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There's No Way Out of Here
Doenças 2
Anderson F. Morales

Não me sinto bem, aliás, faz dias que não sinto nada...nada além de me sentir mal. Qualquer vontade que eu possa ter de fazer algo diferente do que olhar para o teto é facilmente destruída quando lembro o que pode acontecer dentro de alguns dias. “Você tem no máximo um ano de vida” as palavras do médico ainda ecoam no meu ouvido esquerdo. Meu deus, pensei, eu achei que isso só acontecesse nos filmes. Achei fantástica a capacidade de quantificar o que resta da minha vida. Não me surpreenderia mais se ele dissesse que eu duraria vinte segundos. Para que esperar tanto? Resolvi que um ano não mais se passaria para mim. Foi um ato rápido, sem pensar nem planejar. Uma corda no lustre e outra no pescoço, banco cambaleando e corpo pendurado. Casa velha, amaldiçoada. O lustre arrebentou e caí, antes de completar o serviço. Ao desabar no chão senti claramente algumas costelas partirem e logo depois o lustre caiu em minha cabeça. Traumatismo craniano leve e 2 costelas fraturadas.

     “Seu estado de saúde já inspirava cuidados antes deste infeliz acidente. Receio dizer que isto abalou mais sua saúde. Acho que devo alertá-lo que seu período de vida diminuiu para nove meses”. Esse médico não existe, pensei, olhe seus nervos, está muito calmo enquanto assina meu decreto de morte. Sua incrível capacidade de quantificar minha vida me surpreende cada vez mais. Ou talvez sejam todos assim mesmo. Nunca consultei muitos para saber como vivem, do que se alimentam, onde se escondem.

     Dos nove meses que me restavam, um e meio eu fiquei no hospital. Sete meses e meio ainda era muito tempo e eu era muito impaciente. Acho que nunca, em toda minha vida, fiquei tão obstinado a conseguir algo. Se a corda falhou? Veremos o veneno. Mas a pressa me prejudicou. O arsênico talvez teria produzido efeito total se eu tivesse dispensado minha empregada e ela não tivesse chamado uma ambulância quando me encontrou agonizando no meio da sala. E eu que achei que ela só sabia ligar para as amigas dela para conversar enquanto eu estava trabalhando. “Dr. Souza. Dr. Souza. O que o senhor tem?” Ela me chamava de doutor, só porque eu tinha cursado uma faculdade de merda qualquer. Tentei fazer sinal com a mão para que ela fosse embora. “Ar, o senhor quer ar? Vou abrir as janelas. Melhorou?” Fiz sinal que sim, talvez ela fosse embora, mas agora, pensando melhor, ela seria estúpida demais se acreditasse no que eu tentei dizer enquanto babava e sofria convulsões.

     Mesmo hospital, mesma cena. O médico no meu lado direito falava sobre meu estado, que eu não deveria fazer isso ou aquilo, que meu período de vida diminuiu, etc. Desviei atenção para outro ponto qualquer até que ele falasse alguma coisa do meu interesse. Notei que ele estava de pau duro. Tarado desgraçado! devia ter tesão em dar sermões assim ou então de ver alguém morrendo. Tranqüilizei me quando ele tirou o estojo dos óculos de dentro do bolso. Claro, ele não podia ser tão bem dotado. Alguma merda bem grande deve estar dentro de minha cabeça para eu reparar no pau do médico enquanto ele fala sobre meu avançado estado de putrefação viva. Acho que eu não havia dito ainda. Sofro de uma doença em que meu cérebro vai delfinhando enquanto eu apodreço vivo. É uma doença raríssima, síndrome de Proust-alguma coisa. Uma em cada 10 milhões de pessoas tem isso. É mais fácil ficar rico, ganhando na mega-sena do que ter uma merda dessas. Pelo menos não tenho problemas com dinheiro. Quem dera...teria morrido antes de saber o que eu tinha.

     O veneno falhou, tive que apelar para a arma de fogo. Peguei um 38 que foi do meu avô. Ele tinha deixado de herança para mim. Nunca pensei que usaria para esse fim. Comprei uma bala, esperei a madrugada e me tranquei no quarto. No silêncio da noite apontei a arma para o meu ouvido direito, hesitei alguns instantes e puxei o gatilho. Todos dizem que sua vida passa em frente aos seus olhos na hora de sua morte. Pura mentira. Ou talvez tenha sido porque eu não morri mesmo. A bala penetrou no meu ouvido, atravessou minha cabeça de lado a lado e saiu pela bochecha esquerda. Não acertou nenhuma veia, nem um pedacinho do cérebro, nada, apenas tecidos moles. Cambaleei e caí no chão. Achei que tinha morrido, mas não, só havia ganho um buraco a mais no rosto. Desconsolado com mais um fracasso chamei eu mesmo uma ambulância. Estranhei quando tirei o fone do gancho e não conseguia ouvir o barulho da linha chamando. Claro, eu tinha colocado o telefone no ouvido direito. Sujei todo o fone com sangue que depois sujou meu ouvido esquerdo também. Gostei de ver a cara dos médicos quando me viram. Não pude segurar um sorriso, o que fez a cena mais dantesca ainda.

     O buraco no rosto não cicatrizou com perfeição. Fiquei com um círculo ovalado entre o olho e ouvido esquerdos. Parecia que algum adversário chamado Quato tivesse tentado escrever seu nome na minha cara, mas fosse impedido por outra pessoa. Teria ficado faltando a perninha. Também fiquei surdo do ouvido direito e perdi o paladar e o olfato. Estava contribuindo cada vez mais para minha situação de morto-vivo.

     Os poucos familiares que eu ainda tinha apareceram depois da minha última tentativa de suicídio. Internaram-me em uma clínica psiquiátrica; a mais luxuosa que existia, temendo por minha vida, claro que tudo às minhas custas. Bando de urubus, temiam era por suas próprias ganâncias. Sabiam que se eu tivesse sucesso com o suicídio, não haveria dinheiro de seguro para ninguém. Era uma clínica com métodos inovadores. Nada de hospitais, nem quartos acolchoados, nem grades por todo os lados. Já tinha ouvido falar que eles tinham uma nova proposta. Fui levado para um lugar muito longe, não sei exatamente onde. Sei que saímos da cidade pela estrada 290 em direção ao litoral. Passei por algumas cidades conhecidas, mas logo me perdi. Era noite quando chegamos no determinado local. Colocaram-me em uma casinha minúscula, com um quarto, uma pequena sala, uma cozinha e uma porra de uma cerca branca malcuidada em volta do jardim. Largaram-me ali e desapareceram na noite. Pude notar a presença de outras casas adiante pelas luzes que emitiam das salas. Nada além disso podia ser visto. Escuridão imensa. O mar não estava longe, podia vagamente ouvir seu barulho, mas não sentia seu cheiro. Um dos poucos prazeres que me restavam na vida foi tirado de mim. Eu mesmo tirei, com um serviço malfeito. Era um dos poucos sentidos que eu tinha que funcionava perfeitamente, ou até mais. Sentia qualquer cheiro antes de qualquer pessoa, o que às vezes não era muito agradável. Quando caminhava na rua sentia cheiros que me transportavam a outros lugares pelos quais já havia passado. Achava que era algo mágico, mas tudo veio abaixo quando descobri que o olfato é o sentido que está mais ligado à memória. Nada de excepcional acontecia, eram apenas lembranças fluindo na minha mente.

     Que raio de clínica é essa que me deixaram? Sozinho em um fim-de-mundo como esse, totalmente à vontade para me matar, se eu quisesse. Mas não queria pensar em nada; apenas dormir.

     Levantei cedo, o sol mal se pronunciava por detrás das montanhas ao oeste da minha nova casa. Precisava de um café para acordar, só pela cafeína, já que do prazer do gosto estou privado. Fui até a cozinha e procurei nos armários um pouco de café, mas não encontrei nada. Nem bule, nem nada de panela. Se eu quisesse me matar, não ia ser muito fácil. Sem facas, venenos, cordas ou armas de fogo. Não tinha fogão a gás, apenas uma lareira com local para pendurar chaleiras. O cobertor e os lençóis de minha cama não pareciam fortes o suficiente para agüentar meu peso. O mar, nunca; sempre tive pavor de água. Nunca descobri por que, talvez alguma má experiência quando criança que eu tenha bloqueado, pois não me lembro de nada que possa ter causado essa fobia. Já tive até medo de me afogar no chuveiro. Já perdi a vontade do café; como antes, tenho vontade de nada. Deitei-me novamente e continuei a mirar o teto. O sol fazia seu caminho na parede do quarto e enquanto o tempo passava, sentia a vida de esvaindo do meu corpo. Devia ser próximo ao meio dia quando saí da cama. Nunca fui bom em descobrir o horário pelo sol. Para que isso se eu usava relógio. Se fosse me preocupar em aprender algo para o caso de ficar perdido em um deserto ou uma floresta não teria estudado administração e sim teria feito um curso de curandeiro. E para que me serviriam as horas se eu estivesse perdido. “Meu deus, tenho que jantar com os Silvas às 19 horas e estou aqui no meio do mato e não sei nem que horas são”. Pelo menos de algo me adiantou esta vinda para cá, meu humor voltou, certo que mais negro do que nunca, mas fazer o quê? Então é de tarde e pronto. Sinto o estômago vazio, mas não sinto fome. Olhei pela janela e vi que da casa mais próxima, que devia estar a uns 500 metros da minha, saía fumaça pela chaminé. Resolvi ir até lá, talvez motivado pelo vício da cafeína. Esperava que aquela fosse a fumaça do café de depois do almoço. Bati na porta, esperei alguns segundos e bati novamente. Esperei muito tempo e decidi ir embora. Estava ultrapassando a porra da cerca branca, quando ouvi barulho na porta.

     - Ora, por favor, não se vá. Entre e tome um café - disse um velho que não era muito velho, talvez apenas mal-cuidado. Lembrava muito Steve McQueen. Mas falou a palavra mágica: café. Entrei e sentei em um banco de madeira, próximo à lareira olhando para a chaleira que estava no fogo.

     - Caralho, que cicatriz é essa na sua cara.

     “Obrigado pela indiscrição” pensei, mas pro diabo.

     - Dei um tiro na cabeça. Entrou pela orelha direta e saiu por ali.

     O velho caiu na risada, parecia ter visto a cena. Enquanto se endireitava no seu banco de madeira, puxou as mangas e mostrou uma cicatriz em cada pulso. Ri, rimos um do outro.

     - Que belos fracassos nós somos – disse.

     O velho assentiu com a cabeça enquanto começava a preparar o café. Quando pronto, serviu em duas canecas e veio até a mesa. Tomamos em silêncio, lembrando pelo que havíamos passado e talvez, o que estivesse por vir.

     - Eu não tenho café na minha casa.

     - No início é assim - respondeu ele sem tirar a caneca de perto dos lábios.

     Continuamos tomando em silêncio. Terminei e me levantei. Apenas o olhei enquanto tomava. Com as sobrancelhas e um leve balançar de cabeça ele assentiu minha saída. Voltei para casa um pouco mais vivo do que já me senti em muito tempo.


Biografia:
Escritor em nível de formação desde 2000. Estudioso de Borges e partidário deste mestre, tenta, em vão, escrever obras de literatura fantástica na linha borgiana. Além da influência platina, apresenta uma personalidade heterônima, postando contos com outros nomes. Atividades complementares como professor de literatura e técnico em perícias criminais.
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