No dia 20 de março de 2003, a coalizão liderada pelos Estados Unidos começou a invasão do Iraque, dando início ao que veio a ser conhecida como a Guerra do Iraque. Oficialmente, a guerra terminou já em maio do mesmo ano. No entanto, ondas de violência generalizada continuaram durante os anos seguintes, mesmo após agosto de 2010, quando o presidente Barack Obama declarou o fim das missões de combate. Como segundo membro mais importante da coalizão, a Grã-Bretanha participou da invasão e da ocupação do Iraque com o segundo maior contingente depois do norte-americano, terminando sua participação direta em 2009. De um modo geral, toda a campanha iraquiana produziu resultados muito aquém dos esperados, e, considerando o grande número de mortos, a crise de refugiados e a guerra civil que a invasão causou, é razoável dizer que ela foi um fracasso. No final, as armas de destruição em massa não foram encontradas – e nem poderiam, pois não existiam –, e os líderes que apoiaram a invasão passaram a justificá-la com o argumento de que, se as armas não existem, ao menos o Iraque foi libertado.
Quase noventa anos antes, no dia 10 de novembro de 1914, as forças armadas britânicas invadiram a província de Basra, então parte do Império Otomano. Maior potência global da época, a Grã-Bretanha era dona do maior império já visto na história e tomou vastos territórios dos decadentes turco-otomanos. Mesmo assim, apesar da superioridade militar e econômica dos britânicos, sua ocupação da região foi um desastre, tendo levado a consequências que impactariam negativamente no Iraque durante décadas. Olhando para os dois casos, fica a dúvida se a história foi levada a sério.
O debate acerca da utilidade do estudo da história é antigo, sendo que algumas opiniões questionam seu valor prático. Um argumento comum é o de que não há muita vantagem em saber o que ocorreu no passado. De acordo com essa linha de raciocínio, por que estudar eventos passados se não podemos fazer nada para mudá-los? Certamente, esse argumento contém alguma verdade, sobretudo no que diz respeito à impossibilidade de se mudar o passado. Contudo, a importância da história vai muito além da possibilidade de mudá-la, uma vez que seu valor não depende necessariamente da capacidade de se produzir efeitos práticos em sentido estrito. Seria um erro desprezar a história simplesmente porque não podemos voltar no tempo e influenciar eventos passados, especialmente porque nós somos o resultado de eventos passados. O mundo em que vivemos, desde os sistemas políticos até as tecnologias de ponta, dos modismos aos valores morais, das religiões aos idiomas, tudo é resultado direto ou indireto da história. De certo modo, é como se cada ser humano estivesse escrevendo a história, até mesmo aqueles que não o percebem. É justamente por sermos consequência do passado e pelo futuro ser consequência do presente é que a história tem grande relevância. A história nos dá a oportunidade de aprender com o passado e de entender que os atos praticados pelas gerações de agora afetarão as gerações futuras. Apesar disso, nem sempre o que se pode aprender com a história é aprendido, seja por arrogância, seja por ignorância, seja por falta tempo ou por qualquer outro motivo.
Quando forças britânicas entraram no Iraque em 2003, não era a primeira vez que elas invadiam o país. Embora seja um fato relativamente pouco conhecido, o exército britânico invadiu o Iraque em 1914, durante a Primeira Guerra Mundial. Na ocasião, o Iraque ainda não existia como o conhecemos hoje, já que seu território era parte do Império Otomano. Bagdá, Basra e Mossul, essas três províncias otomanas viriam a compor o território iraquiano mais tarde. Em uma dessas coincidências históricas, a invasão britânica começou por Basra em 2003 exatamente como havia começado em 1914, o que talvez seja natural, considerando a localização geográfica da província. Sem um plano efetivo e conhecimento sobre as condições locais, incluindo o clima, a cultura, a religião, os costumes, a sociedade e a história, o envolvimento britânico na Mesopotâmia tornou-se muito mais difícil do que Londres esperava. Os britânicos sofreram pesadas baixas durante toda a campanha da Mesopotâmia (1914-1918), incluindo um fracasso espetacular em capturar a cidade de Bagdá em 1915, incorrendo em gastos financeiros muito maiores do que o planejado inicialmente.
Uma vez terminada a Primeira Guerra Mundial, derrotado o Império Otomano e iniciada a ocupação britânica da região através do Mandato Britânico da Mesopotâmia, as dificuldades da administração britânica não cessaram. Libertados do controle de seus senhores otomanos, os iraquianos não desejavam ser colocados sob o jugo de novos governantes estrangeiros. Em outras palavras, se alguns árabes haviam recebido os britânicos como libertadores no início da invasão, eles logo perceberam que os súditos da rainha tinham outros planos para eles que não incluía liberdade política. Na verdade, a ocupação britânica mostrou-se mais dura e centralizada do que a administração anterior, tendo em vista que os otomanos haviam concedido relativa autonomia a suas províncias durante séculos.
Como consequência, a presença dos britânicos tornou-se impopular em várias partes do país, principalmente nas áreas de maioria xiita e curda, culminando na Revolta Iraquiana de 1920. Essa revolta foi uma resposta às ambições imperialistas da Grã-Bretanha na região, assim como uma consequência da administração altamente centralizada imposta pelos britânicos, e teria um impacto duradouro no futuro do país. Os sunitas, que eram minoria na região, ficaram em sua maior parte fora dos levantes anti-britânicos, e por isso foram recompensados com posições políticas privilegiadas, passando a dominar a política iraquiana. Essa situação continuaria até a derrocada de Saddam Hussein em 2003. No final, o exército britânico sufocou a revolta, mas não sem consideráveis perdas humanas e financeiras dos dois lados. Cerca de seis mil iraquianos e quinhentos soldados britânicos morreram, e a administração britânica incorreu em gastos financeiros equivalentes ao dobro do orçamento anual autorizado para seu Mandato da Mesopotâmia.
O que chama a atenção é que, apesar de todas as adversidades sofridas pelos britânicos durante a invasão e a ocupação da Mesopotâmia, nenhuma lição histórica foi tirada dessa campanha. Durante a preparação para a invasão do Iraque em 2003, além das armas de destruição em massa, o argumento mais usado pelos Estados Unidos e Grã-Bretanha girava em torno da mudança de regime no país. O regime tirânico de Saddam Hussein, diziam Londres e Washington, oprimia o povo iraquiano e possuía armas de destruição em massa. Diante de um regime tão despótico e ameaçador, defendia-se que o Iraque precisava de mudança de regime, mesmo que essa mudança tivesse que ocorrer pela força. Ao olhar para a história, é difícil não ver uma situação bastante parecida: em 1914, o Império Britânico precisava libertar as populações árabes sob domínio otomano e ajudá-los em sua construção de um Estado democrático. O Império Otomano, por sua vez, era apresentado como um Estado atrasado, decadente e despótico que oprimia seus povos e ameaçava outros países, exatamente como o Iraque de Saddam Hussein em 2003.
Ignorando as dificuldades enfrentadas pela administração britânica na Mesopotâmia, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha acreditaram que os iraquianos aceitariam sem resistência a ocupação militar por potência ocidentais depois que o regime de Saddam Hussein fosse derrubado. Além disso, em 1914, o governo britânico omitiu o fato de que havia vestígios da existência de vastas reservas de petróleo em solo iraquiano; nunca se admitiu que a existência desses recursos naturais estivesse entre os motivos para ocupar a região. Previsivelmente, nem os Estados Unidos, nem a Grã-Bretanha citou o petróleo como motivo para invadir o Iraque em 2003, mas a história nos ensina que certo grau de ceticismo é necessário quando estamos diante de justificativas oficiais para invasões militares, ainda mais quando essas justificativas são feitas em nome de motivos aparentemente nobres.
Igualmente, a Guerra do Iraque de 2003 levanta dúvidas sobre o que foi aprendido da fracassada experiência britânica na Mesopotâmia. Certamente, parece lógico crer que algumas lições importantes poderiam e deveriam ter sido tiradas de experiências passadas antes de se iniciar uma espécie de campanha da Mesopotâmia do século 21. Porém, não se viu praticamente nenhum debate sobre a conturbada experiência britânica no Iraque, já que o principal foco das discussões era a ditadura de Saddam Hussein e a existência ou não de seu arsenal. Ao invés de refletir sobre as experiências do passado, os governos britânico e norte-americano, seus aliados, a imprensa, os acadêmicos e a maioria do público ignorou aquilo que a história tem para oferecer. Hoje, é difícil saber até que ponto isso ocorreu devido à falta de conhecimento, interesse ou responsabilidade, mas, diante da tragédia que foi a Guerra do Iraque, isso parece importar pouco. Essencialmente, aquilo que importava saber, isto é, que a história está aí para aprendermos com ela, foi deixado de lado pelos membros do governo Bush, pelo primeiro ministro Tony Blair e por tantos outros políticos e cidadãos.
O que é possível saber com certeza é que haviam suficientes evidências, informações e experiência para prever que a invasão do Iraque cobraria um preço alto, seja em vidas humanas, recursos financeiros ou estabilidade política. Hoje, a Guerra do Iraque e a subsequente ocupação anglo-americana deixaram centenas de milhares de mortos, desabrigados, mutilados, psicologicamente doentes e fisicamente incapacitados. Também deixaram como legado uma violenta guerra civil, um profundo ódio ao Ocidente no mundo islâmico e uma conta final superior a um trilhão de dólares que poderiam ter sido usados para fins mais importantes. Mas se as lições da história não são capazes de evitar um trágico evento como a Guerra do Iraque, algo deve estar errado. Terá a história perdido o seu valor? Ou, para colocar de uma forma mais prática, terá ela perdido sua utilidade? Talvez o problema não esteja com a história propriamente dita, mas em como nós lidamos com ela. Afinal, como explicar o fato de a invasão britânica de 1914 ter sido amplamente ignorada na época em que a Grã-Bretanha se preparava para a invasão de 2003? No mínimo, esse fracasso reforça a crise moderna da relação entre sociedade e história, onde cada vez menos pessoas conseguem encarar a história de forma crítica e enxergar eventos do presente também através de uma perspectiva histórica. Mais preocupante, ainda, é sequer olhar para a história.
O historiador Marc Bloch dizia que, sempre que existir uma profunda crise, a sociedade passará a duvidar de si mesma e a se questionar se aprendeu com o passado corretamente. A Guerra do Iraque, com todos seus erros, mentiras, mortes, crimes e radicalização política, simboliza aquilo que não deve ser feito; simboliza como um problema não deve ser solucionado. Nesse sentido, não há dúvidas de que existe uma crise na maneira como as sociedades, inclusive a brasileira, lidam com a história. Cada vez mais a história parece importar menos, enquanto as novidades comerciais ocupam espaços cada vez maiores nas mentes humanas. Nada se aprendeu com a invasão e a ocupação britânica da Mesopotâmia, e, apesar da atual crise da história, espera-se que o mesmo não ocorra com a Guerra do Iraque no futuro.
Escrito no dia 20 de março de 2013
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