Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
Diário de um Assassino
Edineyalison Wallas

E criou Deus o homem à sua imagem;
Ge 1.27

     Mais um dia humano de trabalho fazendo parte do passado eterno, estou eu mais uma vez aqui para delinear minhas idéias tortas em uma folha de papel em branco. Há pouco, como bem sabes, costumava falar de meus atos heróicos em rodas de amigos ou em sessões mântricas particulares. Porém, como também o sabes, justamente por minha sede de soltar o verbo, não tenho mais amigos, e já não possuo aquela ardente fé há muito tempo. Desculpe-me, meu conselheiro mudo, se pareço redundante; mas não posso deixar de expressar minha eterna dor, minha eterna contradição.
     Vamos aos fatos. Como já dissera anteriormente, mais um dia é passado. Neste último dia pratiquei atos supremos que demonstraram a grandeza de quem pode. Nos atos propriamente ditos, não há nada que seja digno de ser chamado de novo, somente a seqüência de sangue e violência a que eu mesmo estabeleci os arquétipos. Mas o novo é uma reflexão que tive a respeito de um comentário que ouvi nas ruas.
     Logo após ter deixado um amigo no IML, estava eu caminhando tranquilamente pelas ruas da capital quando ouvi a conversa de dois estudantes de letras que compravam DVD’s piratas:
     -- Você já assistiu esse?
     -- Não. Esse, ainda não. É bom?
     -- É uma merda. Tem muito sangue, nenhuma reflexão, idéia, pensamento, mensagem, nada. É coisa da indústria cultural; pura violência gratuita.
     A conversa dos dois é bem mais longa, confesso. Mas foi essa parte que me chamou a atenção: violência gratuita. O rapaz estava crucificando o filme somente porque este trazia a violência gratuita. Fiquei me perguntando: violência gratuita? Mas que tipo de violência não é gratuita. Que eu me lembre, nunca cobrei nada pelos meus assassinatos. Cometo a todo tempo a violência gratuita. Todos os que pensavam que estavam ganhando alguma coisa com seus atos brutais contra pais, filhos e irmãos, ao final, descobriram que a recompensa era bem menor que imaginavam. O que pode querer um assassino? O que pode querer um estuprador? O que pode querer um latrocida senão os lucros fúteis e temporários de seu ato pecaminoso? Não consegui entender a crítica do universitário.
     Fico me perguntando agora se a mente daquele jovem terá superado a minha, que sou profissional na área e atuo no campo há muito tempo. Qual será o sentido da violência? Terá ela que ter um valor para ser válida? Durante todo esse tempo que estupro, mato e roubo, nunca pensei em dar sentido nenhum para isso. Mas o que aquele rapaz disse me fez pensar: Qual será o sentido da violência? Relembremos alguns de meus feitos.
     Certo dia entrei em um bar (adoro bares), encontrei uns amigos que bebiam, conversavam e aliciavam algumas prostitutas, me aproximei. Não foi difícil me tornar íntimo – é incrível como as pessoas são receptivas a mim. Um dos jovens, estudante de Direito, prendeu minhas atenções; muito singular figura, desejava tudo: dinheiro, mulheres, tudo o que o dinheiro pudesse pagar. Resolvi dar a ele algo que o dinheiro não pode pagar. O fiz tomar todas, e ao sair do bar, a caminho de sua casa, atropelar um frentista de posto de gasolina e uma senhora que atravessava o sinal. Hoje ele descansa em paz. Agora me pergunto, qual foi a razão deste meu ato? Qual era o meu propósito? Eu, sinceramente, não sei. Vamos a outro caso.
     Uma vez peguei carona com um casal e seus dois filhos pequenos. A viagem foi massante e chata. A garota de cinco anos de idade reclamava o tempo todo. Não sabia do que falava, não me interessava, mas insistia que contaria tudo pra sua mãe e queria voltar a viver com ela – foi então que lembrei que aquela não era sua mãe biológica, mas sua madrasta. Chegando em casa, no décimo andar de um dos mais imponentes edifícios da região, a garota ainda chorava e reclamava, ameaçava. Por causa dos questionamentos inteligentes da pequena filósofa, o casal iniciou uma discussão terrível que doía em meus ouvidos. Então, convenci o pai que a melhor solução era jogar a criança pela janela e tudo estaria resolvido. Assim o progenitor o fez. Novamente me pergunto: que razão tive para isso, senão acabar com uma discussão inútil? Por acaso a criança tinha alguma culpa? Por que condenei aquela vida ainda nos seus nos iniciais? Não sei.
     Outra vez estava em uma praça com uma garrafa de Absinto (espécie de néctar do mundo moderno) e fumando um cigarro quando vi um carro se aproximar e parar na minha frente. Desceram quatro rapazes completamente bêbados que me interrogaram:
     -- Hei, velho. O que é que você ta fazendo aí? E tomando Absinto, olha só, o velho tá podendo...
     -- Estava pensando em atear fogo naquele que dorme.
     -- O quê!?
     -- Olhem para traz. Há um homem deitado naquele banco. Estava pensando em matá-lo queimado.
     -- Você é louco?
     -- Completamente. E vocês, não?
     -- O velho é muito louco!
     -- Toma esta garrafa, ateiem fogo naquele que dorme.
     Sugeri e os rapazes fizeram exatamente o que eu queria, o homem morreu em segundos.
     Então, meu conselheiro, qual foi a razão? Qual foi a maldita razão? Não consigo entender. Eu mato, eu estrangulo, eu degolo, eu esquartejo, eu estripo, eu queimo, eu torturo; nunca cobrei nada pra isso. Nunca recebi nada em troca e não vejo razão transparente para nenhuma de minhas ações. O que será então essa tal violência não-gratuita? Qual o ato de brutalidade que já teve algum significado realmente significante na minha existência? Nenhum. Nenhum, nenhum!
     Aquele iniciante não sabia do que estava falando. A única violência que existe é a violência gratuita. Se mata por matar. As pessoas morrem, e isso já foi definido há muito tempo. Não existem razões para a morte, somente ela mesma. Matei assassinos, mentirosos, caluniadores, estupradores, ladrões, blasfemadores e todo tipo diverso de bandido. Qual foi a razão? Fazê-los pagar por seus atos? Como matá-los faria pagar seus pecados? Talvez eu quisesse livrar o mundo de suas existências insolentes. Mas quem sou eu, no mundo moderno, para dizer o que é certo e o que é errado? Pois digo, a suposta razão que tive para trucidar tais indivíduos não foi diferente das que tive para matar crianças, padres, heróis, mendigos, índios, escravos e todos os outros que são tidos como boa gente.
     Está concluído, não há razão para matar; simplesmente se mata.
     Não vou me deixar levar por um comentário limitado de um ser inexperiente que da morte só conhece o nome. Eu conheço a morte como a palma de minha mão. Eu mato e continuarei matando até o fim dos dias. Eu criei os psicotrópicos para que as pessoas se matassem em seu prazer sintético. Eu fiz a guerra para que as pessoas se matassem em busca do que acreditam. Eu inventei a inveja, a cobiça, a luxúria. Eu queimei santos na fogueira. Ergui uma igreja imponente para depois ter o prazer de destruí-la. Ensinei a Hitler a teoria falsa das raças, o conceito de arte como algo puro e belo e os segredos da Arte da Guerra. Mostrei a Napoleão os caminhos maravilhosos que o levariam para sua própria destruição. Coloquei a América inteira nas mãos de gananciosos e assassinos. Eu criei a Escolástica, que retardou as mentes mais brilhantes da Idade Média. Eu fiz o Império Romano dominar o mundo inteiro e em seguida fiz o mundo inteiro dominar o Império Romano. Fiz Sócrates provar do doce sabor da cicuta e calar sua boca para sempre. Trucidei todos aqueles que gritavam por liberdade, igualdade e fraternidade. Nenhum deles sabia o que diziam. Todos morrem, todos têm que morrer, e é por isso que eu existo. Já está escrito desde a primeira escritura, aquela que o homem nunca teve a oportunidade de ver: que o homem está condenado por seu destino e nem eu posso livrá-lo disso. Sim, eu mato. Mato e continuarei matando. Na esquina, na escola, no hospital, na Igreja, em qualquer lugar. Eu matarei, matarei até não sobrar mais nenhum. Matarei, não por razões humanas, mas sim pelo que já foi escrito: do espírito saíste e para o espírito voltarás. Eu mato porque essa é a minha lógica, é meu Sentido Universal. Mato porque é isso que sei fazer, criar e matar, nada mais. Matarei sim, sem remorsos. Mato porque eu sou o Bem. Mato porque eu sou o Mal. Eu sou onipotente. Eu sou onipresente, onisciente. Eu sou Deus.

//          


Biografia:
Nascido em Bananeiras-PB, em 1983. Graduando em Letras, atua como professor de Lingua Inglesa e Literatura e ainda como tradutor. Leitor assiduo dos autores contemporaneos da america latina, além do mestre Poe.
Número de vezes que este texto foi lido: 52832


Outros títulos do mesmo autor

Contos As aventuras de Chico Chupa-cabra Edineyalison Wallas
Contos Diário de um Assassino Edineyalison Wallas
Contos A hora e a vez de Robespierre Edineyalison Wallas
Contos O 1001º ano Edineyalison Wallas
Contos Deus sabe o que faz Edineyalison Wallas
Contos De volta pra casa Edineyalison Wallas
Contos A gente se vê por aí Edineyalison Wallas
Contos Fodidos, fodidos. Cada um na sua Edineyalison Wallas
Contos Amor Perfeito Edineyalison Wallas


Publicações de número 1 até 9 de um total de 9.


escrita@komedi.com.br © 2024
 
  Textos mais lidos
JASMIM - evandro baptista de araujo 69016 Visitas
ANOITECIMENTOS - Edmir Carvalho 57925 Visitas
Contraportada de la novela Obscuro sueño de Jesús - udonge 57559 Visitas
Camden: O Avivamento Que Mudou O Movimento Evangélico - Eliel dos santos silva 55842 Visitas
URBE - Darwin Ferraretto 55122 Visitas
Entrevista com Larissa Gomes – autora de Cidadolls - Caliel Alves dos Santos 55077 Visitas
Caçando demónios por aí - Caliel Alves dos Santos 54963 Visitas
Sobrenatural: A Vida de William Branham - Owen Jorgensen 54903 Visitas
ENCONTRO DE ALMAS GENTIS - Eliana da Silva 54831 Visitas
Coisas - Rogério Freitas 54828 Visitas

Páginas: Próxima Última