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Lisérgicamente
Camila Gusmão

Era uma espécie de projeto sem fins lucrativos que ensinava as crianças processos simples de reciclagem, ecologia, artes cênicas, plásticas, enfim, provavelmente um projeto educacional. De fato, eu não recebia salário, mas era exatamente o que eu procurava. Eu podia preencher meu tempo, sentia-me satisfeita com o que estava fazendo, e orgulhosa de mim mesma como nunca antes eu havia me sentido. As crianças dali eram realmente especiais, não eram só crianças, eram acima de     tudo muito admiráveis em relação aos seus ideais. Sabe, talvez por estarem inseridas em uma comunidade um pouco distanciada da realidade das capitais e televisões, conseguissem basear suas ambições naquilo que as rodeava, e que é tudo o que realmente importa.
Quanto ao Júlio, bem de vez em quando ele passava dias inteiros comigo fazendo parte de tudo aquilo que me transformava na pessoa mais radiante do universo, as vezes ele passava semanas inteiras refletindo sobre a vida, buscando dentro de si mesmo a verdade que transcenderia nossas vidas pra sempre. Eu sempre fui extremamente ligada a reflexão que é necessário fazermos com nós mesmos no instante em que sentimos anseio de um pedaço de nós que parece estar perdido em algum lugar, mas sabe, de alguma forma ficou claro pra mim que o meu pedaço já estava dentro de mim, e já havia sido encontrado, de modo que eu não precisava de uma conexão tão direta com Júlio, e ele agora estava se tornando simplesmente um ser humano especial como qualquer outro. Eu percebi que o amava, finalmente, mas era tudo. E eu amo incontestavelmente todos aqueles que de alguma forma trocam algo comigo.
Eu percebi que trivialmente o amava.
E ao mesmo tempo, eu percebi que era hora de partir. Por dias eu também fui obrigada a recorrer à reflexão, então a minha mente maquinava um jeito de desmontar esse grande paradoxo que eu havia criado; eu certamente estava feliz, certamente estava orgulhosa de minhas atividades, e finalmente encontrara a versão da minha alma em outra pessoa. Porém, insistentemente, dentro de mim havia uma seta que apontava outra direção, outros orgulhos, outras almas, e se eu não partisse nessa direção, estaria me rendendo a minha possível insegurança, medo de abandonar a felicidade que chegou repentinamente.
Ao lançar esses pensamentos ao meu novo amigo, Vicente, o fundador da escola, que me fitava atento a cada palavra, pouco antes de me responder proferiu um silêncio calmante que saia de seus poros, que atingia seu semblante de dentro pra fora.

‘veja bem, minha amiga, você sabe que eu a amo incontestavelmente, não sabe?’
‘sim, você sabe que eu sei, e sobretudo que eu também o amo, meu irmão’.
‘certo, e você provavelmente também sabe que nós somos irmãos de alma pois compartilhamos as mesmas verdades...’

Ao longo das frases, ele abria um sorriso que também saltava de dentro pra fora, e transparecia seu espírito jovial e cheio de horizontes ainda não alcançados.

‘desse modo, você deve considerar seriamente o que eu vou dizer, porque eu jamais iria contra seus pensamentos se não sentisse que é esse o melhor sem riscos de sombras.’
‘ora Vicente, me conhecendo tão perfeitamente, sendo parte da minha alma, você deveria saber que eu recorri a você justamente por me sentir um pouco abalada, e necessitar da luz de um amigo.’
‘certo, então saiba que o seu anseio é simplesmente um obstáculo que você mesma está criando, por favor minha querida, reconsidere tudo antes de considerar novamente essas besteiras tão humanas. Você tem o poder de uma alma esclarecida, está tão encaixada e perfeitamente inserida, sincronizada com tudo! O que você acha que a faria se afastar disso tudo?!’
‘Talvez. Desculpe a minha insegurança, é que eu realmente não sei.’

Ah, em um momento apenas a escuridão que parecia ter-se tornado parte integrante de mim, agora havia sido assoprada por outros caminhos pelo meu amigo. E nos abraçamos fortemente, de modo que, pude me sentir dentro dele e até ouvir o barulho do seu corpo funcionando.
Estávamos sentados em cima das mesinhas usadas pelos alunos pra desenhar, e o cheiro do incenso que estava sempre queimando invadia minhas narinas, trazido pelo vento leve do dia quase perto do fim, acalmando e acariciando nossos humores. Quase não notei que estávamos prestes a concluir nossa ligação de almas, e literalmente nos inserirmos. Nunca depois desse dia eu jamais me senti tão em perfeita sincronia com toda a beleza do universo, e por mais profundas que fossem as dúvidas que nos instantes anteriores acampavam em volta da minha segurança, agora nada me faria nem por mais um segundo, me distanciar dali, e do meu irmão de alma, que pra minha sorte, aparecera depois do Júlio, que antes eu julgava o ser em maior sincronia.
É incrível como você sabe de tudo, e no instante seguinte age como se fosse o mesmo idiota de antes. E é incrível como eu sempre tive a sorte de encontrar as pessoas mais iluminadas e decididamente compreensivas das minhas verdades em todas as fases da minha vida.   

Júlio e eu a poucos meses tínhamos decido sair da pousada e ir morar com Vicente. A casa tinha sido da irmã dele, moravam juntos até que ela resolveu tentar a sorte na Europa, Vicente tinha uma conexão muito profunda com a irmã, e sempre que podia trocava cartas com ela. A casa deles era realmente muito peculiar, apenas três cômodos e um jardim tão grande que contávamos nele pelo menos o tamanho da casa. Por todas as paredes havia desenhos que ele e a irmã tinham feito; referências aos céus, fadas, e em alguns lugares havia somente cores deslumbrantes que pareciam desfazer qualquer fronteira que existisse entre um lado e outro da casa. Havia um único quarto pra nós três dormirmos, e suas paredes, ao invés de pinturas, eram cobertas por pedaços de um pano carmim, que o faziam parecer macio.









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