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A excelsa dama
Valdecir de Oliveira Anselmo

Resumo:
Se quiseres te imiscuir no pensamento de Deus, nem que seja por um relance, num átimo no tempo, escreva um texto literário. Por um momento fugidio te embeberás no pensamento de um criador, pois estarás num momento de criação e esse é um momento divino. Um escritor não deve ter comedimento com as palavras. No lauto banquete das letras deve ele fartar-se, como um esfomeado, com uma gula indômita, quase frenética. Na Literatura não devemos ter parcimônia, mas sermos glutões. E quem criticar nossa gulodice melhor faria se não participasse do banquete. Um verdadeiro escritor não deve esperar louros ou adulações ou se confranger com críticas desairosas, vindas dos demais convivas, dos demais comensais, pois os mesmos podem estar inebriados pelos modismos e não concatenarem bem as ideias. Somente a sobriedade divina pode julgar um escritor. E o divino está em nós, imanente em nosso âmago. Então somente um escritor pode julgar-se a si mesmo, através da lucidez transluzida da sua criação poética.

Se quiseres te imiscuir no pensamento de Deus, nem que seja por um relance, num átimo no tempo, escreva um texto literário. Por um momento fugidio te embeberás no pensamento de um criador, pois estarás num momento de criação e esse é um momento divino. Um escritor não deve ter comedimento com as palavras. No lauto banquete das letras deve ele fartar-se, como um esfomeado, com uma gula indômita, quase frenética. Na Literatura não devemos ter parcimônia, mas sermos glutões. E quem criticar nossa gulodice melhor faria se não participasse do banquete. Um verdadeiro escritor não deve esperar louros ou adulações ou se confranger com críticas desairosas, vindas dos demais convivas, dos demais comensais, pois os mesmos podem estar inebriados pelos modismos e não concatenarem bem as ideias. Somente a sobriedade divina pode julgar um escritor. E o divino está em nós, imanente em nosso âmago. Então somente um escritor pode julgar-se a si mesmo, através da lucidez transluzida da sua criação poética.

     Já havia alguns dias que ele não era visitado pela inspiração, ela já não lhe acossava nas ruas, quando deambulava, flanando, ocioso, na debalde espectativa de ser insuflado pelo seu sopro divino. Há tempo não hauria o líquido capitoso da inspiração e se inebriava. Ele se sentia um abstêmio da inspiração e isso para um escritor era um suplício pungentemente aflitivo, dolente, como uma aguilhoada do desencanto. O desalento!

     Aquele dia não fizera diferente. Saíra ao encontro da sua musa, a inspiração. Porém, como se sucedia já a algum tempo, não a encontrara.

     Precisava voltar para casa. Já era quase noite. Ainda teria que pegar o seu jantar, no caminho. A vianda encomendada no boteco. Toda a manhã e a tarde deixava num determinado estabelecimento a sua indefectível marmita a fim de tê-los, na hora aprazada, o seu almoço e o seu jantar. A comida era simples, mas era boa. Apreciava, sobremaneira, a higiene do local e o capricho dispensado no preparo de cada prato. Os temperos, o sabor! Bem do seu agrado. Apesar dos parcos recursos que dispunha nesse comenos era exigente. Na hora do almoço ou do jantar comer bem. Não era afeito ao refinado. O refinado para ele soava insosso. E isso valia não só para os pratos requintados mas para toda a postura afetada, denotando uma pomposidade desmedida, no intuito, embalde, de sufocar, obliterar, a miséria do próprio espírito.

     Chegou à soleira do aludido botequim. Relanceou o ambiente. Poucas mesas, até o momento, ocupadas. A sua preferida, no cantinho preferido, estava disponível. Deu um indisfarçado sorriso de canto de boca e prontamente se dirigiu ao balção de atendimento. Lá foi bem atendido, inclusive, seu nome pronunciado, visto já ser conhecido pelo atendente. Veio-lhe a marmita. Fumegava e exalava o perfume de boa comida. Estava com fome. Porém não comeria ali. Nunca almoçava ou jantava ali. A vianda levava para casa, bem do outro lado da rua. Lá fazia sua refeição. Ah, ele tinha suas manias, suas excentricidades. Sempre, antes do almoço ou jantar, pedia uma xícara de café preto. Apreciava um bom café. E ali serviam um bom café. Bem ao seu gosto. O café, esse sim, tomava sempre ali, justamente na mesa disposta naquele seu cantinho predileto. Remexeu na algibeira do seu casaco, retirando dela o pagamento pelo solicitado. Recebeu o troco. Agradeceu a solicitude no atendimento por parte do atendente e se dirigiu à mesa, na qual aguardaria que servissem o café. Sentou-se, dispôs a marmita sobre a mesa. Na outra algibeira do casaco, aquela que não continha o dinheiro, tirou uma caderneta e uma caneta, utensílios que sempre levava consigo, onde quer que fosse, caso a inspiração lhe insinuasse que se imiscuiria em seu pensamento e lhe instigasse a criar. Então se não tivesse um papel e um lápis ou caneta, entrava num desespero incontido, num flébil suspiro, descambando para um plangente descontrole. Colocou a caderneta e a caneta sobre a mesa, bem a sua frente e ficou, por um lapso de tempo, a olhá-las. Quem o visse nesse estado contemplativo ficaria, por certo, condoído. Estaria ele esperando algum momento mágico? Esperava que o condão da literatura, em um feérico momento, pudesse lhe agraciar com seu toque encantado e despertar em si a luz da inspiração. Porém não vinha! A inspiração não vinha! Obstinava-se nesse tocante.

     - Por que, oh imaginação! Oh fonte inexaurível de ideias! Por que não me lenteja com um aljôfar, ao menos, da sua linfa poética? Será que a imaginação, a inspiração, é uma mercenária, condicionando a sua aproximação com o estar o escritor abastado ou depauperado, nesse último estado afastando-se do mesmo, desdenhosa?

     Afastou com celeridade esse pensamento, com a lepidez dos pensamentos justos, que tão prontamente vêm acorrer o espírito no intuito de debelar os pensamentos indignos. Aquele era, indubitavelmente, um pensamento indigno. Foi, com premência, subjugado.

     Fez uma oração, mentalmente:

     - Percebo, agora, que dedicava meus escritos pra nem uma outra além de ti. Bajulação não foi o que me inculcou ao espírito oferecer-lhe os mesmos, pois pia e de boa-mente, numa visão quase que entéia, ao pressentir-te ao meu lado, outra intenção não me veio ao espírito, outra não o tocou, além de enaltecer-te. Tu me cativas pelo teu olhar de lenidade e eu, incrivelmente, apeteço estar enfeitiçado, enleado nesse encanto! Amo-te, oh flor imarcescível do labor literário. Oh literatura!

     Seu café chegou, promovendo digressão em seu pensamento, e um certo sentimento de desconforto, suscitado pelo acompanhamento que lhe seguiu. Juntamente com o café o atendente lhe entregou uma rosa. Uma olorosa flor. Adornada com esmero, com elementos delicamente dispostos em seu invólucro plastificado. O atendente, tendo a xícara de café, encimada num pires, e a rosa enfeitada, dispostas em uma bandeja, silente, foi depositando cada um desses elementos na mesa do escritor, que aguardava, tácito, não expressando nenhum tipo de emoção além de aturdimento e expectativa. Depois de colocadas a sua frente a xícara de café e ao lado a rosa enfeitada, o atendente, então, lhe dirigiu a palavra, cerimoniosamente:

     - Senhor, uma digníssima dama, de beleza estonteante, que não quis identificar-se, ofereceu-te essa flor. Apenas disse ela que a mesma é em sinal de apreço e dileta afeição. - Disse-lhe, sem afetação ou dictério, o compenetrado atendente, sempre obsequioso.

     Ao exposto pelo outro o aturdido escritor saindo do seu torpor olhou em todas as direções, se atendo em cada mesa e em cada comensal, com o intuito de identificar, por qualquer gesto denunciador, ou pela descrição feita pelo atendente, qual fosse a digníssima dama que lhe ofertara tão cândido mimo. Porém embalde foi sua tentativa nesse tocante. Cada comensal, em cada mesa, lhe era indiferente, não parecia demonstrar qualquer laivo ou sinal que patenteasse ser a personagem de tal assomo, posto que era um ato inegavelmente impetuoso. Tampouco havia ali uma dama com os atributos aludidos.

     - Meu senhor, ela aqui não está. Chegou de supetão e pretextando premência, pois tinha outros afazeres que lhe requeriam atenção, deixou-lhe também esse bilhete e, inopinadamente, deixou esse estabelecimento. - Prontamente o atendente recolheu um envelope, o qual estava oculto na bandeja, e lhe entregou em mãos e com reverência respeitosa se afastou.

     O escritor, num fugidio meneio, agradeceu a sempre solicitude do atendente e recebeu o envelope entre seus dedos. Era um envelope pequeno, discreto, alvacento. Não havia nenhum caractere em sua superfície, nada que identificasse o remetente. Prontamente, sem titubear, levantou a aba do envelope, o qual não estava lacrado e dele tirou um singelo cartão, no qual, em letras cursivas, mas meticulosamente trabalhadas, em seus mais refinados detalhes, ele pode ler essas enigmáticas linhas:

     - Flores são murcháveis, como murcháveis são os entrajes que revestem as almas, os corpos. Porém a recendência olorosa do perfume das flores tem a imarcescibilidade do espírito, pois ambos se desasiam das formas perecíveis quando essas se estiolam, fenecendo, e evolam pelos ares, sem perderem sua personalidade, sua olência peculiar. Eis porque oferecemos flores para quem estimamos, pois as flores possuem a imanência de seu perfume que perpassa rente ao coração e impregna-o de dulcíflua ternura, indelével, como o sentimento que provém do espírito que lha ofertou, mesmo depois que murcharem. Sua dileta amiga. Post-scriptum: Talvez nos veremos mais tarde, então não deixa a flor fenecer. Quero vê-la quando nos encontrarmos. Um ósculo melifluindo ternura.

     - Estranho! “Dileta amiga”? Quem será essa “dileta amiga”? E “mais tarde”! Hoje, ainda? Onde? - Percebeu que havia falado um pouco alto, que havia externado o seu pensamento. Olhou, desconfiado, para todos os lados, mas ninguém pareceu ser importunado ou ele haver suscitado a atenção, os olhares indiscretos, para si. Nenhum dos comensais pareceu se abalar. Nenhum olhar lhe incidiu. Apaziguou-se no tocante a esse temor. Tomou um gole de café. Havia olvidado o seu café! Ah, aquele café! Parecia que o mesmo lhe infundia um ânimo incotejável ao seu espírito, uma disposição tal, na verdade, uma predisposição, que parecia que ele poderia suplantar qualquer revés, qualquer adversidade. Pensou ele, pensamento estranho! Deveras estranho:

     - O desencanto pode estiolar ou arrefecer o ânimo do espírito, mas nada como o lenitivo de um bom café para soerguer-lo, arrimando-o, novamente, colocando-o nas mãos da alentadora inspiração.

     Sorriu a esse pensamento e tomou mais um gole de café.

     Pegou a flor, a qual estava ao lado. Aspirou o seu perfume, num hausto inebriante. Ah, olência de uma insofismabilidade tirante ao aroma de um jardim inteiro, tal a insuflação olorosa que   se imiscuía profundamente, indelevelmente, no espírito. E tendo-a entre os dedos insinuou-se-lhe um pensamento:

      - Não deixarei desasir dos meus dedos essa flor. A sua imaculadamente terei entre os dedos do meu corpo sutil, da minha essência, do meu espírito.

     Tomou o último gole de café, pois o líquido já havia quase todo sido sorvido.

     - Preciso ir. - Pensou. - Minha admiradora, certamente, saberá onde me encontrar, caso deseje ter comigo, caso mais tarde deseje ver-me.

     Colocou nas algibeiras do casaco a caderneta e a caneta, sem ao menos transcrever para o papel um simples trecho de um enredo literário, em forma de garrancho, que é como escrevia, em suas andanças, em seu flanar, quando a inspiração, de chofre, lhe surgia, para, posteriormente, passar a limpo quando chegasse a se sentar em frente à sua escrivaninha. Guardou, também, o bilhete recebido. Pegou a marmita em uma das mãos, em outra pegou a rosa, gentilmente, com donaire. Era um gentil-homem. Não era abastado das graças da opulência financeira, mas na botoeira da lapela de seu casaco, invisível aos olhos dos profanos, os gracejadores de plantão, havia um botão de comenda, distinção dos homens nobres, garbosos, expressa essa em seus gestos, em seu proceder e em suas palavras, bem como em seus pensamentos. Em resumo, um homem digno de ser insuflado da luz que a literatura concede aos seus eleitos.

     Um anjo osculou a face de Deus e então, alipotente, ruflou, em silente estrondo no céu, a antéia inspiração, e evolou, adejando sobre as frontes dos poetas e dos escritores. Esse pensamento ficou no ar, sobraçado pelo encanto do momento.

     - É engraçado como somos volúveis! Mas isso não é doblez, dissimulação, é inconstância, mesmo. Quando aqui cheguei estava cabisbaixo, arrefecido em meu ânimo. Agora, ao sair, me sinto refocilado, revigorado, denodado. Como somos susceptíveis à influências das circunstâncias, dos acontecimentos ou das ações por outrem praticada em nosso favor ou desfavor. Ah, somos muito melindrosos! - Ele sorriu a esse pensamento, enquanto transpunha a soleira da porta daquele estabelecimento, ganhando a calçada e posteriormente a rua.

     Atravessou a rua e adentrou à pensão onde morava. No saguão da mesma saudou o porteiro atrás do balcão de atendimento e a ele se dirigiu. Ao mesmo solicitou a chave do seu quarto e então ao mesmo se deslocou. Subiu dois lanços de escada e no patamar, no qual se encontrava seu quarto, parou em frente a soleira da porta do mesmo, depositando a marmita, por um instante, sobre as bordas de uma ânfora, ao lado, um adorno, e ainda segurando com a outra mão a delicada rosa, pegou as chaves do quarto, a qual havia colocado em um dos bolsos da calça e com dois giros da mesma na fechadura, abriu a porta do seu quarto.

     Era um quarto simples, porém aconchegando e bem asseado. Não era exíguo, também não era espaçoso. Era cômodo para uma pessoa. Uma escrivaninha num dos cantos, uma cama em um outro. Um tapete bem trabalhado, ao chão, ao lado da cama. Um ropeiro em outro canto. Uma pequena geladeira em um dos cantos. Logo afrente da mesma uma pequena mesa, ladeada por quatro banquetas. Ao lado da geladeira uma pequena pia, encimada em um balcão de duas portas e gavetas, nas quais estavam guardados os utensílios de cozinha, algumas panelas, talheres. Ao lado um fogareiro de ferro fundido e um botijão de gás. Ao lado da cama uma confortável poltrona. Ao lado da escrivaninha uma ampla janela com vista para a rua.

     Depositou a marmita sobre a escrivaninha. Estava fumegando ainda. Sinal de que a comida estava ainda quente. Colocou a rosa também sobre a escrivaninha. Pegou um vaso de flor no balcão da pia e enchendo o mesma com a água da torneira da pia colocou, delicadamente a rosa no mesmo e depositou o vaso na escrivaninha. Tirou da algibeira do casaco o bilhete recebido e depositou ao lado do vaso com a rosa. Feito isso tirou o casaco e o colocou sobre a cama. Pegou a toalha de banho, alguns utensílios para o mesmo, junto ao ropeiro e se dirigiu ao banheiro, do lado de fora do quarto, no final do corredor. Tomou um rápido banho e voltou ao quarto.

     Depois de ter asseado seu corpo e sentir-se abluído e leve, preparou, enfim, o clima para o jantar. Pegou uma toalhinha de mesa em uma das gavetas do balcão da pia e a estendeu sobre a escrivaninha. Sobre a mesma depositou a marmita. Pegou os talheres e os depositou ao lado. Pegou um copo já limpo, sobre a pia e encheu-o com um suco natural de laranja, já preparado, na geladeira e o depôs, também sobre a toalhinha, na escrivaninha. O ritual do jantar ainda não estava completo. Faltava uma coisa. Abriu uma portinhola na escrivaninha e em seu interior retirou um mini aparelho de compact disc e rádio. Colocou-o sobre a escrivaninha. Pegou um dos Cds, retirando-o de um compartimento de porta-cds em um dos cantos da escrivaninha. Pegou o do Beethoven, justamente a Nona Sinfonia. Colocou o cd no aparelho e ligou-o a uma tomada, localizada na parede, logo acima, ao lado da escrivaninha. Apertou o botão do play no aparelho e o cd começou a girar dentro do aparelho. A música começou a tocar.

     Ele, então, abriu a marmita e nesse comenos exalou da mesma um apetecível aroma de refeição. Agradável de sobejo! Apreciou o aspecto da comida. Realmente, de um aspecto agradável e convidativo. Estava com fome. Começou a comer e a beber o suco, enquanto se embevecia com a maviosa sinfonia. Seu espírito divagava, ia ao limiar da paraíso e ouvia nesgas de um som divino. Ah, a Nona, de Beethoven!

     - A música tem o poder de enlevar, de extasiar, de enternecer o coração. Mas ela por si só não te embevecerá, não te comoverá se não buscares a comunhão com a mesma, se não buscares soar em uníssono com a mesma, não te imiscuíres em sua melodia, não deixares que ela insufle em tua alma a placidez e blandície de sua harmonia. Deixe que a música te embeba com sua fluidez estonteante, que ela te remonte a alguns pensamentos, algumas imagens olvidadas, repousadas em teu passado, nos recônditos de tua alma, e te faça , concomitantemente, relancear em vislumbres do infinito. A música tem este poder. O poder de ser extemporânea, de te fazer incursionar no tempo, de desnudar-te, de desvelar tua fragilidade e ao mesmo tempo deixar às escâncaras teu potencial, tua grandeza infinita. - Ele buscava, através desse pensamento e do seu sentimento, vibrar em uníssono com a música que lhe chegava aos ouvidos e se imiscuía em seu espírito.

     Enquanto ouvia aquela música, de uma maviosidade divina, ia saboreando, com parcimônia, cada porção da comida, degustando a mesma com prazer.

     Na metade do segundo movimento havia terminado sua refeição e enquanto a música seguia foi desfazendo a improvisada mesa do jantar, retirando a toalha, a dobrando e a depositando na mesma gaveta do balcão da pia. Colocou a marmita, os talheres e o copo sobre a pia.

     Nesse ínterim seu pensamento deambulava, ao léu:

     - O apetecíveis a um escritor é fartar-se no lauto banquete das letras e após refocilar-se na alfombra do encanto, sob a sombra aprazível do deleite, do embevecimento.

     Novamente se sentou em sua dileta cadeira em frente à escrivaninha, se encostando, prazeirosamente, em seu espaldar. A sinfonia principiava seu terceiro movimento. Esse ele apreciava, sobremaneira. Suave, delicado, ritmado, melodioso. Fechou os olhos. Ia sentia a música percorrendo todo o seu corpo, melifluindo nele.

     Foi então que ouviu alguém bater à porta.

     Saindo do seu enlevo e esperando um átimo de tempo até o seu espírito retomar o seu lugar junto ao mesmo ouviu segunda batida. Indubitavelmente alguém estava a bater em sua porta. Então, sem mais delongas, ele foi abri-la. Será que era aquela dama da rosa. Olhou, de soslaio, a rosa enfeitada naquele vaso. Se fosse ela não deixaria que esperasse mais, do lado de fora. Foi, lépido, abrir a porta. Quando a abriu o inusitado, o inesperado. Não havia ninguém à soleira. Não havia ninguém! Podia jurar que ouvira batidas à sua porta. Porém esse fato também era inegável. Não havia ninguém do lado de fora. Fechou a porta, cismarento. O terceiro movimento continuava a soar melifluamente.

     Ele então ensimesmado em sua cisma cogitou houvesse sido acometido por algum equívoco, algum ardil inconfessável do engano, talvez seu cérebro não estivesse concatenando bem as idéias. - Riu-se desse pensamento risível, por certo! - Ou talvez seu espírito estivesse em outra realidade e tivesse se confundido em seu julgamento. É possível que, em verdade, ninguém houvesse efetivamente batido à sua porta naquele átimo de tempo. Volveu, então, desanuviado o pensamento e afastada a cisma, à sua escrivaninha. Sentou-se, novamente, na confortável cadeira e continuou a ouvir o terceiro movimento daquela excelsa sinfonia.
     Involuntariamente, como que acometido por um encantamento ele retirou numa das gavetas da escrivaninha o seu bloco especial, um fichário personalizado, no qual transcrevia, agora em letras inteligíveis e precisas as suas anotações anteriores, coligindo e concatenando o pensamento, antes disperso. Pegou, também, na mesma gaveta a sua tinteiro especial. A sua caneta favorita e esperou a inspiração se aproximar, depositando esses elementos encima da escrivaninha, à sua frente. Aspirou, num hausto profundo, o olor inebriante e dulcífluo daquela rosa. Ah, deleite! O terceiro movimento prosseguia.

     - Escrevemos para desopilar o nosso espírito, para refocilá-lo no aprazível recanto das letras e se, de permeio, nessa verve, nesse estro tão nosso, agradarmos a outro além de nós mesmos... Ah! Isso será inefável. - Foi esse o pensamento que, inopinadamente dele se aproximou e se imiscuiu em sua mente.

     Pressentindo uma presença, pelos sentidos do espírito, volveu, de supetão, seu tronco e seu olhar em direção, precisamente, a poltrona ou lado da cama. Nela alguém estava sentado.

     O outro, um jovem, aparentando ter a sua idade, bem vestido, confortavelmente instalado naquela sua poltrona, lhe incidiu um sorriso brando e descontraído, um olhar de blandície e serenidade. Falou, e sua voz parecia se imiscuir no espírito do outro, ser ouvida pelos sentidos do espírito e não pelos sentidos ordinários da veste carnal:

     - Meu estimado amigo, não tenha receio. Eu me apresento. Serei, precisamente, o personagem principal do teu próximo livro, que agora iremos, juntos, escrever. És um agraciado, sem dúvida! A excelsa dama raramente oferece a sua imarcescível rosa a alguém. Deves ser um dileto afeto dela. Indubitavelmente, o deves ser! Inopinadamente aquele personagem transladou-se, como esvanecendo-se no espaço antes ocupado, para se materializar ao lado do outro, atônito.

     - Escrevemos, então! Vamos ao trabalho! As idéias estão fervilhando em meu ser, em cada refolho do meu ser. A inspiração é a fonte inexaurível das idéias, mas temos que aproveitar cada gota dessa linfa, sem desperdiçarmos uma gota sequer, pois cada gota é única. Vamos a escrita, meu amigo, pois meus dedos já estão comichando. - Riu-se o outro, a bem rir. Num riso solto e jovial.

     Quando se escreve parte da alma fica impregnada na urdidura do enredo, porém não se perde essa parte da alma que lá ficou. Ela, além de permanecer imanente na integridade do ser, adquire vida própria nessa outra dimensão chamada literatura.

     O apoteótico quarto movimento daquela sublime sinfonia melifluia, com todo seu esfuziante esplendor, enquanto os enlevados jovens, inspirados pela excelsa dama, compunham um futuro romance.

     Na manhã seguinte, extenuado, vamos encontrar o jovem escritor a dormir ainda, a cabeça decaída sobre a escrivaninha, apoiada sobre seus braços. Ao lado várias laudas preenchidas pelos caracteres mágicos de mais uma obra literária principiada.

     Assim nós chamávamos a literatura: “A excelsa dama”.


Biografia:
Valdecir de Oliveira Anselmo, cujo pseudônimo Literário é Dileto Aedo dos Anjos, nasceu na cidade de Tapejara, interior do Estado do Rio Grande do Sul, em data de dezoito de julho do ano de 1969 e mora, atualmente, na cidade de Caxias do Sul, no mesmo Estado. Filho de Pedro Ari Souza Anselmo e de Dejanira de Oliveira Anselmo, o mesmo é Bibliotecário, formado pela Fundação Universidade do Rio Grande, no ano de 1999. Diletante da poesia, escreve desde 1991, sob a égide desse gênero. Membro Efetivo da Academia Caxiense de Letras - ACL - RS - Caxias do Sul - RS - Cadeira 23 Contato com o escritor: valdeciranselmo@gmail.com Site literário: http://sites.google.com/site/diletoaedodosanjos Gênero literário ao qual se dedica: Poesia, Novela, Conto Livros publicados: ANSELMO, Valdecir de Oliveira. Cálido ósculo do encanto. Caxias do Sul: ed. do autor, 1991. (Poema) ANSELMO, Valdecir de Oliveira. Fluidez. Caxias do Sul: ed. do autor, 1991. (Poema) ANSELMO, Valdecir de Oliveira. Recendência. Rio de Janeiro: Quártica, 2008. (Poema) ANSELMO, Valdecir de Oliveira. Estro: engenho poético. Rio de Janeiro: Quártica, 2009. Poema) ANSELMO, Valdecir de Oliveira. Transcendência. Rio de Janeiro: Quártica, 2009. (Novela)
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