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A hora e a vez de Robespierre
Edineyalison Wallas

Robespierre fugiu de casa. Não agüentava mais aquela vida monótona e repetitiva. Era obrigado a dormir no mesmo lugar, comer sempre a mesma coisa, passar os dias sempre entre as mesmas quatro paredes, ver sempre as mesmas pessoas. Para evitar rebeliões, fugas ou comportamentos indesejáveis, lhe castraram desde a infância. Até que eram simpáticos aqueles que o aprisionaram. Mas queria mais, queria o mundo, queria sair da caverna escura e contemplar a luz do desconhecido. Enfim, queria viver de verdade. Desde sua primeira lembrança, era aquela casa o cenário de todos os seus dias. Nunca lhe foi permitido sequer ir a esquina comprar leite ou o jornal diário. Fora mantido ali desde a concepção, imaginava. Além dele, haviam mais quatro pessoas que viviam na casa: um homem, duas mulheres e um garoto. Este, o que passava mais tempo em casa, era o que costumava lhe fazer companhia nas horas de solidão, às vezes arriscava até manter um diálogo. Porém, nunca permitira que Robespierre proferisse uma palavra, tinha apenas que ouvir, nada de desabafar.
          Robespierre não agüentava mais tal situação. Vivia cabisbaixo e triste. Sentia-se cansado, doente, inútil. Sempre via na TV – privilegio que não desfrutava, a não ser quando outro residente a estivesse assistindo – diferentes lugares, pessoas e animais. Era um mundo curioso. Ele era esperto, era um visionário. Sabia que todas aquelas coisas não caberiam naquele cubo de trinta e duas polegadas. Por seu eterno tempo de ócio, tinha tempo suficiente para refletir sobre as coisas do mundo. Não sabia ler, mas era bom observador. Refletiu, refletiu, e chegou à conclusão de que aquelas maravilhas só podiam existir além da porta de entrada da casa, pois as dos fundos davam nunca gigantesca piscina e um muro de mais de três metros de altura. Tentara, inclusive, dezenas de vezes pular tal obstáculo para a liberdade. Porém, nunca conseguira sequer chegar à metade daquela altitude.
          Maquinou sua fuga durante meses. Concluiu que o momento ideal seria durante as festas esporádicas que aconteciam na mansão. Festas animadas, com muita gente bebendo champagne e saboreando deliciosos tira-gostos. Sabia que com todos ocupados ou semi-bêbados, as atenções seriam desviadas dele e, com o entra-e-sai de pessoas, o portão seria aberto varias vezes. Numa delas, enquanto entrava um carro prata com vidros escuros e com rodas que brilhavam tanto que quase desviaram a atenção do fugitivo, nosso amigo conseguiu sua maior proeza. Agora estava livre e queria conhecer, descobrir, explorar.
          Após ter corrido alguns minutos, por medo que alguém notasse sua falta, caminhava lentamente e observava aquelas grandes casas com portões de ferro e câmera de figilância. Não era assim que imaginara o mundo, da TV parecia muito mais empolgante, diferente. Caminhou o dia inteiro, estava cansado, queria comer algo e descansar um pouco. Observou um estabelecimento e notou que o dono já fechava as portas, correu para pegar o açougue aberto. Proferiu:
          -- O senhor, por acaso, poderia me conceder um pedacinho de filé? Pode ser cru mesmo, eu não ligo. Estou querendo experimentar coisas novas. Sei que não tenho dinheiro para lhe pagar, mas ficaria muito grato de o senhor me fizesse a gentileza.
          O homem sequer respondeu ao nosso amigo. Deu-lhe uma pancada violenta com o ferro que usava para baixar a porta esteira em sua barriga, e afastou o pedinte a ponta pés. Nosso amigo correu dali cambaleando, não entendera a razão de tanta brutalidade daquele homem. Andou mais um pouco, tinha sede. Se não queriam lhe dar comida, ao menos um pouco de água haveriam de lhe dar. Aproximou-se de uns rapazes que bebiam água mineral no ponto de ônibus. Olhou para eles com cara de pidão e proferiu:
          -- Será que os rapazes se importariam em me conceder um gole desta água? Tenho muita sede e não quero beber esta água do chão, que deve estar cheias de germes.
          Os rapazes, assim como uma senhora e um casal que também estavam ali se afastaram. Nosso amigo os acompanhava e proferia:
          -- Não tenham medo. Não vou lhes fazer mal algum. Quero apenas saciar minha sede, que está me matando.
          As pessoas se afastavam cada vez mais. Sentiam realmente medo daquele pedinte, principalmente por seu modo de falar e seu porte físico imponente. Um policial que estava por perto, vendo a confusão, se aproximou dando um tiro para o alto, o que fez nosso amigo entrar em pânico e correr dali desesperadamente. Novamente não entendeu por que aquelas pessoas o temiam, por que elas se afastavam e o escorraçaram sob bala.
          Já exausto, sabia que as coisas aqui fora não eram tão boas como imaginara. Porém, resolveu dar tempo ao tempo. Cedo ou tarde encontraria aqueles parques de diversões, aquelas grandes cachoeiras, aqueles lindos shoppings centers, aquelas belas praias, aquelas pessoas simpáticas e amáveis, aqueles parques onde as famílias se reuniam para um piquenique e jogavam a bola longe para o cachorro pegar. Enfim, um dia acharia aqueles lugares e aquelas pessoas maravilhosas que sempre vira na TV.
          Caminhou um pouco mais, bebeu um pouco de água numa possa que se formava na queda de uma bica de um telhado, e procurou um lugar para passar a noite. Odiou aquela água, a bebeu com o maior nojo do mundo. Sabia que aquilo era fonte rica de bactérias e doenças, mas sabia também que a sede estava o matando. Não dormiria sem saciá-la. Observou uma pousada que havia por ali, entrou. Olhou para a balconista e proferiu, agora mais calmamente que nas outras vezes, pois o cansaço faz todos ficarem mansos:
          -- Com licença, senhorita. Estou numa situação constrangedora: estou morto de cansaço e não tenho lugar digno para dormir. Embora eu não possa pagar, será que você teria um quartinho disponível para mim? Não precisa ser muito grande, quero somente um teto para me proteger do sereno.
          A balconista chamou alguém. Quando um homem alto entrou no hall, ela pediu:
          -- Por favor, tira esse animal daqui! Ele tá fedendo, vai espantar os hóspedes.
          A ponta pés nosso amigo foi expulso da poupada. Ficou chocado por perceber que todos aqui fora têm esse instinto agressivo e mal educado. Por que não lhe prestavam um simples favor? Por que o tratavam como um ser inferior? Por que não o respondiam? Por que, por Deus, sequer pareciam lhe dar ouvidos? Não entendia. Enquanto vivia enclausurado, sempre tinha tempo para pensar. Nunca tivera fome. Nunca sentira sede. Tudo estava sempre lá. Refletir sobre a melhor coisa a fazer era fácil. Refletir sobre os segredos da vida, mais fácil ainda. Mas percebia que vivendo ali, com fome, sede e frio não conseguia pensar em nada, nada, nada! Sentiu-se extremamente triste. Sua lógica o enganara: as coisas que via na TV não estavam além da porta de sua casa. Mas onde estariam? Não importava mais. Queria voltar para seu lar, sentia raiva e desprezo por aquele mundo de ignorância e violência.
          Sabia mais ou menos o caminho de volta pra casa. Teve medo de se perder, mas preferia arriscar a ficar vivendo naquele lugar. Preferiu começar sua jornada de volta ao amanhecer, procurou um cantinho numa calçada para dormir. Percebeu que haviam alguns pedaços de papelão e uns trapos em frente a uma padaria que estava fechada. Se aproximou, deitou.
          Antes que pegasse no sono chegou um mendigo, que gritou:
          -- Sai daí, seu vira-lata! Essa cama já tem dono. Sai! Sai!
          Robespierre se afastou um pouco. Novamente era escorraçado. Será que nem no meio da rua tinha direito de descansar. Não agüentou mais sua passividade, proferiu:
          -- Que droga! Deixe de ser mal educado. Será que a gente não pode dividir o leito? Também tenho sono, assim como você! Deixe de ser egoísta!
          Enquanto o cachorro latia indignado, o mendigo percebeu uma coleira dourada no pescoço do animal, pensou “Esse bicho é rico e tá perdido, agora eu ganho a boa”.
          -- Vem cá. – disse o mendigo – Você tá cansado, não tá? Andou muito hoje, né?
          -- Você não faz idéia o quanto. Estou exausto.
          -- Quer ir pra casa, quer?
          -- Sim, quero. Você poderia fazer isso por mim? Me levar em casa?
          -- Vem cá. Deixa eu ver essa tua coleira aí. Hum, só tem uma palavra aqui: Ro, ro, robi, robis, pi, pi, erre, Robespierre!? Mas que merda é essa? Aqui não tem teu endereço! Isso deve ser a raça, ou então a marca da coleira.
          -- O senhor vai me levar em casa?
          O mendigo retirou a coleira do animal e o pegou no colo. Caminhou mais alguns metros e entrou em um beco. Ali haviam mais dois mendigo conversando e esquentando suas mãos em latões onde queimava plástico velho.
          -- Hei, pessoal, tenho novidades. Hei, Buchada Quente, pega a o facão aí. Hoje a janta vai ser carne.    


Biografia:
Nascido em Bananeiras-PB, em 1983. Graduando em Letras, atua como professor de Lingua Inglesa e Literatura e ainda como tradutor. Leitor assiduo dos autores contemporaneos da america latina, além do mestre Poe.
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Publicações de número 1 até 9 de um total de 9.


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