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O herege
João Felinto Neto

Resumo:
Não acreditar em Deus, não significa que todos os valores morais e éticos caiam por terra; que o bem e o mal nada signifiquem, ao contrário, o apego à vida e o respeito mútuo aumentam pela própria condição humana de uma vida passageira e finita. A consciência de que apenas a matéria prevalece em outras formas é o ânimo e a esperança de que de algum modo somos eternos. Os laços sociais seriam reforçados e as afeições enaltecidas, pois na hora do desespero, diante do desamparo, procuraríamos nosso semelhante. Não precisamos de Deus para exaltar o que temos de bom e nem tampouco do Diabo para amainar o que temos de mau. Precisamos aprender a lidar com forças naturais e racionais que nos norteiam para tornar o mundo mais justo, com respeito mútuo, sem intolerância e prezando ao próximo; sabendo que como indivíduo, o nosso tempo é relativamente curto; que teremos um fim e que jamais haverá volta. Com certeza, Deus é apenas um entrave para que o homem aprenda a respeitar o ambiente, pois o seu desleixo com esse mundo é a sua ilusão com um céu de harmonia e paz. Façamos de nosso planeta vivo, um paraíso, no qual Deus seja apenas uma lenda como Papai-noel, um velhinho de barba que presenteia as crianças, e não um ser irado que nos condena ao eterno martírio por ultrapassarmos condições impostas e que nos oferece a salvação desde que o adoremos. Por incrível que pareça o mundo com toda a sua evolução ainda é uma criança que acredita em seres e lugares mitológico-religiosos, Deus, Diabo, anjos, céu, inferno etc. Quando iremos crescer e resolver nossos conflitos existenciais racionalmente? Quando iremos envelhecer e aceitarmos que por tudo o que passamos valeu a pena e que não é preciso ser eterno para ser feliz e completo? Nenhum céu, oferecerá uma realidade tão maravilhosa como a vida. Nenhum inferno será tão impiedoso quanto o martírio religioso, a milhares de anos, cominado à mente humana.

Tomo I

Entre a cruz e a espada

Em meus lábios o Diabo põe a língua.
Ele me ensina o pecado, me devassa.
Ele me arrasta a seguir sua doutrina
E de cima, esparge uma nuvem de fumaça.

Chega Deus, em minha face, dá um tapa.
Descarrega sua raiva em sua mão.
Ainda tem a ilusão que minha alma
Pode ser elevada à salvação.

E promete no seu céu, a eternidade.
Sem vontade, sem delícia, sem prazer,
Sem poder, sem martírio, só bondade;
Sem vaidade, sem razão e sem porquê.

O Diabo então si ri, em gargalhada.
“Ofereces quase nada ao desgraçado.
De que vale do outro lado, uma vida eternizada
Sem sentir nada do que há desse lado?”

Põe-se Deus a falar em harmonia;
Na alegria em poder se elevar;
Não pecar, venerar sua energia.
“Se tardia, poderás se lamentar.”

- Deus, que há? Eu não disse uma palavra.
Tua raiva poderá me condenar.
O Diabo não veio me cobrar, só ensina a minha alma
A ter calma. Minha sina, talvez seja então pecar.

“Calma Sólio, dê uma chance ao Senhor.
Ele tem muito amor para te oferecer.
Um viver repleto de pudor,
Sem calor, sem vontade e sem querer.”

“O que tu, Diabo, podes oferecer?
O prazer além da imaginação;
A razão e a ciência para que possam me esquecer;
A indecência do querer e o fogo da paixão?”

Dessa vez, quem interfere sou eu.
- Basta Deus, já não queres me salvar?
Vou falar, nada disso o Diabo ofereceu.
Disse: “Eu apenas posso te ensinar.”

O Diabo não consegue controlar
Uma risada, faz soar e me faz ensurdecer.
“Esse herege vai te fazer ao céu voltar
E deixá-lo para lá, pros abutres comer.”

“Persevero, arrepende-te de tudo.
Surdo, mudo e sem ter opinião,
Serás então, o bendito e puro fruto
A renovar-se, oculto, dentro do meu coração.”

“Assim não!” O Diabo toma a frente.
“Nada sentes pela alma desse herege.
O que queres é um seguidor demente,
Tão doente que a geena não merece.”

“Alto lá. Como ousa assim falar.
Foste expulso de meu lar, isso não conta?
Desaponta por quereres me superar.
Teu padecer será por fazer tal afronta.”

O Diabo prontifica-se em responder.
“O que tentaste fazer não deu em nada.
Esta casa é meu reino de poder.
Cada ser é uma alma desgarrada.”

“O herege é um exemplo do que digo.
Um fatídico acidente fez nascer sua revolta.
Ante a porta era apenas um mendigo.
Foi tão rico que imputou o pescoço à corda.”

- Ouça agora o que tenho a dizer.
Escolher é uma dádiva da vida.
Não me diga o que devo ou não fazer.
Posso ver que entre vós só há intriga.

- Sou apenas um joguete em vossas mãos.
Empuxão, bem ou mal é o que destina.
Eu julgava que era minha, a decisão.
Ilusão, uma miragem à retina.

Deus ensina com estranha mansidão.
“Meu perdão, tenha fé que ao mundo falta.
Seja a palha que reveste meu colchão,
A oração que ao meu coração aplaca.”

O Diabo ao contrário se exalta.
“Condiscípulo, que falta, o que queres insinuar?
Que ao tomar uma decisão errada
Só terias uma chance, camarada, a de acertar?”

Deus:“Não soubeste de teus dois senhores?
Um ou outro, ou seus valores, terias tu que escolher.
As delícias de viver no céu e seus louvores
Ou os temores da alma no inferno a gemer.”

“Sempre queres ao meu reino difamar.
Queres julgar aquilo que não podes ser.
Quem vai crer que o céu é o lugar
Ideal para ficar uma alma a revivescer.”

Tardiamente então eu pude ver
O meu ser entre a cruz e a espada.
Não estava propenso a ceder.
Deus ou Diabo, subir ou descer a escada?

Encravada estava em minha memória,
A história de uma vida agitada.
Foi amarga com minha triste derrota
Que comporta as pessoas que eu amava.

Fecho os olhos e relembro o começo,
O desejo de ter uma grande família.
Não haveria regresso ao que vejo,
Nem ensejo de voltar àqueles dias.


O autocídio

Era um homem de vida sensata.
Tinha vida cara, tudo que alguém pode ter.
Não me cabia dizer que era dádiva.
Quando via, calava, alguém sem comer.

Meu pecado, as mulheres, seria.
Nos talheres, diria, requinte e tradição.
Minha mão, o poder que cabia,
Não deixava vazia a minha razão.

Minha prole tinha vida cara.
Eram moças prendadas e valentes varões.
Entre dons e herança bastarda,
Mesa farta e grandes decisões.

Conheci quase todo o planeta.
De luneta olhava para o céu.
Meu papel era o dom da caneta.
Minha letra, a de um menestrel.

Mas como se emborca a ampulheta,
Foi estreita a mão que a emborcou
E me imputou uma terrível desfeita.
Tal desfeita, para sempre marcou.

Foi a bordo de luxuoso iate.
A família e parte da tripulação.
A emoção desconhece o desgaste.
Desgaste do homem que perde a razão.

Poucos anos, já nada restava.
Mendigava, o extinto patrão.
Sua mão se abria e fechava
Quando nela botava, alguém, um tostão.

Perdi tudo que a vida me dera.
Numa vela perdi toda a razão.
Em minha mão, nada mais então coubera.
Já não era dono da situação.

Eu me tornei um bêbado inveterado,
Um escravo da miséria e do rancor,
Um homem sem amor, um condenado,
Sempre arrastado ao fundo em que chegou.

Acreditando minha alma, estar presa
Na correnteza de um corpo azarado.
Pobre coitado, jogado na sarjeta,
A mantinha coesa e a arrastava ao pecado.

Ponho uma corda numa árvore que faz sombra.
Não me assombra qual será o resultado.
O meu pecado traria uma chama
Que tornaria santa, minha alma do outro lado.

Sinto o nó cada vez mais apertado.
Um simples laço, minha existência arranca.
Sinto a garganta, e os olhos ejetados.
Um breve estalo, perco toda esperança.

Agora estou entre Deus e o Diabo.
Não há culpado, a decisão foi minha.
O pé caminha na direção do passo
E o acaso, deixou minha alma sozinha.

O Diabo insiste em novamente falar.
“O que há, de minha parte nada tive haver.”
- É verdade o que estás a dizer ou queres me enganar?
Quero ouvir o que será que Deus tem a dizer.

“Sólio, não levo tristeza a ninguém,
Como também não trago nenhuma alegria.
Você duvida, a dúvida faz bem.
Porém, apenas durante a vida.”

“Fique ao meu lado, herege infiel.
Eu sou o mel que adoça a flor.
Sou o amor que mantém terra e céu
Longe do fel, do inferno e da dor.”

“Que Diabos!” O Diabo exclama.
“Sou a chama que acende a paixão,
A vazão do prazer sobre a cama,
A derrama da eterna ilusão.”

Qual dos dois é o prato que mais pesa,
O da reza ou do intenso prazer?
Qual vai ser a escolha, errada ou certa?
É a terra que eu quero escolher.


A visita ao céu

Deus impõe-se. “Vou mostrar o que te espera.”
E assim me leva a um belíssimo lugar
Onde há um tapete só de ervas
E uma esfera que não pára de girar.

Uma luz tão intensa que irradia
Harmonia e o mais puro amor.
Não há dor, não há tédio, não há vida.
Tudo é só energia, sem calor.

Orações e louvores eu ouvia.
Tantas almas vazias de emoção.
Comunhão entre todas que havia
E seguiam a mesma direção.

Não havia discórdia ou intriga.
Não poderia, não havia discussão.
Toda alma sabia o que queria,
Concordavam com a mesma condição.

“Vê herege, a imensidão da paz.
Quer ainda mais do que te oferto.
Vê de perto, todos eles são iguais.
Não há ais, são como robôs de ferro.”

“Não há culpa, nem arrependimento,
Não há tempo que mensure os seus dias.
São vazias as mentes em discernimento.
Treinamento há nas cabeças sadias.”

“Se acaso houver alguma falha
E a alma levante a menor dúvida,
Antes de ser expulsa, é recondicionada
Ao dom da palavra, ser passível de culpa.”

Interrompo ao meu guia universal.
- Se não há mal, nem conflito de interesses;
Esses seres com asas de metal,
Legião tão leal, e o Diabo era um deles?

“Mas os anjos não são como os mortais.
Suas almas jamais tiveram um corpo,
Nem um rosto, nem atos imorais.
Porém Satanás foi sempre um anjo torto.”

“Tudo começou com um imenso vazio.
Foi um desafio a vinda do nada.
Minha carapaça era escuridão e frio,
O corpo esguio em forma de larva.”

“Minhas asas rompem a escuridão.
Dão vazão a energia acumulada.
Emanada minha luz na amplidão
Surge a razão, a extensão do nada.”

“Dei origem ao universo numa enorme explosão.
Só então, criei uma legião de anjos.
Entre tantos, um chegou à perfeição.
Sua ambição me levou a outros planos.”

“Seu poder tinha a dimensão de sua pretensão.
Disse não, e o expulsei com alguns outros,
Eram poucos, mas eram minha criação.
Não havia prisão, os deixei soltos.”

“Resolvi habitar quantos planetas
Minhas veias pudessem irrigar.
Olhe lá, a esfera que encandeia,
Pus, alheia, para deles me lembrar.”

“Pus um caldo primitivo, uma sopa.
Foi à toa que a vida veio brotar.
Tanto lar e não havia uma pessoa.
Mas um dia, à toa, vi a evolução brilhar.”

“Não só em um, mas em muitos deles.
Muitos seres em extrema evolução.
A emoção me tocou somente n’aqueles
Seres que surgiram almas na razão.”

“O azul, a Terra, me tomou toda a atenção.
Vi surgir da evolução de uma primata, minha Eva.
Depois dela, vi surgir o meu Adão.
Foi em vão, o Diabo quis a Terra.”

“Nesse instante começa a nossa guerra,
E a terra dividi em bem e mal.
No final valeria ou não a espera.
É eterna a espera do final.”




“Houve uma civilização mais avançada
Que chegara do espaço sideral.
Foi fatal sua invenção mistificada
Que falava a propósito do sobrenatural.”

“Com o tempo foram poucos os contatos;
Só boatos de alguma exposição.
Distorção de um mundo de letrados
Enganados pela própria erudição.”

“Houve um tempo, fiz um acordo com o Diabo.
Resultado de uma inseminação,
Por uma mão humana tive o filho batizado,
Seu reinado tem enorme duração.”

“O acordo consistia em um teste.
Foi a peste do Diabo quem ganhou.
O meu filho não salvou, nem mesmo a pele.
Em matéria de teste, esse me calejou.”

“Essa foi a única vez que interferi.
Daí foi que decidi que pelo fim aguardaria.
Eu teria assim almas servis,
Prisioneiras vis, em minha hierarquia.”

“Quando vivos, tuas almas são livres.
Teus deslizes, as põe sobre minhas asas
Ou nas malhas de redes invisíveis.
Insensíveis, os anjos, pelo universo, as espalha.”

“Vamos voltar, que o Diabo está se ardendo.
Assim sendo, observe o que verás,
Onde estás e o que fores percebendo;
Vá dizendo, eu desejo ouvir mais.”

- Eu estou em um túnel de vento
Onde o tempo não parece passar.
No lugar, de momento a momento,
Sinto um ameno e adventício pulsar.

- Vejo nuvens. É estranho o enorme silêncio.
É extenso e soberbo, o colorido que há.
Ao girar, muitas vezes, qual moinho de vento,
Não entendo como pude voltar.

O Diabo esperava já um tanto zangado.
Do meu lado, Deus estava de pé.
Minha falta de fé me manteve calado.
O danado do Diabo me pergunta: “- O que é?”

Respondi:- Não é nada. E me mantive calado.
O Diabo insatisfeito com as poucas palavras,
Destilava um veneno há tempos guardado.
Com o seu mal-olhado, me fitava e rosnava.

De repente, acha graça e de mim se aproxima.
Se anima ao dar-me uma sugestão.
“E então, a vez agora é minha.
Não pra cima, o inferno é pro chão.”


A visita ao inferno

O Diabo Põe a mão no meu ombro.
Eu me assombro com tamanha pressão.
Sua visão me deixou mais tristonho,
E com ânimo me arrasta ao chão.

Numa fenda enorme, o chão se abre.
Um detalhe: mistura de sons, uma confusão,
Um enorme vulcão, uma grande cidade,
Parecia ser tarde, quase na escuridão.

O Diabo falou: “ Tudo é intensidade.
Como na jovem idade o efeito da droga.
Hora, aqui não existe, nem qualquer amizade.
A vontade, aqui, é a única moda.”

“Imagine o prazer de um orgasmo
Elevado ao mais alto grau, pela eternidade.
Na verdade o desejo se torna ilimitado
E o resultado é a contínua vontade.”

“Todo o conhecimento é aqui repassado
Aos condenados que buscam explicação.
A visão que terão é desde o vácuo
Ao Deus tão louvado, à razão.”

“Então Sólio, o que me diz, estás pasmo.
O teu estado seria de admiração
Ou então teu estado, ao contrário,
Seria resultado de tua decepção?”

Eu respondo, enfim, à observação do Diabo.
- Estou fadado a dizer-te que sim.
Mas enfim, na balança ainda pesa o outro lado.
Resultado, gostaria de um tempo para mim.

Eis que a fenda que havia se fechado
Num estalo recomeça a se abrir.
Sem sentir já estou do outro lado
Entre Deus e o Diabo, a sorrir.

Ante Deus pus-me então a repetir.
Ao ouvir minha recente petição...
“Então seu desejo é sozinho refletir.
Vais seguir o caminho da extrema solidão.”

- Gostaria de poder pela terra andar,
Repensar até tomar uma decisão.
Se estiver em minha mão, quero acertar.
Ao voltar eu direi qual a minha opção.

- Pediria aos senhores o meu corpo de volta.
Não importa qual será o resultado.
O Diabo e Deus levam então uma prosa.
Eis a glória, eu teria meu espírito implantado.

“Não será tua imagem tão boa quanto antes.
Nos primeiros instantes, vais sentir-se estranho.
Não serás como antanho, sendo os dias distantes.
Reimplante de alma, não estava em meus planos.”




Tomo II

A ressurreição

O meu corpo é da árvore retirado.
É untado o pescoço com um pouco de barro.
Que bizarro, pela boca de Deus meu espírito é sugado
E soprado em meu corpo, pelo nariz. Escarro!

Com um beijo do Diabo eu enfim ressuscito.
Não é nada bonito meu retorno dos mortos.
Meus esforços me deixaram esquisito.
Eu insisto, já não tenho remorsos.

Observo à volta, não é o mesmo lugar.
Nada há, só areia, é um infenso deserto.
É decerto um lugar que permite pensar.
Ao olhar, qual dos dois me levou tão a sério?

Um mistério, o que eu iria à frente encontrar.
Nesse ermo lugar tudo seria incerto.
“Fique esperto,” eu escuto o Diabo falar.
“Ao voltar terá que optar entre o céu e o inferno.”

- Não o vejo, mas posso escutá-lo falar.
Quis gritar, mas antes Deus interveio.
“Esse é o único meio para te acompanhar
E guiar os teus passos o caminho inteiro.”

Olho em frente, sigo sem rumo certo,
Ainda incerto do que iria encontrar.
Caminhar e manter-me sempre esperto.
Um decrépito peregrino, vejo se aproximar.


O peregrino

- Aonde vais apressado assim peregrino?
Que destino o leva a andar sem parar?
Não há lar que o faça parar no caminho
Nem carinho que o faça ficar.

“Acompanha o andar desse velho e escuta.
Minha culpa me arrasta a peregrinação,
Condição submissa a uma esquecida jura
Que perdura até minha libertação.”

Sigo os passos apressados do decrépito ancião.
Que aflição o levou a fazer tal loucura?
Uma censura desmedida ao próprio coração.
Vida em vão, sem se dar o perdão, sem desculpa.

“Vê se serve a lição.” Escuto a voz de Deus.
“O que levou os seus, por acaso, foi o mar.
É perder ou ganhar. D’aquela vez quem venceu
Não fui eu, nem o Diabo, foi o mar.”

Continuo a jornada com modesta companhia.
Quase que não comia, uma pequena porção.
Sou cristão. Minha fé me nutre. Dizia.
Inocente seguia para a eterna prisão.

Quando noite, o velho quase não dormia.
Que magia o mantinha acordado?
O cansaço seu corpo não percebia.
Não vivia, já estava condenado.

Ao seu lado, seus conselhos eu ouvia.
Quem diria, pareciam um desabafo.
Calejado, não sabia o que fazia.
E se perdia, carregando o seu fardo.

Diz o Diabo: “Com quem ele se parece?
Troque a prece por muitos goles de álcool.
Eis no palco o ator que à vida esquece.
Se te aborrece, esta é a lição do Diabo.”

- Eu pedi para ficar só e refletir.
Mas sumir e continuar a me amolar
É zombar do que tenho a decidir;
Fiquem aí e me deixem pensar.

“Herege, nós decidimos te mostrar
Que ficar é impossível para ti.
Vais ter que prosseguir e escutar.
O que irá, muitas vezes, se repetir.”

Sinto o sol que começa a me aquecer.
Tento ver onde o peregrino está.
“Venha cá”. Eu escuto ele dizer.
“Venha ver. Desta vez eu vou ficar.”

O segui sem querer lhe perguntar.
Ao adentrar na cidade que escolheu,
Disse adeus sem ao menos acenar.
Vejo o mar. Para o porto sigo eu.


O mar

Um navio, que ao vê-lo me pareceu
Que nem Deus e o Diabo iriam embarcar.
Vou sossegar, foi o raciocínio meu.
Disse adeus, sem ninguém para acenar.

Ao zarpar um arrepio me estremeceu.
Aconteceu que eu comecei a relembrar
Que foi no mar que perdi o que era meu.
Ele venceu e pela terceira vez o iria enfrentar.

À distância, a cidade, pouco a pouco, desapareceu.
Então me bateu uma vontade de andar no convés.
“Quem tu és?” De repente alguém apareceu.
Disse eu: - Diz primeiro quem és.

“Sou apenas um simples marujo que embarca.
Minha casa, sempre foi e será o alto mar.
Embarcar para mim é uma palavra mágica.
É simpática tua maneira de falar.”

- Deixe-me apresentar, companheiro de embarcação.
Tenho uma missão de enorme pesar.
Estou a viajar como uma assombração.
Aperte minha mão e vamos prosar.

“Quem tu és? Eu insisto em saber.”
- Lá no alto poder sou chamado de herege.
Assim emerge esse estranho ser
Que começa a compreender para que serve.

“Estranheza herege não existe no mar.
É o lugar onde se tem de tudo.
Sou marujo, posso te assegurar,
O que vou te contar, até juro.”

- Acredito que sou um viandante sortudo.
Sobretudo por gostar de histórias.
Boas memórias tornam um homem astuto.
Meu nome é Sólio, estarei mudo ante a tua retórica.

“Nessa mesma hora, o sol a ir embora,
Uma senhora, com o olhar muito triste,
Não desiste de ficar aqui fora;
Muito embora, o marido insistisse.”

“Ele desce ao seu camarote.
Eis que a morte parece avisar.
Pois o mar arremessa num golpe,
Uma onda tão forte, que a tira de lá.”

“Sua ausência não é percebida
Até a bendita volta de seu marido
Que aturdido, o seu nome grita
E agita o braço estendido.”

“Um marujo corre ao seu encontro,
Ao ponto onde a senhora estava.
Ele achava que o senhor de branco,
Já em pranto, algum mal passava.”

“Vi seu corpo a boiar na água.
Assim fala o marido aflito.
Por favor meu amigo, vê se a salva.
Tenha calma, eu vou fazer isso.”

“Uma bóia por ele é lançada,
Amarrada a uma grande corda.
Nada importa; joga-se na água.
Mergulhava procurando a senhora.”

“Foram muitas tentativas frustradas.
Suas braçadas iam se reduzindo.
Num pequeno redemoinho, lá estava.
Com a força renovada vai sorrindo.”

“Um bote salva-vidas fora lançado
Ao mar agitado, por seus companheiros.
O marujo, num golpe ligeiro, é arrastado,
Depois de ter lançado a senhora aos marinheiros.”

“Num esforço, o marujo à bóia agarra.
Que içada por outro companheiro,
Ainda chega primeiro que a resgatada.
Retirada do bote estreito.”

“Os primeiros-socorros são feitos.
Entre os peitos ela é pressionada.
Sua boca é soprada em um beijo;
O desejo era apenas vê-la salva.”

“O marido já estava desesperado.
Ao seu lado mantém-se de joelhos.
Sem receio pede ao Deus tão louvado
Que a mantenha ao seu lado, é o seu desejo.”

“Nós jamais voltaremos ao mar,
Ao salvar minha eterna senhora.
Nessa hora ele a ver vomitar
E começar a chorar pela volta.”

“Em voz alta, fez essa promessa
Ante a amada desperta do torpor.
Seu amor é o que mais interessa.
Tão depressa alivia a sua dor.”

“Muitos anos depois, ouvi falar
Que naquele lugar um iate afundou.
E à senhora levou para sempre, o mar.
O marido, a escapar, nunca se recuperou.”

“A história é verídica. Eu era o marujo.
Um jovem rabujo começando a navegar
Que estava a caminhar para ser um adulto.
E jamais ser sabujo, seria um homem do mar.”

Entre lágrimas agradeço ao marujo.
Vê-se tudo, o marido era eu.
Ele então entendeu que houve descuido.
“Absurdo esquecer-se do que prometeu.”

Nesse instante, ouço Deus: “Não me culpe herege;
Essa prece jamais poderia ser atendida.
Aquela vida foi salva por um homem que rege
E deve ao ofício, salvar qualquer vida.”

“Quanto ao afundamento do iate;
Foi em parte por falha humana.
Coincidência tamanha, foi a proximidade
Da localidade da antiga façanha.”

“Pela coincidência, não foi meu pecado.”
Ouço o diabo falando com pressa.
“Posto ser essa, obra do acaso;
O mesmo cenário, uma outra tragédia.”

O marujo também comovido me diz:
“És um homem infeliz meu amigo.”
- Eu te digo uma coisa, a qual aprendi:
Eu vi que a fé é um verdadeiro castigo.

“Vamos seguir cativos a nossa jornada,
Meu camarada, a grandes tormentos.
Teus momentos de estrada,
Minha estada de ventos.”

Tantas outras histórias me foram contadas;
Por demais arrastadas pelo meu pensamento.
Todas elas contendo passagens bizarras.
Eu, atento, a escutá-las em profundo silêncio.


O continente

Chega o dia em que o navio atraca
Por pesadas amarras a um distante cais.
“Aonde vais?” Pergunta-me o marujo com calma.
- Do fundo da alma, à procura de paz.

“Prossigamos amigo, não parta.
Essa marca pode o mar apagar.”
- Caminhar sobre largas passadas.
Poderei novas marcas alcançar.

“Sendo assim, vá. Quem sabe um dia nos revemos.
Eu com remos a singrar águas mansas.
Tu me alcanças com passos mais lentos.
Pensamentos sobre histórias tantas.”

Finalmente piso em sólida terra.
Ninguém à espera. Longe de meu lar.
Que ermo lugar, quanta gente séria.
Velas abertas de um barco a pescar.

Adentro em uma pousada bem hospitaleira.
Temo ser estrangeira a língua falada.
Uma gente amada, de estranhas maneiras.
Sendo à minha estreita, a língua usada.

Pergunto: - Que terra é essa na qual piso?
Recebo um aviso que ela é eterna.
“Encerra mistério, mas é um bom abrigo.
Bem-vindo amigo, eis a nossa terra.”

“Encontrarás nela a paz que procuras.
A certa altura é enorme o vento.
Não passa o tempo, não há sepulturas.
São puras, as almas no templo.”

É soberbo esse estranho continente.
Um nascente de encher os olhos.
Tão simplório é o povo presente;
Também crentes no mundo dos mortos.

Eu contrato um guia, um nativo.
O motivo, uma lenda antiga
De uma aldeia perdida a qual não tinha mito.
Sobre isso, um ancião explica.

“Esse povo habitava as colinas.
As ruínas ainda estão lá,
Próximo há algumas minas.
Mais acima conseguirás alcançar.”

“Por incrível que pareça essa lenda,
Não há quem entenda o que está no cume.
É costume que se evite aquela fenda
E não se estenda até a Pedra do perfume.”

“É no topo. De lá se avista o mundo.
Mais ao fundo se encontra a pedra.
Parece eterna. Tem inscrições num túmulo.
Túmulo ou portal para outra era.”

“Vá e veja tu mesmo o que te espera.
Não há feras, nem vestígio da aldeia.
Mas me creia, há o mistério da pedra
Que estréia um estranho perfume que semeia.”

Poucos dias alcancei com o guia,
As antigas ruínas e as minas.
Ele me ensina qual a trilha
Que eu devia seguir mais acima.

“Desse ponto tua pessoa vai sozinha.”
Diz ainda, o guia amedrontado:
“A algo de errado com essa colina.
Lá em cima é um lugar encantado.”

Dou adeus e parto sem olhar para trás.
Ando mais que um velho andarilho.
Não há empecilho que me faça voltar atrás,
Ainda mais pelo que já havia vencido.

Finalmente eu encontro a fenda.
Estupenda a emoção de encontrá-la.
Uma rara magia me acena.
Não há quem entenda como ultrapassá-la.

Depois de algum tempo, minha busca termina.
Então lá de cima, observo a vila embaixo.
Embaixo, por maior que seja, vê-se pequenina.
É linda a vista aqui do alto.


A aldeia

O perfume exalado leva-me até a pedra.
É bela, de um estranho formato.
De um lado na borda externa
Há diversas escritas e símbolos cruzados.

Sentado à sombra, encosto-me na pedra.
E dela emana o estranho perfume.
Tal lume, o sol se projeta.
Minha meta era chegar ao cume.

Qual porta secreta a pedra se abre.
Através de grade eu sou arrastado.
Levado colina abaixo sem escape.
Ao chegar a base eu sou libertado.

Ainda assustado com o ocorrido;
Num lugar perdido, por mim encontrado,
Diz um velho barbado, com estranho sorriso,
“Seja bem-vindo filho, tu és esperado.”

Eu me surpreendo por não ter mais escutado
A Deus ou ao Diabo há algum tempo.
Ao vento, em tal profundeza, é vetado.
Eu saio com cuidado, eis meu desempenho.

Assim, sou levado à lendária aldeia.
Numa esteira, há uma jovem de rosto afilado.
Sou posto ao seu lado enquanto ela ceia.
Serve-se ligeira do esquisito cardápio.

- Como assim, um filho esperado?
Questionado, um outro jovem me esclarece:
“És tu o herege que não esquece o passado.
És um homem letrado, sem prece.”

“Não existe nenhum mistério.
Falo sério;fomos antes, avisados.
Todos os cuidados deram certo.
Mesmo esperto, tu foste enganado.”

Alguém falou sobre mim. Quem seria?
Deus não poderia e nem o Diabo.
Esse povo é levado pela filosofia.
Mitologia, não viria ao caso.

“Não estranhe; o marujo nos avisou por rádio.
Mas meu caro, te pregamos uma peça.
Porém, o que interessa é ter nos encontrado.
Mantenha-se sentado e à espera.”

Demorou-se algum tempo, a jovem esbelta.
Acabou-se a espera. Ela senta-se à minha frente.
“O meu povo é diferente. Mas, é da terra.
Nessa caverna, todo misticismo é ausente.”

- Teu povo não tem nenhuma crendice.
Para ele é tolice, não há existência de Deus.
Sendo assim, é ateu o povo que aqui reside,
Pois me explique o que aconteceu.


A filosofia

“O meu povo busca explicação para tudo.
Para tudo sempre há uma explicação.
A questão é que não contamos com o absurdo
De usar o recurso da imaginação.”

“Há coisas que estão à mão.
Outras não, apenas no pensamento.
Um momento, aquelas durarão.
Estas então, um eterno tempo.”

“Não se pode compreender o todo.
Posto, ser composto por enésimas partes.
Como frases dispersas sob um vidro fosco,
Aos poucos, desvendamos esse enigma, destarte.”

“Se fragmentarmos as partes do todo,
Ainda será pouco o que descobriremos.
Assim sendo, seremos tolos,
Todos, pelo que já sabemos.”

“Somos apenas pequenos fragmentos.
Não podemos explicar nem mesmo qual a razão
De sermos apenas fração do que queremos.
Seres pequenos que desejam a imensidão.”

“Um ser que então, à nossa imagem e semelhança,
fosse a pujança de um universo de tamanha proporção
que nossa razão não consegue concebê-lo,
é sê-lo, uma grande criação de nossa imaginação.”

“Desmascaramos as fantasias de nossos antepassados.
Fomos levados a explicar com fundamentos.
Se não os temos, não tentamos burlá-los.
Assim meu caro, sem explicá-los, os deixemos.”

“Haverá um tempo, em que juntando os pedaços,
Teremos laços que desvendarão alguns enigmas.
Acabar-se-ão os dias, e muitos desses pedaços
Serão eternos obstáculos à nossa sabedoria.”

- Parece até, que eu pertenço ao teu povo.
O que dizes, não é novo para mim.
Pensei assim. Mas como fazer que todos,
Mesmo poucos, pensassem igual a mim?

“A dificuldade é fazer alguém parar pra pensar.
Duvidar de tão segura verdade.
Não ser covarde, não ter medo de enfrentar
O que não se pode explicar. Agir com naturalidade.”

“Não que todos tenham que pensar igual.
Alguns, mal conseguirão entender.
Mostrá-los que viver é essencial,
Afinal, não há outra coisa a fazer.”

“O que interessa é o que temos agora.
Nada importa depois da nossa extinção.
Está em nossas mãos, a descendência nossa.
Uma terra nova que a base seja a razão.”


As vozes do passado

“Essa, quando morrer, vai dar trabalho igual a ti
para decidir entre Deus e o Diabo.”
Ouço esse comentário de um amigo que vi parti.
Eu começo a ouvir vozes do passado.

Devido ao meu silêncio, a jovem comanda
A uma dama, que me leve aos meus aposentos.
Em meus pensamentos, percebo a chama
Que nos acompanha, caverna adentro.

Sentado numa pedra extremamente polida,
Eu ouvia outra voz do meu passado.
Um chamado num sussurro, que eu sabia
Que não seria deste lado.

“Nós andamos pela Terra como almas
encantadas e jamais pelos vivos percebidas.
Nossas vozes são ouvidas por tua alma.
Pela tua falsa e estranha vida.”

- Queres dizer que eu posso ficar na Terra.
Sendo nessa forma, sem ser escutado.
Um enforcado que só pode ouvir conversas,
Sem em nenhuma delas ter participado?

-Mas nada me disseram, nem Deus e nem o Diabo.
Que safados! Aonde andam que já não os escuto?
Estou confuso. Vós sabeis o que passa do outro lado
Ou estai enganados com esses dois verdugos?

“Algumas vezes, um dos nossos se infiltra no inferno.
Pois no céu, o mão-de-ferro não as deixa pensar.
Sendo assim, as almas de lá são robôs de ferro,
Vestidos de ternos num eterno orar.”

“Nós sabemos que tu foste ludibriado
Por Deus e pelo Diabo, em tua volta.
Tua revolta, os deixou desconfiados.
Então ambos, combinados, te observam a toda hora.”

“Essa história de por culpa só no acaso
É um velho hábito dos dois poderosos,
Orgulhosos com seu antigo pacto.
De fato são dois mentirosos.”

“Vai haver uma reunião no salão celestial.
Anjos bons, anjos maus lá estarão;
Apertando-se as mãos, o bem e o mal.
Afinal essa intriga é uma grande invenção.”

- Quer dizer que eles não são inimigos,
E os castigos, o que realmente são?
“A condenação é um acordo resolvido,
Meu querido, terás a constatação.”

A voz se cala e em pouco tempo
Vejo um templo e ouço um bater de asas.
O som de vaias que ecoa no templo
No momento em que o Diabo fala.


Tomo III

A reunião

“Deixem minha voz ser escutada.
A minha estada neste salão será curta.
Não há disputa, posto ter sido acertada
A direção de algumas almas com quem discursa.”

Reina um silêncio absoluto,
Como se luto, ali houvesse.
Continua em prece, a pauta do discurso,
Do ser esdrúxulo que o escreve.

“Façamos o sinal da cruz
Ao homem jus, o anjo alado;
Ali ao lado dessa luz,
Aquele que conduz, o senhor por todos louvado.”

Assim prossegue o Diabo
Encarnado no estilo retórico.
Sendo simbólico e sarcástico,
Dramático e muito estóico.

“Passo a palavra ao nosso anfitrião.
Eis a razão deificada em um ser.
Eis o poder em uma única mão.
A vastidão do próprio poder.”

Eclode novamente o bater de asas,
As vaias e assovios agudos.
De repente, todos mudos quando ele fala,
O dono da casa, o rei dos sisudos.

Sua voz estronda no silêncio
Como dentro da caverna, o eco.
Seu sucesso, eu agora entendo.
Um poder tremendo e tão perto.

“Sou o vosso Deus supremo.
Venho do nada abissal.
Real como estão me vendo.
Sendo o criador do bem e do mal.”

“Declaro esta reunião anual, iniciada.
Vetada será toda opinião
Que seja então contrária.
Lendária é a minha decisão.”

“As minhas almas são condenadas
quando salvas pela oração.
Elas serão recicladas e idiotizadas.
Eis a prática desta ação.”

“Jamais terão uma consciência
E nem ciência do que realmente são.
Sem decisão, sem coerência;
Somente crença e evangelização.”

“Tomei enfim, uma decisão radical:
Que o mal terá uma enorme elevação.
Compensação pelo meu percentual
Como Diretor geral dessa organização.

Sinto minha visão se turvar
E o ar me faltar, pelo que escuto.
É um insulto a quem vive de orar;
Condenado a acabar como parte de um lucro.

Deus é justo. Quantas vezes eu ouvi.
Aprendi que o mundo era injusto.
Agora descubro que para ser feliz
É desde a raiz, ficar longe disso tudo.

Prossegue assim o discurso anual.
Bem e mal, semblante do mesmo ser.
Ganhar, perder, nada tem com casual.
Deus é real nas nuances do poder.

“O Diabo é o Senhor do lado escuro.
Um ser astuto que sabe compreender
Quanto prazer eu tenho de meu orgulho.
Assim, faz tudo para seu posto manter.”

“É o guardião da cidade sem perdão,
Onde não há infração, pois não há lei.
Sempre pensei em criar uma prisão;
Daí então, um carrasco eu criei.”

“Quanto a vós, de milhares de legiões,
Sois os cordões que nos ligam aos humanos.
Um ledo engano de minhas divagações.
Suas privações fazem parte de meu plano.”


O plano

“Consiste esse plano em três etapas:
A primeira com a farsa de um velho pensamento
Onde fiz um juramento que de nada adiantava,
Uma terra desejada esquecida pelo tempo.”

“Na segunda etapa, a promessa foi em vão.
Um varão nascido de uma jovem casta,
Não passava de outra dissimulação.
Então eu o mandara para salvar todas as almas.”

“A terceira, deu-me a idéia o Diabo.
Fui ousado em tomar tal decisão.
Uma nova visão de um cura revoltado
Que exaltaria o pecado e a condenação.”

“Houve reforma e contra-reforma na religião.
Uma nova legião de atormentados,
Mais fanáticos e de muita ambição
Numa dispersão pelo mundo, alucinados.”

“Acreditando estar salvo pela crença,
Não dispensa nenhum deles, o dinheiro.
No mundo inteiro há desavença,
Muita ofensa e também desrespeito.”

“Eis que o plano está dando certo.
Há um deserto de bom senso;
Um pretenso homem sério
Que decerto é um hipócrita tremendo.”

“Eles herdarão meu anacrônico céu.
De juizes a réus passarão.
Continuarão na língua, a terem fel.
Não há mel, onde eles ficarão.”

“Quanto à minha já citada decisão,
Tem por razão, o número de maus
Que sobem nas naus da conversão.
Daí então, será alguns degraus.”

O Diabo interrompe o discurso
“Este recurso eu não havia pensado.
Do meu lado, ainda vou pagar-te juro.
Ao escuro, poucos serão condenados.”

“Ainda restam os que pensam,
Os que tentam aos beócios esclarecer,
Os que pedem o porquê e que nos pesam,
Que desprezam o que tentamos fazer.”

“Os hereges que nos deram outras formas.
Nessas formas fomos nos distanciando
Do humano e da sua nova escola.
Não importa, não fazem parte dos meus planos.”

“Porém, não permitirei que o mundo seja uma aldeia.
Que ninguém creia que exista Deus e Diabo.
Que ambos os lados é apenas uma teia
Que a si semeia o caos e o acaso.”

“Tenho a meu favor, as guerras entre os humanos.
Há muitos anos, desde que o homem habita a terra.
Porém estas são da tua parte, Demônio.
Plano árduo para a alma que o despreza.”

Aproxima-se do Diabo, um anjo negro;
em segredo, anuncia ao seu ouvido.
Aturdido, o Diabo sobe ao conselho
E vermelho anuncia o acontecido.

“Sólio foi encontrado pelas almas perdidas;
Uma amiga e um amigo do passado.
Deve ter sido avisado pelas ditas,
Comovidas com seu triste estado.”

De repente, estou na mesma pedra.
A voz me cerca. “Fomos descobertos.
Sejamos espertos, saiamos da caverna.
Espera. Adeus. Estaremos por perto.”

“O que fazes, Sólio, sobre esta pedra;
Numa caverna, do mundo isolado?
Com quem tens se encontrado, me interessa.
Depressa; quero ouvir teu comentário.”

- És o Deus que tudo vê, que tudo escuta.
O que eu faço nesta gruta, tu não sabes?
Minhas frases, tu já não mais escutas?
Tua audição é curta como são os teus olhares.



A visão

“Como ousa assim falares, ser iníquo.
Foste rico e acabaste dependurado.
A soma de teu pecado é teu castigo.
Se não estiveres comigo, estarás com o Diabo.”

“Deus seja louvado!” ouço o Diabo.
“Ao meu lado, não serás repreendido.
Não haverá castigo e nem pecado.
Serás um escravo no limite do sentido.”

- Não duvido. Porém, prefiro o meu lado.
Ser julgado por nada ter cometido,
Além do autocídio por estar desesperado.
Por culpados, vejo o Diabo e Deus enlouquecidos.

Nesse instante sinto uma dor lancinante
Em minha fronte, a estourar meus miolos;
Fecho os olhos e uma visão arrepiante
Leva-me distante para o lado dos mortos.

Novamente a Deus e ao Diabo revejo.
Neste ensejo, peço para sanarem minha dor.
Sem me dar valor o Diabo manda um beijo.
Deus aponta-me o seu dedo indicador.

Passa a dor. Dedo em riste, Deus aponta para frente.
O Diabo sorridente me falou:
“Eis a dor em tua mente.
Tua amada está ausente. Mas de mim não escapou.”

Vejo entre as almas néscias, minha família.
Triste ilha onde nada tem valor.
Todavia, o meu amor eu não veria.
Estaria onde o Diabo me falou?

Viro as costas para cena tão horrenda;
Minha prenda no limite do cansaço.
O seu braço estendido me acena.
Tive pena por eu não tê-la salvo.

Volto aos filhos parvos que não me reconhecem.
Seus olhos parecem ver a Deus somente.
Vejo minhas sementes a fazerem preces.
Homens e mulheres perdidos para sempre.

De mentes vazias, sem nenhum passado;
Espíritos condenados ao amor doente
Que nem mesmo sente o calor ao lado.
Tão abandonados e de si ausentes.

Cânticos e louvores, gritos de alacridade.
Almas sem vontade, sujeitas ao olímpico.
Flores sem espinho, sem olor e naturalidade.
Na mediocridade, seguem um só caminho.

Que empíreo sombrio o mundo almeja;
Onde ninguém deseja questionar,
Onde não há ardor quando se beija,
Não há queixa, nem mesmo um ansiar.

O beijo

Eu prefiro vagar entre ruínas.
Mas ter minha própria opinião,
Sempre ter a visão de quem caminha,
Sem seguir uma linha, a qualquer direção.

Volto à sã consciência, nada vejo.
No escuro, desejo descansar.
Amanhã, procurar é o que desejo.
Sinto um leve beijo. Adormeço sem sonhar.

Na manhã seguinte acordo mais disposto.
Lavo o rosto. Sou levado ao grande salão.
Bate o coração ao ver de novo
A suprema do povo, a jovem Razão.

Sinto essa emoção pelo olhar urgente.
Algo a jovem sente. Lembro-me do beijo.
Um enorme desejo e o corpo quente.
Age diferente. Isso eu percebo.

“Voltemos à conversa interrompida pelo teu silêncio.
Que tal falarmos do tempo, sem pressa.”
Concordo com ela. – Então conversemos.
Os lábios movendo, distante da conversa.

A minha procura pelas almas perdidas
Estendeu-se por alguns dias. Mas deu resultado.
Um casal desvirtuado, às escondidas.
Assim, àqueles dias, fomos dois apaixonados.

Por mais que eu gozasse de sua juventude,
De sua plenitude; havia em mim, um vazio.
Eis que meu desafio exigia uma atitude.
E minha inquietude levou-me a ser mais frio.

Precisava tirar meu verdadeiro amor da geena.
Sua mão ainda acena pedindo por favor.
Sentia a sua dor diante de tal cena.
Que pena, vê-la no limite do pudor.

Porém, encontro afinal às almas perdidas,
Despidas de imagem, só posso escutá-las.
Não tento enganá-las só quero a saída
Para juntar minha família, às ditas almas.

“Não vai ser tão fácil, Sólio, teu pedido.
Um espírito perdido é um eterno fugitivo.
Por ninguém é visto. O único motivo
É ser livre e desimpedido, mas jamais, vivo.”

“A primeira fuga, será a de tua amada.
O inferno é uma casa com menos segurança.
Não dê tanta importância àquelas amarras.
Com tamanha farra, iremos desatar as suas tranças.”

“Descanse o bastante, Sólio, tenha calma.
Quando sentirem a falta da fuga ousada
De tua amada, virão com as garras
Em busca das almas que andam ocultadas.”


A fuga

“Deus e o Diabo vão te interrogar;
Querer encontrar a dama perdida.
É certo que uma briga irás arranjar.
Tentaremos salvar a tua família.”

“No céu será mais difícil do que no solo infernal.
Pois a lavagem cerebral não os deixa escutar.
Tentaremos achar um meio legal
Para trazê-los ao normal e o resgate efetuar.”

Assim, eu espero por mais outros dias,
Na mesma agonia de um cão enjaulado.
E o meu cuidado até parecia ironia;
Que às almas perdidas, não pegasse, o Diabo.

Uma noite escuto uma voz conhecida,
De minha amiga, dizendo que dera certo,
Que a fuga decerto já fora ocorrida,
Que minha querida estava por perto.

Agora seria o maior desafio, a entrada no céu.
Seria cruel ver uma alma aflita por ser libertada.
A fé arraigada era um grosso véu
Que o triste réu ao castigo aceitava.

Em mais alguns dias me encontro vencido.
Meu corpo dorido por ânsia e por medo
Que não fosse feito ou se ocorrido,
Ninguém fosse ferido e nem fosse pego.

Dessa vez escuto a voz do amigo,
Ainda abatido, me contar em segredo:
“Não tenhas mais medo, ombro erguido,
Porque não duvido que Deus virá cedo.”

- Agradeço amigo, por teus atos heróicos.
Este ser estóico, saberei enfrentar.
Irei me juntar a vós, o dia está próximo.
Vá logo, Deus poderá chegar.

Pouco tempo fazia que eu me despedira.
Temo a ira do Deus venerado.
Meu estado de dor enfim passaria.
Pois minha família havia se libertado.

Ouço a voz, temendo o julgamento.
Nesse momento, pensei em me esconder.
Para que? Ele me acharia com o tempo.
Meu tormento era me absorver.

“Herege, o que andaste fazendo?
Estás sabendo que tua prole é perdida?
Tua vida não durará tanto tempo.
Estás vendo que não terás mais saída?”

“Desgraçado” grita o diabo esbaforido.
“De metido, foste tu o responsável.
Condenável, o teu ato de inimigo.
Não duvido, pois tu és um deplorável.”

- O que houve? Minha amada está livre?
Não duvide que eu estou satisfeito.
Mas não tenho peito para tamanho deslize.
Não se irrite, a vós, eu estou sujeito.

“Sentirás o peso de minha mão.
De antemão providencio obstáculos.
Meus tentáculos sempre te alcançarão
E em vão tentarás ultrapassá-los.”

Já o Diabo, age de forma diferente.
“Que demente tu és, Sólio, que coragem.
Tua passagem será breve, vê se entende;
Estarei quase sempre ao teu lado, na viagem.”

- Agradeço pela tua companhia.
Mas não preciso de guia, nem de sombra
Que assombra noite e dia.
Do que eu dizia, o Diabo não fazia conta.

“Votaremos.” Eu escuto num sussurro.
Fico mudo ante o medo de falar.
Caminhar pelo corredor escuro,
Sem futuro, dá vontade de chorar.

Ao encontrar a bela e jovem liderança,
Tenho esperança que ela possa compreender
Que nada posso fazer, ou me alcança
O dedo em forma de lança do Senhor poder.


A despedida

- Eu partirei amanhã, continuando a jornada.
Em busca de minha amada e minha prole.
Por favor não chore. Eu voltarei a esta casa.
És uma jovem encantada e forte.

- Assim, suporte nossa despedida.
Bendita a hora em que te conheci.
Quando te vi, pensei que não compreenderia
A tua sabedoria. Fui apenas teu aprendiz.

Ela me beija e me diz baixinho:
“Irás sozinho. Mas estarei contigo.
És mais que amigo, posto ser carinho.
Segue teu caminho, feliz consigo.”

Nos entregamos ao desejo ardente
Que somente o corpo tem o poder de sentir.
Juntos a seguir nosso sangue quente
Que a alma não sente sem ao corpo se unir.

Foi a noite mais longa de minha vida.
O que me intriga é que foi cheia de vontades.
Mas minha metade, não estava viva,
E ainda escondida das duas deidades.

Amanheceu. Parti com um aceno que não dizia adeus.
Enquanto Deus e o Diabo me censuravam,
Os meus pés caminhavam em busca dos meus.
- Adeus! Os meus olhos marejavam.


A casa da árvore

Depois de muito andar pelo continente
E ver tanta gente absorvida pelas fantasias,
Diria que o mundo em que vivem, realmente,
Depende de suas tolas alegorias.

Encontro uma casa suspensa em uma árvore.
Já tarde, procuro me abrigar em seu interior.
A alcanço com louvor, mas minha perna arde.
Quem sabe, algum inseto me picou.

Adentro o recinto entre enormes galhos,
Um cenário de beleza sem igual,
Magistral em suas paredes, seu telhado
Animado, esqueci até meu mal.

Caminho a uma porta que há nos fundos
Pergunto em voz alta: - Há alguém aí?
Ao descobrir que havia muitos,
Em alguns segundos, viram-me ali.

Chamam-me para o meio das folhagens.
“Venha! A passagem é por aqui.”
Tentei subir como sobe um selvagem.
“Coragem! Que tu irás conseguir.”

Já sobre o enorme galho retorcido,
Sinto-me aflito por tamanha altura.
Não há desculpa, assim eu insisto;
Enfim, consigo superar a fundura.

Uma abertura no imponente caule,
Leva a um vale dentre as raízes.
Seres felizes e muito sagazes;
Porém, selvagens pelos seus deslizes.

Descemos por cipós o cavo da árvore
Por dentro do caule. Embaixo uma vila.
Depois da descida, um imenso vale.
Quem sabe, se sonho seria.

Havia um portal de madeira, em forma de arco.
Um charco teria que ser atravessado.
Do outro lado, um homem pintado,
Com um cajado, os pés descalços,

Mostrava passo a passo o caminho a seguir
E todos ali, o obedeciam sem medo,
Pisando no meio do brejo, a espargir
O limo que ali guardava segredo.

Também caminhei, os pés sob a argila.
Ao homem seguia; os locais indicados.
Com todo o cuidado cheguei a tal vila
Que vira do alto do retorcido galho.

Olhei para cima; o céu era chão e raízes.
Felizes, crianças brincavam no lodo.
No rosto, havia muitas cicatrizes
De dias infelizes de um homem morto.


Tomo IV

A teoria

Adentrei numa porta indicada.
Uma escada leva-me mais para o fundo.
Outro mundo, sob o solo que rachava
Numa vala onde tudo era imundo.

Eu me sentei junto a um velho cabisbaixo.
Falava baixo, compassado e docemente;
Entre os dentes, mal movia os próprios lábios,
Era um sábio com aspecto de demente.

“És uma mente aprisionada a este corpo
Que é pouco para o turbilhão fervente
De idéias que sente este teu ente composto;
Que sem rosto, não seria diferente.”

“Teorizo sobre nossa existência.
Nossa crença já não passa de modismo.
Entre o rito e o ceticismo da ciência
Há a essência da idéia como espírito.”

“Somos matéria que percebe as idéias
Que são eternas em sua realidade.
Nossa vontade é o que nos leva
Por essa terra, a todo realidade.”

“Se acreditas ser o filho de Deus,
no encéfalo teu, será realidade.
Se a comunidade for pelo juízo teu,
Serás filho de Deus de verdade.


- Eu sou um herege e vi Deus e o Diabo.
O que de fato achas que me aconteceu?
“Prevaleceu a tua idéia sobre o caso
E o resultado foi apenas conceito teu.”

“Tu não morreste ainda, eu te garanto.
No entanto estás preso deste lado.
Se o lado fosse o outro, parece estranho,
Não me acanho em dizer-te, serias finado.”

“Se tu fosses um ateu, o que verias?
Uma outra alegoria, uma visão inesperada
Acessada pela tua agnóstica teoria,
Por outra via, uma verdade adaptada.”

“Não existe o impossível para o pensamento;
Não há tempo, nem mistério, nem enigma,
Posto a vida ser apenas um momento
E o próprio pensamento, a verdade percebida.”

“Tudo que acreditamos se torna realidade.
Na verdade, depende do consciente.
São idéias existentes em outra realidade.
A realidade das idéias permanentes.”

“Tudo é real desde que acreditado.
Seja Deus ou o Diabo, seja apenas energia,
Seja essa a única vida, tenha também outro lado;
Resultado, realidade subjetiva coletiva.”

“Há enésimos pensamentos individuais,
Os quais são a realidade individual subjetiva.
Coletiva quando os indivíduos pensam iguais.
São reais, é a visão da maioria.”

“O mundo material que conheces
Está prestes, a poeira, se tornar.
Mas não precisará de preces;
As idéias não esquecem de o materializar.”

“A mente é a consciência do que havia.
Assim, eu diria que a idéia é eterna.
Da caverna que alguém falou um dia,
Seu interior seria a matéria.”

“Nós somos uma realidade abstrata
formada por nossa mãe e nosso pai
ou nada mais que uma ação praticada
levada pelo imprevisível, ou ainda mais,

Numa versão manipulada, concretizada,
Uma idéia transformada em gente
Que sente, que pensa, que fala.
Uma curta estada que virá novamente.”

“O amor é uma realidade para quem ama.
Não se engana, aquele que jamais amou.
Se nunca acreditou, não passou de chama
Que na sua cama acendeu e apagou.”

“Ilusão é apenas a realidade não acreditada,
Realizada pela vontade das idéias existentes.
Diferentes, racionais e encantadas
Podem ser concretizadas quando gente.”

“Tudo é concebível na realidade consciente.
Sendo gente, temos o conhecimento.
Contudo, nem sempre percebemos estar presente.
A idéia, quando gente, está sujeita ao sofrimento.”

Com o dedo indicador, o velho risca o chão molhado.
Faz um círculo cortado por uma linha.
Não diz nada ainda, mantém-se calado;
Ocupado em avivar aquela linha.

São duas luas crescentes a formarem um só círculo.
É preciso, quando escreve o nome idéias
Numa delas. Percepção na outra, é lido.
“É o lado dos sentidos e da matéria.”

“As idéias são o mundo imaginado.
Do outro lado, eis a vida da matéria.
Pois que ela se acaba com o fato
De estarmos sepultados sob a terra.”

“As idéias permanecem em essência
Na ausência do espectro cefálico
Que estático perdeu a consciência,
Sem ciência do que é real de fato.”


O espelho

Qual um coco por um facão, cortado.
Lado a lado vê-se a vida, vê-se a morte.
E no corte, cada lado é espelhado.
Um espelho emoldurado pela sorte.

“Não há morte” diz o velho carismático.
“Pois de fato és reflexo no espelho;
Que inteiro não se vê por ser de fato
Um vampiro alucinado, de joelhos,

A rezar pra ver de novo o próprio rosto,
Um desgosto que o torna assim humano.
Um engano crê na carne do seu corpo.
Não sou louco, estou apenas ensinando.”

- Quer dizer que estou fora do espelho?
“Sem receio quando dentro estiver.”
- O que é na verdade, o espelho?
“É um meio da razão não ver a fé.”

“Tudo o que existe está de um lado
Isolado em idéias e do outro em substâncias.
A distância é um portentoso resultado,
Confirmado pela enorme discrepância.”

“Imagine esse mundo só de idéias.
Entre elas não existe o impossível.
Lá não é inconcebível ser eterna
a matéria idealizada do espírito.”

“Teu espírito é apenas tua imagem refletida
No espelho entre a vida e a morte
E por sorte ao eterno passaria
Se tua fibra, te levasse até a morte.”

- Tu estás dizendo que o autocídio
Levaria meu espírito ao lado eterno.
Pro inferno, essa história sem sentido.
Eu prefiro assim ficar do lado externo.

“Filho, o mundo do espelho é fantástico;
Elástico pela forma do que pensas;
Extensas as vontades e o espaço
Moldado pela tua experiência.”

- Que queres tu que eu faça?
A pouco tu falavas que eu vivo.
O mundo dos espíritos não me basta.
Preciso dessa massa e dos sentidos.

O velho como um louco se levanta,
Aperta sua garganta com as mãos
E de repente, então, diz que me ama.
Enfim, me manda seguir o coração.

Nessa hora se cala, cofia sua barba
E alarga o peito e explora o pulmão.
A voz de um dragão e uma calda
Fazem eu perder a calma e a razão.



A revelação

Vejo a face em si disforme,
Alto e forte o corpo arde.
Se desdobra em detalhe o ser enorme.
“Tua sorte, só a mim cabe”.

Reconheço a figura tão bizarra.
Nas mãos, garras. O Diabo se afigura.
Eis que a torpe criatura me agarra
E amarra o seu rabo em minha cintura.

Não entendo o que se passa.
Todavia, o Diabo acha graça quando digo:
- Estou morto, ou estou vivo? Que desgraça!
“Estás vivo pela graça do inimigo.”

“Que procuras, Sólio, o verbo ou a carne?
Em ti arde, a dor dos que são teus.
Tendo Deus te ressuscitado em parte,
Cedo ou tarde tomará o que é seu.”

- Gostaria de saber o que acontece?
Ajoelho-me numa prece, comovido.
O Diabo dá ouvido e reconhece,
Todo condenado merece ser ouvido.

- Eras tu, o velho cabisbaixo que me falava,
Que estava a pouco te negando a existência?
“Paciência”. O Diabo me acalmava.
“O seu corpo eu usara como minha experiência.”

“Quando eu me retirar, provavelmente,
O demente não resistirá ao choque.
Não é mole resistir ao indecente.”
Felizmente, o velhinho era forte.

“Saíste a procura dos teus parentes.
Insolente, o que pensas encontrar?
Um novo lar, onde serão felizes para sempre.
Se oriente, não existe tal lugar.”

Consigo, enfim, do Diabo me desvencilhar.
Tento encontrar a saída desse submundo.
Vejo no fundo, a abertura e o sol a brilhar.
Ao alcançar, olho atrás a cara do imundo.

Saio em meio ao sol ardente,
Pés dormentes de tanto caminhar.
Mal posso olhar a minha frente;
O que me parece gente, tento divisar.

Peço água, mas ninguém parece escutar.
Estão a orar num fanatismo perigoso.
Como um louco, há alguém a gritar,
Sem parar, um aleluia estrondoso.

Eu encosto o meu corpo a uma parede.
Sacio minha sede numa torneira enferrujada.
Limitada, minha visão divisa aquele;
Sei que é ele, com a voz enfatizada.

“Meu irmão, escutai minha mensagem.
Vossa passagem teve minha permissão.
Diga então onde está sua coragem.
Minha imagem será tua salvação.”

E em meio à multidão
(Que ilusão, todos de olhos fechados)
Vejo o Diabo olhar em minha direção
E com a mão, abençoar os coitados.

Uma senhora que se encontra ao meu lado
E me vê admirado, grita: “Glória!”
Uma história que me deixa arrepiado;
Ver o Diabo, aclamado, fazer hora.

Saio sem fazer barulho, sorrateiro.
Ao passar por um mosteiro, adentro a porta.
Não importa se eu não era o primeiro;
Ainda sendo o derradeiro, escuto: “Olha!”

O Diabo com uma vestimenta preta,
Diz: “Prometa, porém ajoelhado.”
E calado cada um então aceita;
Não se deita só por falta de espaço.

Fico ali, outra vez, admirado.
Tão apático diante de tal sorte.
Como é forte esse desejo levado
Com cuidado até a sua morte.

De repente, todos juntos dizem amém.
Cada um é refém de sua fé,
Um escravo de Deus até o além,
Onde também nunca ficarão de pé.

Aproximo-me de uma porta lateral,
Um portal de enorme estrutura
Com uma pintura de um belo castiçal
Onde o mal alimenta uma criatura.

Saio à rua, sem saber aonde ir.
Tento seguir, mas me impede, a turba.
Numa curva, eu consigo então fugir.
“Entre aqui.” Diz uma estranha figura.

Já na sala, eu diviso uma enorme mesa
Rodeada de cadeiras. Homens sentados
E de olhos fechados. Velas acesas.
Alguém acena a cabeça ao convidado.

Outra vez, a voz do Diabo: “ Apareça.
Não se aborreça. Não fique desconfiado.”
E o morto invocado, em voz alheia,
Um tanto feia: “Tome cuidado.”

“Não hesite, meu amado”. Diz o Diabo
Que me vê, ali, calado, sem ação.
“Dê-me a mão.” Diz, irritado.
“Está convidado a participar de nossa reunião.”

A taverna

Ao pressentir a intenção do seu chamado,
Eu viro pro outro lado, corro em oposta direção.
“Corra não...”Ouço o grito ao meu lado.
Como um desesperado em meio à multidão.

Nessa minha louca pressa,
A multidão se dispersa, nem percebo.
No meu medo, corro à beça.
O que me resta é esconder-se em um beco.

Ouço uma música muito alta,
Um barulho de garrafa, e me aproximo.
Era um hino que louvava a cachaça.
Acho graça, escuto a voz do divino.

“Seja bem-vindo Sólio, sente-se à mesa,
Não há tristeza em uma taverna.
Aqui é eterna a brincadeira.
A lua clareia tal qual lanterna.”

Puxo uma cadeira e sento com cuidado
Entre um efeminado e uma cortesã.
“Aonde anda Satã?” Pergunta em tom baixo.
Eu olho desconfiado para o velho Xamã.

Deus estava em minha frente
Como gente disfarçado,
Num pesado e sujo ambiente.
Eu descrente, me senti envergonhado.



Peço licença a Deus para ir ao banheiro
“Vou primeiro”. Toma a frente, indignado.
Já de volta e sentado, eu me levanto ligeiro
E à porta do banheiro, corro então, desesperado.

Em um beco meio escuro,
Há um muro com um rosto desenhado.
Eu diviso alguém sentado com um tubo.
Absurdo, era Deus sendo drogado.

“Ta ligado, Sólio, vem pra perto”.
Era um beco tão deserto e tão calado
Que me senti desamparado ante o Esperto.”
- Está certo! E corri pro outro lado.

Finalmente eu consigo descansar
Num lugar que parece aconchegante.
Num instante, adormeço sem sonhar.
Ao acordar, vejo um prado verdejante.

Acreditando está no paraíso;
Indeciso, se sorria ou chorava.
Acalentava-me Deus por isso,
E com isso apenas me enganava.

O Diabo estava de tocaia.
Vaia ao me ver voltar.
Tento passar, tal potro na baia,
Na há quem saia do mesmo lugar.

Eu estava entre Deus e o Diabo,
Aprisionado, sem saber o que fazer.
Tento esquecer as ofensas do pecado.
Ao meu lado eu escuto Deus dizer:

“Sólio, osso duro de roer,
O que pensas tu fazer para escapar.
Deixa pra lá, vamos esquecer.
Eu, o Diabo e você, temos que conversar”.

“Temos um assunto pendente a resolver
O que foste tu fazer? Nos enganar?
O que há? Nós podemos entender.
Podes dizer onde às almas encontrar.”

Eu não tinha mais nem forças pra falar,
E rezar nessa hora não valia.
Eu teria que a eles enfrentar.
Então começo a falar o que sabia.

- Deus, sempre soube que me encontraria;
Que a hora da alegria vós iríeis acabar.
O que há? Sei mais do que eu devia.
Nessa minha travessia não vale a pena pensar.

- Ouvi a reunião que presidias Senhor.
Que o amor é um sentimento humano.
Que é insano teu sentido de valor,
Tirar e por num insidioso plano.

- Descobri tua sede de matar,
De controlar e condenar todas as almas,
Bater palmas ao ver o Diabo entrar
E espancar velhas de saias.

Descobri toda a farsa que é o céu;
Sei que o mundo é um réu sem absolvição;
Que ninguém tem razão é o mais cruel;
Que é fel, a suposta salvação.

Descobri que teu perdão
É ilusão para os arrependidos
Que iludidos, cegos em sua missão
Acreditam em vão, os pecados dirimidos.

Entre golpes e gemidos, estarão
No galpão do céu, como escravos,
Ou levados ao inferno da emoção
Em estranha devoção com o Diabo.

Eu não sei como é ter a alma perdida,
Que sem vida, não pertence a ninguém.
Sei, porém, como coisa decidida,
Que eu queria minha alma assim, também.

Desconheço o paradeiro de minha família;
Sei que em boa companhia ela está.
Se soubesse onde encontrar, eu não iria,
Pois seria uma forma de entregar.

Seja feita a vossa vontade,
Na verdade é a que prevalece.
Não há prece que a alma nos salve.
Tu bem sabes, nem aquela que te preze.

Deus me mostra um caminho florido
E diz: “ Filho, segue com teus pés.
Pergunta-me quem és e eu te digo.
És um ombro amigo capaz de atos cruéis.”

“Eu te fiz a minha imagem e semelhança.
És miséria e pujança, és o ódio e a dor;
Eis quem sou, pessimismo e esperança,
A mais falsa lembrança de amor.”

“Sou a saída para todo o desespero.
Imponho o medo àqueles que acreditam,
Não duvidam e me tem maior apego.
O que vejo são fanáticos que não hesitam”.

“Faço uso do Diabo e da condenação
Para ter em minhas mãos, todas as almas.
Tenho calma e através da devoção
Arranco cada coração com minhas garras”.

“Por ser Deus, o Senhor absoluto,
Eu não luto por nada nem ninguém.
Digo quem deve ou não ficar de luto.
Sou astuto e disfarço muito bem”.

“Eu criei o bem e o mal.
Sou o tal, ninguém pode me vencer.
O Diabo foi criado para ser meu serviçal,
Usa o mal para então me agradecer”.

“O mais ardoroso crente,
Inocente estará em minhas mãos
E se não, o Diabo ama gente
Calorosamente, não impõe limitação”.

“Chegou a hora da decisão final,
Bem e mal ou simplesmente a Terra.
Merda! Teu pecado original
Foi imoral, mas foi minha idéia”.

Entre Deus, a terra e o Diabo,
Claro que escolhi a terra.
Pois, só nela é que estaria salvo.
O pecado não passava de novela.

Deus sentencia numa voz estrondosa:
“Minha mão não piedosa te condena a uma vida eterna
Pela terra, não se importarás com a hora,
Na tua história, esquecerás o que era”.

“Mesmo que não reste vida, o planeta desolado,
Tu serás um solitário pelo mundo;
No recanto mais profundo e abandonado,
Não terás ninguém ao lado, só defuntos”.

“Nunca lembrarás das conversas que tivemos,
Nem ao menos uma única palavra.
Pela estrada, pode até ficar sabendo,
Talvez lendo, sem acreditar em nada”.

“Será como tu desejas, insolente,
Viverás eternamente sobre a terra;
Verás guerra e muito sangue quente;
Entre dentes, amaldiçoarás a terra”.

“Verás a vida dissipar-se a tua frente;
Gente doente, a chamar pelo meu nome.
E que tombe cada um. Indiferente
Será para este ente, vê-los morrer de fome.”

“Sentirás vontade de não existir,
De reduzir tua vida ao meu inferno
Que é eterno em meu céu. Ao abrir,
Vais ouvir que o Diabo está por perto.”

“Viverás em completo esquecimento.
Em nenhum momento lembrarás de tua morte.
Tua sorte será selada pelo tempo
Que o vento soprará de jeito forte”.

“Não haverá corte de navalha ou espada
Que desfaça tua carne, e talvez,
Tua altivez te traga mágoas,
Entre lágrimas perderás tua lucidez.”


O pedido

“Mesmo louco, acharei ainda pouco.
Porém outro, mais consciente de tudo.
Serás luto num silêncio harmonioso.
Horroroso teu olhar, quando no escuro”.

Interfere o Diabo e diz: “Senhor.
Por favor não imponha esse castigo.
Meu pedido é que ele sinta dor,
E na dor, lembre de tudo que eu digo.”

“Que se lembre de tudo que acontecer;
Que foi Deus que imputou-lhe tal tormento,
Que todo tempo foi ele que perdeu,
E que todo ódio seu é só lamento.”

“Que esse momento fique na cabeça
E que nunca ele esqueça do Diabo.
Ao seu lado peço que também padeça
E sofrendo apodreça, todo herege revoltado.”

“Que sua família, jamais reveja
E que nunca esqueça do pós-morte,
Onde sua sorte foi tristeza.
E tenha a certeza de que nunca morre”.

“Que tenha lembrança da felicidade;
Que sinta saudade do que foi um dia;
Que a alegria sentida de verdade
Seja só maldade e pura agonia”.

“Por estás sentado a minha direita
E ser bem estreita a nossa amizade;
Pois se na verdade, Diabo, tu desejas;
Assim seja feita a tua vontade”.

Deus estende a mão sobre a minha cabeça.
“Sólio, não esqueça que não há perdão.
Sendo bom ou não, podes ter certeza,
Serás uma presa em minha prisão.”

Uma intensa luz ofusca-me a visão.
Tento ver em vão, o que há a frente.
Entretanto, de repente, diviso um calçadão,
Onde, um cidadão passa indiferente.

Reconheço a cidadela onde nasci.
Quanto tempo! Vi minha casa velha.
Por saudade dela foi que enfim a vi,
Ante meu nariz, era mesmo ela.

Recordei o tempo que ainda criança
Tinha esperança de servir a Deus.
Eis que os sonhos meus, vindo à lembrança,
Minha mão alcança o que negou Deus.

Acreditava, como minha mãe, numa leitura sagrada.
Tão enganada com a religião.
Temia o Cão e a Deus adorava.
Nunca imaginara, o que ambos são.

Falava em Deus na lição de casa.
Se eu ia a praça, ouvia sermão.
O prelatício então nos encaminhava
Para a palavra da salvação.

Um dia, minha mãe segue o Híbrido,
Não sabe o risco de sua salvação
E seu coração fica endurecido,
E o seu sorriso perde-se em vão.

Dizia o pastor indignado com o Diabo:
“Com ele o fardo é bem maior.
Ele não tem dó do seu pecado,
Já o Deus amado é bem melhor.”

Eu pequenino ainda acreditava.
Cada palavra tinha algo a dizer.
Quando falava: “Você”. Então orava
E achava que nada iria acontecer.

A minha fé era maior que a razão.
A formação moldou minha personalidade.
Naquela idade, fantasia e ficção
Eram apenas a outra mão da realidade.

Papai-Noel para mim, uma divindade.
Ao saber da verdade, enlouqueci.
Reconheci que moldamos a realidade
Com uma única finalidade, ser feliz.

Eu era eterno num mundo volátil.
O corpo táctil nunca cederia.
A agonia me tornava fraco.
Pra desabafo, ninguém eu teria.

Durante o meu crescimento natural,
Busquei o bem, não o mal, através de religiões.
Resignava-me às condições de uma moral,
Sempre formal, sem ambições.

Eu procurava Deus por onde passava.
Não encontrava nada, somente eu.
Enfim descubro Deus e onde estava.
Se encontrava onde se escondeu.

Tornei-me um homem ateu.
Em Deus, já não acreditava.
O tempo então passava como eu.
No julgamento meu, ninguém pecava.

O desespero, um dia me traiu.
No mar bravio, a Deus peço uma graça.
Diante da desgraça, uma luz surgiu.
O meu amor sorriu, de volta em casa.

Esqueço a promessa e volto ao mar.
No mesmo lugar perco os meus.
Eu não perdôo Deus por não me levar;
Pois por errar, seria eu.

Eu me torno um herege revoltado
Com Deus, o Diabo e comigo mesmo.
De nada tenho medo e, acordado,
O meu pecado tem mais peso.

Um dia então me enforco.
Em foco vou ao céu e ao inferno.
Agora sou eterno e a terra retorno.
Porém não me conformo, não está certo.



Sigo pela calçada vazia e a procura
De alguém que a essa altura me conheça.
Tento esfriar a cabeça. Atravesso a rua,
É loucura que eu agora padeça.

Dessa vez, eu descubro com surpresa,
Que minha vida está presa no passado,
Quanto tempo passado, que tristeza,
Que tamanha frieza quis o Diabo.

Pensei que passara alguns anos,
Engano, dois séculos como defunto e zumbi.
Agora estou aqui sem nenhum plano.
Não há ninguém que amo, mas devo prosseguir.

Eu ando pelas ruas sem uma direção.
Meu coração explode em segredo.
Agora reconheço que tenho uma missão:
Mostrar quem são Deus e o Diabo é um começo.


A revolução

Tentarei evitar que o mundo acabe,
Mostrando à humanidade a única salvação:
Que é manter-se são e morrer tarde,
Não deixar que se apague a luz na escuridão.

Infiltro-me numa grande religião
E uso a razão para avisá-los
Que Deus quer enganá-los com sermão,
Isso em comunhão com o Diabo.

Eu uso os livros para eles sagrados
E apenas com diálogo vencerei.
Desta forma pensei, vou conquistá-los,
Mostrá-los que não existe nenhum rei.

Eu chego a ser mestre dentro da religião .
Uma multidão indaga sobre tudo.
Seja um culto ou mesmo um sermão,
Numa reunião nada fica oculto.

“Mestre Sólio, qual é sua explicação?”
- No sermão eu direi tudo.
Vou ao púlpito e começa a indagação.
- Caro irmãos, quero começar o culto.

“Mestre Sólio, o dinheiro é importante pra manter
O templo que irá crescer e prosperar?”
- O que há? Só precisam de você
Pra poder ser escravo e ajudar.

“Mestre Sólio, não devemos mais pagar?”
- Perguntar nunca irá lhe ofender.
Vá viver com o pouco que restar.
Bem-estar é o melhor a se fazer.

“Mas pra Deus não é pecado,
Pois se ele é o ajudado, que me diz?
- Olhe a frente do nariz, és condenado
Pela morte. Não há pecado, infeliz.

“Nossos erros?” – Deveriam ser julgados
E os culpados punidos com a prisão.
Porque na religião só há culpados
Pois até os inocentes são levados à prisão.

“Mestre Sólio, e os castigos, o que são?”
- São apenas armação do Velho Sábio.
Ele criou o cenário, pois atores em ação,
Inventou a salvação e o pecado.

“Mestre Sólio, e o Diabo, então, existe?”
-Ele insiste em enganar, mas é um bajulador
Do senhor, que enfim, foi o artífice
E insiste que ele seja o opositor.

“E os livros realmente são sagrados?”
- Foram por Deus manipulados e a seu favor,
O temor ao pecado, implantado.
Ao contrário, espalharam ódio e rancor.

“Quanto ao Híbrido, o rei dos reis?”
- Desta vez, Deus exagerou.
Pois com o Diabo apostou. Insensatez
Ou talvez estupidez, falta de amor.

“Quer dizer que o filho foi ludibriado?”
- Pelo Diabo e por seu próprio pai
Que o trai com essa história de pecado
E o deixa odiado por demais.

“Quanto ao espírito santo de Deus?”
- Irmãos meus, Deus já é espírito.
O que é isso! O filho pelo menos nasceu,
Depois morreu liberando seu espírito.

Começo com palavras de conforto.
Vejo em cada rosto uma expressão pesada
Que é carregada sobre o corpo
E o desgosto atinge a alma.

Os livros foram escritos com cuidado.
Ditados pela boca do Senhor.
Então nos enganou usando o Diabo
Que está sempre ao seu lado, a seu favor.

Porém há lacunas e contradições
Que deixam nas religiões, contestação.
Em minha opinião, tenho razões
Para vencer as emoções da multidão.


Tomo V

A interpretação

Encontrei a solução para o problema.
Um esquema que eu posso contornar
Ao demonstrar que não há culto ou novena
Que mude a pena que Deus quer nos imputar.

A minha experiência foi real.
O bem e o mal eu conheci de perto.
Nas portas do céu e do inferno eu vi o final
De cada mortal, planejado pelo Eterno.

Abro um livro e analiso suas páginas.
Vejo lágrimas nos olhos que acreditam
E duvidam de todas as palavras
Interpretadas, de nada abdicam.

No entanto, registro minha interpretação
Pela visão que eu tive lá no céu.
Nas dobras do papel tenho a impressão
Que ilusão seria uma afirmação fiel.

- Deus, quem diria, tem asas de borboleta.
Tomando a forma que nos pareça, como um camaleão,
Garras na mão e também presas,
Uma luz acesa na escuridão.

- O Diabo então, tal um morcego,
Olhos vermelhos, garras na mão,
Uma visão de infravermelho.
Nenhum espelho dá-lhe visão.


- Nenhum dos dois tem coração.
Pudor, perdão não reconhecem
E sempre esquecem uma lição,
Que amor e perdão nos fortalecem.

- Deus nunca soube o que é amar.
Tenta enganar cada ser humano
Com um sentimento que é mundano e sempre será.
Não sabe dar sem dizer quanto.

- Criou Deus, o ser humano macho e fêmea;
Isso é lenda, já nos encontrou formados
Pelo acaso e com alguma interferência,
Mas não plena aos seus cuidados.

- Deus discorda de nossa evolução.
Cria então a história da serpente.
Nos ofende com a sua intromissão .
Sua mão tende a ferir o inocente.

- Só havia um casal em seu jardim
Que enfim geram dois filhos homens.
Um some com o outro, sendo assim,
Deus expulsa o ruim que se esconde.

- Porém, conhece sua mulher em outro lugar.
Como explicar, se a sua mãe era a única que existia.
Deus sabia que iria atrapalhar.
Mas sem ligar, ao homem ditaria.

- Deus então, vem a terra com o Diabo,
Com cuidado para não ser reconhecido
E por isso, toma a forma do criado
Encontrado. Eis um homem atrevido.

- Uma briga se inicia entre os dois.
Só depois de passado algum tempo
Ao relento, o homem pergunta: - Quem sois?
“Direi pois, sou teu Deus e te entendo”.

- Deus fere a perna do oponente,
Dá-lhe um nome diferente e o abençoa.
E à toa, caminhando indiferente,
Ri com aquela gente que o enjoa.

- Um rapaz é executado por onanismo.
O que é isso ante a prostituição.
Quando Deus não impõe nenhum castigo
Por maior motivo, seu pai com a mulher de seu irmão.

- Deus e o Diabo enganam a multidão
Com relâmpago, trovão e muita fumaça.
Acham graça pela grande aflição
Que em cada coração foi implantada.

- Uma lei sancionada pelo senhor
A favor de que seja pago multa.
Uma coisa absurda, uma mãe espancada com furor
Que se apega ao amor que na barriga pulsa.

- A criança é expulsa, mas não morre.
A mulher como é forte enfim escapa.
E por essa desgraça o agressor nem corre.
Livre ele dorme se à multa paga.

- Deus não quer sua imagem revelada.
Numa tenda ele passa a habitar.
Para avisar, um alarme. Na defesa uma arma,
Através da pele mata se proteção não usar.

- Vive Deus como hóspede entre o povo.
Pra ninguém ver seu corpo, vive isolado.
Por um simples pecado será morto,
Se for bastante louco pra trabalhar no sábado.

- Quer mostrar Deus que somos semelhança
E com essa esperança faz cobrança de taxa.
Indivíduo é alma em sua conta.
Não distingue e aponta, quer metade de cada.

- Não importa se rico ou se pobre,
No entanto, resolve estipular idade.
Na verdade, ele ganha com a morte.
Quem for forte não tem validade.

- Deus demonstra ter medo de doença,
Ele inventa para não curar ninguém.
O povo diz amém, pois em sua crença
Não lamenta a morte de outrem.

- Deus possui um tesouro recolhido,
Nas mãos dos preferidos ele entrega,
Pela obediência cega entre outros motivos.
Ele ganha com isso e não nega.

- Deus conhece do que o homem é capaz.
Um rapaz acredita cegamente
Na serpente feita pelo capataz.
O que era Satanás, agora salva gente.

- Deus mistura bruxarias e lendas,
Víboras peçonhentas e veneno de dragão;
Uma enorme confusão, não há quem entenda,
A emenda sai pior que o bordão.

- Os homens sepultam seus mortos.
Pois os corpos não interessam a Deus.
Não são seus nem lhe dão remorsos.
Seus esforços, o divino esqueceu.

- Para dar responsabilidade ao próprio homem,
Deus se esconde por trás deles
E são estes que se escondem
De outros homens, detrás de quatro paredes.

- Com a ajuda de uma prostituta,
Uma desculpa para Deus mantê-la viva.
Quanto a outro que ali habita, não desculpa.
Eis a culpa por não dar valor a vida.

- Não importa o que fizeram essas pessoas.
Uma monstruosidade à toa, do senhor.
Pois matou mulheres, idosos e crianças boas.
Eram todas para ele sem nenhum valor.

- Deus incita saquear o reino alheio,
Sem rodeio diz que fiquem com os despojos.
Eu me enojo ver que todos o anseiam.
Por seu meio já não sentem mais remorsos.

- Deus dizima de uma outra cidade,
Não importa a idade, todos os moradores.
Seus valores e sua insanidade
É uma realidade para aqueles que me ouvem.

- Aos subjugados diz, não temam a mim
E no fim assassina-os friamente.
Uma mente doente que para mim,
Não importa um jardim a custa de gente.

- Deus reclama, entre o povo ter ficado
Em tenda e tabernáculo. Pois queria uma casa,
Porém de morada, tem em nome modificado.
Resultado, para o filho do Rei é adiada.

- Nessa parte, Deus enfim complica.
Quem incita o Rei a contar o povo,
Ele ou o outro? Ninguém explica.
Não seria Deus para culpar o outro?

- O Rei arrepende-se de ter dado ouvido
E obedecido a Deus ou ao Diabo.
Que macabro, contradiz o livro.
Um sentido pra dois resultados.

- Deus então promete ao Rei, castigo,
Escolhido entre três propostas.
A resposta entre ser perseguido
Pelo inimigo e ver o povo às costas.

- Eis que o Rei se acovardou na hora.
Essa história, escutar não posso.
Setenta mil mortos por uma resposta
Que desgosta o Rei em remorso.

- Porém, o Rei num ato de coragem,
Pela imagem do povo sendo dizimado
Pelo seu pecado, em desvantagem,
Como agem os heróis, assume ser culpado.

- Quando ecoa dentro da caverna,
A voz do profeta que a Deus responde,
Diz seu nome e à entrada dessa,
Vai depressa por ser ele homem.

- Com sua sede de sangue e de almas,
Deus perde a calma e manda anjos
Executarem seus planos sem cometerem falhas
E bate palmas ao dizimar milhares de humanos.

- Deus complica a situação da escrita
Quando dita aos que escrevem os livros sagrados
O número do povo contado e também modifica
O nome da eira que habita e os siclos pagos.

- Deus afirma que habitaria nas trevas.
Nessa hora se revela que há laços com o Diabo.
Eis o povo condenado, não há brechas,
Nem janelas. Ambos estão do mesmo lado.

- O senhor exige a humilhação do povo.
Seu caráter rancoroso nunca passa.
Ele faz ameaças o tempo todo.
Como um louco, ele sempre mata.

- Deus faz uma reunião com o Diabo
E os alados do inferno e do céu.
Qual será cada papel desempenhado.
Um nome ali é citado, o de um homem fiel.

- Contudo, Deus autoriza ao Diabo,
Massacra-lo sem o ferir fisicamente.
Duramente é o fiel prejudicado;
Arruinado, mantém a fé existente.

- Outra reunião é marcada com o Diabo.
Nessa, ele é autorizado a feri-lo como entenda.
Uma doença é lançada no coitado.
“Não matá-lo, deixe que ele a mim ofenda”.

- Entretanto, Deus não obtém bom resultado.
O fiel é tão fanático que dá glória.
Uma história de um homem alucinado
Que ferido e arruinado não se revolta.

- O povo se revolta contra o Rei.
Desta vez, é por Deus abandonado.
Desesperado, vem a dúvida na lei
Que Deus fez para consolá-lo.

- Ainda tem um fio de esperança,
Que haja lembrança em Deus
E os inimigos seus mantidos à distância.
Na infância, Deus o chamou de filho meu.

- Entre a sanidade e a demência,
O Rei pensa em fugir, mas não pode.
Seu desespero eclode na sua impaciência
Pela ineficiência do Deus nobre.

- O Rei perde a esperança no Senhor.
Indignado ficou, por Deus não fazer nada.
Sua voz já agastada por tanto que implorou.
Mais uma vez tentou, não há resposta dada.

- O Rei chama Deus de injusto,
Impassível e surdo por não aparecer.
Tem medo de morrer e esconde-se no escuro.
Deus permanece mudo, não vem lhe socorrer.

- O homem é comparado com um animal,
Menos mau, aqui se nega a coroação.
Nesta visão, difere por ser racional;
O que é real dentro da evolução.

- O pregador afirma que os mortos
Em seus ossos, não têm consciência
E nem recompensa, ciência ou remorsos;
Pois os mortos estão mortos, é ciência.

- O pregador nega a vida após a morte.
Nossa sorte é gozar essa vida.
Não há sabedoria, não há obra nem suporte
Pra quem morre. Só existe essa vida.

- Deus dita mitologia ao profeta que escreve;
Então se refere a serpentes, monstro marinho e dragão.
Essa fértil imaginação ao homem fere,
Numa crença que excede a razão.

- Deus, a gafanhotos, os homens compara.
Como praga que multiplica dia-a-dia.
Com ironia diz povinho ou bichinho quando fala;
Mesmo assim não apaga do povo a energia.

- Deus assume que cria as trevas e o mal.
É real sua atitude e empáfia.
Uma máfia do sobrenatural,
Desleal com aquele que lhe agrada.

- Leva Deus, para as trevas, o profeta.
Sua meta alcançada afasta-o do bem.
Vai além, quando à esperança afeta.
O profeta lamenta envelhecer também.

- Aos profetas que seguem o próprio espírito,
Deus deixa dito que os condena.
Um nome próprio inventa e deixa escrito
Que é bendito aquele que não pensa.

- Em sua aparições, confunde os humanos
Com seus próprios sonhos. E quando estes sonham,
Enganam-se e afirmam que foi a mando
De anjos que em nome de Deus cantam.

- Um anjo aparece e a multidão foge em pânico.
No entanto, um homem permanece
E na sua prece ele diz que a multidão não viu o anjo.
Portanto, o peso do medo cai sobre sua pele.

- O Senhor é um ser pervertido.
Escuta o que eu digo, ele incita o adultério.
Diz sério: “Ama a mulher de teu amigo.”
Não se mostra arrependido, é seu império.

- Deus é extremamente perverso e sem receio,
Ao meio promete abrir as mulheres grávidas;
Sem lágrimas, despedaçar o povo inteiro;
Sem ter medo que apontem suas falhas.

- Com sua sede de poder, Deus ameaça matar
Sem hesitar, a todos os príncipes e juizes
E depois admite ele mesmo determinar
A maneira de pensar, daquele que existe.

- Um homem sobrevive dentro de um animal,
O qual o engoliu por ordem de Deus.
O homem percebeu que o Senhor era mau.
Eis que o tal diz: “Te arrependas do mal, Deus.”

- Deus compara a eternidade com o tempo antigo.
Extermina os inimigos em vez de aprisioná-los
Ou torná-los escravos para seus amigos.
Mas por ser vingativo, deseja matá-los.

- O homem pede a Deus para que na ira,
Reflita e pense na misericórdia.
Pela sua glória não precisa que fira
O homem que grita e que chora.

- Uma pedra é erigida junto ao santuário,
Está claro que é apenas simbologia.
Deus queria que o testemunho fosse lembrado.
Depois diz ser pecado qualquer simbologia.

- Deus tem uma mente doentia e perigosa.
Faz que gosta, trata bem todo o povo.
Mas um outro pensamento ele mostra,
Em resposta ao bem, faz o mal, a seu gosto.


O renovo

- Tomou as enfermidades de seu povo sobre si.
Eis aqui um ser humano de coragem.
Sua imagem, ninguém deveria discutir.
Rei ali, o pôs Deus por vontade.

- Um menino nasceu e sobre seus ombros,
Com poucos anos estará o principado.
Mas cuidado, dentre tantos,
É sem encantos e pelo homem rejeitado.

- É ungido por Deus através de um humano,
Poucos anos de idade elevado a Rei.
“Eu hoje te gerei”. Disse Deus. No entanto,
nos seus últimos anos eu o abandonarei.

- Deus fala ao homem do seu servo, o renovo.
Que a seu olho parecia desfigurado,
Um coitado, sem formosura ou beleza no rosto,
Escondiam-se todos. Era um Rei desprezado.

- Ninguém, dele, fazia caso algum.
Era um, entre todos o mais indigno.
Era um homem sofrido, como ele nenhum.
É mais um trabalhador assíduo.

- Depois de ter sido tirado do juízo, deposto
Por seu povo. Porém, foi morto por Deus
Que o adoeceu e sentiu muito gosto.
De desgosto, o Rei, triste, morreu.


O híbrido

- O homem fala de um espírito mau,
Que o tal vinha da parte de Deus;
Um dos seus, da cidade infernal.
Afinal, uma ordem que o Diabo atendeu.

- Deus ordena que matem até os bebês.
Desta vez, o Senhor vai longe demais.
Nunca mais, a Deus eu perdoei.
E vocês, como dormem em paz?

- Na aposta que Deus fez com o Diabo,
O melhor resultado foi o híbrido.
O seu filho com uma virgem gerado
Para salvar do pecado o que é proibido.

- Eis que o lado humano desse híbrido
É movido pelo mais puro amor.
Já o lado do Senhor é apenas castigo,
Egoísmo, muita raiva e dor.

- Quando a parte do pai sobrepuja no híbrido,
Esse diz: “Os inimigos serão teus familiares”.
Os milhares de anjos no céu, gritam
E incitam seu complexo de inferioridade.

- Quando a parte humana sobrepuja no híbrido,
“Perdoai o inimigo e honrai mãe e pai.
Peço mais, misericórdia e não sacrifício,
Vem comigo e dar-te-ei muito mais”.

- “Sou filho do homem”, diz o híbrido.
“Não proíbo, pois sou o senhor do sábado”.
“É ousado e bastante atrevido”.
Diz, sentido, o Deus adorado.

- Manda o Diabo atentar o próprio filho.
Enquanto isso, leva-o para as mãos do Diabo.
Porém, o resultado não é o previsto.
E o Híbrido resiste ao danado.

- Porém, Deus não desiste,
Nos engana e insiste com o Diabo.
O seu filho, coitado, persiste.
Mas não sobrevive, por estar desse lado.

- Eis que chega o momento macabro.
Deus e o Diabo observam o Híbrido.
Eis que o filho grita ao pai, revoltado.
Por ter sido abandonado, diz isso.

- Por ser filho do homem, é humano.
Portanto, considera seu pai, a humanidade toda.
Quando diz: “Perdoa”, ele descobre o plano.
Deus comete um engano contra aquela pessoa.

- “Eles não sabem o que fazem”,
Termina a frase o condenado.
Eles são Deus e o Diabo. Que pasmem,
Que não se matem, somos todos condenados.

- Eis que o híbrido é ressuscitado
Por Deus e o Diabo, como eu fui.
Sua luz deixa o mundo espelhado.
Seu recado é um engano que seduz.

- O híbrido promete um dia voltar.
A humanidade continua a esperar esse dia.
Não há harmonia, todos vivem a brigar,
Só pensam em ganhar com essa mercadoria.

- Quem sabe, Deus permita que o híbrido volte.
Porém sua sorte poderá está selada
E sua palavra seja somente morte,
Sua ordem seja sempre, mata.

Acabo o sermão desço do púlpito
Enquanto o público, em silêncio, pensa.
Não é ofensa, o meu discurso.
Eis o curso de nossa crença.

Não sei se os fiz entender ou os confundi.
Dali, parti sem saber se o melhor é crer
Ou descrer, depois de tudo que vi.
Eu nada ouvi. Não tinham nada a dizer.

Continuo com o intuito de prosseguir
E instruir todo aquele que encontrar.
Chego a um lugar que há pegadas a seguir.
Não temo ir, nada temo enfrentar.



O livro

Saio em peregrinação pelo deserto.
Decerto eu encontro uma outra religião
Com alguma alteração do que era certo,
Um livro aberto a uma outra nação.

Fui ao céu, vi o inferno e volto a terra.
Minha meta é a Deus desmascarar.
Vou decifrar esse livro que encerra,
Peça a peça, sua maquiavélica maneira de pensar.

Dessa forma, sou como um novo mensageiro,
Um estrangeiro que começa ao povo falar.
Queira então me escutar o mundo inteiro,
Sou primeiro que a Deus teima enfrentar.

Abro o livro e começo a decifrar,
Sem pensar no que vai acontecer;
Se o povo irá entender ou se calar.
Vou tentar, pois preciso esclarecer.

- Deus reconhece que aquele que não crê
É mais ávido de viver que o fiel.
Por não alvejar o céu, busca ter
Uma vida de prazer e de mel.

- É escolhido um mensageiro para expandir a fé.
Ele é o fundador dessa outra religião,
Diz então tudo aquilo que Deus quer.
Pro que der e vier, diz a nova lição.

- O Diabo não pode tocar num humano
Sem o mando e anuência de Deus.
Eis que os seus sofrimentos e danos,
Pelos anos, tem o dedo de Deus.

- Sela Deus o ouvido daquele que duvida,
Põe morbidez na vida e o coloca nas trevas.
Entre velas à pessoa que castiga,
Impinge dor e intriga dentro dela.

- Escarnece de um humilde povo
Em preferência a outro que também despreza.
A intriga ele preza, é afoito.
Pois põe um contra o outro e não nega.

- Nenhuma alma advogará por outra,
Nem socorra seu amigo, eu proíbo.
O homem negar o livro, não perdoa.
Não é à toa que incentiva o suicídio.

- Chama ao ser humano de símio,
De suíno, por não acreditar.
Deus quer nos castigar, no mínimo,
Por seu domínio nos ver penar.

- Dita ao mensageiro que toda religião
Em sua ocasião será recompensada.
De uma rês sacrificada, um pedaço na mão,
Levanta os mortos do chão, é uma piada.

- Tem que pagar a Deus uma quantia
Que já havia na outra religião.
A maldição de Deus caía
Sobre aquele que não cria na salvação.

- Imponha pedido de resgate
Por parte do povo que domina,
Deus determina. Os prisioneiros terão liberdade,
Na verdade, essa prática ele ensina.

- Deus diz ao peregrino mensageiro
Que o livro é verdadeiro e lícito.
Porém, que um versículo pode ser retirado inteiro,
Se um melhor que o primeiro puder substituí-lo.

- Deus dita ao mensageiro sua nova opinião
“Eis aqui minha religião... sigam-na e não aos pais
E ainda mais, o castigo sobressairá ao perdão.
E porei então à prova, os rivais”.

- Mediante o temor, a fome e a perda dos bens
E também a perda da própria vida,
Aos agressores, ele dita: “Matai-os também,
Que ninguém saia com vida”.

- A perseguição é mais grave que o homicídio,
Diz o livro. Temam ao Senhor
Que com seu rancor é severíssimo no castigo
E em seu dito, não há perdão nem amor.

- Deus engana com inteligência ao povo,
Diz fiquem com pouco, gastem seus bens.
Se nessa vida tem necessidade para o corpo
No outro mundo sua recompensa vem.

- Deus condena ao mentiroso com maldição.
“Sua nação é a melhor que surgiu”.
Eis a mentira que ouviu na peregrinação
O então mensageiro. Deus se repetiu.

- Faça o bem ou faça o mal,
Deus é apenas um animal com força plena.
Ele diz que não condena, que o normal
É que o homem faz o mal e se condena.

- Deus treina seus anjos para a guerra
Na terra, contra o ser humano.
Eis um plano que não nega.
A maldade eterna de um Deus mundano.

- Deus, ao mensageiro deixa dito:
“Que o livro é uma declaração à humanidade,
Que na realidade infundo o terror maldito
E aniquilo quem não segui-lo de verdade”.

- Deus faz todo o povo dormir
Para poder ferir a sua razão.
Enganar com a salvação e prosseguir
Fazendo o povo seguir para a execução.

- Deus cita ao mensageiro para tolerar
Quem não trilhar suas pegadas.
Pois suas faltas vão aumentar
E asseverar o castigo às suas almas.

- Libera Deus, o casamento entre irmãos.
Com suas mãos desfigura os rostos humanos,
Com seus anjos dilacera o coração.
Não há perdão dentre seus planos.

- “Introduzirei no fogo, o que não crê nessa religião,
Como lição, e cada vez que sua pele queimar
Outra vou criar para ter ele a mesma sensação
E nessa repetição, sua dor intensificar”.

- Deus prescreve ao povo, a luta;
Desculpa por ser o gozo da vida transitório.
Para o próprio povo não é culpa,
Pois é Deus que usa o seu ódio.

- Tudo de ventura, diz Deus, é de mim.
Tudo que é ruim vem do ser humano.
Eis o plano: É melhor o fim
Num jardim lotado de anjos.

- “Capturar e matar,” eis de Deus, o conselho.
“Eu concedo maior dignidade àquele que sacrifica
Seus bens e sua vida por meu zelo.
Desprezo, àquele que comigo implica.

- A mando de Deus, o Diabo jura obedecê-lo.
Ao fazê-lo, se apodera de uma parte dos humanos.
Em seus planos, Deus mente ao mensageiro:
“Poderia fazê-lo desaparecer com todos os humanos

E substituí-los por uma outra espécie”.
- Em que tese, Deus se basearia?
Pois só semearia. O acaso, a que serve?
Formar uma nova espécie que a ele serviria.

- Deus dita ao mensageiro como revelação,
Que foi simulação a morte do híbrido.
Que não era seu filho e sim um homem são
Com a mesma intenção do mensageiro, ser entendido.

- Deus dissemina a inimizade e o ódio
Entre os próprios homens da outra religião.
Se somos de sua predileção, por que o próprio,
Com seu opróbrio, nos castiga em vão?

- Prega Deus, a tortura como aviltamento,
Que cruel pensamento. Deus nos apavora,
Nos enche de história a todo o momento,
Ver nosso sofrimento é tudo que mais gosta.

- Deus proíbe perguntas melindrosas
Que seriam perigosas para o indagador.
Seu temor é que as suas respostas,
Mesmo supersticiosas, tenham som denotador.

- Reconhece Deus a coragem dos humanos
Que ante o ato insano de chicoteá-los
Para castigá-los, não resultando
Como seu plano, vê-los humilhados.

- Se tivesse o Senhor enviado um anjo
Teria forma de humano. Por isso ele convenceu
A um que homem nasceu, seguir seu plano,
Levar aos humanos a crueldade de Deus.

- Para os homens esquecerem as admoestações
E privações, Deus lhes dá prosperidade.
Quando a felicidade alcança as suas emoções,
Deus impõem um extermínio covarde.

- Destruirei injustamente as cidades, diz o Senhor
Em seu furor, depois de avisá-los.
Seus comentários se tornaram sem valor
Quando atacou de surpresa, à noite, seus adversários.

- Deus mandou mil anjos como reforço
Para um povo vencer o outro e dominá-lo,
Mantê-lo escravo e exterminá-lo, cavar um fosso
E sem desgosto, friamente, enterrá-lo.

- O povo suspeita que o livro seja apenas fábula
E ao mensageiro fala: Se Deus existe,
Por que insiste em nos poupar. E cala.
“A resposta é clara”, o mensageiro disse.

- É impensável exterminar a todos,
Tampouco, dessa forma os castigar.
Enquanto puderem implorar aos poucos,
Feito loucos, pelo perdão que não virá.

- Reconhece Deus que os incrédulos têm
Além de calor humano, coração.
Eis que dão proteção a quem não tem,
E também, a quem tem fome, pão.

- Deus não aceita do incrédulo, caridade.
“É má vontade”, diz em sua arrogância.
Ignorância, por saber que é de verdade.
Talvez, quem sabe, a do fiel seja ganância.

- Não admite Deus, que alguém peça perdão
Nem mesmo a seu irmão, se este for incrédulo.
Eis o inferno de Deus em sua mão;
Irmão contra irmão, eis seu sucesso.

- Os anjos celebram Deus, não por amor;
Mas por temor. Imagine os humanos,
Milhares de anos, e ainda o terror
Que Deus criou; ao homem usando.

- Um animal foi abatido pelo povo
Em seu desgosto por havê-lo proibido.
Deus tão sentido, fulminou o povo todo.
Coisa de louco, todo um povo por um bicho.

- Eis que o livro foi por Deus elaborado,
Nem o Diabo poderia tê-lo escrito.
É impossível que alguém do nosso lado
Fosse tão bem informado sobre esse Deus maldito.

- Todo aquele que prefere a vida terrena,
Deus condena. Pois para ele o ideal é o céu.
Como folha de papel em chuva amena,
A alma pena tanto no inferno quanto no céu.

- Cingirei os homens com correntes,
Diz demente, o misericordiosíssimo Senhor.
Seu terror chega a ser indiferente,
Por querer ver toda a gente com pavor.

- Atearei fogo em seus rostos,
Sem remorsos, Deus ameaça.
Entre fumaça e corpos decompostos,
Pisarei neste solo de desgraças.

- Deus ordena a seu servo, o Diabo,
‘Vai-te lá embaixo e seduze com tua voz
E veloz com tua cavalaria aturde os safados,
Quero vê-los apavorados e sem voz.

- Associa-te a eles nos bens e nos filhos,
Depois disso, faze-lhes promessas, senão quimeras
E com essas, não terás, autoridade ou compromisso;
Por isso, basta-me para guardião delas.

- Deus cita ao peregrino mensageiro:
“Jamais tive parceiro em minha soberania.
Não haveria filho algum como herdeiro,
Sou único e primeiro, se houvesse o mataria”.

- Um jovem é friamente assassinado
Por um servo fanático, a mando do Senhor.
Seu temor era que o jovem induzisse aos pais amados.
E ele desacreditado, diminuísse o seu valor.

- Deus é um ser desprezível quando fala:
“Na hora exata vou fazer as gestantes abortarem”.
É assim que agem os que são psicopatas.
São inocentes almas que ali partem.

- Deus em sua sabedoria, dá um péssimo conselho
Através do mensageiro, não se importa:
“Pendure uma corda no teto, por primeiro.
Depois, ligeiro, se enforque sem demora”.

- Em sua insanidade, promete Deus,
Na cabeça dos ateus derramar água fervente.
As entranhas dessa gente e todos os corpos seus,
Derreterá Deus, e manterá com um ferro quente.

- Deus faz aos que o seguem, promessas falsas.
Diz enfeitar suas almas com pulseiras de ouro e pérolas
E que elas terão vestes de uma seda rara.
Deus faz piada com coisas sérias.

- Não respeita a mulher como um ser humano.
Em seu engano, Deus a maltrata.
Cobre sua cara com véus e o corpo com panos.
Fala do corpo humano, um atrativo que agrada.

- No momento da morte, Deus às almas, recolhe
E escolhe, durante o sono, as decretadas à morte.
As mais fortes são deixadas à sorte.
Como pode semear a vida e pulverizá-la com a morte.

- Deus faculta aos homens, a guerra;
Para com ela serem provados mutuamente
E incita sua gente numa batalha eterna.
Golpear aquele que nega, no pescoço, severamente.

- Considera Deus, a vida terrena, jogo e diversão.
Tudo em vão, mútua vanglória e veleidades,
Rivalidades quanto a bens e filhos. Então,
Sua criação tornou-se realidade.

- Deus expatriou os incrédulos, os açoitou
E infundiu o terror em cada coração.
Com a própria mão, cada incrédulo derrubou
A casa que um dia edificou, no chão.

- Tudo que é tomado dos moradores das cidades
É dado por caridade ao mensageiro.
Entre jóias e dinheiro, Deus em sua piedade,
Enriquece por bondade, seu mensageiro.

- O fogo é guardado por anjos inflexíveis e severos.
O exército de Deus, jamais desobedece a uma ordem;
Não importa os que sofrem, são enérgicos,
Soldados intrépidos que não morrem.

- O pecador será manietado e introduzido na fogueira;
Enquanto queima, carregará uma pesada corrente.
Nenhum amigo à sua frente, só sujeira.
Dessa maneira comerá excremento de gente.

O Altíssimo é adorado por aquela gente sofrida.
Não há ferida que esse povo não suporte.
Profundo corte numa adoração em vida.
Coisa esquisita buscar Deus até a morte.

Se ali ficasse eu seria decepado.
O meu pecado era por falar de Deus.
Os olhos seus pareciam desfocados.
Povo fanático, desconhecia o que perdeu.

Dali parti, a procura de um povo mais moderno
Que do inferno gostaria de escapar
E acreditar que o céu por ser eterno,
Tal qual o inferno, não teria como voltar.

Depois de viajar por muitos anos,
Em meio a enganos, encontro um lugar.
Eis a falar, alguém, de planos,
Que os humanos não devem confiar.


Tomo VI

Os últimos dias

Nos últimos dias de um ano distante,
Estive diante de alguém que pregava.
Ali me tornara um seu semelhante.
Dali em diante, suas placas, eu revelava.

Em meio à praça eu falo em voz alta
Aquelas palavras que havia nas placas.
Porém forjadas por aquele que falara
E enganara a quem lhe acreditara.

- Um jovem é incitado e constrangido
Por um espírito, a mando do senhor.
Seu furor, em seu mando, foi cumprido.
O jovem envaidecido a um homem matou.

- Um jovem teme que o Senhor o fira
E a sua família também;
Então diz amém, todo dia.
De nada servia, Deus não perdoa ninguém.

- Deus deixa nas placas gravado seu ódio.
“Perante seus olhos, suas crianças serão despedaçadas,
Suas casas saqueadas, suas mulheres eu violo,
Sem remorso cumprirei minhas palavras”.

- “Meus arcos aos mancebos despedaçarão,
Não se compadecerão do fruto do ventre,
Nem uma criança à sua frente meus olhos pouparão,
Eis a razão para me obedecer toda a gente”.

- O senhor tenta desvirtuar a confiança
E tirar a esperança é seu plano.
“Maldito o humano que tem confiança
em outro. Pois se lança no engano”.

- O ódio de Deus pelo homem é revelado:
“Meu trabalho ainda não o terminei.
Minha lei é que o homem seja exterminado.
Meu recado é que chegará a sua vez”.

- Deus fere os humanos com terrível espanto e medo;
Revela um segredo que o homem natural é seu inimigo;
Ameaça com o castigo da fome e peste; para temê-lo.
Eis o seu erro, o homem já tem tudo isso.

- Atinge um homem que nega a existência do seu filho.
Derruba seu inimigo por terra com um raio.
“É claro que em seu filho eu acredito”.
Diz quase sem sentidos o homem espantado.

- Por ordem de Deus, o Diabo induz aos humanos;
É seu plano fazê-los não acreditar que ele existe.
O Diabo então insiste: “É engano,
Vocês humanos acreditarem que ele existe”.

- Aqueles que começarem a descrer,
Poderão ver que o mundo será melhor.
Muito pior é o medo de perder
O céu, porque o pecado é maior.

- Assim a humanidade ficará só,
E por ser só, começará a entender.
Que é preciso não crer para ser melhor
E ter de cor que a vida é para viver.

Calo-me e observo ao meu redor,
Que foi bem menor a minha rejeição.
Enquanto se dispersa a multidão, caminho só.
Foi bem melhor essa minha atuação.

Dias depois, num lugar dali distante,
Sou visitante e procuro me inteirar
Da religião que há, com um habitante;
Homem interessante que gostava de falar.

Estudei o que ele analisava.
Uma farsa ensaiada pelo Senhor
Por temor que o mundo que manipulava,
Agora tentava livrar-se de um libertador.

Através de uma palestra eu revelo o que acontece.
Que Deus tece um plano astuto
E que tudo não passava de um teste.
Minha tese é que parecerá um estudo.

A platéia fica muda ante minha explanação.
A revelação de mais uma trapaça,
A qual passa como uma religião.
Ai vão minhas palavras.


Os espíritos

- Vendo que a descrença o prejudicava,
Deus num acesso de raiva tem uma nova idéia.
Encarrega o Diabo de pô-la em prática.
A sua tática foi usada na estréia.

- Liberou algumas almas para a terra.
Nessa época o fenômeno começou.
O Diabo ordenou: “Façam uma festa”.
Nessa festa muita mesa então dançou.

- O humano que só via sua mesa a se mover,
Por não entender, começou a investigar.
Ao perguntar o que queria saber,
Começou a responder quem podia explicar.

- Os espíritos falam em grau de perfeição.
Uma invenção de Deus para enganar.
Vejo o povo, devagar, aceitar a nova religião.
Vejo então o Diabo os penetrar.

- Há espíritos imperfeitos, inventa o Senhor;
O impuro, perturbador, leviano e sem dons,
Há os bons, superiores e puros de amor,
Os anjos de valor são espíritos bons.

- Os espíritos negam a existência do Diabo.
São escravos do mal, mas podem elevar-se.
Esse impasse só depende de trabalho;
Que cada humano deste lado, por eles lutasse.

- Deus impõe a encarnação para chegar a perfeição,
Expiação ou missão. Eis que à terra há de voltar.
E ali vai depurar e ter uma transformação.
Acontece a reencarnação, tenta Deus nos enganar.

- Nova crença o Diabo pôs-se a implantar.
O homem a perguntar, o espírito a responder.
Pôs-se o homem a escrever e anotar.
Eis um livro popular para se vender.

- Tornei-me um adepto dessa crença.
Sem ofensa comecei a procurar,
Como também desmascarar, sem ter licença.
Mas me entenda, é preciso demonstrar.

- Pois já não há mais lugar
Para abrigar tanta mentira.
Deus não mais enganaria. Se eu tentar,
Posso até desmascarar o ser que os oprimia.

- Os espíritos dizem ser criação de Deus,
Que são seus e pertencem a outro lugar.
Vêm a terra e vão voltar para os seus.
No entanto, Deus, os virá enfim, buscar.

- Não há volta ou renascimento
Sem o consentimento divino.
Um espírito subindo ou descendo,
O seu plano terreno ainda não está findo.

- Continua Deus mentindo, pois há fuga.
Sua desculpa é que não estamos sozinhos
E que pelos seus caminhos não há culpa.
Arapuca para pegar de mansinho.

- O espírito engana dizendo
Que podemos voltar muitas vezes à terra.
Nisto, encerra o que Deus vem querendo.
Eu entendo o que ele espera.

- Eis que os anjos disfarçados de espíritos,
Deixam dito que há outros mundos.
Pisam fundo em nossos sentidos,
Por capricho, que seres imundos.

- “Esses mundos também são matéria”.
Que pilhéria pensa nos incutir.
Ao mentir, busca nossa miséria.
Como é séria essa forma de agir.

- Então, diz o espírito, que jamais se engana.
Assim manda Deus, seu superior.
Diz: “De dor o espírito reclama
Na lembrança do que já passou.”

- Deus através de anjos disfarçados de espíritos,
Diz que é preciso morrer para ter a alma livre.
É triste ter os seus entes queridos
Perdidos, e ainda escutar essa tolice.

A platéia se empolga e bate palmas.
Algumas vaias dos mais iludidos.
O mundo não está perdido, tem suas falhas.
São as malhas de anjos pervertidos.

Assim, sigo o meu caminho a outra parte.
Eis que arde minhas costas sob o lençol.
Um deserto que é um paiol em sua face.
Sendo que à tarde, é intenso o sol.

Anos a fio pesquiso uma doutrina.
Minha pele ainda se sustenta.
O sol arrebenta, mas a vida ensina.
E minha sina é que o mundo aprenda.

Faço um sermão numa montanha.
O povo me acompanha em silêncio.
Como um incêndio em uma cabana,
Minha voz assanha o fogo ardendo.

Maculo uma tradição que os iludia.
Ainda é dia e percebo o agravo.
Porém, o meu recado será dado; pois sou guia.
Minha agonia é ver o mundo condenado.

Elevo minha voz aos mais distantes
E nesse instante assim eu principio.
Um desafio entre formiga e elefante.
Deus um gigante, eu, um pavio.


Os veículos

- Há um antigo entendimento
Que trás em seu ensinamento uma tradução;
Estamos em missão de treinamento
E que por dentro somos a encarnação.

- Deus nos considera veículos da alma,
Que a gente se acaba e a alma é eterna,
Que um tempo na terra ela passa.
Nosso corpo uma casca que se revela.

- Deus inverte o sentido das palavras.
Diz que as almas representam o bem,
Que também tem suas falhas,
Que os corpos são cascas e só o mal, têm.

- Ao contrário, o que herdamos de Deus, foi o mal.
Ao inverso do tal, nosso corpo é matéria do bem.
Aprendamos também que é letal,
Uma alma imortal no além.

- Pela impossibilidade de compreensão dos humanos,
Em seus planos, Deus proíbe sobre ele falar.
Tenta acobertar o eterno engano
Que um humano já pôde alcançar.

- Sobre a essência do criador todo poderoso,
Arrogante e orgulhoso, não se pode falar
Nem ao menos pensar. Eis um plano ardiloso,
Um vírus insidioso criado para atormentar.

- Só através dos desejos de Deus,
Dizem os seus, é que podemos conhecê-lo.
Meu conselho é que quem já morreu,
Na mão de Deus, sofreu sem percebê-lo.

- A alma é parte da essência divina,
Ela não finda, dizem os seus.
Eis que Deus como erva daninha
Se aninha para destruir os meus.

- Deus mantém a existência do mal.
Como o tal, quer acabar com o bem
Que não tem, posto ser um letal
Animal que não pensa em ninguém.

- Deus sustenta e preserva o mal.
Afinal, está fora dele próprio, o bem
Que só o homem tem por ser carnal.
Eis que a parte material é o bem.

- Os que seguem ao Todo-poderoso
Que orgulhoso diz ter, fora dele, criado
Os dois lados, um do outro é oposto,
São os tolos que acreditam em pecado.

- Para manter-se separada do Todo-poderoso,
A alma tem o corpo. Há diferença de forma.
Eis a prova que tem o astucioso
Que não está disposto a aplacar sua cólera.

- O universo material é evoluído,
Eis o corpo físico natural.
O mal é a raiz do Altíssimo,
Enquanto o veículo é o ser material.

- O Todo-poderoso em sua suprema perfeição,
No ápice de sua criação, implantou uma semente,
Uma alma inconseqüente com toda a imperfeição.
Sabia de antemão como seria a gente.

- Sabia das danosas conseqüências,
Pois suas más tendências herdaríamos.
Achou que levaríamos a sua indecência
E a sua impertinência ao subirmos.

- A sua criação foi fora de propósito.
Seu servo, quase sócio, o Diabo,
É fruto do acaso, de Deus herdou o ódio.
O próprio Deus deixou-nos ao acaso.

- Criou o mundo com planetas isolados,
Com cuidado espalhou as suas almas.
As almas na matéria germinaram.
Eis que no resultado tiveram falhas.

- Todas as criaturas despertaram um lado bom,
Um dom herdado da matéria.
Deus ficou uma fera por ser o homem bom.
Contra esse dom, ele pôs a morte eterna.

- Dessa forma, a nossa alma é parte do senhor.
Todo o seu furor e maldade, dele herdamos.
O pouco que ainda desfrutamos de amor
Foi o que resultou do seu engano.

- O bem nunca esteve contigo.
No pervertido Deus supremo.
O pouco que nós temos é motivo
Para deixá-lo enfurecido e fervendo

- Enquanto o corpo físico não estiver decomposto,
O nojo do Todo-poderoso não permite acolher a alma.
Sem calma, ele a mantém, com esforço.
Por seu gosto, todo o bem, dela tirava.

- O Todo-poderoso não pode dar às almas
A rara plenitude do prazer.
Tiveram que nascer embrionárias.
Com a matéria untadas para poderem viver.

- O corpo físico está condenado a morrer
Pelo seu bem querer, e para Deus manter
Em seu poder a alma sem prazer.
O bem tem que perder e o mal vencer.

- Não somos tão insignificantes.
Talvez sejamos gigantes por enfrentar
O altíssimo em seu altar, desafiante,
Que a todo instante, insiste em nos ameaçar.

- O homem assemelha-se ao Senhor
Na falta de valor e no eterno mal.
Em seu estado final, mesmo tendo amor,
Seja como for, a alma o destruirá por total.

- Quando o bem for consumido da terra,
A morte eterna será tragada.
A alma terá que destruir de sua parte externa,
A bondade que nela for encontrada.

- O mal é o aspecto da alma.
O bem que acalma é o aspecto do corpo físico.
Por isso, a matéria tem que ser deteriorada
Para só restar a alma, a maldade do maligno.

- O Todo-poderoso teoriza
E o homem acredita sem questionar.
“Os fiz para torturar e sofrer na vida
para ser removida a maldade que restar”.

- O bem surgiu pelo acaso, espontaneamente.
Deus quer removê-lo radicalmente do universo.
Decerto o transformará no mal que sente.
Com o bem ausente, o mal será eterno.

- Nossa essência é a de tudo que existe,
Resiste para não ser esquecida
Na outra vida, onde o corpo não existe.
Deus insiste em não nos dar saída.

- O aspecto mal da alma humana,
Engana e macula o corpo físico.
Com isso, a matéria humana,
Nesse drama, de ser extinta, corre risco.

- O bem será removido totalmente
E conseqüentemente o sistema de prazer, o corpo.
O outro, que ao mal representa, durará eternamente.
Então, para sempre, nosso mundo será oco.

- Essa linha de pensamento nunca fora revelada
À geração passada, ante sua ingenuidade.
Na verdade, só agora demonstrada
Para mentes acostumadas com novidades.

Calo-me enfim, e todos que me ouviam
Saiam lentamente, discretamente.
Olhavam friamente, os que não sabiam
Que teriam que mudar urgentemente.

Eu desço do púlpito do qual falava.
Sozinho caminhava pela rua.
A lua no céu já despontara.
Jamais imaginava rever a criatura.

Eis uma luz intensa que me cegava.
Talvez fosse uma entrada ou um portal de tempo.
O vento era tão forte que puxava,
Meu corpo vacilava, também meu pensamento.



O encontro

Começo a divisar uma enorme sombra,
Já não mais me assombra, o reconheço.
Seu rosto não esqueço, eis que me chama
“Sólio, por onde andas”? Eu estremeço.

“Sólio o que pensas estar fazendo,
Ao mundo esclarecendo quem sou eu.
Sólio, sou eu, ouça o povo me querendo.
Na hora que estão morrendo chamam por Deus.”

“O mundo teme a mim e ao Diabo,
Este, claro, é um velho serviçal.
Teme o mal e também ser condenado
Pelo ato do pecado que foi um golpe genial”.

“Sólio, o Diabo é um mal necessário
Enviado para contrabalançar o mundo
Que iria para o fundo do abismo sem um emissário
Que fosse cravejado para salvar esse mundo.”

“Imagine, Sólio, um mundo sem guerra.
A terra povoada de humanos
Que não fariam planos para uma nova era,
Uma era entre Deus, o Diabo e os anjos.”

“Como, na hora do desespero,
Enfrentariam o medo sem Deus.
Eis que eu sempre os fortaleço
E nunca esqueço se uma alma se perdeu.”




“Sólio, tudo gira em torno de meu nome.
O ser humano come em minha mão.
Acredita ser coroação, e some
Toda a dúvida como a fome ao comer o pão.”

“Sólio, veja todas as desgraças.
Tudo passa, até mesmo sua dor.
Todo esse amor de tua raça,
Acaba numa alma sem valor.”

“Sólio, tudo que acontece de ruim,
Até o fim, culpam o Diabo.
Ou sentem-se culpados, é sempre assim,
Pedem a mim, os condenados”.

“Não queiras tirar a crença dos mortais,
Isso é demais para as suas cabeças.
Esqueças ou jamais terás paz
E nunca mais, uma cabeça.”

“Sólio, onde fica a esperança
Se uma criança descobrir que não se salva.
Sua alma não terá nenhuma lembrança.
A sua infância talvez seja muito amarga.”

E nessa hora interrompo sua fala.
Eis que se cala Deus, enquanto falo:
- Quero um trato; uma mão à outra lava.
Com o olhar me afasta, assim me calo.

“Agora fala o que queres me propor.”
- Senhor a eternidade é muito pouco.
Eu quero um corpo que sinta dor,
Que sinta amor, quero ser louco.

- Eu quero ser humano, um mortal
Com o bem e o mal no coração.
A emoção de ser um animal
Que é racional sem ter razão.

- Prefiro viver por poucos anos.
Mas, fazer planos e realizar
O que desejar, mesmo em sonhos.
Estranho, isso o anjo também desejar.

- Quero enxugar as lágrimas em meu rosto,
Sentir meu corpo ao mergulhar.
Quero tocar a face do oposto,
Sentir o gosto com o paladar.

- Quero brincar, me madurar, envelhecer.
E jamais crer em tua salvação.
Quero o perdão para aquele que viver
A ti entreter com oração.

- Desejo que um dia seja escrito
Um livro com a minha triste história,
Em memória de um homem fictício
Sem compromisso com sua glória.

- Quero esquecer de tudo até agora
E ficar fora desse absurdo.
O meu futuro deixai para a minha hora.
A minha hora que seja do acaso, fruto.

Deus então, como sempre, se enfurece.
Em sua ira esquece o perdão
E sua mão ele estende a mim, o herege,
E exerce a sua maldição.

“Serás mortal então, está de pé a proposta.
Porém em resposta, não terás mais lembrança
De tua infâmia passagem pela terra oposta.
Já que tu não gosta de minha instância”.

Como se uma nuvem levasse minha memória recente;
Não relembro o presente, nem que um dia morri.
Eu de tudo esqueci, era um inocente,
Um novo ser vivente que não sabe o que diz.

O que faço aqui? Eu indago a mim mesmo.
Que enorme segredo tem em minha cabeça?
Antes que eu esqueça quem sou, eu mereço
Pelo menos um endereço. Deus, não me esqueça!

De repente, o vento abre uma janela,
Eu percebo uma cela, um menino está preso.
É estranho o que vejo, uma sacada amarela
Com uma única janela pintada de preto.


O pequeno filósofo

Eu adentro o recinto onde há teias de aranha.
Um senhor me acompanha e pergunta: “Que deseja”?
- Sou de terra estrangeira. Quem é a criança?
“Mantenha distância, antes que o pior aconteça.”

Por curiosidade, peço para com o preso conversar.
“Não vai dar.” Diz um outro que então, se aproxima.
Ele vinha de cima. Parecia mandar.
Volto a perguntar se ao preso eu poderia falar.

“Tens segurança e muita fé, senhor...”
- Sólio, eu sou. Pode continuar.
“Senhor Sólio, o que vais encontrar é dissabor.
Não existe quem sou, pois nada será.

Devo ter escutado demais, eis o que ele faz.
Vá em paz, suba, faça o favor.”
Subo à frente do senhor. Uma chave ele traz.
“Para trás.” Abre a porta, e diviso um cobertor.

“Fique a sós, estarei lá embaixo a aguardar.”
- Obrigado por deixar eu falar com o preso, senhor.
“Sólio, é cedo para falar de favor, deixe tudo acabar.”
Eu escuto o menino falar com brandura e pudor.

“O meu nome é Átheos, o pequeno filósofo.
O que posso então fazer para ajudar.
O que queres encontrar, senhor Sólio?
Ao pequeno filósofo pode perguntar.”

- Gostaria de saber o que faço aqui.
Acordei sem dormir, durmo sem acordar.
O que há, que acredito partir
Sem sair para nenhum lugar?

- Sou real ou apenas um ser fictício?
Num hospício devo me internar?
Eu queria poder encontrar algo que está perdido.
Mas como faço isso, se nem consigo lembrar.

“És substância orgânica, sensorial e intelectual.
Dessa forma és real. Mesmo sem vida, como matéria
Que é eterna, em outra forma, atual;
Serás tal como parte da terra.”

“Quanto às sensações através dos sentidos fisiológicos,
És no meio ecológico um animal perceptivo,
És finito. Mas, seu ser biológico
Continua o relógio ao infinito.”

“Quanto ao ser consciente, és único como idéia.
Porém, sua matéria divide-se infinitamente.
Não serás para sempre. No final, o que resta
É a terra, matéria de forma diferente.”

“Para seres real como intelecto, necessitas do corpo
E também desse corpo para seres real em sensibilidade.
Na verdade, a matéria é o próprio corpo;
De um ou outro ele não precisa para ser realidade.”

“A realidade física sendo matéria e/ou energia
É infinita. Enquanto a perceptiva e imaginativa
São finitas. É efêmera a tua vida
Que no corpo eterno habita, e é matéria mutativa.”

O pequeno filósofo manda-me descrever
Desde o meu nascer até o que me levou à sua cela.
Na certa, ele tinha muito a dizer
E seria um prazer me tirar das cegas.

- Nasci em uma pequena cidade brasileira
Sem fronteira com outro país.
Cresci feliz sob minha bandeira.
Gostava de brincadeira e finquei raiz.

- Era um garoto esperto, fui um rapaz sadio;
Desafio, talvez fosse o meu defeito.
Homem feito, responsável, inteligente e esguio.
Era um homem gentio e direito.

- De família humilde, tornei-me bem sucedido.
Era muito querido e extremamente religioso.
Deus para mim era bondoso, nunca fui ofendido.
Pelo amor fui vencido, um amor primoroso.

- Caso e viajo em lua-de-mel.
As estrelas, o céu, foi um belo cruzeiro.
Mas o navio inteiro vira um escarcéu.
Eu achei que era o réu. Hei que um anjo escudeiro

- Salva a minha amada que caíra ao mar.
Peço a Deus para ela voltar e ela volta.
Felizmente uma cota não tive que pagar.
Esqueci o lugar e a promessa exposta.

- Há um dia em que levo a família,
Todos que eu tanto queria, para o alto mar.
E no mesmo lugar o iate desaparecia
Levando minha alegria para o fundo do mar.

- Torno-me um dependente e perco tudo na vida.
Sem casa, sem comida e ninguém para olhar.
De tudo eu pude encontrar, menos saída.
De gente fidedigna pude eu escutar.

- Encontro com pessoas mortas, vozes do além
E também fotografias de fantasmas, conquistas pela fé,
Perdas pela falta de fé, demônios que matam alguém,
Espíritos do bem, luzes que ninguém sabe o que é.

- Pessoas que sofrem por que pecam,
Outras que se elevam do chão, andam sobre a água,
As curadas de doenças fatais, santos que se revelam,
Enigmas e mistérios, o sobrenatural, tudo e nada.

O pequeno filósofo volta a falar;
O seu olhar está distante.
E nesse instante tento escutar,
Ao me aproximar ele fala bastante.

“Seu nascer é realidade física quanto a constituição
De sua mão, de sua mãe, do seu médico, da sala.
Perceptiva quanto à provocada sensação,
Como uma contração, o tato do médico que apalpa.”

“É uma realidade imaginativa quanto aos pensamentos
Naquele momento, de todos presentes na sala.
A compreensão de cada um pelo que está acontecendo,
O conhecimento do médico e a fala.

“A pequena cidade é uma realidade física
Quanto as suas avenidas, habitantes e animais.
Quanto aos ais de sua gente sofrida,
Ela é imaginativa como as formas nos murais.”

“Seu crescimento é real físico nas alterações do corpo,
Do rosto, da massa muscular, dos ossos e é Perceptivo
Por ser sensível a influência hormonal em seu corpo.
Seu gosto preferido é real imaginativo.”

“Quanto ao seu casamento em relação ao casal
É real físico. Perceptivo nas sensações dos convidados.
Pelos sonhos realizados e quanto ao ritual
É real imaginativo como os santos adorados.”

“A viagem, o acidente, o salvamento
E o ressuscitamento são realidades Físicas,
Perceptivas e Imaginativas; pelo relacionamento
Com pensamento, sensações, matéria e energia.”




“Deus não existe para o cérebro funcional dos animais,
Confirma ainda mais que é real imaginativo.
Por não ser percebido como os demais,
São provas racionais que não é real perceptivo.”

“Tendo o conhecimento é real imaginativo,
Mesmo universal e objetivo em sua compreensão,
Como a lógica e a razão, busca compreender o físico
Consciente e intuitivo em permanente transformação.”

“Neurotransmissores, neurônios corticais
São reais físicos resultando o imaginativo
E o perceptivo em condições físicas e mentais
Ideais para não ser fictício.”

“Tudo é finito até o limite do que lhe contém.
Porém é infinito como o reflexo do espelho em outro.
Assim, o Todo é tudo que tem
Em pedaços que contém um ao outro.”

“Não há concepção do nada.
Pois cada estrutura material
Está entre o infinitesimal e a infinidade ampliada;
Escala que determina o Todo existencial.”

“Não há concepção do Todo, por ser infinito e eterno.
Não há o lado externo, pois sempre haverá um outro.
O Todo é infinito e disperso.
O acaso é decerto determinante do Todo.”

“Está em todas as partes, somente em parte.
A inteligência é arte de alguns poucos.
O Todo existe necessariamente, destarte,
Todas as partes estão no Todo.”

“As trevas como o vazio estão no Todo,
Posto toda coisa existente estar nele contido.
Em sentido crescente ou decrescente, o Todo
Tem modelo exposto, ao infinito.”

“Um evento sem determinante inteligente
Move desde sempre o que há no Todo.
O Todo não tem origem nem fim, é sempre,
Eternamente, um interminável poço.”

“Não se encontra isento de instabilidade e imperfeição
Que a imaginação possa conceber e/ou compreender.
O Todo, dessa forma, não pode ser fruto da razão
Que é limitada à visão que a restringe em poder.”

“Deus como um ser eterno, imaterial, onipotente
E soberanamente justo, que atende às necessidades
Da humanidade, não existe.Tendo qualidades de gente,
Deus se revela inteligente como o homem, na verdade.”

“O princípio vital no homem e nos animais
São descargas casuais entre células nervosas
Que são compostas de matéria. E quando as tais
não produzem mais descargas, estão mortas.”




“Portanto, se extingue a vida e a matéria inerte
Serve em decomposição pra formar novos organismos.
E desses organismos vivos, outro se serve.
A vida é breve em seus princípios.”

“Somos a concepção da idéia do que somos.
No útero começamos a formar o nosso eu,
Um indivíduo ateu que não tem planos.
Assim, nós nos formamos a crença em Deus.”

“Somos indivíduos extremamente complexos.
Atribuímos a nós um universo de idéias
E de percepção da matéria. Nossos gestos,
Nosso caráter, decerto, são idéias.”

“Não recebemos uma alma, a fazemos da matéria.
Essa transformada em energia,
A energia em impulsos gera idéia.
A idéia uma metáfora seria.”

“A dúvida e as opiniões são nossa idéia a tentar
Universalizar em um ser coletivo, a individualidade;
O que seria a realidade? Nosso lar,
A nos rodear como conceito da verdade.”

“Sendo assim, toda a sua realidade,
Na verdade, é em parte imaginativa.
Nessa vida, somos meras entidades
Que com identidade ainda vivem perdidas.”

O pequeno filósofo cala-se por alguns instantes.
Penetrantes, seus olhos me perscrutam;
Seus lábios executam palavras importantes,
Desinteressantes a ouvidos que não escutam.

“Senhor Sólio, eu conheço alguém que o ajudará.
Bastará procurar nesse endereço.
Vejo que procura a algo relembrar.
Lá encontrará resposta. Este é o meu conselho.”

Despeço-me do garoto com pesar,
Por ele estar preso sem nenhuma companhia.
Quem não estaria em meu lugar?
Ele sabia falar sobre o que sentia.

Por que o garoto está preso?
Assim que desço, pergunto ao que manda.
Ele se espanta como se fosse segredo.
Mesmo com medo, para o outro aponta.

Ficamos a sós para melhor conversar.
Ele começa a falar com pouca voz,
Até parece que nós estamos a arquitetar
Para matar o nosso próprio algoz.

“Senhor Sólio, esta cidade é obcecada
Em sua crença fanática, em sua adoração.
Se sua religião for afetada,
Será executada a teoria em ação.”


O Doutor

“O pequeno filósofo será morto de madrugada
Na praça, em meio à multidão.
Sua visão é como uma ameaça
A todo aquele que acha falha na religião.”

Sem mais delongas, despeço-me do senhor.
Na Rua do Pudor, procuro o camarada.
A casa que o garoto me falou.
Eis o Doutor, como o povo lhe chamava.

Apresento-me, sou convidado a sentar.
Começamos a falar sobre o garoto.
Pouco a pouco comecei a relaxar.
Não queria acreditar que era louco.

O camarada, como chamara o garoto,
Aproxima o rosto e me pergunta o que quero;
Que mistério me levava ao desgosto.
Em seu rosto, a resposta que espero.

- O que me deixa intrigado
É que sinto ao meu lado a presença de alguém.
E esse alguém tem tentado
Tornar algo lembrado que a mim convém.

-Porém, eu sinto também
Que esse alguém corre perigo.
O pior é que duvido, porque não vejo ninguém.
Será então do além, esse ser em espírito.

O camarada diz: “Faz sentido.
Sua mulher, um dos filhos, tem algo a dizer.
Para você, talvez seja um aviso.
Vamos tentar meu amigo, reverter.”

Eu sento em uma cadeira, confortavelmente.
A minha mente, eu deixo relaxada.
O camarada põe sua mão levemente
Sobre minha cabeça que pende hipnotizada.

Uma luz focalizada me orienta
Numa fenda que se alarga
À minha entrada para uma senda.
Eis que a fenda atrás de mim é fechada.

À minha frente, revejo minha esposa, meus filhos
E os amigos que tanto lhes ajudara.
Uma espécie de estrada entre pés de milho,
Eu me intrigo, parecem feitos de alguma malha.

Mas nada conseguiria me interpor.
Por amor eu venceria qualquer batalha.
Eu escuto uma voz calma: “Por favor,
O que vê, senhor, que lhe agrada”?

Eu respondo, com certeza, ao camarada.
“Insista com sua amada. Ouça o que digo.
Seus amigos, ou seus filhos. Esqueça a estrada.
Mantenha a calma, o senhor não corre perigo”.


Tomo VII

A regressão

Dito isso, o caminho se alarga.
Entre lágrimas, se encontram nossos espíritos.
Entre risos, regozija minha alma.
Vem a calma, nessa hora, silencio.

Eu já não entendo nada. O que está acontecendo?
Não pretendo a mais nada, só sossego.
Quem me deu o endereço? Compreendo!
Vocês estavam vendo; eu mereço.

“Quando Deus o condenou ao esquecimento,
Nós estávamos prevendo, nada podia ser feito.
O efeito dessa mágica é intenso.
Mas, em algum tempo, daremos um jeito.”

“Quando hipnotizado, poderá nos visitar.
Quando você acordar, nada mais será lembrado.
Cuidado! O Doutor pode escutar.
Ele pode te entregar ao Diabo.”

“Eis que esse camarada é ardiloso e prestativo.
O motivo é sua alma encomendada.
Não há nada a ser feito. Não duvido
Que ao Maldito, tenha sido anunciada

Tua presença entre as almas perdidas.
Perseguidas, temos de ter atenção.
A razão porque somos perseguidas
É conhecida por má reputação.”

“Essa é a única maneira de nos vermos.
Nesses termos, temos que ter mais cuidado,
Com o Diabo temos que nos precavermos.
Como enfermo, pode ser manipulado.”

“O Doutor é um camarada curioso.
Seu esforço é para nos descobrir.
Não se deixe iludir, seja genioso,
Vagaroso no que ele lhe pedir.”

“Sólio, venha outras vezes aqui.
O Doutor vai lhe argüi severamente.
Em sua mente, ele não pode submergir,
Se você não permitir; haja duramente.”

Novamente, a voz distante me indaga:
“ - Camarada, o que está acontecendo?”
Eu invento: - Não consigo ver mais nada
Na estrada, parece estar chovendo.

“Volte Sólio, vá. Não pode passar muito tempo aqui.
Pode partir, você ainda vai voltar.
Mesmo sem lembrar, o Doutor vai insistir.
Ele vai querer lhe ouvir falar.”

Volto através da fenda e acordo.
Não recordo o que me aconteceu.
O Doutor pareceu não medir esforços,
Sem remorsos, morada me ofereceu.

Eu acerto enfim, que alguns dias vou ficar,
Para desvendar o que me aconteceu.
Prometeu, o Doutor, me ajudar.
Vou lembrar realmente quem sou eu.

Vou à praça, assistir a execução
Do pequeno cidadão sacrificado.
Pois seu único pecado era a razão
Contra a religião de um povo fanático.

Eu consigo me aproximar da guilhotina.
Uma batina esvoaça em meu rosto.
Vejo no rosto que um sorriso ilumina,
Uma mente assassina, sem desgosto.

Peço perdão em nome do condenado.
Ninguém está ao meu lado. Ainda insisto.
O povo não dá ouvido, parece alucinado
Em ver sangue no coitado. Eu desisto.

Eu balanço a cabeça em desistência.
Paro com a insistência e vou embora.
Nessa hora, eu renasço em paciência.
Leio: Rua da Inocência. É agora.

Sua história começara na casa quatro.
Havia um velho telhado e janelas antigas.
Duas vigas sustentavam o sobrado.
Engraçado, o que ele me pedira.


O segredo

Antes de ser decapitado, fez um pedido:
Que escondido, fosse a esse endereço.
Não o esqueço, e agora vai ser cumprido.
Eu decido descobrir esse segredo.

Adentro a casa, sem receio.
Num espelho, uma velha se penteia.
Serpenteia pelo vento, seu cabelo,
Atingido em cheio pela luz que ali clareia.

Eu pergunto sobre o jovem em praça pública.
“Tendo culpa, sua pena é merecida.
Dizia que Deus era uma cova já sepulta.
Não há duvida da existência de Deus, ele sabia.”

“Sabia que Deus era malvado,
E o Diabo, um servo que o seguia.
Sabia que bondade, só humana. Culpado,
Por manter enganado, o povo que o ouvia.”

“Ele temia o que poderia acontecer
Se todos viessem saber toda a verdade.
Ele teve a oportunidade de conhecer
O poder de Deus e sua maldade.”

“Ele era um anjo celestial
Que tornou-se mortal para ter sentimentos.
Os seus pensamentos o tornaram real.
É leal aos seus sofrimentos.”

“Conseguiu escapar das entranhas do céu.
Um escarcéu, sua fuga causou.
Ele tudo arriscou, por ser fiel
Ao mel de uma boca que um dia provou”

“Eu era uma bela jovem na época.
Mesmo na terra, ele nunca envelhecera.
Padecera ao ver-me uma velha
A espera da morte que a espreita”

Saio dali, sem entender muito bem
Como alguém que é ateu
Já foi um anjo de Deus, disse amém,
E preferiu ser alguém desse mundo meu?

Eu consigo lembrar-me bem, do passado.
Mas algo está errado, sinto isso.
Existe algo escondido, é o que acho.
Caminho passo a passo, pensativo.

Numa rua espremida, um homem grita assustado:
“- É o Diabo que em seu corpo habita.”
Vejo uma moça aflita, com um velho excitado.
“-Fui curado, é um anjo, é a mão de Deus escrita.”

Nessa hora, olho acima da praça;
Uma graça, o jovem ao céu subia.
Ele via a multidão admirada.
Com suas asas, causava uma ventania.


A volta

Ele olhava para mim em meio a todos.
Então, ouço sua voz: “-Pode voltar.”
Eu começo a lembrar de tudo, aos poucos.
Eis que os outros não conseguem me notar.

“Vamos encontrar sua família e seus amigos,
Os perdidos, sei aonde encontrá-los.
Ao contrário do que me pediram,
Meu amigo, não vou entrega-lo.”

Não me diga que já foram Deus e o Diabo.
Eu estava condenado ao esquecimento.
Eu entendo! O Doutor foi o culpado,
Deve ter-me entregado ao Demo.

“Era parte do acordo enviá-lo ao Doutor.
Que horror! Eu traia um condenado.
Reconheço o meu pecado, por favor,
Por não me opor, peço pra ser perdoado.”

Não se preocupe Átheos, foi preciso,
Ante o risco de ser aprisionado
Por Deus ou pelo Diabo. Um bom motivo
Para um anjo indeciso e renegado.

“Vamos ao campo dos perdidos,
Um seguro esconderijo para os refugiados.
Somos livres, não escravos. Como os vivos,
Somos ativos e jamais robotizados.”

A entrada era um buraco-negro.
Um segredo a sete chaves guardado.
Nosso espírito era esmagado pelo peso.
Dava medo, a travessia do buraco.

Da extrema escuridão à luz intensa,
Sem ofensa, um embrião que ao mundo vem.
É também um nascimento, com a diferença:
Lá não existe ciência, nem subjetivismo também.

Lá não existe ninguém.
No além, não há ser vivo.
Só espíritos muito aquém
Do mal, do bem, de tudo isso.

Era um campo negro, o refúgio.
Um subterfúgio para aceitar a sorte.
A morte é como um estúdio
Onde tudo é imagem em corte.

Reencontro minha família novamente.
Lentamente, tudo ali se movimenta.
Pensa, cada um, de maneira diferente.
Porém, convergente para a resistência.

No refúgio, era o único arrebatado.
Por um anjo, levado a presença
Da inocência de cada condenado.
Tive o corpo poupado da sentença.

Na verdade, em moléculas livres, transformado.
Tal retalhos que fazem um tapete.
Talvez, fosse aquele, um estado
Para manter preservado meu deleite.

Em conjunto, um plano é esboçado:
Eu seria levado para a terra.
Pois na certa, me arrastaria o Diabo,
Para um céu badalado e de festa.

Novamente fui posto a viver.
Eu sentia doer meu pensamento.
Até mesmo o vento, pode crer,
Me fazia sofrer, a queimar-me por dentro.

O Diabo aparece nesse instante.
Eu, um desafiante, o enfrento.
Vendo o meu sofrimento, triunfante.
Nunca é o bastante, eu me rendo.

O meu corpo, eu vejo estendido.
No pescoço comprido, uma cicatriz enorme.
Vejo assim, minha morte. Surpreendido,
Não entendo o motivo, peço a mim que suporte.

O Diabo me arrasta para o céu.
O seu papel seria executado.
De sua vista, fui poupado, cobre-me um véu.
Lá sou um réu, apresentado.


O trono

Deus me permite ver seu trono.
Sente-se o dono do universo,
Um ser perverso, rei do engano.
Se gaba o quanto é esperto.

O Diabo, um moleque de recado.
Quer manter-me ao seu lado no inferno.
Errado ou certo, tudo será condenado.
Deus ou Diabo, pecado eterno.

O Diabo quer se apropriar de minha alma.
Isso me acalma, por ser o menos cruel.
Sei que no céu tudo se acaba.
Não serei nada, um robô de aluguel.

Como fora planejado, eu estava ali no céu.
Deus, sem seu véu de bondade, em seu trono,
O mais orgulhoso dono de um labirinto de fel.
Sua boca tem o mel em palavras de engano.

Eles tentam descobrir onde estão os fugitivos,
Os rebeldes inimigos e que sabem a verdade.
Porém, minha amizade os mantém escondidos
E perdidos dessa cruel divindade.

Deus num gesto de amizade, tenta um engodo.
Enquanto o outro, o Diabo, me observa.
Sinto falta da erva que no chão da terra, colho.
No meu olho, uma lágrima escorrega.

Eis que o anjo é capturado e nos entrega.
Pois na certa, este foi torturado.
Deus ou o Diabo, nenhum presta.
Põem-me de volta a terra, sem cuidados.

Quando sou lançado a terra,
Deus já espera que não seja escutado.
Disso, o Diabo se encarrega.
Falo de maneira séria e sou mal interpretado.

Deus continua enganando a humanidade.
E na verdade, ninguém quer me escutar.
Tento falar, e já em vasta idade,
Contra a minha vontade, resolvem me trancar.

No manicômio, sou maltratado.
Deus e o Diabo aparecem pra falar.
Querem humilhar esse velho condenado.
No meu estado, eu não tento nem lutar.

Raramente vejo, um ou outro dos perdidos
Que por algum motivo, do ataque escapou.
Um deles me contou o ocorrido:
Todos foram redimidos ao julgo do Senhor.

Deus não honra compromisso.
Já sei disso, porém, ninguém acredita.
Deixa pista, quando omisso.
Apesar disso, o fiel hesita.

Deus com o Athéos, acordou
Um favor: Que a ninguém torturaria.
Dentro ria; e mandou o seu feitor.
O Diabo esnobou no que sabia.

Todos foram torturados na alegria,
Tudo que pior havia, a mando do Senhor.
O terror que jamais alguém faria.
O Diabo assim agia por rancor.

O refúgio foi explodido por magia.
Deus sabia como provocar pavor.
Seu feitor, o Diabo, merecia
Cada alma dividida com o Senhor.

Quando devolvido ao meu corpo,
Acordei-me sendo posto numa maca.
Um amigo me tirava a corda do pescoço
E um outro, o socorro chamava.

Desmaiei novamente, acordei no hospital.
Estava mal, não conseguia nem falar.
Eu queria contar uma história real,
Onde somente o mal vai dominar.

No entanto, ninguém quer acreditar,
Nem mesmo escutar o meu aviso.
“- Deixa disso, tente se acalmar.”
Tentava me enganar um amigo.


A dúvida

“- São seqüelas do trauma sofrido.”
Assim, fico atormentado e louco.
Pouco a pouco, de mim mesmo duvido.
Todavia, insisto que não sou louco.

Em algum tempo, me dão alta.
Sinto falta da minha família.
Eu sabia que tudo acabara.
No entanto, mantendo a calma, eu superaria.

Ainda tentei alertar as pessoas.
Porém, todas, não me acreditavam.
Condenavam minhas palavras. Tolas,
Mesmo boas, não sabiam onde pisavam.

Eu insisto em que aproveitem a vida.
Não há problema ou dívida que se compare
À morte, que é um talhe, uma ferida,
Uma alma mantida na maldade.

Por que a humanidade não consegue enxergar?
Deus não quer ajudar, está claro.
O Diabo serve para negar
Todo o mal que há no Deus louvado.

No tempo que fiquei internado,
Nunca vi um aleijado andar
Nem vi brotar um membro amputado.
O deus louvado não queria ajudar.

Vi uma mãe que pedia ajuda:
“- Por favor, cura o meu filho amado.”
O Deus safado se omite na ajuda
E põe a culpa para o servo Diabo.

Pois quem criou o ser infectado?
O resultado antecipado do fato ocorrido
Era conhecido pelo malvado,
Se tudo é determinado pelo Bendito.

Quando uma vítima escapa,
Diz-se que foi salva pelo Bendito.
Mas duvido, posto não ser evitada
A causa que o deixou comprometido.

Se uma folha que cai tem permissão do Senhor,
Um criança que despencou de uma escada
Teria a queda evitada por compaixão e amor.
Porém, ninguém evitou. Omissão e falta.

Há crianças passando fome.
Culpar o homem é racional.
Se a conseqüência é fatal e a morte some,
Tomam do homem e dizem:- Deus é o tal.

E quando alguém faz o mal e se dá bem,
Eis que também é omissão não punir.
Não queira se iludir, quando alguém
Faz só o bem e é punido aqui?

Por que deixar-se cegar pela fé?
A vida é o que é, basta olhar.
Por que procura evitar que também
A razão tem o seu lugar?

Deus nem precisa usar o seu poder.
O homem crê sem questionar.
Ele quer se enganar para não vê
Que dele é o poder de amar.

Deus a brincar com seus destinos,
Usa caminhos de dor e medo,
Guarda em segredos seus desatinos,
Joga dadinhos com os seus dedos.

Eu mesmo escrevo a minha história.
Minha memória é a verdade.
Na realidade, não busco glória,
Só quero deixa-la agora, pode ser tarde.

Preso entre grades, no silêncio,
Eu tenho tempo para escrever.
E se você agora está lendo
O meu depoimento, pude vencer.

Saiba que apesar de todo o poder,
O seu ser é inalcançável,
Inabalável é o seu querer.
Porém, morrer é inevitável.

Contudo, viva o mais que puder.
Toda sua fé, ponha na vida.
Cabeça erguida pro que der e vier.
O que Deus quer é que você o sirva,

É que acredite estar salvo.
Você é o alvo, não há salvação.
A morte é um não ao bem mais caro.
Mantenha-se calmo, com o pé-no-chão.

Não é blasfêmia, eu vi de perto.
Um céu eterno em bondade, é ilusão.
Deus e o Diabo em união, estão decerto,
Mantendo o inferno em dupla mão.

Às vezes, ainda vejo Deus e o Diabo.
Sou humilhado, isolado como um louco.
Ambos fazem pouco, quando sou visitado
Por um velho aleijado e mouco.

Esse velho é um amigo de verdade.
Apesar de sua idade, não me falta.
Tem com a flauta, uma enorme habilidade.
Tenho saudade do nosso tempo de farra.

Eis que um dia ele chega com uma carta
Assinada por seu nome como neto.
Era um jovem muito esperto, o que mandara.
Eis que o principal da carta, ponho em verso:




A carta

“Senhor Sólio, sou um jovem inventivo.
O motivo é que não creio em Deus.
Amo os meus entes queridos.
Atendo a pedidos de um, que é amigo seu.

Meu avô, um dia, me surpreendeu,
Quando leu parte de sua história.
Chegou a hora, os méritos serão seus
Como também serão seus, o martírio e a derrota.

Muitos irão lhe condenar, a grande maioria.
Quem diria, que a tamanha inteligência
Fosse negada uma existência mais digna?
Eis a vida, causa e conseqüência.

Sua história terá o título escolhido,
Merecido, O herege, ótima escolha.
Não foi à toa, acredito.
Não duvido que sua história é boa.”

Ficou acertado uma data,
Quando seria enviada uma pessoa
De sua escolha, dizia também a carta.
Assim, eu esperava à toa.

Eis que na data marcada,
Um camarada vem falar em suspensão.
“-Houve manifestação de gente alta.”
Essas palavras me doeram o coração.



Não espere que a verdade
Seja a realidade que vivemos.
O que temos é vontade
Que jamais seja verdade o que tememos.

Meu velho amigo, ainda me visita.
Minha vista me atrapalha um pouco.
Estou ficando louco com esta vida.
Sem saída, vai me deixando aos poucos.

Enquanto eu escrevo, um deles se aproxima.
O outro, lá de cima manda um beijo.
Eu vejo que a vida termina.
Nessa última linha o desespero...





Fim







Posfácio

Quarenta anos antes de ser publicada a obra O herege, Sólio falece no manicômio SOB OS OLHOS DE DEUS, na manhã de terça-feira, dia 04 de outubro de 1966. Morreu pedindo ao seu velho amigo que não o deixassem levar. Em gritos, pede ao mesmo que convença ao seu neto, publicar O herege.
Suas últimas palavras foram: “O mundo merece saber a verdade; mesmo que ela seja tão dantesca.”
O conteúdo deste livro foi encontrado num velho depósito, entre fichas de pacientes do referido manicômio. A última estrofe estava quase ilegível.

João Felinto Neto
Maio de 2006


Biografia:
No dia 04 de outubro de 1966, nasce João Felinto Neto, em Apodi, Rio Grande do Norte. Em 1969, parte com sua família para Tabuleiro do Norte no Ceará. No mesmo ano passa a residir em Limoeiro do Norte, sua pátria emotiva e ponto de partida de uma fase migratória que duraria toda a sua infância, e o levaria até Santa Isabel/PA (1971), Limoeiro do Norte/CE (1973), e Mossoró/RN (1974), onde ingressa, no Instituto Dom João Costa no ano de 1975. Retorna novamente a Limoeiro do Norte (1977), onde permanece até 1982, ano em que conclui o 1º grau no Liceu de Artes e Ofícios. Retorna definitivamente, com sua família à cidade de Mossoró. Conclui em 1985 o 2º grau na Escola Estadual Prof. Abel Freire Coelho. Em 1986 ingressa no serviço público, como técnico de biodiagnóstico do Hospital Regional Tancredo Neves, atual Tarcísio Maia. Conclui o curso de Ciências Econômicas, pela UERN, em 1991. Somente aos 34 anos, começa escrever e catalogar poemas e crônicas. Até então seu mundo literário se resumia à leitura e ao pensamento.
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Outros títulos do mesmo autor

Poesias Alguns degraus João Felinto Neto
Poesias Sob meus calcanhares João Felinto Neto
Poesias Cabaz João Felinto Neto
Poesias Cálice João Felinto Neto
Poesias Sombras & espelhos João Felinto Neto

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