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Nem o demônio ouvirá tua confissão
J. Athayde Paula

A noite de céu estrelado parecia mergulhada num bloco de gelo – certamente iria gear durante a madrugada. Dentro do bar os poucos fregueses arrependidos de sair de casa com os termômetros marcando dois ou três graus, cuidavam de aquecer o corpo com alguns copos de conhaque ou cachaça, cada qual no seu canto, sem ânimo para conversa fiada. Quando a mulher prematuramente envelhecida adentrou o lugar usando uma calça de brim desbotado, tênis e uma blusinha azul de crochê, o único que teve curiosidade de analisar sua chegada foi o pequenino Davi, idoso aposentado que fazia bico como guarda-noturno de uma loja de ferragens e que fora tomar uma talagada para aquecer o peito. O velho Davi atentou para o desespero dos imensos olhos desassombrados. Viu também que o corpo dela tremia enquanto os braços abarcavam o busto na busca inútil pelo aquecimento. Então o velho Davi tirou o grosso capote de vigilante noturno, arrancou do tronco a blusa espessa de lã de carneiro e a estendeu para a mulher – ela pegou o agasalho e vestiu-o: o caimento da roupa era perfeito no busto pequeno. O velho Davi virou mais um copo de aguardente, pegou sobre o balcão suas luvas e o cachecol e saiu para a noite polar sentindo as orelhas ardendo não propriamente por causa da bebida ou do frio, mas pela consciência de que a esposa iria lhe infernizar a vida por causa da doação da blusa de lã que ela própria havia tricotado diante da televisão sempre ligada.
            O velho Davi só se deu conta de que a mulher o seguia quando parou sobre a marquise da loja, tirou as luvas e acendeu um cigarro – a dona estava parada a uns dez metros dele, ereta, imóvel, fitando-o.
            – Quer fumar? – ele perguntou. Ela não moveu um milímetro, ali, as mãos cruzadas sobre o busto, olhando-o com seus grandes olhos desassombrados. Ele deu de ombros, fumou o cigarro, calçou novamente as luvas de couro, recostou-se na parede da loja e ficou contando os minutos passando cada vez mais lentamente – a mulher parecia ter o dom de eternizar os segundos com aquele olhar fixo. Dez minutos depois, o velho Davi explodiu:
            – O que mais você quer de mim?!
            Ela não respondeu. E também não desviou os olhos.
            – Pare de me olhar, mas que porra!
            Ela ignorou a ordem. O velho Davi, exasperado, pegou um pedaço de tijolo do entulho de uma reforma do predinho ao lado e lançou-o na mulher. Ela saltou para o lado, desviando do arremesso, ágil e graciosamente, como faria um gatinho. Cada vez mais enfurecido, o velho Davi foi pegando blocos de argamassa, pontas de ferro, tudo que fosse contundente, e atirando com a ira dos apedrejadores bíblicos. A moça afastou-se o suficiente para que nenhum fragmento sólido a atingisse – em seguida acocorou-se em frente à porta sanfonada de uma mercearia e assim permaneceu imóvel como um ídolo de civilizações esquecidas. Apesar da luminosidade das estrelas, de onde estava o velho Davi passou a enxergar não mais a mulher, mas somente um montículo escuro de algo extático; isso não bastou para acalmá-lo, mas diminuiu o intenso desejo de machucá-la.
            Com o raiar do dia, o velho Davi pegou sua mochila – uma velha bolsa escolar que seria desprezada por algum netinho que ele nunca teve –, nela guardou a garrafa térmica com um restinho de café muito frio, o cachecol e as luvas. Seguiu pela calçada, passou pela mulher acocorada, observando que ela estava envolta numa leve camada de gelo – sinal de que realmente havia geado. Não sentiu pena daquela triste figura, estava ainda cheio de um ódio incompatível com seu caráter cordato, bondoso e afável – porém nada podia fazer, a irracionalidade daquele sentimento era mais forte que qualquer misericórdia cristã.
            O sol frio e muito brilhante banhou indiscriminadamente as duas figuras seguindo pela rua deserta da antiga cidadezinha – o velho à frente, a mulher uma dezena de metros atrás; passaram pelo pequeno e único cemitério do povoado, enveredaram pela rua calçada de paralelepípedos e chegaram à pequena casa murada de pedras; velho Davi transpôs o minúsculo jardim com um pinheirinho majestosamente imperando entre plantinhas despidas pelo inverno, abriu a porta e voltou os olhos para a calçada: a mulher estava ali junto ao muro, imóvel, os braços descaídos ao longo do corpo, a fitar a residência com seus atentos olhos desassombrados. Velho Davi aspirou o cheiro bom de café e broa de milho se espalhando pela casa, fechou a porta atrás de si e foi para a cozinha, sentou-se à mesa e a esposa Helga, enorme, de curtos cabelos grisalhos encobertos por uma touca de lã azul, serviu-lhe a refeição matinal.
            ¬– Ela está lá fora – ele disse e começou a comer. Helga foi à sala, abriu a cortina verde, de tecido grosso, observou a mulher além do muro de pedra. Voltou para a cozinha e preparou um prato com broa e uma caneca de louça com leite e um pouco de café.
            – Vai dar comida pra ela?! – bradou o velho Davi, zangado.
            – É nossa nora, Davi. E não tem mais ninguém no mundo, além de nós.
            – Ela matou nosso filho!
            – Em legítima defesa. Nosso filho não valia dois réis de mel coado.
            – Não fala assim, mulher! Ela é uma assassina!
            – Ela foi julgada e presa. Aposto que acabou de sair da prisão.
            – Cinco anos! Acha que isso é pena?
            – Não, não acho. Se aquele advogadinho indicado pela defensoria pública tivesse ao menos lido os autos, ela não ficava nem um dia na cadeia.
            – Proíbo você de...
            O velho Davi calou-se, não por falta de argumentação, mas porque Helga olhou-o de um jeito tão frio que a covardia se espalhou por cada fibra de seu corpo – eles estavam casados há mais de trinta anos, ele era pequenino, magro como haste de junco, ela era grandona, gorda e tinha uma mão pesada.
            Helga levou a refeição matinal para a mulher, velho Davi foi para a janela da sala, abriu uma fresta na cortina e ficou observando as duas. Elas conversaram por um tempo que lhe pareceu demasiado. Então Helga colocou o prato vazio em cima do muro de pedras, deu o braço para a nora e saíram andando pela rua calçada de paralelepípedos. Velho Davi não era homem de muitas reflexões e tinha parca imaginação, mas não era difícil concluir que ambas tinham ido ao cemitério visitar o túmulo do ente amado. Velho Davi ficou zanzando pelos aposentos ansiando pela volta da esposa, depois resolveu abrir o quarto onde o filho e a nora dormiram desde o primeiro dia do casamento. Olhou para a cama de casal. Talvez Helga tivesse razão: o filho era um traste mesmo. Nunca tivera trabalho decente, sempre às voltas com carteado, bilhar, cachaça, drogas pesadas, mulheres solteiras, casadas, honestas ou vigaristas. Onde o filho encontrara a futura esposa? Como a conquistara? Bem, conquistar não era problema para o filho bonitão e bom de lábia. E ao que sabia a mulher não passava de uma Maria Ninguém ingênua, pobre de dar dó, uma costureirinha que trabalhava numa fábrica de confecções, morava numa pensão para moças e estudava curso supletivo à noite sonhando em formar-se professora. E selou tragicamente seu destino quando aceitou casar-se com aquele que não valia “dois réis de mel coado”. Numa madrugada o filho chegou drogado em casa, deu um murro na própria mãe, derrubou a porta do quarto a pontapés e tentou estuprar a esposa. Como a costureirinha, frágil, raquítica, conseguira armar-se de uma enorme faca de cozinha e golpear nas costas o rapaz forte como um lutador de boxe peso pesado? O filho recebeu um golpe rijo, másculo, efetuado por alguém de braço poderoso e que estraçalhou ossos, musculatura e transpassou o coração de complexas nervuras. Então, mesmo carente de imaginação, uma luz se fez no cérebro do velho Davi. Ali, zanzando pelo quarto do falecido filho e da nora, compreendeu por que Helga, grandalhona e de pelos nas ventas, tinha tanta certeza da inocência da nora...


Biografia:
Jornalista, publiquei os seguintes livros: Os Troféus (contos), Capricha na Pontaria, Campeão! (romance) e Vestígios de Vida (contos).

Este texto é administrado por: João Athayde Paula
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