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Flertando com Átropos
Crônica do livro ´O Desmonte de Vênus.
Alexandru Solomon

L. está caminhando despreocupadamente. Tudo parece estar a seu favor. A palestra foi um sucesso. Choveram convites para novas apresentações. Pode ser que, finalmente, conseguirá atingir a tão almejada notoriedade. Quando as coisas vão bem, o mundo inteiro parece acenar amistosamente. Aquele senhor de rosto amarrado até que não parece tão antipático. As vitrines lançam apelos suportáveis. A humanidade brinda-o com um generoso sorriso, como se isso fosse realmente possível. Olha em direção ao chão e vê a moeda. Decididamente, tudo há de dar certo hoje. Até que não desafinou muito ao tentar cantarolar aquela música, cujo nome esqueceu. Pelo menos, pensa assim.
Vê a mulher se acercando, vindo em sentido contrário. De início, nada nota de muito diferente. Ela se aproxima. Vistosa, com certeza. Alta, traços bonitos, cabelos castanhos com tons rubros — sem dúvida, algum artifício químico — boca carnuda, olhos verdes, boca carnuda, uma capa impermeável — trench coat, diria a professora de Inglês — boca carnuda, o cinto realçando as formas, boca carnuda... Ela se aproxima, e agora ele entende por que ficara tão mirificado pela boca. Batom preto, ou quase, em plena tarde. É preciso bem menos para chamar a atenção. O rosto, visto de perto, trai a mulher madura. Com a aproximação, algumas ruguinhas ficam evidentes. É só ela passar e L., ao se virar, terá o resto do quadro. Muito importante, pondera ele.
Não.
A mulher pára bem à sua frente e sorri.
L., também
—Boa tarde, caro senhor L.
—Boa tarde, senhora. Eu a conheço? Minha memória visual nunca foi motivo de orgulho. Se for o caso, desculpe-me por não a ter cumprimentado.
—Sou sua morte. Vim buscá-lo. — Espantoso. Assim, sem mais nem menos, como se informasse ser vegetariana.
—Lamento, não tenho tempo para brincadeiras. Preciso ir para casa. Tenho um monte de coisas para preparar para o segundo dia do congresso anual de... Se me der licença...
—Não é pilhéria. É claro que pode duvidar, é compreensível, é natural. Minha aparência, não condiz com seus temores. Mas, caro L., terá de me seguir. —A voz da desconhecida não se alterou por um instante sequer, ignorando o impacto causado pelas suas palavras.
L. sente a camisa grudando nas costas. Calafrios o percorrem. Deseja rejeitar o discurso absurdo, essa perspectiva aterradora, mas não consegue admitir que o seu aniquilamento possa estar próximo. Não se sente preparado. Não é possível! Pior que portadora de más notícias, ela é a má notícia. No entanto, a mulher não se desmancha no ar, continua imóvel, sem aparentar emoção alguma. Aquele rosto o fascina. Por incrível que pareça, as pequenas rugas a tornam ainda mais atraente. Ainda incrédulo, ele sente uma irresistível vertigem. Besteira contemplar um rosto, quando o mundo lhe diz adeus. Tantas tarefas incompletas! Desaparecer agora, sem poder se despedir dos seus! Silenciosa, ela caminha a seu lado. Ele tem de fazer algumas perguntas. Enquanto houver tempo, ele tem de inquirir, custe o que custar.
—Escute, estou bem, não tenho doença alguma e vem você me dizer, assim, sem mais nem menos...
—Cuidado, moço! — Por pouco um táxi não o derruba. Não fosse o grito dela... Estranho... Se ela é sua morte, por que o protegeu? Com certeza, um outro fim lhe foi reservado. — Está vendo como não basta ter boa saúde? Ocorre que ainda não havia chegado sua hora; pare de se preocupar.
—Claro. Trata-se apenas de minha vida. Por que haveria de me afligir? Ora, que bobagem! Mesmo assim — L. já dá sinais de descontrole — se não for incômodo em demasia, poderia revelar-me o que irá me acontecer? Quando? Quero saber. Preciso saber! — O desalento, prestes a se tornar pânico, não parece perturbar a desconhecida. — Responda!
—Acalme-se. Daremos um passeio. Não tenha pressa em saber. Falta muito ainda, ou muito pouco. Não tenha medo.
—Isso não é responder.
—Talvez a pergunta não tenha sido feliz. Não respondo a perguntas que me desagradam.
—Quero passar em casa, quero me despedir...
—Não lhe permito isso. Por cima, dirão que está ficando louco. Deixará uma última impressão lastimável. Não quer isso, quer?
—Tenho de deixar as coisas em ordem. Minha situação financeira está complicada, tantas coisas... — L. já não caminha mais despreocupado. Mal consegue se arrastar. A mulher de boca carnuda o aniquilou.
—As coisas nunca estarão em ordem. Deixe os problemas para os herdeiros. Agora, vamos ao passeio. Não desanime.
—E de que irei morrer?
—Isso importa tanto? Será, digamos, por falta de vida. — A mulher insiste em utilizar esse assustador tom de troça..
—Tripudie sobre meu desespero! Que diferença faz para você? Só sabe ceifar vidas. Nada a pode demover, não é mesmo?
—Pensa em me subornar? Desista. Outros já tentaram, e foi em vão. Nessa esfera os truques vis não funcionam. Como pensa conseguir? Oferecer peita, propina, jabaculê, inhapa, suborno?
—Quando?
—Quando o quê?
—Quando irei morrer?
—Se estou aqui, será dentro de algum tempo. Pouco tempo.
—Mas estou tão bem.
—Há pouco, quase morre atropelado. Pare de se torturar, receba tudo com serenidade. Vamos a um restaurante.
—Tenha a santa paciência! Vem me falar em restaurante? Não quero.
—Não se trata de querer ou não. Deve-me obediência.
—Será a última refeição do condenado? — Sua voz hesitante frustra a tentativa de esconder o medo atrás de uma ironia.
—Talvez. Irá me convidar espero.
No restaurante, o burburinho típico. Milagrosamente, encontram uma mesa vazia. Para L. não há mais o menor lampejo de esperança; tudo parece ter terminado. Acha apenas um absurdo uma refeição à la carte para um condenado à morte. Maior bobagem só desinfetar a agulha que injeta o veneno letal nos sentenciados. De qualquer maneira, melhor assim do que num restaurante por quilo. Será que ela irá deixá-lo empanturrar-se, para depois... executá-lo?
Nada acontece. Tudo parece tão absurdamente normal. L. tenta acalmar-se. Por alguns segundos, o medo abandona-o. Faz menção de pegar o celular. Ela lança um olhar de reprovação. Os maravilhosos olhos verdes faíscam, frustrando a tentativa. “Melhor que bloqueio de celular em penitenciária”, pensa L.. Os dois degustam os pratos. Chega a hora da sobremesa. A presença do garçom causa-lhe um sobressalto. Fita-o surpreso, como se não fosse o mesmo que os atendeu desde a chegada. Só se lembra de ter pedido os pratos mais caros. Não guarda lembrança de sabor algum. Examina o cardápio de sobremesas. Que venha um licor. Qualquer um. Que diferença fará? O garçom coloca o cálice à sua frente e ao perguntar se desejariam um café, provoca um redobrado surto de covardia. Ela permanece inabalável. Com ar esfíngico, afasta-se um pouco da mesa, cruza as pernas e lança:
—Querido — ser chamado de “querido” pela própria morte soa estranho, mas o que importa? O cérebro dele tem a agilidade de um paquiderme atolado — sabe que não há como me derrotar. Penso em lhe oferecer uma espécie de consolo.
—O que pode me oferecer agora, quando tudo acabou, quando talvez, faltem apenas alguns minutos? Uma medalha?
—Não fale assim. — Os olhos verdes tornam a relampejar. — Em momento algum poderá saber se lhe restam minutos, horas, dias. Nada mudou, excetuando-se o fato de ter acordado bruscamente para uma realidade, que vocês procuram sempre fingir ignorar. Olhe para cá. Eu lhe proponho — aproxima a cadeira segura-lhe a mão, quase encosta o rosto no dele. O toque da mão gelada causa-lhe um arrepio — melhor, eu me ofereço como sobremesa.
—O quê?
—Nada além daquilo que acabei de falar. Poderá dizer — não sei bem para quem, mas para si mesmo, eu garanto que dirá — minha morte foi... minha por uma tarde.
—Só pode ser chacota de sua parte. Um chiste fúnebre.
—De forma alguma. Decidi passar este fim de tarde com você, antes de levá-lo. Veja — talvez seja por causa do vinho que tomamos, ou quem sabe, por alguma outra razão — resolvi cometer esse pequeno deslize, pelo qual, espero, encontrarei sua compreensão. Pode ficar despreocupado, não irá enfartar, não haverá escândalo, tampouco constrangimento para os seus. E, já que decidi desviar-me um pouco da rotina, que exige rigoroso sigilo quanto aos nossos métodos, asseguro-lhe que sairá andando do motel...
—Que motel?
—Para o qual irá me levar, assim que terminar esse bendito licor, ou pretende pedir um café? Vamos. Desculpe, se lhe pareço açodada, mas tenho uma certa pressa. Onde deixou seu carro?
—Por acaso, o estacionamento fica a menos de cinco minutos de caminhada. Saiba que não tenho a mínima pressa, especialmente ao saber o que me espera depois... — E se houve um engano? Agarra-se, por um instante a essa hipótese. Impossível! Ela o chamara pelo nome, demonstrara saber perfeitamente quem seria sua futura vítima. Não há margem para erro algum. A sensação de frio na barriga torna a incomodá-lo. Aparentemente, ela nada notou ou finge com perfeição. E por que ela abriu essa exceção?
— Falei demais. Então, vamos. Agora já sabe. Faça durar a festa o quanto puder.
Achar o estacionamento, mesmo se usado há anos, nem sempre é uma tarefa fácil. Finalmente, L. supera esse obstáculo.
Ao menos, sabe que não irá sucumbir no campo de batalha, a menos que... a menos que ela tenha lhe mentido. Que diferença faz? Sem contar que o licor apagou com maestria pequenos estragos devido à idade. L. sente-se em plena forma e ela está simplesmente encantadora, retocando a maquiagem, no carro. Aquelas pernas... a boca carnuda. L. dirige prisioneiro do dilema. Por um lado quer eliminar a pressa, pois, depois da última gota de energia gasta, o pano irá cair. Para que correr? Por outro lado, aquela mulher o atrai, e ganhar uma hora de vida, no meio do trânsito, nada tem de arrebatador. Sim, ele a quer. Talvez por ser a última mulher na sua vida, seu canto de cisne. Até se esquece do resto. Breve, tudo passará a girar num universo diminuto: L., a cama do motel e a morte. L. não quer admitir, mas sabe que esse derradeiro turbilhão haverá de cessar abruptamente, e tudo terá terminado. Tartamudeia:
—Como devo chamá-la? Entenda, serei um fracasso total, naufragarei miseravelmente, se tiver de chamá-la de Morte.
—Pode me chamar de Cecília. Para mim não fará diferença. Mas se isso o tornar melhor... ótimo — que maneira travessa de olhar! O sorriso parece encobrir algo mais que uma promessa. Qual a tramóia? Será que vale a pena descobrir?
Examina o quarto. Banal com pretensões de requinte. A cama os espera. Tálamo ou cadafalso? Febrilmente, ele se livra da roupa. Nota nela uma pressa igual. Extasiado, nota o resto também, antes de perder a razão em meio a abraços, beijos, apertos gemidos e toques. No instante em que sente o beijo no pescoço, L. experimenta um medo atroz. A percepção brutal da própria finitude deixa-o inerme. Seria ela capaz de acertar-lhe impiedosamente a jugular, deixando-o esvair-se em sangue? Tentar fugir? Para quê? Ninguém consegue fugir da morte. Não há mais espaço para alterações de roteiro. Dominado o susto, inebria-o o beijo. A maquiagem pesada que ela usa em volta dos olhos o assusta e o cativa. Indefeso, não esboça qualquer gesto de resistência. Na penumbra do quarto, o vulto dela o domina. Subjugado, sente-se no papel do louva-a-deus macho, prestes a ser devorado. Sob o signo da boca carnuda, adentra pela última vez numa galáxia desconhecida de prazeres que o espantam. Mantém os olhos bem abertos. Ela o enfeitiça. Os espelhos atiram em todas as direções imagens que L. procura, desesperadamente, gravar. Os reflexos agem como chicotes. Parece-lhe que o teto está cada vez mais próximo. O vulto da mulher se agiganta. Nos tons cinzentos que envolvem o quarto, os lábios negros dão passagem a gemidos triunfais. O quarto encolhe. Não desgruda os olhos do caleidoscópio no qual ficou preso. O pavor o invade. São seus últimos sobressaltos. Cada sensação poderá ser a última. Com mãos trêmulas procura afastá-la, para poder, ao acolhê-la, submisso, melhor saborear a horripilante delícia. Há de levar da vida uma lembrança triunfal. Seu grito agoniado renova as forças de ambos. A sarabanda amorosa parece não ter mais fim. Incansáveis, eles continuam, até que, exausto, L. se rende... Tudo se apaga. Nos seus ouvidos ecoam os apelos dela.
Desperta no quarto. Está só, na cama desarrumada. Procura vestir-se. Sabe que cumpriu sua parte. Foi além da própria imaginação, dos seus sonhos mais loucos. Agora, resta-lhe deleitar-se com a lembrança das últimas sensações. Estremece. De quanto tempo dispõe ainda? Quanto falta para que o fio de sua vida seja cortado? Que seja, pelo menos, o suficiente para se afastar daquele ambiente que, agora parece opressivo, e sair daquele motel. Até agora, o trato foi cumprido. Onde estará ela? Quando virá o bote fatal?
Na mesa de cabeceira, um bilhete.
L. o pega e lê:
” Querido, L.,
Você foi maravilhoso. Foi o que de melhor uma mulher entediada poderia ter encontrado em sua cidade insossa. Seu nome, eu não sabia; estava no crachá que se esqueceu de tirar. Desculpe-me por essa fantasia. Tenho certeza de que agora, mais calmo, ao relembrar o que foi toda a loucura, irá gostar e me perdoará, talvez. Permita-me observar que sua fugeca agiu como incomparável afrodisíaco. Não me procure. Já estou a caminho do aeroporto, preciso jantar com minha família. Trate também de chegar a tempo. Esqueça-me se puder.
Um beijo,

Cecília”.


Biografia:
Alexandru Solomon, empresário, escritor. Formado pelo ITA em Engenharia Eletrônica e mestrado em Finanças na Fundação Getúlio Vargas, autor de ´Almanaque Anacrônico`, ´Versos Anacrônicos`, ´Apetite Famélico`, ´Mãos Outonais`, ´Sessão da Tarde`, ´Desespero Provisório` , ´Não basta sonhar`, ´Um Triângulo de Bermudas`, ´O Desmonte de Vênus` (Ed. Totalidade), ´Bucareste`, ´Plataforma G` e ´A luta continua` (Ed. Letraviva). Livrarias: Saraiva (www.livrariasaraiva.com.br), Cultura (www.livrariacultura.com.br), Loyola (www.livrarialoyola.com.br), Letraviva (www.letraviva.com.br). | E-mail do autor: asolo@alexandru.com.br http://blogdoalexandrusolomon.blog.terra.com.br

Este texto é administrado por: Celso Fernandes
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