Descia a ladeira no seu rebolado manso, leve, leve. Metida no vestido curto, cabelo arrumado, lá ia. Ia lá de novo. Nem ela mesma acreditava: jurara pela alma da falecida mãe que não iria lá de novo. E ali estava... Indo.
Atravessou o beco. Bateu na porta, já ansiosa por praticar seu plano. Ainda pela manhã formulara as frases, as cenas, as poses: tudo bem composto e organizado. Era daquele jeito que queria, naquela metódica ordem.
Enquanto colocava a mesa do café, construída de seu devaneio torto, o marido perguntou sobre a gravata nova que não conseguia encontrar:
- Na porta direita do armário, querido. – Achou-as. Laçou no pescoço com um nó nojento e foi trabalhar.
Tudo arquitetado. O marido viajaria a trabalho e voltaria na manhã seguinte. E ela ali, só! Tão só que não suportava mais a si mesma.
Almoçou sozinha. E para de tarde, deitou-se no sofá, devaneando-se... Vou, não vou, vou, não vou... Calculou, pensou, repensou, sim, não, não, sim... Sim! Iria.
Iria mesmo. Qual o problema? Quem a impediria? A alma da falecida viria assombrá-la? Não! Beatices infundadas, ninguém saberia. Ninguém descobriria que voltaria a encontrá-lo.
Descia leve, solta, certa.
- E daí? – Pensava consigo! – Ninguém tem nada comigo, com minha vida...
Já não cabia em si, já não segurava os quadris que desciam o ladrilho da rua repassando o plano, a ordem das cenas, dos gestos. De consciência pura trairia mais uma vez, sem que nem ao menos pudesse perder o sono, descia a rua a caminho da sua felicidade furtiva, descia ao seu recanto de paz.
Ali onde estivera tantas vezes outrora e já não podia mais esquecer por nenhum dia das últimas semanas do que ali vivera.
Casara cedo: ímpeto juvenil. E agora já mulher não agüentava o peso do casamento fracassado. Não suportava o marido com seu ar de senhor realizado, não suportava o fato de não ter tido filhos. E o marido era mesmo um banana. O tédio a dominara. Iria enlouquecer. E de tudo fez, de tudo que lhe possível, fez. O tédio não se ia.
E deu-se num dia, quando ia ao supermercado, o fato de conhecer Ramón. Moço jovem, educado, gentil: ajudou-a com as compras, fez-lhe elogio até conseguir arrancar-lhe o número do telefone. Encontravam-se sem querer, quando ela ia comprar algo que esquecera no dia anterior, todos os dias...
E desde então descia sempre a ladeira da ruela dos poços, batia na porta de madeira e entrava.
Como podia um moço tão jovem pô-la em seu mais firme furor feminino, sendo ela mulher feita? Quando tocava-lhe os ombros ou os joelhos, ela logo rendia-se e deixava ir por onde fosse que ele a levasse. Ele sabia bem o que fazia e como fazia. Era impetuoso, apertava-lhe suavemente, pois sabia como levá-la ao que se chama êxtase. Tanto que a viciou de tal forma a mantê-la presa nos encontros de quinta-feira: que já eram, agora, de praxe.
Aquela quinta era uma noite de lua cheia. Cheia. Ela, nostálgica, quis ver Ramón já desde cedo. Pôs o curto vestido florido, arrumou o cabelo e pôs o rebolado de morena que só ela tinha meio que pra mostrar as pernas bem-feitas das quais tanto se orgulhava.
Bateu, ansiosa, na porta da casa. Esperava pelos olhos verdes de Ramón mais que qualquer coisa. Ramón veio surpreso, inquieto: não jurara que não voltaria mais aqui?!
- Voltei pra ti, meu amor, meu homem! – Ela dizia com os olhos.
Pulou no pescoço dele, beijando-o impetuosamente, toda naquela sede que guardara dentro de seu útero, desde o último encontro. Ah, quanta espera, espera de morte.
Só que antes mesmo que Ramón lhe pudesse responder, do fundo do corredor veio outra – uma outra dona, talvez do supermercado – veio a outra, com os olhos de fogo, que mataram os amantes num só mirar, e num só cartucho dum 38 enferrujado. (sem mais).
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