O momento social atual mostra uma profunda preocupação do ser humano com sua aparência. Esta preocupação leva as pessoas a cometerem loucuras pela plástica perfeita, ou pelo menos o que elas julgam ser perfeita. A busca da perfeição estética chegou até nós através da ideologia passada de geração a geração. É comum ouvir os adjetivos “deus grego” ou “deusa grega” para as pessoas belas. Mas o que é ser belo? A palavra “belo” é definida como aquele que tem formas e proporções esteticamente harmônicas, tendendo a um ideal de perfeição. Portanto, quando uma pessoa não se considera “bela”, a busca da beleza, e através dela de uma aceitação social, torna-se uma luta diária e sem limites.
A literatura soube, e sabe, representar muito bem esta insatisfação humana com aparência física. Como negar a obsessão de Dorian Gray pela juventude na obra O Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde? Na obra O Corcunda de Notre Dame, de Victor Hugo, é marcante o contraste entre Quasímodo e Esmeralda. Quasímodo é o ser deformado que interage com Esmeralda, cigana belíssima. Como lidar com a criação do Dr. Victor Frankenstein, da obra Frankenstein de Mary Shelley? O monstro Frankenstein é um ser socialmente excluído do convívio com as pessoas por ter uma aparência horrenda. Como explicar a atitude de Fausto, no romance Fausto de Goethe, que chega a vender sua alma ao Diabo em troca da juventude? Como não se envolver com a história de Christine Daaé e Erik, o ser desfigurado e apaixonado pelas artes e pela sua bela Christine em O Fantasma da Ópera de Gaston Leroux! Mas talvez, a obra mais marcante com relação à dicotomia aparência X essência seja a obra A Bela e a Fera.
A obra A Bela e a Fera é um conto de fadas, e como tal tem por objetivo, em suas entrelinhas, moldar o comportamento humano. A autoria deste conto de fadas é atribuída a Madame Jeanne-Marie de Beaulmont, uma religiosa do século XV. É claro que do século XV até nossos dias muitas versões foram feitas e a versão mais conhecida deste conto de fadas é a produção dos Estúdios Disney. Porém a essência da obra não mudou, pois continuamos a tratar do tema aparência X essência. Eis o eterno mote humano, retratado na literatura mundial e nos sermões religiosos. Como então podemos ignorar a questão da beleza plástica em nossa sociedade se desde a mais tenra idade somos moldados ideologicamente para buscarmos esta perfeição da aparência?
Em prol da aparência, a essência das pessoas fica relegada a um segundo plano. Os primeiros julgamentos que fazemos de qualquer ser que encontremos passa primeiro pelo crivo da aparência para depois, talvez, chegarmos à essência. Shakespeare soube muito bem retratar a aparência humana em sua dramaturgia por meio das máscaras teatrais. Até mesmo a essência foi retratada em Hamlet, obra em que o personagem Hamlet é o personagem filósofo atormentado pelo assassinato do pai. Nesta mesma obra foi também retratada a máscara fraterna de seu tio e padrasto Claudius, com todas as suas artimanhas para chegar ao trono.
É claro que temos também obras atualíssimas que buscam instigar a reflexão dos temas já cristalizados em nossa cultura. Em se tratando de aparência X essência temos em Shrek, de Ted Elliott e Terry Rossio, um bom exemplo destes tempos de mudanças do pensamento humano. O herói deste conto de fadas é um Ogro e a Princesa Fiona, bela e delicada, ao se livrar do feitiço que lhe fora colocado, toma sua forma real: uma Ogro. Ora, Ogros não formam o padrão de beleza estética idealizado pelas pessoas, já acostumadas e convencidas de que a beleza plástica leva o ser humano à felicidade.
Apesar de ser um raciocínio equivocado, algumas pessoas realmente conquistam sua felicidade após vencerem os obstáculos do espelho de Narciso. O que é mais interessante neste processo é que a beleza é um conceito subjetivo e como tal depende mais dos olhos de quem vê do que dos olhos de quem é visto. Portanto, cabe-nos refletir sobre um pensamento de Oscar Wilde: “We are each our own devil, and we make this world our hell.”[1]
[1] “Nós somos o nosso próprio demônio, e fazemos deste mundo o nosso inferno.”
Texto extraído do livro Corpos estéticos. Publicado pela revista Griffe.
www.revistagriffe.blogspot.com
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