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Leite
Jessé Monteiro

Clemente entrou na curva equilibrando-se em duas rodas exatamente às seis horas da manhã do dia 19 de abril do ano de 1983, com seu chapéu simples e inconfundível, sua camisa social bege não por natureza, a calça jeans suja e única, a botina de laceamento perfeito e o caixote de madeira farto em leite e vidro moldado na forma de garrafa. Era terça feira para alguns habitantes da cidade mais que pacata chamada Santo Expedito, a qual era composta por casas de estética deprimente para muitos arquitetos e dois casarões imponentes e chamativos aos olhos dos apreciadores da forma.

O leiteiro de chapéu preto sempre passava na rua Flora nesse horário, mas antes já havia percorrido quatro ruas, esvaziado um caixote, e ao contrário do senhor Gonçalves, aceitado fiado. A armação de ferro acompanhada de borracha, chamada por alguns de tentação ao vestibular, era verde, mas a maioria dos clientes não percebia essa característica do objeto que passava a ter função útil nas mãos e nos pés de um ser humano ciente da técnica de manejo. Clemente, com muito custo dominou seu próprio corpo e domou aquela coisa sem vida e fria, a qual não parava em pé sozinha, mas havia matado no mês anterior um jovem na ladeira da venda do Gonçalves; ele tinha presenciado aquele fato sentado na porta do comércio e por uma semana ficou sem praticar o equilíbrio em duas rodas. Na noite do dia 18 para o dia 19 de abril do ano de 1983, uma forte tempestade passou por Santo Expedito deixando as estradas de terra, as quais eram em maior número na cidade, escorregadias e essa propriedade da pista vinha constantemente como um lembrete do perigo à mente do leiteiro que se via em um teste de destreza e medo em cima do transporte simples.

Descalço e sem camisa, de cabelo revoltado e com uma cabeça equivalente a um sexto do total do corpo, vestindo apenas um calção cinza e surrado que compartilhava com o irmão mais velho, Pedro movimentou o retângulo de madeira coberto com tinta verde convencionalmente chamado de porta e saiu de casa com os olhos direcionados para a esquina. Graças aos primeiros raios do sol avisto o equilibrista de chapéu preto anunciando sem fala, sem sinal ou placa a chegada do líquido retirado das tetas de várias vacas; mais uma vez o ritual matinal se cumpriria. A fumaça branca que escondia o topo de uma das colinas circundantes à cidade, o verde escuro da vegetação e a lama de coloração clara, o brilho resultante do encontro da luz do astro quente e as poças de água no chão, o evidente contraste entre a terra pastosa e o céu inconsistente, a cômica luta do homem contra a revolta do solo liso, a brisa fria que corria no corredor delimitado por casas de cores diversas e o ato de estar na rua sem camisa eram completamente desconsiderados pelo menino de barriga vazia e transbordante de vontade.

Pedro voltou correndo para dentro do cubo divido em setores chamado por sua mãe de lar, atravessou a sala, o setor de refeições e no quarto dos genitores pulou com agilidade na direção do móvel de madeira central, aterrissando com as duas canelas sobre a superfície macia ao lado da mulher desacordada, a qual lhe ofereceu os seios logo após a chegada ao mundo. A consumação do salto ariscado e veloz despertou a mulher que um dia disse porta, leite, lar e camisa ao Pedro que chamais reproduziria o voo sobre os lenções na presença da juíza de cabelos negros e longos, amada e temida. O homem alto, forte, decidido, olhar penetrante, mãos largas e grossas, pé grande, voz grave, o qual fazia do dito lei dentro e fora do cubo grande, mas que também brincava, ria e carregava no colo o menino sem camisa algumas vezes, não estaria por perto essa semana; brincar e correr, ou seja, fazer o que quiser, seria possível apenas com a juíza boazinha por perto.

O leiteiro Clemente viu que se aproximava da casa do diabinho Pedro e com toda sua experiência em andar sobre o objeto potencialmente assassino, emparelhou as duas rodas com a linha formada por um conjunto de pedras dispostas ao lado das casas para o tráfego de pessoas. Luiza e Clemente se encontraram na frente da porta simultaneamente, como se fossem dois corpos com velocidade média semelhante e rotas formando um ângulo de noventa graus; diariamente faziam isso, mas cada um dava um nome diferente à passagem de vinte quatro horas. Após entregar o leite e a garrafa de vidro à Luiza, esta devolveu ao equilibrista de chapéu uma garrafa limpa e transparente. Clemente, empunhando um lápis e várias folhas unidas, fez um risco no papel na frente do nome da cliente que não dispunha de capital para a compra a vista. A consumidora olhou na folha e conferiu com desagrado a data: Terça feira, 19 de abril de 1983; seus lábios se comprimiram, as sobrancelhas se concentraram um pouco abaixo do dentro da testa e um olhar de penetração no nada tomou conta do semblante da mulher convicta de sua capacidade de recordação. O fornecedor de leite do lar simples, lembrou-se do episódio inesquecível que ocorrera anos atrás e arqueou a sobrancelha direita e correu os olhos em direção à mulher que pendurava, mas sempre pagava o líquido branco.

No ano de 1980, não se sabe por que, Luiza, para si, acordou em uma quinta feira, mas para Clemente, a primeira pessoa que ela viu além dos filhos, aquele dia era claramente uma sexta feira, pois o dia anterior tinha sido a quinta na opinião do leiteiro; os dois discutiram por quinze minutos e conciliação não foi alcançada. Na padaria a história se repetiu e a dúvida cresceu igualmente na venda do Gomes, na casa da D. Filó, do padre Miguel, na prefeitura, na delegacia e na clínica do único conhecedor do juramento de Hipócrates da cidade, o qual tinha o status de Sr. Culto para o resto do povo. O examinador de ser humano acatou a dúvida e não conseguiu responder:

- Eu sinceramente não sei, pois hoje parece sexta, mas não difere em nada da quinta... Que dia será hoje?

A multidão que havia se juntado na frente do escritório ficou em um longo silêncio sustentado pelo sentimento de vazio existencial; todos voltaram para suas funções sociais tristes e o sábio da cidade entrou na clínica pensativo e de cabeça baixa. Depois daquele dia sem nome definido toda a população de Santo Expedito se dividiu sobre a designação nominal do dia presente e tornou-se natural dizer: “Fulano segue um dia antes, mas ciclano segue nosso dia”.

Encerrada a entrega, Clemente montou no veículo verde e se despediu de Luiza, que ao entrar no cubo dividido em setores disse ao infrator sem camisa:

- Anda logo Pedro, acorda seu irmão! Hoje é segunda e vocês têm aula!


Biografia:
Escrevo regularmente no blog: vozdopensamentolivre.blogspot.com.br
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Publicações de número 1 até 5 de um total de 5.


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