Escondido em um canto escuro do bolicho da Vila da Quinta, acomodado por cima de um saco de ração meio vazio, pitando um palheiro apagado e mal enrolado, enxergo o Negro Amandio, peão aposentado, um sujeito de muitas histórias e de poucas palavras... Bombachas velhas, alpargatas, uma camisa rasgada em uma das mangas e o inevitável lenço maragato ao pescoço...Sei que o Negro Amândio é de pouca conversa e que só rompe com o seu teimoso mutismo depois de se turbinar com umas boas talagadas de canha pura,daquela de vasilhame de plástico, sempre acompanhando cada trago com nacos de rapadura de palha. A saudação do tropeiro é solene: um pequeno aceno com a mão e mais nada. A garrafa de canha já está quase vazia e o peão se balança de um lado para o outro, com o palheiro apagado e esquecido atrás da orelha. Encostados no balcão, alguns "borrachos", embalados pela canha que corre solta desde cedo, começam a implicar com o Negro velho, que saindo repentinamente do seu mutismo, manda a turma fechar o bico, pois lhe atrapalham as lembranças.... ao mesmo tempo risca o ar ameaçadoramente com a faca de carnear usada para picar fumo e se levanta com cara de poucos amigos.... – Tá Certo Seu Amândio! Se acalma,vivente... Conta aí um "causo" prá gente... Depois de uma pausa prolongada e mais alguns goles de canha, o homem volta a se sentar e começa a falar: - Já contei pra vocês aquela da cobra?Entonces... Pois eu estava campereando lá pras bandas do Alegrete, e quando me apeio do pingo, na porteira, pertinho do galpão, me ataca uma jararaca, cobra “mui mala”, "por supuesto". Não sou índio de me apavorar com coisa "poca" e passei a mão no relho e tasquei no lombo do bicho! Fiquei olhando o animal se retorcendo de dor e daí a pouco começou a me dar uma pena, um aperto no peito ... Ia ficar entrevada pra sempre a bichinha se eu não resolvesse cuidar dela, mas todo mundo sabe que sou um gaudério de coração bueno, grande "demás", não sou "hombre" dado a malfeitorias. Peguei uma lasca de taquara que tava ali pelo chão, fiz uma tala, enrolei o bicho nos pelegos pra não se molestar com a geada que tava caindo e levei o animal pro rancho. E a jararaca foi morar comigo e com os meus cuscos, pois a vida de peão é muito solitária. Pois não é que o bicho foi ficando por ali? Animal muito manso, dormia enrolada perto do fogão nas noites de frio, me acompanhava na hora do mate, coisa e tal... Acabou se recuperando, engordou e ficou com a espinha cem por cento, mui linda! Ficamos amigos, eu e a Odete, este foi o nome que dei pra ela, pois me "alembrei" duma prenda que conheci nos "antigamentes" lá por Dom Pedrito. Mui safada a gaudéria! Pois a Odete foi ficando pelo rancho,se "acaseriou" no meu rancho e a gente foi se acostumando com aquela vida.... até dormia comigo em dia de muita friagem, se ajeitava lá nos pelegos e ficava quietinha... Pois um dia se enfureceu e atacou com um bote certeiro um dos meus cuscos que tava acochambrado por perto das lenhas...Acho que foi ciúme... Pois o tal cusco adoeceu feio da picada da jararaca e se finou, o coitado... E foi aí que resolvi dar um fim naquilo tudo e mandei a Odete embora... Era uma ingrata, mal agradecida e não reconheceu que dei casa, cama e mesa e até comida na boca quando ela tava entrevada! Que se botasse campo a fora e nunca mais voltasse! Que não me aparecesse nem por perto do meu rancho.... Fiquei com o peito apertado quando ví a bichinha sair "devagarito" e se sumir lá longe num capão... Mas indiada, o que mais me entristeceu foi quando ela olhou para trás para me dar um último adeus com a ponta da cauda: os olhos da Odete "tavam" cheios de lágrimas.... Chorava muito a bichinha..... Fiquei "mui malo" e quase que me desando a chorar também...mas sou um guasca sério e não me fresqueio com estas coisas de "maricon"... Nunca mais me apareceu a Odete....Até hoje tenho saudades....Com o fim da história, os olhos de todos os borrachos se arregalaram de espanto e foram saindo devagarito, em silencio, um a um, sem nada comentar, pois o Amandio tinha fama de complicar quando duvidavam dele e ainda por cima, não largava a carneadeira, que passou a afiar ameaçadoramente no balcão do bolicho.... Se foram todos rua afora e eu também me fui, depois de pegar a erva para o mate... Pois é.... Aquela turma dos CTGs que promove a "bosteação" da Marechal Floriano de ponta a ponta nos desfiles do Vinte de setembro, afirma que foi o Nego Amândio que laçou um teco-teco lá pelas bandas de Tupanciretã, mas ele não diz nem que sim e nem que não... Pelo que falam do homem, é um guasca de muitas histórias e andanças pelo Rio Grande afora e parece que não é sujeito de contar mentiras, logo... Pensando bem, acho que vou provocar o Amândio para me contar essa coisa do teco-teco! Pra quem faz uma jararaca chorar, pegar um avião no laço não é nada demais... "Sirvam nossas façanhas de modelo á toda terra"...(estrofe do Hino Riograndense)
* Crônica publicada na VII Antologia da Academia Riograndina de Letras - Rio Grande/RS (2014).
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