- Dirce?
- O quê?, responde Dirce ao marido Jorge.
- Olha!
- O quê?
- Olha isso!
- Vai queimar o arroz se eu não prestar atenção. O que é?
- Olha, é rapidinho. Vem aqui no quintal!
- Tá bom, tá bom!
Dirce joga o pano de prato na mesa e vai ao quintal. E encontra Jorge segurando uma bicicleta.
- Mas é a...
- Sim, é a bicicleta do Jorginho.
Dirce se emociona. Jorge explica:
- Tirei da garagem, dei uma limpada, passei um óleo. Ficou quase nova.
- Você não devia...não devia...
Dirce soluça ao lembrar do filho adolescente, falecido há seis anos.
Jorge a conforta:
- A gente precisa superar isso. Ele não ia gostar de te ver assim. Nem eu.
- Sniff...Tenho tanta saudade dele, Jorge...Meu filhinho, tadinho, tão novinho...
Jorge a abraça. Dirce se recompõe. Jorge prossegue:
- A gente tem que superar. Eu também tenho saudade. E o que eu trabalhei pra comprar essa bicicleta pra ele...
- É ( snif! ), tantas horas extras você fez...
- Os olhos dele quando recebeu a bicicleta. Foi o último da turma dele a ter uma.
Agora é Jorge quem soluça e quase cai em prantos. É imediatamente abraçado por Dirce.
- Eram os dois amores dele, a bicicleta e o Santos. Olha aqui o adesivo do Santos no quadro da bike, relembra Jorge, divertindo-se com o detalhe.
Ambos se acalmam. Jorge pergunta a Dirce se ela concordava com sua idéia:
- Vender a bicicleta?
- Sim. A gente precisa se desprender dela, como já fizemos com outros objetos dele.
Embora o amor de mãe fosse forte, e a saudade idem, Dirce acaba concordando. Afinal, a bicicleta tinha tanto o poder de trazer boas lembranças, como más também. Mas, afinal, ela ficou parada tanto tempo na garagem, pegando poeira e ferrugem. Não havia mais motivo para segurá-la.
"E faria feliz outra criança", concluiu.
- Ótimo, disse Jorge. Vou colocar um anúncio nos classificados, ou num site de ofertas.
- Tá bom, assentiu Dirce.
- Mas, antes disso, vou dar uma volta no quarteirão pra ver se ela tá em ordem.
- Você? Volta no quarteirão? Com essa pança?
Um raro momento divertido em meio a tantas lembranças tristes.
- Oras, vou na boa. Se cansar, venho trazendo ela na mão mesmo.
- Tá bom. Se é isso que você quer...
Jorge abre o portão e sai, pedalando.
( *** )
Perto dali, vinha Garcia, engenheiro, em seu carro. Rádio sintonizado na Jovem Pan AM:
- Adoro essa rádio. Notícias. Opinião. Reinaldo Azevedo e Sheherazade. Jornalismo de qualidade.
E começa a ficar vermelho por causa das notícias. Os motoristas nos carros em volta observam aquele motorista, todo vermelho, e bradando algo que não conseguem escutar. Garcia grita, mas está sozinho naquele veículo. Sozinho, não. Está conversando com o Reinaldo Azevedo, com a Sheherazade, com o Joseval Peixoto, Marco Antonio Villa.
- Um jornalismo isento, imparcial, independente, que diz as verdades!, diz.
Garcia reclamava dos novos limites de velocidade adotados na Capital, pela Prefeitura. Um dos comentaristas sentava o pau no prefeito de São Paulo. Garcia escuta atentamente e responde ao rádio do carro:
- Cidadão cada dia mais fudido. Direito de ir-e-vir sendo sabotado pelos comunistas. Indústria da Multa e Petrolão. Raddard e Zé Dirceu. Sou coxinha, mas pago imposto!!!
Garcia vira uma esquina, sobe uma ladeira e, no fim dela, entra à esquerda. E reclama novamente:
- Olha que merda! Esse amarelinho da CET, só multando. Vagabundo! Indústria da Multa! É Indústria da Multa, é IPVA, é o Raddard!
Ele prossegue a viagem. Entra à direita, faz o balão e segue pra avenida:
- E essa porra dessa faixa de ônibus! Esse prefeito precisa governar também pra quem tem carro! Filho da putaaaaa!
Em seu carro, o adesivo "Fora, Dilma. E leva o PT junto"
- E o Pixuleco do PT? Roubam tudo! Roubaram milhões no mensalão! O chefe tá solto! O chefão! CHEFÃO!!! Eu bato panela mesmo!!! Cada vez mais forte!!!! Pá-neles! Ladrões, corruptos!!!
Garcia vai se exaltando cada vez mais. Arregala os olhos. Retesa os ombros. Aperta o volante com força cada vez maior.
- CHEFÃOOO! BAIANO DO CARALHO, CABEÇA-CHATA DO PT! LOBISTA DOS EMPREITEIROS!!!!
( *** )
Garcia está quase chegando em seu destino. Falta apenas uma curva e uma rua de 300 m:
- Se tiver vaga pra estacionar. Se não tiver blitz da Lei Seca. Se não tiver amarelinho nem radar. Raddard. Maldito!
Converge à direita e percebe o ciclista adiante.
-TAVA ESQUECENDO DESSES FILHOSDAPUTA DAS CICLOVIAS!!! A GENTE NÃO TEM MAIS ONDE ANDAR DE CARRO POR CAUSA DESSES VIADINHOS DE BICICLETA, TALIBAIQUERS DO CARALHO!!!! FILHADAPUTAAAA!
( *** )
O motorista fica cego de ódio. Num impulso vindo sabe-se-lá de onde, ele arremete contra o ciclista.
Que cai, bate a cabeça na guia, e morre instantaneamente.
- Tomou, filhodaputa!!!! A rua é nossa!!!! Se fudeu, robozinho do Raddard!!! Vai andar de bicicleta na putaqueopariu! Comunista do caralho!
Garcia foge sem prestar socorro ao ciclista, e deixa de ir ao local pra onde se dirigia. Em casa, digita postagens orgulhosas no Facebook, dizendo que deu uma lição num ciclista, sem entrar em muitos detalhes. Recebe milhares e milhares de "likes".
( *** )
Até hoje Dirce espera que as autoridades descubram quem foi o motorista que atropelou Jorge. Conseguirá ela super mais essa tragédia em sua vida?
Testemunhas afirmaram que o motorista pareceu ter feito de propósito. Os programas policialescos da tarde noticiaram a tragédia, mas deram um jeito de culpar a Prefeitura e os próprios ciclistas por ela.
Tempos depois, ao saber das noticias sobre o TCU e as "pedaladas" do governo federal, Garcia solta um enigmático: "Com 'pedaleiro' só tem uma maneira da gente lidar..."
E Jorge - que não gostava muito de política e pouquíssimas vezes votou em alguém -, no local onde se encontra agora, conversa animadamente com o filho Jorginho. Sobre o Santos.
FIM
OBS: Conto de ficção razoavelmente baseado em fatos reais.
Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais terá sido mera coincidência
A REALIDADE É SEMPRE PIOR
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