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Gê ficou encantado
A. Zarfeg

Apesar de mineiro da gema, Gê foi um andarilho russo. E, como tal, se embrenhou na vida à procura de respostas. Se bem que, na sua ânsia desmedida de entender o mundo, Gê acabou se perdendo do mundo e de si mesmo, coitado, como acontece com tantos quantos erram por caminho tão sinuoso e, ainda por cima, eivado de pedrinhas drummondianas. Óbvio que Gê perguntou mais do que respondeu em suas andanças pelas veredas da maldita existência.

Por vezes, Gê chegou a pensar em cantar na chuva, mas achou por bem se calar. Pensou em viajar em Bach e quase foi feliz. Como numa ilusão de ótica, o andarilho pensou mesmo ter encontrado a verdade, assim como deduziu ter compreendido as mulheres. Sensual, matutou ouvir trovadores medievais cantando seus eternos amores, mas eram só frias mãos acariciando a solidão. Cigano da existência mais vária, sutil e absurda, Gê se imaginou diverso e dono de uma dor múltipla. Assim ele era, sem tirar nem botar.

Assim o vejo: prisioneiro da vida, do sonho, da contingência, mas também aspirante à liberdade total. Ou simplesmente Gê, tal qual um personagem denso recém-chegado de um romance de Dostoievski. Assim o trago comigo, irmão.

Estou certo de que ser um Gê ou um Karamázovi não é tarefa fácil. Essencialmente, é como empreender uma viagem sem volta ao grande sertão veredas, ou mergulhar fundo no poço das comédias humanas e divinas comédias (ou ainda se perder nas repúblicas platônicas governadas por todos os homens e, ao mesmo tempo, por homem nenhum), em permanente peleja com a vontade de ser tudo e o desejo incontrolável de não ser nada.

Para um Gê ou um Karamázovi, a grande árvore de Minas pode até ser uma floresta, inexpugnável e labiríntica, como a própria existência costuma se apresentar, tola e sem sentido. Natureza morta sedenta de transcendência.

Contudo, na vida ou na morte, ao errante pouca diferença faz se a viagem seja feita por terra, ar ou mar. É possível empreendê-la sem dar um passo sequer além de si mesmo. O importante é tentar, ainda que não se saiba exatamente aonde chegar. Até porque os últimos serão sempre os últimos e os primeiros, os primeiros. Aonde mesmo chegar, então? À fama, ao sucesso material? Não. Gê, o andarilho valente, pretendia tão-somente chegar à morte, ao encontro consigo mesmo, não fugindo da angústia existencial nem tampouco se refugiando na impessoalidade pequena e medíocre daquele que preferiu assistir à própria morte à distância, enganando-se a si mesmo, quando diz de si para si: “Isso não é comigo, meu Deus”.

Pelo contrário, Gê chegou à consciência da morte de maneira pessoal, autêntica e sofrida. E, consciente da sua condição heideggeriana de “ser-para-a-morte”, abraçou a situação-limite na primeira pessoa – em vez de proceder levianamente como Fausto, que assinou um pacto com Mefistófeles, trocando suas dúvidas pelos prazeres da vida.

Camus dizia que neste mundo só há um problema filosófico verdadeiramente sério – o do suicídio. Nietzsche escreveu que “o que se tornou perfeito, inteiramente maduro, quer morrer”.

Pessoalmente, acho que o andarilho russo não morreu de morte morrida nem matada. Simplesmente, ficou encantado – seguindo o conselho de Guimarães Rosa.


Biografia:
Poeta, jornalista y otras cositas más.
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