O MOLEQUE E O SAMBAQUI
Viegas Fernandes da Costa
Tem ele um bar no Norte da Ilha de Santa Catarina. Conheci em um destes invernos de vento sul, as imensas janelas contemplando o Atlântico e as paredes repletas de pequenos bilhetes enamorados, o amor cantado baixinho - como pretendia Quintana – nos sussurros da sua eterna brevidade. Urda e eu comíamos frutos do mar, colhidos ali por perto, os dedos enregelados e os ouvidos perdidos no marulhar, quando veio nos cumprimentar. Sorriso, aperto firme de mãos, descobrimo-nos todos historiadores – oras, vejam só – assentados sobre um pré-histórico sambaqui. Tudo ali cheirava à ancestralidade: as pedras, a praia, as já camufladas montanhas de conchas a tanto empilhadas, a tanto saqueadas. Apontou-me com os dedos o velho cemitério; com a boca, apontou-me histórias do lugar. Uma memória ansiosa por contar, um par de ouvidos ansiosos por ouvir.
Lembranças dos idos de menino, calças curtas, os pés descalços na areia molhada, a cabeça matutando guloseimas. Como consegui-las dos padres que habitavam o colégio católico, lá no alto? Interessante observar como o alento das lembranças de menino iluminavam o rosto do adulto. A solução encontrada naquelas milenares montanhas de conchas e nas necessidades do pequeno museu de história natural que dormia escondido em algum canto escuro do centenário colégio. As mãos de criança fuçando nas conchas, encontrando ossos, cerâmicas, pequenos zoólitos, pontas de flechas, as pedras lascadas, as pedras polidas. Depois a estrada sinuosa para o alto do monte, para os muros da escola, para a batina dos padres. Confessou o antigo medo pelos sacerdotes, olhares duros, jesuíticos. A estes interessavam apenas as peças inocentemente profanadas nas praias lá de baixo, e a exposição privada nas estantes do pequeno museu. Melhor assim, quando tantos sambaquis sucumbiam nas criminosas fábricas de cal e no aterro das rodovias. Eles, moleques felizes, desciam lambuzados de chocolate e as bochechas inchadas de chupar balas: nada sabiam daquele povo sambaqui, “coisas de índios”, repetiam-se, cujo valor media-se em doces.
Agora os planos de um grande parque arqueológico, de estudar e deixar onde está, de convidar o mundo para conhecer. O moleque cresceu, aprendeu a história do chão onde dormem as fundações do seu bar, da igrejinha onde o batizaram, do que se esconde sob as pedras do calçamento que tantas vezes pintou com o sangue inconseqüente das travessuras. Aprendeu a história e o valor, ensina a outros moleques – os de hoje – a riqueza daquele grande museu sob o teto do céu, tão maior do que aquele escondido nos corredores santos e taciturnos daquele colégio.
Quando saímos, já lua na noite, o vento sul tomou-me outro, e meus pés pisavam com cuidado.
|