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A Madrugada
William Fujii


   Olhei para o relógio e ali estava ele, marcando aquela hora em que a cidade já dorme há muito tempo e tudo que se ouve lá fora são os latidos de alguns cachorros. Que cachorros? Não tenho animais de estimação, mas de certa forma passei a tê-los, pois dividimos as mesmas tardias horas com frequência. Como não criar intimidade com esses cães, que me acompanham em meus mais profundos e inúteis pensamentos com seus latidos? De fato, temos uma cumplicidade que só madrugadas acordadas juntos podem conferir a alguém. Nunca vi esses cães, nem sequer sei quantos são ao certo ou quais as suas raças, mas os conheço mais que o suficiente para cativá-los. Ou talvez os cative o suficiente que não conhecê-los seja irrelevante. Não sei.

Gosto da madrugada. Mais que isso, amo a madrugada. Ela me traz tranquilidade, disposição, inspiração, a verdade é que sinto um tremendo bem-estar de madrugada. Não acredito que isso chegue a ser estranho, afinal, não sou o único mamífero com hábitos noturnos do planeta. Divido essa categoria com muitos outros seres vivos. Sábios são os vampiros, que sabem usufruir da madrugada como ninguém, verdadeiros mestres na simples arte de escolher entre o dia e a noite, ainda que não seja uma escolha. Penso, às vezes, por que a madrugada não é mais longa? Penso, pergunto aos astros, pergunto ao universo, pergunto ao mestre Walter Mercado, pergunto a qualquer deus que queira me responder. Insulto Copérnico! A sua teoria heliocêntrica não poderia ter sido um pouco mais generosa com a madrugada? Ou devo culpar Ptolomeu? Chego à conclusão de que é inútil saber quem é o culpado pela madrugada não ser mais longa, tão inútil quanto saber a composição química da água deve ser para quem está se afogando. Já sei! Ela é tão fascinante justamente porque não dura para sempre. Faz sentido, pois como seria o mundo se a madrugada fosse constante? Difícil imaginar, mas arrisco dizer que ela não teria o encanto que tem.

Para começar, não haveria base de comparação para saber que a madrugada é a mais encantadora de todos os períodos. Sem o conceito de o quê é a manhã, a tarde, a noite, eu não poderia dizer à madrugada que ela é a minha preferida: ela me responderia que, mesmo se eu não quisesse, ela teria que ser a minha favorita, por ser a única. A falta de alternativas tornaria meu relacionamento com a madrugada algo obrigatório, coercitivo, monótono, chato, como quase tudo que se faz por obrigação ou por falta de opção. É, vejo que não devo falar mal de Copérnico ou de Ptolomeu, e logo me lembro da inutilidade de saber se eles são culpados ou não. De qualquer modo, agora que percebi que a magia da madrugada depende da existência de outros períodos do dia, isso não importa mais.

Tudo é relativo, tudo precisa de um contraste para que se possa avaliar e compreender sua beleza, seu valor, seu significado. A madrugada não seria tão bela se só houvesse ela, e o bem não seria algo tão honroso se não existisse o mal – embora estes sejam conceitos altamente subjetivos. Como eu saberia que o Brasil é o país mais bonito do mundo se não houvesse outros? Seria o Corinthians o melhor time do Brasil se ele fosse o único? Certamente, nesse caso, poderíamos dizer que ele é o único, sem erro, mas não poderíamos dizer que ele é o melhor sem a existência de outros times para servir como base de comparação. É, nem mesmo o Paraíso cristão seria tão desejado se não existisse o conceito de Inferno, ele é de suma importância para que o Céu seja o destino cobiçado que é. Penso sinceramente que o absoluto é um problema. Nada que é total, avassalador, fanático, inquestionável, pode ser muito interessante. O absoluto cega o homem, pois ele não oferece opções nem margem para questionamentos e reflexões, fazendo com que tudo que se veja seja uma enorme escuridão. Escuridão.....sim, a madrugada que tanto adoro é escura, mas ela possui uma beleza infinita porque, além de outros encantos, é finita. Ela chega ao fim e eu tenho o privilégio de sentir a alegria de recebê-la todos os dias. Como as coisas seriam diferentes se não fosse assim! Se eu vivesse na eterna escuridão da madrugada, sem saber como é viver fora dela, sem saber que tenho que aproveitá-la porque ela chega ao fim, sem sentir a felicidade que sinto quando ela vem chegando aos poucos todos os dias. Definitivamente, Copérnico merece meu respeito por não ter feito nada para tornar a madrugada eterna.

Meus companheiros de madrugada também gostam dela. Não há dúvida sobre isso, do contrário, eles não ficariam usufruindo da rainha noturna tanto quanto eu. É impressionante a camaradagem desses cães, não sei se me surpreendo mais com eles ou comigo por me sentir tão próximo deles. Minhas viradas madrugadas afora não seriam iguais sem eles, uma conclusão óbvia, já que nada é igual. Pode ser que eu esteja supervalorizando minha relação com os cachorros vizinhos. Pode ser que não. O que importa é que eles me acompanham em meus pensamentos. Quando estou, em plena madrugada, explorando os mais profundos cantos da minha mente e pensando sobre os mais variados aspectos desse mundo, lá estão eles, meus fiéis colegas de noite, latindo e conversando por esse fantástico universo noturno. Ah, eu gosto disso. Eu realmente gosto. Olhei para o relógio e ele continuava ali, dessa vez marcando um horário distinto. A madrugada está acabando. O ponteiro se mexendo incansavelmente, pois é produto do implacável tempo que não perdoa, que não para, que destrói a tudo e a todos e que também os faz renascer em um belo ciclo, e reparo que o sono já está batendo à minha porta. Os latidos cessaram. Meus amigos caninos se recolheram. O silêncio tomou conta da madrugada. É hora de dormir.

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