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MUITAS FELICIDADES, MUITOS ANOS DE VIDA
ivete tôrres

É cedo. Não vê a janela, mas sente que está aberta. A temperatura amena, com o calor de um sol tímido. Ouvira dizer que estão no outono, estação que sempre fora a sua predileta.   
       
Parece que está sozinha. Aguça os ouvidos para detectar algum som. Passos firmes logo entram no quarto. Bom dia, Elisa. Temos um céu azul como tu gostas. Diz Estela, ajeitando as cobertas e beijando a irmã com carinho. - Trouxe tuas rosas preferidas.

O som da água saindo da torneira diz que Estela está colocando as rosas amarelas no vaso. Depois se aproxima da cama, pega a mão da irmã e passa no rosto. As lágrimas quentes molham a mão de Elisa.

- A Elba e a Eliane virão mais tarde. O Elbio, o pai e a mãe vieram comigo e estão conversando com o médico.

Fica se perguntando por que a família E resolveu se reunir no hospital. Desde criança eles mesmos se chamavam assim. São seis irmãos. Os pais, Edson e Ester, deram o nome aos filhos com as iniciais de seus próprios. O que não atrapalhou muito suas vidas. Estela não falou na Eunice. Será que ela não vem? A irmã responde: - Foi uma pena a Eunice ter que voltar para São Paulo. Senão estaríamos todos juntos hoje.

Nisso ouve a porta do quarto. As vozes do pai e do irmão se confundem falando ao mesmo tempo. Chegam à beira da cama e o toque da mãe é inconfundível.

- Como passastes filha? – pergunta com a voz embargada.

- Estou bem, minha mãe. Não chore – tem vontade de dizer. E até diz. Mas ninguém ouve.

Uma enfermeira entra e estranha estarem quase todos ali. Normalmente se revezam no cuidado com a irmã. Elbio esclarece:

- É seu aniversário, quarenta anos. Infelizmente é o segundo ano que passamos aqui. Um acidente, o coma e nada. Agora não tem movimentos, não fala, não ouve, nem enxerga. Parece ser irreversível. Sabe Deus até quando.

- Pois eu não perco as esperanças, diz Eliane entrando nesse momento. Tenho fé que um dia vou chegar aqui e ela vai me reconhecer e até pedir para ler um livro, como fazia quando éramos crianças.

Estela sorri tristemente:

- É mesmo. Vocês lembram de terem visto algum dia a Elisa sem um livro na mão? Eu, nunca.

- Livro? – pergunta Elba, a irmã gêmea com Elbio. Livro, revista, jornal. Tudo. Tenho certeza que se ela agora pudesse nos dizer do que sente mais falta, diria: de ler.

Surpresa para ela. Não sabia que é seu aniversário. Elba tem razão. Muitas coisas lhe fazem falta. Abraçar alguém, ver as pessoas, andar sem rumo, dançar, ouvir música, cantar, conversar. Mas ler é o que lhe faz mais falta. Fora uma criança normal e uma adolescente como qualquer outra. Apenas um diferencial: estava sempre às voltas com livros.    
       
Elisa sofre. Sofre por não poder dizer que ouve tudo que se passa ali. Que não pode se mexer, não pode enxergar, mas pode sentir. Sofre por não poder dizer que não quer viver assim. Que se pudesse escolher, pediria a morte. Dói saber do sofrimento daquelas pessoas que ama tanto e que lhe querem tão bem. Se pudesse pediria a eles que pusessem fim à sua agonia. Que numa prova de amor desligassem os aparelhos que a mantém respirando, e assim a tornassem livre.

O dia passa. Seus familiares dão por terminada a visita. Amanhã, um deles voltará.

Como todos os dias, conversa com Deus. Volta ao mesmo pedido: quer morrer. Não suporta mais. Mas Ele não a ouve ou não quer ouvir. E assim, pela manhã ainda estará presa à cama.

O sono chega de mansinho, mas logo acorda. Uma voz chama por ela. Vira a cabeça e vê uma grande porta que está aberta. A voz vem dali:

- Elisa. Vem Elisa, aqui. Levanta!

Sem pensar, afasta as cobertas. Sai da cama. E se surpreende:

- Eu estou curada. Eliane estava certa. Não se pode perder a esperança. Implorei tanto para morrer e agora estou de pé. Preciso avisar minha gente.

Eis que olha para a cama. Não está vazia. Deitada com tubos no nariz e na boca, uma Elisa magrinha, pálida. Tão sem vida, que ela quase não reconhece.

A voz volta a chamar:

- Vem Elisa, vem logo.

Confusa, reluta em obedecer ao chamado. Chega até a porta. Diante de si tem uma sala toda iluminada. E com os braços estendidos em sua direção, uma bela senhora com os cabelos azulados como usavam antigamente. Se parece com minha avó Maria Eugênia. Mas não pode ser ela morreu há tanto tempo!

- Feliz aniversário, minha neta. Tenho uma sala cheia de livros para te dar. Não tenha medo. Vou te levar daqui.

Dito isto pega a mão de Elisa, que se deixa conduzir para dentro da sala. Atrás de si as folhas da enorme porta começam a se fechar, mas ainda pode ver a outra Elisa cativa do leito de hospital. Ela, não mais.






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