O sonho recorrente de Aline
Aline havia decidido ir ao cinema, mas quando viu o sofá de sua sala disponível para um bom descanso mudou de ideia, porém assistiu a um filme, pois nesta hora iniciava a sessão de sábado pela TV. Na verdade, ela apenas começou a assisti-lo porque estava mesmo cansada e adormeceu logo e profundamente. Mas mesmo assim não o perdeu, melhor, passou a fazer parte dele através de seu mecanismo de sonhos filme.
Nessa condição, ela tem o poder de conversar os personagens, se intrometer... O que em princípio poderia ser interessante caso não criasse tanta confusão.
Para dizer verdade, no começo da sessão, ela ficou quieta e apreciou as belas paisagens, uma praia recheada de coqueirais. Mas o desejo de se intrometer foi maior que a passividade, até porque achou que era da sua competência impedir que a personagem rei, que já cavalgava pela estrada, sofresse uma terrível emboscada. E então, mais do que depressa, com um aceno de mão, ela parou a comitiva. Agora precisava interromper a viagem, coisa muito difícil em se tratando de um rei muito teimoso e mal agradecido.
-Quem ousa parar a comitiva Real? Montando um belo cavalo branco, o rei fez cara de que não gostou nem um pouquinho de ter o seu passeio interrompido.
Aline percebeu isso e tentou se explicar.
-Desculpe Rei Arthur, o senhor não me conhece, portanto devo me apresentar. O meu nome é Aline, eu trabalho no SERPRO. A minha participação nesta película é evitar as desgraças. Dessa forma, é meu dever avisá-lo de que será assassinado na próxima curva da estrada!
O homem deu uma risada escandalosa, pois como rei achava que ninguém teria a petulância de querer assassiná-lo. Ademais caso quisesse isso seria impossível porque ele tinha uma guarda inteira para protegê-lo, ou não? Diante da dúvida e vendo que a garota não arredava pé, também ficou sério e perguntou.
-Por acaso é alguma bruxa? Sabe prever o futuro?
-Não sou bruxa e não prevejo nada. Respondeu Aline, agora além de séria, fez cara de brava. Eu sei o que vai lhe acontecer porque sou uma telespectadora que já assistiu a esse filme centenas de vezes, desde pequenininha e fui crescendo. Pelas minhas contas, acho que com esta inteira setenta vezes que o assisto nas quais o senhor foi assassinado e desta vez não será diferente. Explicou.
O rei coçou a cabeça, pensou, pensou no conselho que ouviu, mas decidiu não segui-lo, primeiro porque vinha de uma personagem extra... E segundo porque o seu sexto sentido lhe dizia que aquela garota era uma impostora. Caso não fosse deveria sê-lo.
-Olhe aqui. Disse ele apontando o dedo cheio de anéis de ouro. Saia já do meu caminho ou eu não me responsabilizarei pelos meus atos. Como ousas interromper a cavalgada vespertina de um rei? Por menos, mandei decapitar as cabeças de muita gente.
Diante da ameaça Aline deixou a estrada livre para sua majestade seguir adiante, mas protestou contra essa situação, em pensamento.
-Nunca vi rei mais burro!
E conforme ela previu e principalmente avisou logo adiante se deu a cena do assassinato. Um cavaleiro mascarado e seus comparsas mataram o rei a flechadas, sem dó nem piedade. Nessa hora Aline disse para quem em sua companhia também assistia ao filme em tom de vitoriosa:
-Eu não avisei? Quem avisa amigo é.
-Xiiii! Responderam.
Mas agora ela tinha a pior tarefa de seu sonho filme, comunicar a rainha filha sobre autoria do crime, ou seja, esclarecer que o assassino era Claucus e não o Claussius a quem injustamente recairia a culpa caso ela não fizesse nada. Eram gêmeos, mas um era do bem e o outro era do mal. Então tratou de ser a mais rápida possível. Pegou um atalho, passou por cima uma pinguela, atravessou debaixo de uma cerca de arame farpado, entrou pela porta do fundo do castelo, mas tanto esforço valeu a pena porque chegou aos aposentos da rainha antes do malvado assassino. Ufa!
-Rainha! Rainha! Gritou esbaforida.
-Como ousas entrar nos aposentos da rainha sem permissão? Rebateu a nobre.
-Perdoe-me. Sei que é errado entrar nos aposentos de uma nobre sem permissão, conforme aprendi nos filmes de reis que já assisti, mas asseguro que o fiz por uma boa causa. Venho avisar que dentro de poucos minutos receberá a notícia de que seu pai foi assassinado pelo Claussius, mas não acredite não, viu, pois eu vi com esses olhos que a terra há de comer o assassino foi outro, ou seja, o Claucus, o irmão do mal. Bom, agora que já fiz a minha parte nesta história dê licença que eu já vou indo... Tenho de voltar mais cedo ao Guará.
A rainha botou as mãos na cintura e num gesto de quem desejava zombar, segurou Aline pelo braço e perguntou.
-Ó dona! De que hospício você fugiu? Isso aqui é um filme! Se você não sabe, vai ficar sabendo que não se muda o roteiro de um filme depois de tudo filmado.
Só que Aline fez cara de quem perdera as paciências, mas ainda sobrava uma pequena tolerância que lhe permitiu deixar claro certos fatos que aquela loira-rainha-atriz ainda não tinha entendido:
-Presta atenção! Eu não faço parte dos artistas do filme. Mas é justamente por isso que eu tenho direito de escolha... Ou melhor, se eu quiser assistir ao filme eu assisto, porque por outro lado se eu quiser, eu sonho o filme e ninguém tem nada a ver com isso. Nesta hora eu estou sonhando o filme, entendeu?
-Está bem. Concordou a Rainha. Seja como você quiser, não precisa ficar brava, basta explicar o que deseja que eu lhe atendo... Aliás, é para isso que servem as atrizes, representar o que lhe pedem.
-Muito bem. Suspirou Aline aliviada. Então quando o safado do Glaucus chegar aqui, tentando lhe convencer que ele não foi o assassino do seu pai, com a cara mais deslavada desse mundo, acredite nele não, mande os soldados prendê-lo e pronto.
Assim aconteceu. Em alguns minutos apareceu na tela a seguinte frase final: The End, pois o filme era brasileiro. Mas o final não agradou a Aline que protestou:
-Cadê a luta do mocinho contra o bandido e o beijo final?
Outras pessoas que também assistiram ao filme, saindo do cinema, ajeitando seus cabelos e casacos respondera sua pergunta:
-Você mudou tudo, não mudou? Agora não adianta reclamar do fim.
... De volta à realidade, a mãe de Aline a acorda, preocupada porque ela falava enquanto dormia... E não era para menos, pois tinha almoçado muito alface.
-Acorda filha, você está tendo um pesadelo.
Aline coçou os olhos e explicou:
-Não é pesadelo, não, mãe. Eu tive aquele sonho de ficar no meio do filme outra vez.
A mãe de Aline coçou a cabeça e fez a pergunta que não queria se calar.
-Dessa vez você não caiu na besteira de avisar a rainha sobre quem era o assassino, caiu?
Aline fez beiço e confessou o seu erro:
-Pior que caí!
Fim, ou melhor, The End.
|