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Faca, fio e genitália perdida
Cláudio Thomás Bornstein


     
Muito aprendi com Mané-Gato, homem nordestino, pintor de paredes. Não que eu tenha pintado muita parede na minha vida, mas ele me ensinou, eu tive que mandar pintar, e, para mandar, tem que saber. “Massa de pintor, é pura enganação, só para embelezar, vá lá que seja para o quarto, sala, interior, mas prá chuva, vento, sol?” foi uma das lições que depois muito utilizei.
     
Mané-Gato falava da "pele que sua na friagem", linda imagem para a parede molhada pelo orvalho da manhã. Experimentou as minhas cachaças todas, com ou sem meu consentimento, algumas ele até esvaziou, nem o casco encontrei.

Especial deferência tinha para o chapéu de couro e o matulão, pendurados num dos cantos do corredor, lembranças de uma viagem à Bahia. Passava por eles com um misto de assombro e ironia. “Que é que um sujeito destes faz com coisa sem importância, sem valor, exposta assim de quadro de parede, parecendo relíquia, pegando pó?” Mas pode ter sido também saudade de um passado que não voltava mais, de uma terra largada, abandonada, a família dele tinha ficado, mãe, irmãos, tios, primos. Não sei. Nunca falou dos abandonos, nem de terra, nem de gente.

Mais interessante foi a história do facão. Debaixo do chapéu de couro e do matulão, guardo um facão grande, dentro de bainha de couro. O facão eu mantenho sempre afiado, afiado que nem gilete. Não, não é para decepar cabeça de ninguém, muito menos a genitália, que eu quero mais é que todos mantenham a sua, para procriação da espécie, que o mundo bem que precisa. Eu sou da paz, e jamais teria coragem de ameaçar quem quer que seja, mesmo ladrão que viesse invadir a minha casa, cafajeste, insolente ou mal-educado. O facão eu uso é para cortar os galhos do jardim, alguma trepadeira indesejável, erva daninha, erva de passarinho e faca eu gosto afiada, porque faca não é martelo, prá bater.

Numa das minhas muitas ausências, Mané-Gato deve ter desembainhado o facão, certamente passou o dedo pelo fio, soltou assobio fino e agudo, experimentou cortar um talo de grama no jardim. Provavelmente repetiu o gesto mais de uma vez, deve ter comentado à noite com os colegas no boteco, num misto de orgulho e admiração, o patrão dele não era mole não. Ao certo eu não sei, mas sei pelo olhar de respeito que ele tinha ao passar pelo instrumento. Certa vez falou pra mim, olhar enviesado, canto do olho espichado para o ferro na parede “Afiada, né?”. Eu não disse nada, nem pelo sim nem pelo não, que é para manter o mistério. O que é a vida sem mistério?

Do que eu me orgulho mesmo não é do ferro nem do mistério, mas é que Mané-Gato me fez seu confidente, e ainda por cima, para coisas de amor. Não é que eu goste de fofoca, mas eu me amarro em uma boa história. Ele era casado, filhos grandes, já criados. Gostava da mulher, muito religiosa e crente, mas gostava mesmo era de uma farra e um forró. Sexta à noite, fim-de-semana, não resistia. Era grande dançador, xote, baião, xaxado, e na exibição das desenvolturas das piruetas, rodopios e rodeios, na quebrada dos requebros dos quadris acabava sempre enredando e enredado. Quando eu o conheci, já devia andar pela casa dos quarenta, mas, morena, mulata, loirinha, branquinha, sarará, nova ou muito nova, nada escapava aos seus encantos, nenhum encanto lhe escapava e a todos encantava. Falava das bobeiras dos jovens com um misto de desprezo e com a alegria de quem não dá bobeira, não deixa vago o espaço, o buraco, a brecha, a fenda, pois a natureza não gosta de vácuo.

Tanto fez, tantas armou, que o instrumento que tanto gostava de usar, quebrou a ponta ou rachou o ferro, assim ao certo eu não sei. Não deve ter embainhado corretamente a espada, eu sei que descuidou, deixou prá lá, e mais farra e mais forró e mais uso da espada, a rachadura se alastrando, a quebradura se quebrando. Acabou na mão de doutor, e aí foi duelo de espada e bisturi, Golias e David. Como na Escritura, foi o pequeno e ardiloso que ganhou e foi a espada decepada pela raiz! Sobrou um cotoco só, que fazia o serviço, quer dizer, cutucava, mas cotoco não é espada.

Mané-Gato não deixou de frequentar nem farra nem forró, muito menos deixou de balançar e requebrar, rodear e arrodear as mulatas e as branquinhas, que continuavam a cair na sua rede que nem peixe. O problema era depois o que fazer com o peixe já que o facão agora não servia nem mesmo para descamar, quanto mais para a cama. Na hora de abrir a porteira, da vaca ir para o pasto, sol e céu, corria o risco da vaca ir pro brejo, a iniciativa cair n’água, o empreendimento afundar no pântano do riso e da chacota. Ele adiava, inventava desculpa, arrumava pretexto, mal estar súbito, indisposição, compromisso inadiável. Mané-Gato tinha vergonha, não abria o segredo para ninguém. Era macheza, orgulho. Na tormenta, perdera o barco, mas não perdia a pose. Andava pela rua como se ainda estivesse no comando.

Só quem sabia mesmo do segredo era sua mulher, sua velha. Mané-Gato tentou voltar para ela. Não que a tivesse abandonado, ao menos não de casa, mas lá, a cama a muito que não era mais lugar de festa e ela, muito religiosa, tinha fechado vanguarda e retaguarda. Ele pediu, mas era tarde e ela não aceitou. Também tinha o seu orgulho. Para quem tinha conhecido a espada, ficava ruim, agora que estava velha, ficar só com o cotoco. Depois, como era muito religiosa, achou que isto de justamente acabarem com o instrumento dele, depois de tanta devassidão, na certa era castigo do céu. Para não dizer assim direto, no desafio, no descalabro, que ela não era Maria Bonita prá enfrentar homem assim no acometimento, impôs suas condições: que ele largasse farra e forró. Mané-Gato não largou!

Cláudio Thomas Bornstein


Biografia:
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