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Carlindo Soares Ribeiro


O SOL nem bem apontou a cara alaranjando as casas do bairro pobre e ela já de pé, tagarela, a felicidade se reconstruindo em cada pedaço daquele amanhecer, a euforia. A mulher não, e ela sem compreender a atitude da mãe, que não se apressava em pular da cama, não abria a janela para contemplar o dia que brotava cheio de surpresas. A mãe nas esquisitices, no enlheio, nos vazios de sempre, ainda a mirar-se no espelho, o cabelo em desalinho, a roupa por trocar, como se o dia tivesse a vida inteira para fazer-se.
     Iam à cidade, dentro de um logo deveriam estar no ponto de ônibus, as alegrias da viagem por virem, o passeio. Por isso mesmo ela alegre, o coração transbordante, as tristezas já ficando no atrás da vida, nuns longes do seu passado. Agora, era a felicidade em tudo, todo acontecimento um motivo para risos e sorrisos, o alumbramento.
     E iam, a rua sonolenta do recém-despertar, o sol ricocheteando nos paralelepípedos, o dia por recomeçar. O ônibus. Quando se pensava que não vinha mais vinha, inchado de gente, o entra e sai, o acomodar-se nos bancos, no corredor, em pé. Depois ela no gozo da viagem, a boniteza das casas, praças e viadutos, o túnel. E a mãe, que nem queria curtir o passeio, o olhar fazendo de conta que enxergava tudo, mas o coração buscando outros trechos do seu viver, o alheamento. Longe ainda o destino, mas a rapidez com que a avenida ia engolindo os carros, com que prédios e pontes iam ficando para trás, quando menos esperassem, chegariam.
     Duas tinham sido, ela e a mãe, no só da vida, até aquele dia. Se questionava sempre : e ele, o pai? Falta lhe fazia? Queria-o presente, embora a mãe a lhe dizer dele distante, o homem vivendo em outros mundos, importante, sem interesse por elas. A mãe, na persistente tentativa de deslembrar-se do homem, no apagado do olhar a certeza de sofreres vividos. Ela, a projetar na memória o rosto do homem, sempre bonito, a lhe dizer meiguices, o homem a lhe trazer presentes, o pai. Tanto insistia, e a mãe a desconversar, nem vivo o homem fosse mais, talvez. Esquecesse esse um... E ela, não. Quanto mais o tempo passava, mais e mais a vontade crescente de ver realizado o sonho, o pai surgindo de repente, aparecendo em qualquer manhã para levá-la à escola, como acontecia com as outras crianças. Se ia a algum passeio, lá estava do seu lado, ele, a mão segurando a sua, o homem a protegê-la, a ampará-la. Na hora de dormir, era no colo do homem que acabava por adormecer sempre, nos sonhos.
     Com pouco não adoecera, a mãe ancha de cuidados, se derramando em zelos, preocupações, a procura pelo paradeiro do pai, os telefonemas insistentes. E aconteceu, depois de dias e dias arrastados, sem pressa, o primeiro encontro, no escritório do doutor. E ele, o pai, diverso do que ela tinha pensado, sem as doçuras de sua imaginação, sem a delicadeza no trato com ela, tudo por conta de que não havia confirmação, como dizia o doutor, de que a mãe estivesse falando a verdade, aquele um poderia não ser seu pai. O homem, mais gordo e mais velho do que ela tinha imaginado, a secura das palavras, a indiferença com a mãe, o destrato.
     Depois de mais uma imensidão de dias passados, o segundo encontro, agora no hospital. O pai, que não lhe fazia um agrado, diferente dos sonhos, irreal. Podendo fitar melhor o homem, a aparência nos traços, as semelhanças e dessemelhanças, desentendia por que a necessidade de exames, picadas doídas, o homem sem lhe dirigir um olhar enquanto permaneciam juntos, indiferente. A mãe, que também esquecia-se de existir enquanto perto do pai, alheia, como se em outro mundo. E o enorme e estranho sentir, o coração a desdizer o doutor, uma coisa a lhe mostrar que aquele um não poderia ser outro que não ele... o pai.
     Agora, para mais um encontro iam. O resultado dos exames, tudo a se confirmar. Não mais mentir precisaria, quando na escola fosse perguntada pelo pai. Por certo o homem a se retratar, o voltar atrás, o reviver tempos perdidos. E os dias felizes por virem, os passeios sonhados, os presentes, os beijos, os desfrutes, as festas de aniversários agora com a presença dele, o parabéns pra você cantado alegre. Finalmente o poder dizer : - pai. A alegria por um fio, a esperada recompensa.
     E chegaram. Ele, o homem, já a esperar. E a ausência de palavras, aquela dor funda a lhe corroer a alminha, por não compreender a atitude do pai. A mãe com o olhar úmido, mais quieta do que o normal, a economia nos gestos e olhares. A manhã, indiferente à sua dor, avançando ligeira com o sol banhando de claridão a mesa cheia de livros. E o doutor sem pressa de se explicar.
     Por fim os acertos, palavras desencontradas, ela sem entender os acontecidos, o pai a remexer papéis, a caneta trêmula a preencher o cheque. E num repente o desatar do choro, a mãe se desaguando em pranto, barreira rompida num átimo. A mãe, a dirigir para ela um olhar de piedade, a se desculpar. Ele, o pai, sereno, inexpressivo, a comoção nenhuma, apenas um leve tremor na mão ao estender a folha de cheque. A mãe sem pressa de pegar o documento. O doutor, com a voz embargada, a tentar explicar sobre um acordo. Aquele, enfim, era ele, mas contato com elas não queria, questões íntimas lá dele, o dinheiro era para compensar, não mais o procurassem...
     Agora de volta pra casa, do passeio, ela meio triste, a mãe recostada no espaldar do banco, como que morta, a lhe oferecer o colo, como se esse gesto pudesse amenizar o sofrimento das duas. Ela, vencida pelo cansaço, o corpinho pedindo paz, logo o sonho, o suave acalanto : o pai que lhe traz um presente lindo, lhe beija carinhosamente a testa, depois se afasta devagar, entra num túnel escuro e desaparece para sempre.


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