavam na cena, assim como acontecera há 6 anos, em uma cama de almofadas vermelhas de cetim. Ele por dentre as pernas dela, com as madeixas ruivas puxadas por detrás das orelhas, deixando seu nariz adunco ser visível e ela, gozando o momento de seu viver: boca levemente aberta, deixando aparecer grandes incisivos brancos, olhos fechados, mas sem compressão, os seios desnudos, esparramados por sobre o peito e as mãos segurando seu homem pelas nádegas. Seus sexos, escondidos por seus próprios corpos, deixando a cena mais sensual que pornográfica. Cena esta que fora seus últimos momentos juntos. Depois dela, Marília revelou que o abandonaria, e que o ato recém terminado era a despedida. Tudo que fizera ali, fizera pensando em seu novo amante. Gustave, em um ato de fúria, acabaria por sufoca-la com uma das almofadas. Passado o descontrole, foi ao desespero logo depois. Amara-a tanto que não suportou a idéia de ser abandonado. Mas sua principal decepção foi ter assumido o papel de outro nas fantasias de Marília. A raiva e o desespero se transformaram em frieza e assim ele a pegou nos braços, levou até o jardim de sua casa e a enterrou nas mesmas terras em que cultivava suas begônias. Logo depois, foi até a polícia registrar o desaparecimento de Marília. A investigação não durou muito e o caso permanece aberto até hoje sem solução. O jardim da casa de Gustave deu lugar a uma área lajeada e a casa fora vendida em seguida. Pouco tempo depois, Gustave conheceria esta que seria sua “patrocinadora”. Levando todo acontecido com frieza e precisamente calculado, Gustave pensava ter se livrado de tamanho fardo, porém, de um jeito ou de outro, Max parece saber do acontecimento.
Mil conjecturas surgiram na mente de Gustave. Teria sido Max o novo pretendente de Marília? “Como poderia ele manter tamanha frieza por tanto tempo e manter-se tranqüilo ao se deparar com o assassino de sua amada? De um jeito ou de outro, ao inferno com ele, o tormento que me traz é um castigo extremamente bem elaborado” pensava Gustave. Resolveu abrir o pacote para decidir o que fazer com aquele pesadelo.
Elizabeth chegou em casa tarde naquele dia, já passava das onze horas. Perguntou a Jonas por Gustave.
- Permaneceu no seu quarto o dia inteiro. Tentei chama-lo para o almoço, mas disse que estava sem fome. No horário da janta, respondeu apenas com um resmungo. Tentei a maçaneta, mas estava trancada.
- Deve ser mais um de seus bloqueios. Vou tentar iluminar sua vida com minha presença.
Elizabeth foi até o quarto de Gustave. Bateu, mas não teve resposta. Tentou a maçaneta; trancada. Bateu novamente, com mais força e tudo permanecia em silêncio dentro do quarto. Chamou Jonas e com ele conseguiu arrombar a porta para ver o corpo sem vida de Gustave jazendo em cima de sua cama. Porções de terra preta escorriam de sua boca e narinas. Jonas saiu correndo para pedir ajuda, mas Elizabeth apesar de chocada com a cena, não conseguia tirar os olhos do pacote de cima da escrivaninha onde estava o quadro retratando o busto de uma linda mulher sorridente sob o título de Marília.
|