A CHUVA É O SANGUE DA TERRA
por Viegas Fernandes da Costa
"A chuva é o sangue da terra!", foi esta a resposta que ouvi daquela boca enrugada e desprovida de dentes, emoldurada no rosto daquele camponês do pó e do suor, cujas mãos, afeitas à enxada, jamais seguraram um lápis. O homem parecia ter se desprendido das páginas de "Vidas Secas" - mestre Graciliano Ramos, pudeste vê-lo também? - , e encarava a câmera com aquela timidez típica de quem passa os dias curvado sob o céu limpo, de parcas e acanhadas nuvens, o lombo açoitado pelo Sol. Respondia à pergunta do repórter, acho que do "Fantástico", que apresentava matéria sobre a seca no Nordeste. Quem me relembra o fato é o Ernesto. Reportagem antiga, de mais de dez anos, acho.
Um poeta, certamente; quiçá conhecera Patativa do Assaré!
"A chuva é o sangue da terra!", este é o poema que brota dos olhos, do solo gretado, da seiva dos cactos. Poema doído. Porque... O poema, o que é? Lembro-me da resposta de Iberê Camargo quando questionaram-lhe sobre o porquê da sua pintura: "pinto porque a vida dói". Ernesto se entusiasma e cita em tom solene: "e a minha poesia é natural e simples como a água bebida na concha da mão", do velho Quintana que escuta e aplaude sentado sobre a cúpula do antigo Hotel Majestic, a rua da Praia ("sinto saudades!") estende-se sob seus olhos. Ernesto agradece os aplausos e se inclina em reverência ao mestre. Quintana, branco como farinha de trigo, contribui: "lembra-te, ... talvez a poesia não passe de um gênero de crônica, apenas: uma espécie de crônica da eternidade". Definir a poesia?
É isto amigos, amigas, apesar do título, não quero falar da seca, pelo menos não daquela que grassa em nosso Nordeste ou no deserto de Ogaden, não, provoca-me a vontade de falar de poesia, ou, pelo menos tentar... titubear...
... porque procuro poemas sob as pedras, pesadas e imóveis
e os encontro no céu e nos olhos que vislumbram o infinito...
Neruda narra que em sua infância trajava-se de preto, como deveriam trajar-se os poetas. Acho que mais tarde percebeu que poetas não se vestem, despem-se! Despidos como o camponês que fala acima, sua pena é a enxada, seus versos são os sulcos de esperança traçados na página da terra. Telúrico poema que não assina, pois sabe, a poesia não lhe pertence.
Se poema é crônica, como afirma Quintana lá do alto do Majestic, o melhor poema é o instante que se perde no tempo, mas que se preserva nas "retinas fatigadas" (as de Drummond volveram ao pó e podem ser agora uma pedra no caminho ou o vento que as apaga, sei lá...) ou nos lábios que venceram o medo e arrancaram um beijo escrevendo assim o opúsculo dos ósculos.
Por isso Ernesto escora mesas com livros, grandes volumes de versos. Faz o teste: a mesa deve balançar, ficar desnivelada, torta. Se firme, despótica ante as imperfeições do piso, os versos que a escoram não são poesia, já que entende que o poema, ao escorar o mundo, deve entortá-lo ainda mais. Coisas do Ernesto que desconfia de todo aquele que se apresenta como poeta, que se veste de preto e faz noite de autógrafos em clube social. Prefere ouvir a poesia que emana das vozes da rua, dos gritos das feiras, do silente do templo.
Ontem mesmo flagrei-o discutindo sonetos com um tomate. Ficou irritado, arrancou o fruto, picou-o na cozinha e comeu seu interlocutor. Aprendi que discutir poesia com o Ernesto pode ser perigoso, e por isso me calo.
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