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Deus sabe o que faz
Edineyalison Wallas

Cheguei em casa ao meio dia. Trazia uma quentinha que comprara na praia, não estava com vontade de cozinhar. Sentei-me no sofá e liguei a TV no canal de notícias. Assistindo as “novidades” comia meu arroz com guisado de frango vorazmente, não havia comido nada durante a manhã inteira que estive na praia. Não gosto muito de água salgada e areia, mas nas férias sempre costumo dar uma voltinha duas ou três vezes na orla. Quando chequei meu celular (que deixara em casa por causa dos assaltantes e também pra ficar mais a vontade no meu tempo livre), percebi que haviam 23 chamadas não atendidas, todos do mesmo número: Dona Rosa.
          Dona Rosa é uma senhora quarentona que mora no final da minha rua, na esquina que dá para o campo “O Poeirão”, a alegria da garotada. Ela é casada com Seu Petrônio, marchante famoso na região. Eles têm uma filha bem lindinha.
          Ela gosta muito de me visitar. Vez e quando vem a minha casa para conversar, sempre sobre o mesmo assunto: o marido. É sempre a mesma coisa: ela me pergunta algo, e antes que eu possa pensar ela já se adianta com a resposta. Mas apesar de tudo não tenho raiva da mulher, ela não é má pessoa.
          Há muito tempo que moro nessa rua e quando cheguei Dona Rosa e Seu Petrônio já moravam aqui, portanto há tempos conheço o casal. Dona Rosa sempre foi ciumenta, desde antes de eu a conhecer. É famosa por seus escândalos na rua. Uma vez chegou a ser levada para a delegacia por desacato à autoridade e agressão. Quando ficamos mais íntimas, ou melhor, nos acostumamos uma com a outra, Dona Rosa sentiu-se a vontade em desabafar comigo.
          Talvez esta confiança depositada em mim provenha do fato de eu ser professora de Educação Religiosa da filha dela e também por nunca trocar uma palavra com seu marido, que nunca me foi simpático – não me pergunte por quê. Ao contrario do meu relacionamento com seu marido, me dou muito bem com a pequena Angélica, um amor de menina, muito inteligente. Seja lá qual for a razão, a mulher sempre me procurou para despejar seus demônios, me trata como um padre no confessionário.
          Às vezes fico irritada com ela, mas na maioria das vezes até que me divirto com as loucuras que me diz, seus planos, suas ambições. Vive planejando morar em algum lugar, mas nunca vai a lugar algum; já decidiu varias vezes pedir divórcio, mas nunca se divorciou; é tanta bobagem que não vale a pena entrarmos em detalhes aqui.
          Uma peculiaridade importante sobre essa mulher é o fato de ela ter perdido a primeira filha, também chamada Angélica, quando esta tinha apenas um ano de idade. Isso aconteceu no início do seu casamento, eu ainda morava na capital. Foi um choque terrível, não somente para ela, mas também para seu marido. Passaram anos sem ter filho algum, temendo que uma nova tragédia acontecesse. Porem, com o passar dos anos, sentindo-se seguros novamente e com a velha cicatriz da perda já cicatrizada, resolveram conceber mais uma vez. Desta vez a criança cresceu saudável e forte, que é a fofinha da Angélica. Conto tal fato porque dizem que foi a partir daquela perda que a mulher se tornou tão obsessiva pelo marido. Não sei explicar tal fenômeno, mas acredito que a Psicologia deve ter algum tipo de explicação para semelhante comportamento. Mais interessante ainda é que atualmente ela parece se importar mais com o marido do que com a nova filha. Não estou dizendo que ela a despreza, mas acredito que a mãe deveria se importar mais com os filhos do que com a safadeza do conjugue.
            No início ela não me amolava muito. Somente comentava que estava de olho, que nunca iria perder seu marido, que era uma mulher forte, que o amava e por tal motivo ela deveria amá-la também. Porem, de uns tempos para cá, ele tem estado bem nervosa e me procura constantemente. Pirou na idéia que seu marido está tendo um caso com uma moça nova que se mudou aqui para nossa rua. É uma bela moça, aparenta ter entre vinte dois e vinte cinco anos. Nunca que ela ia querer alguma coisa com um cinquentão careca e gordo, mas a mulher é cega, é louca. Entrou até para uma igreja evangélica aqui do bairro, me disse que queria “orientação espiritual para saber como melhor se portar”.
          Estou de férias e neste período costumo focar em casa, ler algum romance ou simplesmente dormir. Raramente saio de casa, me acostumei a ficar entre quatro paredes debruçada sobre livros de Descartes, Nietzsche, Rousseau e companhia ilimitada. Mas nessas férias meus momentos de paz e descanso estão se transformando em tempos de tormento. A mulher vive aqui, chorando, se lamentando, me perguntando o que fazer. Mas a razão verdadeira de suas freqüentes visitas é que ela quer espionar a vizinha nova, que mora quase em frente a minha casa.
          Hoje, mais uma vez, ela me ligou, e como não atendi, ela ligou mais 22 vezes. Claro que eu não vou retornar. Mas quem disse que adianta, a campainha tocou antes que eu colocasse o celular na mesinha onde eu o pegara.
          -- Oi, Simone. Onde você estava? Te liguei a manhã inteira...
          -- Fui dar uma caminhada na praia.
          -- Mas você não levou o celular?
          -- Não. Gosto de caminhar sem estar carregando nada, é mais confortável e tranqüilizante. Às vezes a tecnologia tem que ser esquecida para que lembremos que estamos vivos.
          -- Você fala tão bonito, queria ser assim.
          -- Assim você me deixa envergonhada. Mas me diga, o que trouxe a senhora aqui?
          -- Minha filha, eu nem te conto. Meu Deus, estou ficando louca.
          -- Mas o que foi que aconteceu desta vez?
          -- Eu não sei mais o que fazer, acho que vou ter um ataque. Só Deus e mais ninguém.
          -- Estou ficando preocupada. Me diga, o que houve?
          -- Minha filha, agora eu tenho certeza: estou perdendo meu homem. Aquela galinha, vaca, piranha, rapariga ladrona de marido.
          -- A senhora não vai dizer o que houve?
          -- Mas não é isso que tô lhe dizendo?: peguei os dois saindo de uma loja de jóias. O que eles poderiam estar fazendo numa loja de jóias? Ele tava era comprando presentinho pro amorzinho. Ah, cachorro da molesta. Infeliz, infeliz desgraçado. Mas ele me paga. Ah, sim, ele me paga.
          -- Mas a senhora tem certeza de que era realmente seu marido?
          -- E eu não conheço o traste que tenho em casa?
          -- Mas isso não prova nada.
          -- Não prova nada? Prova sim. De uns tempos pra cá, ele não me dá mais nem um tostão: diz que tá sem dinheiro, que a carne está muito cara e o povo não compra mais, que as despesas da casa estão altas, a escola da Angélica, essas coisas. Mas agora eu entendo, ele tava juntando dinheiro para dar presentinho pra biscate.
          -- Calma, a senhora está ficando muito nervosa; sente-se, por favor. Gostaria de um copo com água, um suco de maracujá?
          -- Muito obrigada. Um copo d’água tá bom.
          -- Aqui está a água.
          -- Minha filha, o que é que eu faço agora?
          -- Seja lá o que for, não se precipite. Não faça algo que a senhora vá se arrepender depois.
          -- Você vê? Tudo mudou depois que entrei na igreja. O pastor me dá muitos conselhos, acabo de vir de lá. Ele me disse que tudo que eu preciso fazer é deixar Deus guiar meu coração que tudo terminará bem. Ele tem me ajudado muito nesses tempos ruins. Sempre que eu tô triste procuro ele para que me faça sentir melhor. Claro que às vezes, quanto te procuro, você também me ajuda. Mas o pastor está sempre lá, me esperando com a luz divina...
          Nesse momento, enquanto a mulher falava, me indaguei surpresa: Se essa mulher me enche tanto o saco, imagina o que deve passar esse tal pastor, tenho até dó dele.
          ... Ele sempre pede pra eu chamar o Petrônio para freqüentar os cultos também, mas ele é cabeça dura, não gosta de igreja, diz que é crente não praticante. Vê se pode!
          -- Mas a senhora tem que se acalmar. Por que não vai pra casa e fala com ele, finalmente. Se a senhora pedir explicações para ele, talvez as coisas se esclareçam.
          -- Acho que você tem razão, tenho que me acalmar. Vou pra casa orar, quando ele chegar vamos ter uma conversa definitiva.
          -- Seria muito bom.
          A mulher se dirigiu para casa. Ao passar pela casa da nova vizinha, caminhou vagarosamente para tentar notar algum movimento suspeito dentro da casa. Mas como estava completamente fechada, a mulher seguiu seu caminho.
          Aquele encontro me deixou desconcertada. Será que Seu Petrônio estava realmente se relacionando com aquela garota? Não podia ser, uma menina tão bonita. Não queria acreditar naquilo, mas não consegui tirar o assunto da cabeça. Me parecia tão ridículo que eu cheguei até a querer que fosse verdade para ver no que ia dar.
          Estendi uma rede na varanda no primeiro andar de meu sobrado e fiquei observando o movimento da rua e tentando pegar no sono, o que não demorou muito. Quando acordei já quase não havia luz do Sol. Levantei-me meio tonta (resultado das sestas vespertinas) e notei que havia uma movimentação de pessoas na casa da nova vizinha, fiquei observando: pessoas bem vestidas carregando pacotes, indo e vindo, sempre como se estivessem atrasados para alguma coisa. Me perguntei se aquilo tinha algo a ver com seu Petrônio e o ciúme de Dona Rosa. Não agüentei de curiosidade e fui comprar pão.
          Segui para a padaria lentamente, sempre observando a movimentação. Quando passava exatamente em frente ao portão tive uma surpresa: Seu Petrônio vinha saindo de dentro da casa, pensei estar tendo alucinações. Parei em frente à casa em uma atitude inconsciente e olhei para seu Petrônio, também instintivamente. Quando me viu, acenou com a mão, me chamando para entrar na casa. Não conseguia entender o que se passava mas entrei assim mesmo. Havia muitas pessoas indo e vindo, tínhamos que falar alto para nos entendermos:
          -- Olá. Você é muito amiga daminha mulher, não é?
          Quase que eu não falava nada:
          -- A gente conversa às vezes.
          -- Pois bem. Estou dando uma festa pra ela, são nossas bodas de prata. Gostaria que a senhora me ajudasse, pra agradar a Rosa.
          -- Bodas de prata?
          -- Sim. Fazem vinte e cinco anos que moramos juntos.
          -- Nossa, eu não sabia! – quase caí pra traz com a surpresa – Parabéns!
          -- Por acaso a minha esposa falou algo sobre isso com a senhora?
          -- Não. Nunca sequer tocou no assunto.
          -- Foi o que imaginei. Sabe? A minha mulher não é mais a pessoa que era antes. Nós vivíamos muito bem, mas quando perdemos nossa primeira filha ela adquiriu algumas psicoses, sabe. Não sei bem o que é, mas o médico disse que não é grave, só precisa de atenção. Ela às vezes imagina coisas, coisas que só acontece na cabeça dela...
          Às vezes? – pensei.
          ... Ela andou muito transtornada ultimamente: vive fora de casa, não presta atenção na menina, vive me cobrando não sei o quê... – o homem deu uma pausa e respirou fundo – Hoje quero fazer uma surpresa para ela, uma festa.
          -- O senhor está planejando uma festa?
          -- Sim, há meses. Quem está organizando tudo pra mim é a Kátia.
          -- Kátia?
          -- Sim, a moça que mora nesta casa. Você não a conhece?
          -- A conheço só de vista, nunca tive a oportunidade de conhecê-la pessoalmente.
          -- Pois é uma moça com coração de ouro. Me ajudou até a escolher um colar para Rosa.
          -- Um colar?
          -- Sim, está aqui. Olhe. Não é grande coisa, mas o que vale é o valor sentimental, não é verdade?
          -- Claro.
          Observei o colar espantada. Realmente não parecia ser caro, mas o que me surpreendia era toda a confusão que Dona Rosa criara em sua cabeça por causa de uma presente que era para ela mesma.
          -- Pois bem, preciso de um favor da senhora, pela Rosa.
          -- Se estiver ao meu alcance...
          -- Acho que sim: estou indo agora para casa. Vou me comportar o mais natural possível e vou dizer a Rosa que terei que sair pra tratar de algumas vendas e dividas pendentes, e que só voltarei tarde da noite. Acho que isso não vai deixar ela feliz, e é aí que a senhora entra.
          Fiz uma expressão de quem pergunta do que se trata.
          -- Veja bem. A senhora vai lá em casa às oito da noite. Diga que se trata de uma simples visita, uma visita surpresa, já que a senhora nunca vai a minha casa. Então a senhora pergunta por mim. Quando ela disser que eu não estou e que só voltarei tarde, a senhora convida ela pra ir a igreja.
          -- A festa vai ser na igreja?
          -- Não, não gosto daquele lugar. Pra mim é só um bando de ladrão. A festa vai ser num salão de festas que tem perto, no caminho da minha casa pra igreja.
          -- Acho que entendi exatamente o que o senhor quer que eu faça.
          -- Se não for incômodo. Eu já tava desesperado procurando alguém para fazer isso pra mim. Se eu não achasse, tinha que estragar a surpresa e leva ela eu mesmo.
          -- Mas e a menina, também vai pra festa?
          -- Não, infelizmente não. Ela está na casa da tia, veraneando na praia.
          -- Entendo. Pois não se preocupe, Dona Rosa merece este presente. Assim que ela se arrumar nós vamos pra lá.
          -- Muito obrigado.
          -- Não se incomode.
          Voltei para casa, esqueci do pão. Fui rindo comigo mesma como aquela mulher é tola. Ria ainda mais por me considerar mais tola ainda por acreditar nela. Mas o importante é que tudo se resolveria e Dona Rosa não teria que me procurar tanto, estaria livra daquele encosto e poderia relaxar à vontade novamente. Tomei banho e troquei de roupa rapidamente, estava ansiosa para ver a cara da velha quando perceber como idiota é. Vesti um vestido preto com detalhes brancos, sempre gostei de ser básica, odeio apetrechos. Quando terminei de me arrumar ainda faltavam uma hora para o horário que eu deveria chegar à casa de Dona Rosa. Então peguei o livro Dom Casmurro e fiquei folheando e refletindo sobre algumas partes: como o amor é banal. As pessoas se engalfinham por causa de relacionamentos, sofrem por causa de outra pessoa e acham normal, algumas até gostam. Esquecem elas que mentem para si mesmas quando dizem que amam alguém, quando na verdade somente amam a si mesmas e sofrem por si mesmas por não serem capazes de escravizar o parceiro. Refletindo acabei pegando no sono com o livro na mão.
          Quando acordei já estava quase vinte minutos atrasada. Saí de casa e fui com passos apressados a casa do casal de prata. Não havia mais movimentação na casa da nova vizinha (que agora eu sabia chamar-se Kátia), aliás, não havia quase ninguém na rua inteira. Afinal de contas, era hora da novela. Já não estava tão empolgada como antes, queria ir pra casa e me esparramar no sofá pra assistir bobagem na TV bebendo alguma coisa.
          Cheguei ao destino em poucos minutos, toquei a campainha, ninguém atendeu. Toquei novamente, nada. Chamei pelo nome de Dona Rosa, nada. Temi que algo de ruim tivesse acontecido, abri a porta eu mesma e entrei lentamente. A primeira imagem que eu vi foi Dona Rosa ajoelhada orando em frente a uma grande cruz que ficava na sala de estar. Chamei-a pelo nome mas ela não pronunciou uma palavra, abaixou a cabeça. Foi então que percebi que havia uma arama no chão, abaixo da mulher, entre suas pernas. Tive um espanto, quando virei o rosto para a direita vi Seu Petrônio caído ao chão e uma poça de sangue abaixo dele. Fiquei atônita, as únicas palavras que consegui pronunciar foram “Meu Deus”. Olhei novamente para a mulher, que agora estava com a arma na mão e me fitava. Me olhava com olhos firmes e convictos, nem parecia que acabara de matar o marido. Estávamos estáticas feito estátuas, uma olhando para outra, então ela medisse: “Deus sabe o que faz”. Em seguida deu um tiro na própria cabeça.


Biografia:
Nascido em Bananeiras-PB, em 1983. Graduando em Letras, atua como professor de Lingua Inglesa e Literatura e ainda como tradutor. Leitor assiduo dos autores contemporaneos da america latina, além do mestre Poe.
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